Blog Católico, para os Católicos

BLOG CATÓLICO, PARA OS CATÓLICOS.

"Uma vez que, como todos os fiéis, são encarregados por Deus do apostolado em virtude do Batismo e da Confirmação, os leigos têm a OBRIGAÇÃO e o DIREITO, individualmente ou agrupados em associações, de trabalhar para que a mensagem divina da salvação seja conhecida e recebida por todos os homens e por toda a terra; esta obrigação é ainda mais presente se levarmos em conta que é somente através deles que os homens podem ouvir o Evangelho e conhecer a Cristo. Nas comunidades eclesiais, a ação deles é tão necessária que, sem ela, o apostolado dos pastores não pode, o mais das vezes, obter seu pleno efeito" (S.S. o Papa Pio XII, Discurso de 20 de fevereiro de 1946: citado por João Paulo II, CL 9; cfr. Catecismo da Igreja Católica, n. 900).

domingo, 6 de março de 2022

O REAL CAMINHO DO AMOR: " O SOFRIMENTO". 2ª PARTE.


2ª Meditação


Segunda-feira


A Utilidade do Sofrimento

serve de Alívio na Tribulação.


___________


I – O Sofrimento purifica a alma.

A tribulação é nas mãos de Deus o instrumento mais poderoso para lavrar as almas escolhidas, conseguindo facilmente por meio dela aquilo a que, por fim, se reduz todo o nosso aproveitamento; isto é, purifica-nos, ilumina-nos e aperfeiçoa-nos.

Em primeiro lugar, limpa-nos não só dos pecados, como depois veremos, senão também de toda a sorte de imperfeições. Que seria do ouro, se não fosse o crisol? Quão pouco se diferenciaria da terra! Que seria das almas virtuosas a quem a tribulação não visitasse? Ficariam sempre cheias de imperfeições e não passariam nunca de uma virtude vulgar.

Como morreria nelas o amor-próprio que tanta guerra lhes faz sempre, que infecciona com o seu veneno até as obras mais santas, que tão sutil se mostra para buscar o seu próprio interesse, ainda naquelas ações em que às vezes parece buscar-se unicamente a glória de Deus?

As consolações espirituais apartam-nos, é verdade, da terra; mas nunca nos apartam totalmente de nós mesmos; antes são a causa de procurarmos com mais avidez a nossa própria satisfação, crendo que assim o podemos fazer sem o menor mal e sem remorso nenhum. O sofrimento, pois, é muitas vezes o remédio mais eficaz, e ainda o único, para nos curar de tão grande enfermidade. Se ele não fosse, as nossas paixões na vida espiritual não mudariam de natureza, senão de objeto; e, em vez de morrerem, desprender-se-iam do que tinham de mais tosco e baixo, para conservarem o que tinham de mais elevado, ou melhor, de mais diabólico.

Ó santas tribulações, remédio de todas as nossas desordens! Oh! Se os homens vos conhecessem! Certamente, em lugar de fugirem de vós, como se fosseis inimigas, vos abririam os braços e vos estreitariam ao coração.

Acontece às vezes que uma alma está toda cheia de si, estima-se como uma coisa grande e ainda diz no seu coração como aquele soberbo da parábola evangélica: “Não sou como os demais homens”. Mas, nisto sobrevém-lhe uma grande adversidade; assalta-a uma doença grave, apodera-se dela uma desolação. Logo se humilha e abate; e, como a péla inchada que, perdendo o ar, se contrai e aperta, assim o coração cheio de si mesmo cede ao peso da tribulação e finalmente se rende, podendo dizer com Davi: Muito bem, Senhor, que me humilhaste.1

Considera, pois, os altíssimos desígnios de Nosso Senhor em te afligir com trabalhos e espanta-te da tua cegueira em fugires tanto deles, como até agora tens feito. Pede-lhe humildemente perdão, e que daqui em diante te dê força para O servires na tribulação, a qual é, sem dúvida, o tempo das suas misericórdias mais assinaladas: A misericórdia de Deus mostra-se, sobretudo, na tribulação.2

II – O sofrimento ilumina-nos.

