Entrevista com especialista em bioética,
Pe. Helio Lucian
Por Thácio Siqueira
Para ajudar os católicos e pessoas de boa vontade do Brasil na reflexão sobre as implicações desse anteprojeto, ZENIT entrevistou o especialista em bioética, Pe. Hélio (para ler anterior entrevista com Pe. Hélio, sobre o aborto no Brasil clique aqui), membro da comissão de bioética da CNBB.
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Qual
é a sua opinião sobre o Anteprojeto do Código Penal entregue ao Senado
Federal recentemente? Houve participação de católicos preparados em todo
o período de estudo e de debate sobre o anteprojeto? O governo se
interessou realmente em fazer que a sociedade debatesse todos os pontos?
Houve uma aceitação das propostas enviadas pela liderança da Igreja
católica, dos cristãos no geral, e de todos os que são contrários ao
aborto, como os espíritas e outros grupos?
PE.HELIO
– Há que se falar, antes de qualquer coisa, da necessidade premente de
um novo Código Penal no Brasil. O atual está defasado, tanto pela sua
“idade” – já passa dos setenta anos – como pelo fato de que, desde a sua
promulgação durante o “Estado Novo”, foram promulgadas ou outorgadas
pelo menos outras três Constituições no Brasil (alguns consideram que
foram quatro). Neste período, o Código atual foi sofrendo diversas
emendas, perdendo sua unidade e, em alguns pontos, mantendo
regulamentações que já não condizem às práticas atuais.
Também
é necessário dizer que o texto do Anteprojeto para o novo Código Penal,
apresentado pela comissão de juristas, é um texto claro, unitário e, em
grande parte, em conformidade com a Constituição Cidadã de 1988.
Ainda
que no seu conjunto seja um texto positivo, existem alguns pontos que
contradizem tanto a nossa Carta Magna como a opinião da imensa maioria
dos brasileiros. Sendo assim, minha preocupação em relação a este Anteprojeto é, em primeiro lugar, uma preocupação em sentido jurídico – um Código Penal não pode legislar afrontando a Constituição, criando ou eximindo de crime aquilo que a Carta Magna defende.
Em
segundo lugar, preocupa-me que alguns valores próprios de uma sociedade
tentem ser desrespeitados de modo quase despótico, ou seja, sem ampla
consulta à sociedade. É verdade que havia um canal de sugestões
no Senado no qual foram apresentadas aproximadamente 3.000 propostas,
mas pergunto-me: quantas pessoas sabiam que o código penal estava sendo
reelaborado e que são 3.000 sugestões para uma população de quase
200.000.000 de habitantes?
O
que reivindico – até este ponto – não tem nenhuma conotação religiosa –
peço apenas o respeito à Constituição e aos valores próprios de um
povo.
Em
terceiro lugar – mas não menos importante – preocupa-me que em um País
de imensa maioria cristã, alguns valores defendidos pelo cristianismo
possam ser simplesmente contrariados. Não se trata aqui de reivindicar a
presença de católicos ou de outros cristãos na comissão de juristas,
mas sim de defender que os
valores cristãos – próprios da nossa sociedade – fossem respeitados.
Certamente a laicidade do Estado não pode ser confundida com um
laicismo. A laicidade separa o Estado da religião enquanto o laicismo
nega todos os valores de uma sociedade.
Finalmente,
é bom lembrar que as falhas do Anteprojeto não se referem apenas às
questões ligadas à vida – como o aborto e a eutanásia – mas também a
outras questões importantes como, por exemplo, o uso de drogas e a
aceitação de um terrorismo bom.
Ainda há algo a ser feito ou podemos dizer que a proposta atual é a proposta que vai permanecer?
PE.HELIO – Certamente há ainda muito a ser feito. O Anteprojeto do Código Penal, como diz o próprio nome, não é ainda nem mesmo o projeto que será submetido a votação. Agora é o momento de juristas competentes enviarem emendas ao texto. Este é o momento também da sociedade exercer sua função dentro da democracia – explicando aos amigos o que está em jogo, usando
a mídia, as redes sociais, os e-mails, entre outros meios, para que não
aceitemos, passivamente, que mudem a nossa sociedade naquilo que não
estamos de acordo.
Um modo de nos fazer ouvir também seria enviar e-mails aos Senadores e Deputados,
manifestando a nossa opinião através de argumentos racionais – se um ou
dois enviam, não surtirá efeito, mas se uma grande porcentagem da
população começa a escrever, com certeza nos ouvirão.
