Blog Católico, para os Católicos

BLOG CATÓLICO, PARA OS CATÓLICOS.

"Uma vez que, como todos os fiéis, são encarregados por Deus do apostolado em virtude do Batismo e da Confirmação, os leigos têm a OBRIGAÇÃO e o DIREITO, individualmente ou agrupados em associações, de trabalhar para que a mensagem divina da salvação seja conhecida e recebida por todos os homens e por toda a terra; esta obrigação é ainda mais presente se levarmos em conta que é somente através deles que os homens podem ouvir o Evangelho e conhecer a Cristo. Nas comunidades eclesiais, a ação deles é tão necessária que, sem ela, o apostolado dos pastores não pode, o mais das vezes, obter seu pleno efeito" (S.S. o Papa Pio XII, Discurso de 20 de fevereiro de 1946: citado por João Paulo II, CL 9; cfr. Catecismo da Igreja Católica, n. 900).

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

A EUCARISTIA – BOSSUET. 23

 


A Eucaristia,

penhor da remissão dos pecados.

É o Sangue da Nova Aliança,

que purifica e santifica.


Bebei dele todos: isto é meu sangue, o sangue da nova aliança; o sangue derramado por vós em remissão dos vossos pecados”. É aqui a parte admirável do Mistério, e também, como se vê, aquela em que Jesus fala com mais força. Que Ele nos dê a comer do Seu Sacrifício, a Carne da Páscoa, é o costume, é o desígnio desse Sacrifício; jamais, porém, se lhe bebeu o sangue, nem o de nenhuma vítima, ainda que se tivesse comido as carnes. “Moisés, diz São Paulo, tendo recitado diante de todo o povo as ordenações da lei, tomou do sangue das vítimas com água, e lançou-o sobre o próprio livro e sobre todo o povo, dizendo: É o sangue do testamento que Deus já fez para vós”. Eis aí, ao que parece, tudo o que se pode fazer do sangue das vítimas; regar, com ele todo o povo, mas não dar-lhe a beber. Só Jesus Cristo vai mais adiante. Moisés diz, lançando o sangue das vítimas sobre o povo: Isto é o sangue da aliança; ao que o Salvador alude manifestamente quando diz: Isto é meu sangue da nova aliança. É, portanto, sangue numa e noutra ocasião. Todo o povo é por ele tocado, mas diferentemente; pois é tocado por aspersão sob Moisés, e a aspersão que Jesus ordena é bebê-lo; é a boca, é a língua, que deve ser regada dele por essa aspersão; “bebei dele todos, diz Ele, pois é meu sangue, o sangue da nova aliança; o sangue derramado em remissão dos pecados”.

Essa diferença dos dois Testamentos é cheia de Mistério. Uma das razões que eram dadas aos antigos para não comerem o sangue, “é porque ele era dado, diz o Senhor, a fim de que, sendo derramado em volta do altar, seja em expiação das nossas almas em propiciação pelos nossos pecados; e, para isso, mandei aos filhos de Israel, e aos estrangeiros que moram entre eles, não o comerem”.1 Proíbem-lhes comer sangue, “por ser ele derramado pela remissão dos pecados”; e ao contrário o Filho de Deus quer que o bebam, “por ser ele derramado pela remissão dos pecados”.

Era pela mesma razão que estava escrito: “Toda vítima que se imolar para expiar o pecado no santuário, não será comida, mas será consumida pelo fogo”2: e essa observância significava que, não podendo a remissão dos pecados efetuar-se pelos sacrifícios da lei, os que as ofereciam ficavam sob o interstício, e numa espécie de excomunhão, sem participar da vítima que era oferecida pelo pecado. Mas, por uma razão contraria Jesus Cristo, havendo expiado as nossas almas, e tendo realizado perfeitamente a remissão dos pecados, pela oblação de Seu Corpo e pela efusão do Seu Sangue, ordena-nos “comermos esse Corpo entregue por nós, e bebermos o Sangue da Nova Aliança, derramado pela remissão dos pecados”, para nos mostrar que esta, estava feita, e que nós não tínhamos mais senão que no-la aplicar.

Degustemos, pois, na Eucaristia a graça da remissão dos pecados, dizendo com Davi: “Bem-aventurados aqueles a quem são perdoadas as iniquidades e cujos pecados são cobertos. Bem-aventurado aquele a quem o Senhor não imputa pecado, e que não se impõe a si próprio”3, no pensamento que tem de que eles lhe são perdoados. E ainda: “Minha alma, bendize o Senhor, e tudo o que está em mim bem-diga o seu santo nome. Minha alma, bendize o Senhor, e não lhe esqueças os benefícios. É ele quem perdoa todos os teus pecados; é ele quem cura todas as tuas doenças… Ele não nos tratou segundo os nossos pecados; não nos retribuiu com o que mereciam as nossas culpas… Tanto quanto o levante dista do poente, tanto ele afastou de nós as nossas iniquidades”.4

Que repouso tem uma consciência perturbada pelo seu crime e alarmada com a justiça divina que a aperta, em saborear no Corpo e no Sangue de Jesus a graça da remissão dos pecados, e por isso mesmo de apagar-lhe todos os resíduos!