Considera que o Senhor, por meio do sofrimento, além de purificar a nossa alma das imperfeições, é também a sua luz na prática da virtude: Caminharão iluminados com a luz das tuas setas.3 As setas com que Deus fere a tua alma são setas luminosas, que ao mesmo tempo descobrem o caminho e dão alento para andar: Quem não é ferido destas setas, o que é que sabe?4 Não se conhece a si nem conhece a Deus, isto é, ignora os dois objetos a cujo conhecimento se dirige toda a ciência do espírito: Conheça-vos a vós, conheça-Me a Mim.5

Não se conhece a si; porque quem não é provado com o fogo da adversidade, de certo não vê o que tem em seu coração; ante, no meio da abundância e felicidade, forma de si uma ideia muito diferente do que é na realidade. Eu disse no tempo da prosperidade: Não experimentarei mudança em tempo nenhum.6 Se tivéssemos sempre lua cheia, e não somente de quando em quando, quem não diria ser própria deste astro a luz que o ilumina? Mas, porque umas vezes a vemos faltar-lhe a luz e outras nos aparece toda radiante, ainda os mais rudes do povo conhecem facilmente, que não vem dela aquele resplendor, senão do sol.

Ai das almas, se sempre estivessem em prosperidade, sobretudo, no tocante ao espírito! Dificilmente deixariam de atribuir a seus próprios merecimentos a posse daquela paz e ventura. Por isso, convém que Deus Nosso Senhor, para as fazerem entrar no conhecimento das suas misérias e do seu nada, empunhe de vez em quando a vara do rigor; convém que se lhes mostre irado, que lhes tire a luz, que os prive daquele vigor de que antes o Seu divino rosto as enchia: Eu sou o homem que vejo a minha miséria na vara da indignação de Deus.7

Não conhece a Deus. Enquanto a alma, guiada pela mão do Senhor, não entrar pelo caminho real da Cruz que todas as almas grandes percorreram, enquanto não se sentir falta de toda a consolação humana, deixada, perseguida, desprezada: só sabe de Deus o que a fé lhe ensina. Conhecia-Vos, Senhor, como de ouvido,8 dizia o Santo Jó antes da tribulação e no meio da prosperidade. Mas, tanto que se viu despojado de todos os bens, feito todo uma chaga, desamparado dos amigos, cheio de amargura, debaixo de um Céu de bronze, e reduzido a não ter na terra senão aquele monte de podridão e uma telha com que a limpar do próprio corpo; então, é que a sua mente de tal maneira se esclareceu, que pode dizer: Agora, Senhor, te veem os meus olhos.9

Onde estão, pois, aquelas almas tímidas que, mal veem assomar uma doença ou tribulação, logo se queixam que não podem praticar o bem? Como é possível que a tribulação assim as embarace, se nela precisamente está o meio mais eficaz para a virtude? Deus Nosso Senhor vale-se das trevas, para alumiar a nossa cegueira. Com lodo abriu os olhos do cego de nascença; fazendo-nos sentir as nossas misérias, reduzindo-nos ao estado de pobreza, privando-nos de toda a luz e dando-nos outras provas, abre-nos também os olhos do espírito e dispõe-nos para que O conheçamos a Ele e nos conheçamos a nós.

Como as almas do Purgatório, que não chegam a ver a Deus senão depois de terem passado pelas chamas purificadoras, deixando nelas tudo o que tinham de terreno e mundano; assim nós neste mundo não estaremos nunca em disposição de ver a Deus, com aquela luz que a seus amigos comunica, enquanto não tivermos passado pelo fogo da tribulação. Tu, por conseguinte, que tantas vezes pediste luz a Nosso Senhor, para O conheceres a Ele e para te conheceres a ti, como não cais na conta de que com esta oração pedias te admitisse a ser participante da Sua Cruz? A noite mais escura daquelas desolações, que tanto te afligem o coração, é a disposição mais próxima para que o Sol divino amanheça em ti.