O
direito não é filho do céu. É um produto cultural e histórico da
evolução humana”, frase de Tobias Barreto, que se encontra no cabeçalho
da apresentação do Anteprojeto assinado pelo Relator Geral. Essa frase,
não mostra a raiz do problema do direito na nossa época contemporânea,
que elimina a existência de um direito natural? E que autoriza, de certa
forma, as sociedades a inventarem as suas normas de conduta, de acordo
com os interesses do momento?
PE.HELIO – De fato, infelizmente, uma parte dos juristas brasileiros interpreta a justiça de um modo puramente positivo. Segundo
estes, o que define o certo e o errado é apenas aquilo que está escrito
na lei, mas esta não corresponderia a nenhuma natureza humana, ou seja,
não expressaria, em forma de lei, o modo como o homem é de fato.
É lógico que a expressão da natureza humana pode dar-se de distintos
modos ao longo da história – e isso também deve ser contemplado pelo
ordenamento jurídico – mas não será a cultura quem configurará o modo de ser do homem. Consequentemente, as leis devem expressar este modo de ser – o matrimônio, a defesa da vida, a busca do bem comum, são elementos que transcendem a cultura, pois pertencem ao homem em si mesmo.
Mas antes de falar desta crise do direito natural é necessário falar da crise da “verdade”.
Parece que, em alguns ambientes, a “verdade” deixou de existir –
expressões típicas como “você tem a sua verdade e eu tenho a minha”,
demonstram tal crise. É certo
que podemos ver a realidade desde distintas perspectivas, mas um dos
princípios mais básicos da racionalidade humana é o princípio da não
contradição – uma coisa não pode “ser” e “não ser” ao mesmo tempo. Um
exemplo mais simples: se chegarmos a um consenso absoluto – 100% dos
votos – de que uma vaca é um cavalo, não converteremos a vaca em cavalo.
As coisas existem na realidade e podemos alcançar o conhecimento delas
ou não, mas jamais podemos alcançar duas verdades contraditórias sobre a
mesma realidade: a vaca não pode ser vaca e cavalo ao mesmo tempo. Isso
nos leva àquilo que o Papa chamou de “ditadura do relativismo” –
não se pode impor nada a não ser a absoluta necessidade de ser
relativista. Todos os que disserem conhecer uma “verdade” são
considerados totalitaristas ou fundamentalistas.
Parte da nossa cultura jurídica sofre também deste mal: segundo esta cultura,
seria necessário fazer um ordenamento jurídico que não possua
“verdades”, mas apenas normas. Seria a norma que converteria a realidade
em “verdade”. A “marcha da maconha”, ainda induzindo às drogas e
incentivando o tráfico, é “liberdade de expressão” – segundo o
Anteprojeto do Código Penal até mesmo o consumo pessoal de qualquer
droga é lícito – enquanto defender a vida de um feto é um desrespeito à
liberdade individual.
Desta
crise da “verdade” nasce a crise do direito natural. Se não existe
“verdade” não pode existir um verdadeiro modo de ser do homem. Sendo
assim, todas as liberdades devem ser respeitadas, ainda que destruam a
sociedade. A “liberdade” tomou o lugar da “verdade” – e não uma
liberdade que busca o bem, mas uma simples liberdade de escolha.
Esquecemos que o que deve guiar a sociedade é a busca do bem comum e não
a busca dos bens individuais – e assim deixamos de ser uma sociedade
fraterna e nos convertemos, como diria Hobbes, em lobos para os outros
lobos.
No
Anteprojeto, no art. 128, inciso IV fala-se da descriminalização do
aborto quando a mulher, até a décima semana, quiser abortar, seguindo o
parecer de um psicólogo. É lícito, moralmente falando, que uma mulher
decida pela vida do seu filho? A lei tem o poder de definir isso? Não
será injusto deixar para a mãe a decisão, principalmente na hora da
fraqueza?
PE.HELIO
– É necessário, primeiro, distinguir o texto escrito da intenção dada
ao artigo – deixemos de lado se a confusão textual foi colocada de modo
proposital ou não. O texto mencionado diz que o aborto, até a décima
segunda semana de gestação (aproximadamente três meses), não poderia ser
punido “quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não
apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade”. Segundo o
texto, o aborto não seria mais punido, pois se alguém decide abortar, é
lógico que se sente – psicologicamente – incapaz de arcar com a
maternidade. A Espanha, em
1983, aprovou o aborto com um texto bastante similar a este. As clínicas
de aborto tinham psicólogos contratados somente para assinar os
prontuários, sem nem mesmo conversar com as mães.