Ganha, pois, bom ânimo; confunde-te da tua passada covardia; pede perdão ao Senhor e suplica-lhe que, se é necessário o fel das amarguras, para te abrirem os olhos da alma, como a Tobias os do corpo, não demore um instante em o aplicar-te, por mais que doa à natureza rebelde; mas que ao mesmo tempo te conceda a graça de saberes tirar da tribulação o fruto que Ele deseja.

III – O sofrimento aperfeiçoa-nos.

Considera finalmente que a tribulação, depois de purificar e esclarecer a alma, leva-a também à perfeição, exatamente como o fogo, o qual, depois de tirar ao ouro toda a escória da terra, depois de lhe dar aquele brilho, aquilata-o a tão subido grau, que já não há chamas que o façam minguar em nada. Por isso mesmo que eras agradável aos divinos olhos, foi necessário que a tentação te provasse, disse a Tobias o Arcanjo São Rafael.10 Como se lhe quisesse dar a entender que as obras de caridade e religião: dar esmolas, enterrar os mortos e render verdadeiro culto ao Senhor; ainda que bastavam por si para o purificar e esclarecer, contudo, sem o sofrimento não o poderiam fazer perfeito: A paciência é a que aperfeiçoa as nossas obras,11 a que dá a última demão à santidade, a qual entre as consolações apenas estava esboçada.

E a razão é clara. Porque, havendo dois gêneros de virtudes, umas que consistem mais nas obras, outras que consistem mais nos sofrimentos, estas últimas são as de maior estima e valia, por servirem à própria custa a caridade, que é a rainha de todas. Nas obras, pode tomar parte a natureza, e não pouco; no sofrimento, em vez dela achar o seu próprio cômodo, acha o seu desprezo e a morte.

Quando a alma e o corpo desfrutam de completa felicidade, quem pode saber se vivem para Jesus ou se se buscam a si mesmos nessa felicidade que o Céu lhes dá? Mas, quando o seu peso te oprime o corpo e aperta o coração, sem contudo perderes a resignação e a paz; então, bem podes crer que a graça é a que te fortifica e, se te deixas guiar, será também a que te conduzirá ao puro amor de Deus. Porque, próprio é do amor deste Senhor nascer entre as consolações espirituais; mas para chegar a ser forte, tem que passar pelo cadinho do sofrimento.

Tira daqui quão injustamente te queixas quando, suspendendo Nosso Senhor a luz da sua graça e os ternos sentimentos de devoção, te deixa em estado de puro sofrimento. Então, parece-te impossível praticar a virtude; mas ser-te-á também impossível o padecer? Pois esse é precisamente o fruto que de ti espera Deus Nosso Senhor; e às tuas queixas bem pode responder com aquelas suas divinas palavras: Não sabes o que pedes. Podes beber o cálice da Minha Paixão?12

Oh! Ditoso de ti, se souberes corresponder à graça, sofrendo e calando, à maneira de paciente cordeirinho que se oferece como vítima ao Senhor! Este sofrer silencioso e com tanta resignação na vontade divina será de maior merecimento do que todas as mais obras, quaisquer que sejam. Esta estrada coberta de espinhos levar-te-á bem depressa a um grau de perfeição a que dificilmente chegarias por outro caminho mais plano e agradável: Meus filhos delicados pisaram ásperos caminhos.13



Oração a Nosso Senhor açoitado à Coluna

para alcançar a Paciência


Amabilíssimo Redentor: que lei é esta que o mundo usa agora contra Vós, declarando-Vos como inocente e açoitando-Vos como culpado? Ah! Senhor! É a lei do vosso amor, que não conhece outra senão a que conduz ao meu aproveitamento. Eu sou aquele a quem são devidas essas Chagas, eu fui o que mereci essa crueldade desapiedada; e contudo, apesar de ser o culpado, vejo-me tão poupado e sem trabalhos, quando sobre o vosso Corpo Santíssimo caem os golpes como tempestade desfeita. E o pior é que, se para meu bem lançais às vezes mão do açoite, se para iluminar a minha alma a feris com as setas da vossa luz, se me quereis aperfeiçoar algum tanto naquele mesmo bem que Vos dignastes pôr em mim e que eu misturo de tanto mal; logo rompo em queixas e lamentos, caio desalentado em terra e me dou por perdido de todo, sem advertir que é o amor-próprio a buscar-se sempre a si, sob pretexto de maior bem, e a fugir sempre da cruz para me levar miseravelmente a seus enganos.

Mas a tudo isto, que posso eu responder senão confessar diante de Vós a minha miséria e implorar remédio para ela? Em tudo me pareço comigo, em tudo me porto como sou, como criatura miserável, cheia de trevas e fraqueza. A Vós, ó fortaleza da minha alma, a Vós toca mostrar-Vos como Sois, isto é, como Senhor onipotente que com um só sinal podeis mudar este pobre coração num coração semelhante ao Vosso. Uma gotinha daquele Sangue divino, que se derramou a torrentes e é pisado por aqueles mesmos por quem foi derramado, pode dar-me essa constância invencível que tanto desejo.

Para a alcançar, entrego-me todo a Vós; atai-me, Senhor, muito apertadamente à vossa coluna; açoitai-me, atribulai-me como vos aprouver. Não olheis para a minha rebeldia; ponde os olhos unicamente no meu verdadeiro bem e na Vossa divina glória, a qual sobressairá triunfando da minha fraqueza. Bem vejo, que nem sei pedir como convém; mas falem por mim essas Chagas que Vos cobrem dos pés à cabeça. Obtenham-me elas da Vossa bondade infinita a graça que vos supliquei e da qual me terei sempre por indigno, enquanto não me livrarem desta minha indignidade os seus merecimentos e eficácia infinita. Amém.


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1.  Bonum mihi, quia humiliasti me (Ps. 118).

2.  Speciosa misericordia Dei in tempore tribulationis (Ecl., XXIV, 26).

3.  In luce sagittarum tuarum ibunt (Habac., III, 31).

4.  Qui non est tentatus, quid scit? (Eccl., XXX, 9).

5.  Noverim te, noverim me.

6.  Ego dixi in abundantia mea: Non movebor in aeternum (Eccl., XXIX, 7).

7.  Ego vir videns paupertatem meam in virga indignationis ejus (Thren., III, 1).

8.  Auditu auris audivi te (Job., XLII, 5).

9.  Nunc autem oculus meus videt te (Job., XLII, 5).

10.  Quia acceptus eras Deo, necesse fui ut tentatio probaret te (Tob., XII, 12-13).

11.  Patientia opus perfectum habet (Jac., I, 4).

12.  Nescitis quid petatis. Potestis bibere calicem? (Math., XX, 22).

13.  Delicati mei ambulaverunt vias asperas (Baruch., IV, 26).


O REAL CAMINHO DO AMOR: "O SOFRIMENTO". 1ª PARTE.


P. João Pinamonti, S.J.


A Cruz Aliviada


Motivos de Consolação

nos Trabalhos


Terceira edição portuguesa revista

por Acácio Casimiro, S. J.


PORTO


LIVRARIA APOSTOLADO DA IMPRENSA

Rua de Cedofeita, 628.


1939



IMPRIMI POTEST.

Vimarani, 13 mail 1939.

Paulus Durão, S. J.

Praep. Prov. Lusit.



Pode imprimir-se.

Porto, 16 – V – 1939.

A. J. Pereira.



Índice


Prólogo


Domingo – A necessidade do sofrimento serve de alívio na tribulação.


I. Devemos sofrer, porque somos homens.

II. Devemos sofrer, porque somos desterrados.

III. Devemos sofre, porque somos cristãos.

Oração a Jesus atribulado no Horto, para alcançar a paciência.


Segunda-feira – A utilidade do sofrimento serve de alívio na tribulação.


I. O sofrimento purifica a alma.

II. O sofrimento ilumina-nos.

III. O sofrimento aperfeiçoa-nos.

Oração a Nosso Senhor açoitado à coluna, para alcançar a paciência.


Terça-feira – O sofrimento, como remédio do pecado, é de alívio na tribulação.


I. Cura os pecados presentes.

II. Repara os danos dos pecados passados.

III. Preserva das culpas futuras.

Oração a Jesus coroado de espinhos, para alcançar a paciência.