Por
outro lado, o Anteprojeto apresenta na justificação do mesmo artigo e
inciso – tal justificação não faz parte do texto oficial – que esta
despenalização abordada no texto refere-se apenas a “estados
psicológicos mórbidos, como a adicção por entorpecentes”.
Parece-me que a comissão de juristas é suficientemente competente para
redatar – se assim o quisesse – o texto do inciso de forma clara,
contemplando somente esta intenção explicitada na justificação. Além
disso, mesmo que o texto fosse claro para contemplar somente estes casos
citados, não se poderia, nem deveria tomar tal decisão sem uma ampla consulta à sociedade, sendo esse um tema tão sensível aos brasileiros.
Além do aborto, o senhor referia outros problemas também incluídos no Anteprojeto. Quais seriam estes problema?
PE.HELIO
– De fato, além da liberação, na prática, do aborto, o Anteprojeto
apresenta outros problemas. Não pretendo ser exaustivo, mas para citar
alguns, podemos falar dos problemas relativos à eutanásia, à liberação
do consumo de drogas e à despenalização de algumas atividades
terroristas.
O
art. 122 do Anteprojeto apresenta a prática da eutanásia – definida
pelo Anteprojeto como “matar, por piedade ou compaixão, paciente em
estado terminal, imputável e maior, a seu pedido, para abreviar-lhe
sofrimento físico insuportável em razão de doença grave” – como um crime
diferente ao do homicídio, reduzindo a pena do mesmo. É verdade que as
circunstâncias dramáticas de algumas situações deveriam reduzir a pena
de alguém que comete este tipo de homicídio, porém, matar a outra
pessoa, ainda que por compaixão, não deixa de ser homicídio. Para deixar
claro o valor da vida e a gravidade do crime, o Anteprojeto poderia ter
inserido a eutanásia dentro dos crimes de homicídio, incluindo-a apenas
nos atenuantes da pena. Porém, o mais grave não é isso, mas sim que o
Parágrafo Primeiro do mesmo artigo deixa ao juiz a possibilidade de não
aplicar nenhuma pena para os casos de eutanásia, reduzindo dessa forma, o
valor da vida, um dos bens primários previstos na Constituição.
Outro
problema do Anteprojeto encontra-se no art. 212, Parágrafo Segundo, que
exclui de crime a aquisição, armazenamento, transporte e cultivo de
drogas para consumo próprio. Segundo o Anteprojeto, “presume-se a
destinação da droga para uso pessoal quando a quantidade apreendida for
suficiente para o consumo médio individual por cinco dias”. Não há
dúvidas que o tráfico de drogas será favorecido com tal medida. Com o
intuito de permitir, de um modo velado, o consumo de maconha – um dos
verbos contemplados é o de “semear” e “colher”, claramente referidos a
esta droga – o Anteprojeto parece esquecer que o tráfico obedece às
regras de mercado: aumentando o consumo, aumentará também a oferta.
Certamente os distribuidores de drogas jamais levarão consigo uma
quantidade maior do que a “suficiente para o consumo médio individual
por cinco dias”, e, deste modo, não incorrerão em crime.
Por
fim, o Anteprojeto, tratando dos crimes de terrorismo, exclui de crime
tais atividades quando movidas por “propósitos sociais ou com fins
reivindicatórios” (art. 239, Parágrafo Sétimo). Certamente o limite dos
meios utilizados para ser configurado ou não em crime será definido pelo
juiz, mas, com esta lei, por exemplo, os jovens que tomaram a reitoria
da USP no fim do ano passado, não teriam incorrido em crime algum. Como
dissemos anteriormente, a exaltação da liberdade individual por cima do
bem comum da população degrada a sociedade e mina a força da autoridade
constituída.
Repito
o que afirmei no começo desta entrevista – são muitos os pontos
positivos do Anteprojeto, mas agora se faz necessário ressaltar as suas
deficiências para que, enquanto ainda houver tempo, possamos
solucioná-las de modo democrático.
Será que a proposta contida no Anteprojeto contempla a vontade de toda a população brasileira?
A
resposta a esta pergunta corresponde, em parte, ao final do que foi
dito na pergunta anterior: A maior parte do Anteprojeto contempla a
vontade de toda a população brasileira, mas existem pontos complicados,
que devem ser revistos e adaptados aos valores próprios da nossa
sociedade.
Não
podemos permitir que novamente – como vem ocorrendo nos últimos anos no
Brasil – a opinião de pessoas que se creem “iluminadas” e com a “missão
de iluminar” o ordenamento jurídico brasileiro, corrompam nossos
valores e as opiniões da imensa maioria do povo brasileiro.
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