Quarta-feira – A lembrança do Inferno é de alívio na tribulação.


I. Sofre, porque mereceste o Inferno.

II. Sofre, porque foste preservado do Inferno.

III. Sofre, para não tornares a merecer o Inferno.

Oração a Nosso Senhor com a Cruz às costas, para alcançar a paciência.


Quinta-feira – A lembrança do Céu consola a alma na tribulação.


I. O sofrimento é sinal de predestinação à glória.

II. O sofrimento acumula méritos para a glória.

III. Os padecimentos são a medida do gozo na glória.

Oração a Jesus crucificado, para alcançar a paciência.


Sexta-feira – O exemplo de Jesus consola na tribulação.


I. Jesus, padecendo, enobreceu os trabalhos.

II. Jesus, padecendo, suavizou os trabalhos.

III. Jesus, padecendo, tornou necessários os trabalhos.

Oração a Jesus, desamparado na Cruz, para alcançar a paciência.


Sábado – O amor de Deus consola na tribulação.


I. O amor, que Deus nos têm, é origem e causa dos nossos padecimentos.

II. Os nossos padecimentos são o meio para alcançarmos o amor divino.

III. Os nossos padecimentos são indício de termos alcançado o amor divino.

Oração à Virgem Santíssima ao pé da Cruz, para alcançar a paciência.


Prólogo


Date siceram moerentibus et vinum his qui amaro sunt animo – Dai um licor forte aos aflitos e vinho aos que têm o coração amargurado” (Prov. 30, 6).


Consolar ao próximo em suas tribulações, é ordem que o Senhor nos intima a todos e cuja inobservância tem Salomão por uma das maiores misérias desta vida mortal. Vi as lágrimas dos inocentes e nenhum consolador1. Esta consideração inspirou-me a ideia de escrever o presente livrinho, para expor nele os motivos mais eficazes que nos animem a padecer. Procurei ser breve o mais que pude, com o fim de mais facilmente se ler e passar de mão em mão. Assim como também reduzi a pouco e como que condensei, os principais motivos que a Fé nos ensina para as tribulações; deste modo, à maneira de água abundante recolhida em canal estreito, terão esses motivos mais força em nossa alma.

Para estarem mais à mão, vão distribuídos pelos dias da semana; e a oração, ao fim de cada um deles, é para implorar e obter os mais eficazes auxílios da divina graça, pois o sofrimento é aquilo a que mais repugnância sente a natureza.

Debaixo deste nome genérico de padecer, foi intenção minha incluir tudo o que se opõe às inclinações da mesma natureza; quer nos venha imediatamente de Deus, como as securas do espírito, as faltas de luzes na oração, as desolações; quer imediatamente do Demônio, como as sugestões para o mal, as angústias, os temores; quer dos nossos próximos, como são as murmurações, as calúnias, as perseguições.

Numa palavra, padecer diz tudo aquilo que ou mortifica o corpo, como a inconstância dos climas, a pobreza, o cansaço, as doenças; ou aflige o espírito, como os escrúpulos, os cuidados, as melancolias. Tudo isto compreenderei neste nome genérico; e ao passo que as pessoas espirituais verão nele principalmente o que atribula a alma, as mais imperfeitas verão principalmente o que contraria os sentidos.

Só falta que os que me lerem, não passem superficialmente a vista por estas verdades, senão que as meditem com seriedade e constância. Se pois vos aproveitardes destas considerações na devida forma, espero que chegareis a levar o sofrimento não só com paciência, mas até mesmo com alegria; e que, longe de fugir da cruz, a ireis buscar, como quem vê no padecer a coisa mais preciosa desta vida. “Bem-aventurados os que choram”, diz Cristo Senhor Nosso2. A bem-aventurança da vida imortal está em gozar de Deus; a bem-aventurança desta vida perecedoura está em sofrer por Deus.



1ª Meditação


Domingo


A Necessidade do Sofrimento

Serve de Alívio na Tribulação


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I – Devemos sofrer, porque somos homens.

Considera a necessidade imprescindível do sofrimento, pelo mero fato de seres homem. Para que outro fim vieste ao mundo, senão para sofrer? O homem nasce para o trabalho, como a ave para voar3. Todas as outras coisas te são acessórias; só o sofrimento te é como essencial e inevitável. Apenas nasceste à luz do dia, começaram logo a chover sobre ti males sem conta, à maneira de flor que nasce, como diz Jó, e é pisada4; e estes males hão de te ir seguindo e molestando enquanto a vida te durar.

O mesmo Santo Jó, que nesta ciência do sofrimento, assim teórica como prática, ocupa um lugar muito avantajado, pinta-nos o homem cheio de contínuas misérias, sem que aquelas de que se vê livre por um lado, impeçam que entrem muitas mais por outro: Vivendo pouco tempo, está cheio de muitas misérias5. E a palavra que exprime esta ideia (Repletur), merece bem ser considerada; porque não diz que se enche uma só vez à maneira de cisterna, senão que se está enchendo sempre como poço inesgotável, que quanto mais água dele se tira, tanto mais recebe da sua fonte perene.

Tu bem queres lisonjear-te com a esperança de que chegarás por fim a secar essa fonte de misérias, fugindo aos trabalhos; mas não cais na conta de que fugir a um trabalho leve é cair noutro mais pesado. É como quem foge da vista do leão, o qual ainda que terrível a quem lhe faz frente, é manso com aquele que se humilha, para se ir meter nas garras do urso, o qual se enfurecerá logo em te avistando, e fartará em ti a sua raiva, por mais que te lances rendido em terra diante dele6.

E como pode ser de outro modo, se temos continuamente a guerra de portas a dentro? Desapareçam muito embora as doenças, não nos incomodem as inclemências do Céu, deixem as criaturas de nos perseguir, sempre há de ser inevitável dentro de nós, em guerra acesa, a sedição e o tumulto das nossas paixões desordenadas7. Uma tal criatura, rodeada e cheia de tantas misérias, amassada, para assim dizer, com suas próprias lágrimas, não há de envergonhar-se de romper em ira contra os trabalhos e sacudir o pesado jugo que a natureza nos impôs a todos os filhos de Adão?8

Se és filho de Adão, não tens direito de recusar pena alguma; porque todas são devidas aos filhos de um pai rebelde. Deves confundir-te, por teres andado até agora com as tuas impaciências tão afastado do caminho direito, e confessar a tua incrível necedade em antes quereres ser arrastado do que levado por uma senda que todos forçosamente têm que andar9.

Pede perdão humildemente ao Senhor e suplica-lhe que te dê força de ânimo, para levar as tribulações; e que, depois de um curto inverno de trabalhos momentâneos, amanheça para ti a eterna primavera de consolações imortais: Passou o inverno, cessou e acabou-se o tempo das chuvas; as flores apareceram na nossa terra10.

II – Devemos sofrer, porque somos desterrados.

Outro motivo que nos obriga a sofrer, é o desterro em que vivemos. Não chamaste tu mesmo muitas vezes um vale de lágrimas a esta miserável terra? Pois como te há de parecer coisa estranha ter de chorar, enquanto nela estás? Com lágrimas anunciaste a tua vinda a este mundo; lágrimas há de ser a tua principal ocupação. Tempus flendi: “Tempo de chorar”11.

Quanto menos chorares, mais deplorável te há de ser esta vida. Para que a terra não estivesse semeada de espinhos, deveria o nosso primeiro pai Adão ter permanecido fiel a Deus, atendendo assim ao seu próprio bem como ao nosso. Então, nesse estado de inocência voaríamos num instante do Paraíso terreal ao Paraíso da glória; agora, já não é possível. Porque te enfadas, pois, tanto com os trabalhos? Porque te afliges tanto? Sai do mar, se não queres sentir o amargor das suas águas; sai desta vida, se não queres padecer.

Já que um tal remédio não está na tua mão, faze da necessidade virtude; e em vez de te lamentares, dá graças ao Senhor por ter coberto o teu desterro de tantos males que te vejas forçado a suspirar de contínuo pela tua verdadeira pátria. Se assim não fosse, se o teu coração achasse neste mundo a plena satisfação dos seus desejos, como planta que não se pode mover da terra onde tem todo o seu bem, nunca se elevaria a Deus nas asas dos seus afetos. Feliz de ti, se destas máximas fizeres a regra da tua vida! Serás verdadeiramente sábio aos olhos de Deus12.

Confunde-te, pois, por teres andado tão longe desta doutrina, que mais parece haveres posto na terra o centro da tua felicidade, e chamado ao triste lugar da tua prisão o real palácio da tua vida. Pede perdão a Nosso Senhor; e roga-lhe humildemente te dê graça abundante, para saberes viver entre os falsos bens e os verdadeiros males do mundo, de tal maneira que chegues por fim ao eterno descanso do Céu: Passamos pelo fogo e pela água; mas enfim, levaste-nos a um lugar de refrigério13.

III – Devemos sofrer, porque somos cristãos.

Considera quanto cresce esta necessidade de sofrer, à vista da profissão que fazemos de cristãos. Ainda supondo que todos os homens, menos tu, vivessem em perpétuas delícias, esse estado de vida deveria ser tido em horror, por todo cristão que quisesse ser o que significa um tal nome, consagrado com o Sangue de inumeráveis Mártires e com o que derramou na Cruz o Nosso Divino Redentor.

Este santíssimo nome obriga-te seriamente, senão a ir em busca dos padecimentos, pelo menos a receber com submissão todos os que a Divina Providência te enviar, e além disso, a estares preparado para sofrer tudo o que pretender desviar-te da observância dos Mandamentos Divinos. Esta é a promessa a que te obrigaste no Batismo; esta é a condição que o Evangelho exige, para entrar na Escola do Salvador: Se alguém quer vir após Mim, negue-se a si mesmo e tome a sua cruz cada dia14.

Ninguém te força, pois a todos se diz: Se alguém quer. Mas, para seguires a Cristo, Sumo e Único Bem, apresenta-se-te, como condição necessária, indispensável, que tomes a cruz e a ponhas de bom grado sobre os teus ombros. E não há de ser de quando em quando, nem somente no tempo da prosperidade e consolação, senão sempre em todas as circunstâncias, de luz ou de trevas, de secura ou devoção: “Tome a sua cruz cada dia”.

Assim pois, tu que tanto desejas achar a causa destes padecimentos, lembra-te que és cristão e logo darás com ela. Não vos admireis15, diz o Apóstolo, nem muito menos desanimeis com as contrariedades que experimentais. Se somos cristãos, havemos de ser provados e exercitados seguindo as pisadas do Nosso Divino Redentor; e se o Batismo nos faz cristãos de nome, o padecer faz-nos cristãos de obras e na realidade: In hoc positi sumus.

Certamente, se tivéssemos bem fundo no coração o espírito de Jesus Cristo, parecer-nos-ia até coisa monstruosa fugir da cruz. Não sabemos que a primeira lição dada ao homem por Nosso Divino Mestre, foi, que “são bem-aventurados os que sofrem, bem-aventurados os que choram?” E, pelo contrário, que “são infelizes, desventurados, os que tem na terra a sua consolação?” E não é fazer guerra à doutrina de Cristo com as obras, quando um cristão foge da cruz a cada hora?

Envergonha-te, pois, de também teres sido do número dos inimigos que perseguem a Cruz do Redentor, do número desses homens que o Santo Apóstolo tanto deplora e tão afastados andam do caminho da salvação: Inimigos da Cruz de Cristo que vão a dar na perdição16. Faze propósito de receber de hoje em diante a tribulação com bom rosto, exclamando com Santo Inácio Mártir ao vê-la chegar: Agora que começo a sofrer, começo a ser discípulo de Cristo17. Pede, finalmente, ao Senhor, que se compadeça das tuas misérias passadas e te dê força, com a Sua Divina Graça, para que todos estes motivos de sofrimento te sejam outros tantos estímulos, que te façam abraçar a cruz mais de coração e perseverar nela até a morte.



Oração a Jesus atribulado no Horto,

para alcançar a Paciência


Amorosíssimo Redentor, Caminho, Verdade e Vida desta Vossa pobre criatura. Vede, Senhor, como de contínuo estou a dar provas de que sou filho de Adão; pois, sendo desterrado e peregrino, só penso em levantar um palácio de delícias neste vale de lágrimas. Aqui desejo ter em sossego, todos os meus dias; aqui procuro achar remédio a todos os meus males; e não me envergonho de mim mesmo quando, esquecido de que sou discípulo de um Deus crucificado, deixo para Vós todos os trabalhos e quero para mim todos os prazeres.

Ah Senhor! Que pouco me pareço Convosco que, não contente com o Sangue, que dentro em pouco Vos haviam de tirar das Vossas Sacratíssimas veias os algozes, quisestes no Horto fazer do Vosso amor um desapiedado verdugo, que Vos dilacerasse o coração e se antecipasse a derramar esse mesmo Sangue em tanta abundância, que chegasse a ficar banhada a terra! Parece que andamos à porfia, Senhor, Vós em me dar exemplos cada vez maiores de paciência, e eu em fugir cada vez mais de Vos imitar.

Ó glória do Paraíso! Ó riqueza do Céu e da terra, meu Salvador e meu Deus! Até quando há de durar esta oposição entre a Vossa vida e a minha! Oh! Acabe já por uma vez e seja este o último dia! Trocai a delicadeza deste meu coração num grande desejo de sofrer por Vosso amor; livrai-me deste amor desordenado que tenho a mim mesmo, para amar mais puramente a Vós só. Basta o tempo que tenho malbaratado com o prazer dos meus sentidos; fazei que de hoje por diante, me aproveite daquele Sangue Divino, tão prodigamente derramado, para dar novos alentos à minha força; e, juntamente, com isso, fazei também, que todos os Santos Vos deem, por Ele, glória eterna no Céu.

Grandes são, na verdade, as coisas que Vos peço; mas peço-as àquele Senhor que por mim fez coisas infinitamente maiores; e assim espero que não me será negado o que para mim ganhastes com tantos trabalhos. A minha vontade, Senhor, é entregar-me todo em Vossas Divinas Mãos; e quero agora, mais que nunca, ter por felicidade grande estes sofrimentos, que me abrem o caminho para Vos imitar, e me ensinam a amar-Vos sobre todas as coisas, hoje e sempre. Amém.


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1.  Vidi lacrymas innocentium et neminem consolatorem (Ecle. 4, 1).

2.  Beati qui lugent; quoniam ipsi consolabuntur (S. Mat. 5, 5).

3.  Homo nascitur ad laborem, et avis ad volatum (Jó 5, 7).

4.  Qui quasi flos egreditur et conteritur (Jó 14, 2).

5.  Brevi vivens tempore, repletur multis miseriis (Jó 14, 1).

6.  Quomodo si fugiat vir a conspectu leonis et ocurrat ei ursus (Jó 14, 1).

7.  Unde bella et lites in vobis? Nonne ex concupiscentiis quae militant in membris vestis?

8.  Jugum grave super filios Adam a die exitus de ventre matris eorum usque in diem sepulturae in matrem omnium (Eclo. 40, 1).

9.  Ingredior viam universae terrae (III Rs. 2, 2).

10.  Hyems transiit, imber abiit et recessit; flores apparuerunt in terra nostra (Cânt. 2, 11).

11.  Ecle. 3, 4.

12.  Qui patiens est multa gubernatur prudentia (Prov. 14, 29).

13.  Transivimus per ignem et aquam, et eduxisti nos in refrigerium (Salm. 65, 12).

14.  Si quis vult post me venire, abneget semetipsum et tollat crucem suam quotidie (Luc. 9, 23).

15.  Nemo moveatur in tribulationibus istis; ipsi enim scimus quod in hoc positi sumus (I Tes. 3, 3).

16.  Inimicos crucis Christi, quorum finis interitus (Filip. 3, 18).

17.  Nunc incipio Christi esse discípulus.


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