Aprendamos que a Eucaristia, é um remédio dos pecados. Se nos purgamos dos grandes, ela apagará os pequenos e dar-nos-á força para evitar assim os pequenos como os grandes.

É o pecado que põe a separação entre Deus e nós. Purificar-se dos pecados, é tirar todo empecilho e tornar os amplexos entre o Esposo e sua Igreja mais ardentes, mais puros, mais íntimos.


_________________________

Fonte: Jacques-Bénigne Bossuet, Bispo de Meaux, “Meditações sobre o Evangelho” – Opúsculo “A Eucaristia”, Cap. XXIII, pp. 105-108. Coleção Boa Imprensa, Livraria Boa Imprensa, Rio de Janeiro/RJ, 1942.

1.  Lev. XVII, 11-12.

2.  Lev. VI, 30.

3.  Ps. XXXI, 2.

4.  Ps. CII, 1 ss.


25 MEMORIAIS SOBRE A VIDA ESPIRITUAL.


Prólogo

Se quisermos seguir ao Senhor, nosso Salvador, obedeçamos à voz do Profeta, para que, “rompidos os laços da iniquidade, descarreguemos os fardos que nos oprimem”,1 de sorte que, livres das preocupações terrenas, sigamos com passo desembaraçado o Redentor, porquanto “ninguém que entre para a milícia de Deus, se envolve em negócios do século”.2 Ninguém pode servir perfeitamente a Deus, conforme prova a experiência, enquanto não procura desapegar-se inteiramente do mundo.

Jamais permitamos, pois, que o nosso coração se preocupe com alguma coisa criada, a menos que sirva de estímulo ao amor de Deus, porquanto a nímia variedade das coisas efêmeras, apreciada indevidamente, não só perturba a tranquilidade da alma, distraíndo-a, como também a desvia e turva, engendrando-lhe fantasias espalhafatosas. Aligeirados, pelo contrário, do pesado fardo das afeições terrestres, corramos sem demora Àquele que nos chama e no qual se encontra a mais perfeita satisfação e “a suma paz que sobrepuja a todo entendimento”.3

Vinde a mim todos os que lidais e vos sentis sobrecarregados, e eu vos confortarei!”.4 Ó Senhor, de quem necessitas? Por que nos chamas? Que te importamos nós? Ó voz de verdadeira piedade! “Vinde a mim, dizes, e eu vos aliviarei!” Ó admirável condescendência do nosso Deus, ó inefável caridade! Pois quem jamais fez coisa semelhante? Quem jamais viu ou teve notícia de igual bondade e condescendência? Reparai como Ele convida os inimigos, exorta os réus, chama os ingratos. “Vinde!, diz Ele. Vinde a mim todos e aprendei de mim! Tomai sobre vós o meu jugo, e achareis descanso para as vossas almas”.5

Ó palavras dulcíssimas e deificas, mais penetrantes que uma espada de dois gumes, revelando os segredos mais íntimos do coração, cheios de excessiva doçura, e atingindo até a divisão da alma e do espírito!6 Desperta, pois, ó alma cristã, ante o amor de tamanha bondade, ante o gozo de tamanha doçura, ante a fragrância de tamanha suavidade. Verdadeiramente, está enfermo quem não sente estas coisas, está em delírio e se avizinha já da morte. Abrasa-te, pois, ó minha alma, sacia-te, dulcifica-te na misericórdia do teu Deus, na caridade do teu Esposo. Inflama-te na Paixão do teu Amado, sacia-te com Seu amor, e dulcifica-te com seu sabor. Ninguém te embarque de entrar, de possuí-lo e fruí-lo.

Que mais pedimos? Que mais queremos? Que mais esperamos? Pois n’Ele só possuímos todos os bens. Mas ai! Que incompreensível desatino o nosso! Que miserável enfermidade! Ó detestável falta de entendimento! Eis que somos chamados ao repouso, e andamos atrás do afã. Somos convidados ao alívio, e procuramos a dor. Promete-se-nos a alegria, e apetecemos a tristeza. Ó lamentável desacerto nosso, pois tornamo-nos insensíveis e quase piores que estátuas que têm olhos e não veem, ouvidos e não ouvem, cabeça e não raciocinam, tomando o amargo pelo doce e o doce pelo amargo.7

Ó Deus, donde nos advirá a emenda de tanta malignidade? Donde poderemos obter satisfação por tão grave ofensa? Realmente, nada disso temos a não ser mediante a tua graça. Pois tu só podes corrigir-nos; tu só podes pagar pelos nossos pecados; porquanto tu só sabes bem de que pó somos formados.8 Tu só és nossa salvação e redenção, pois só por meio de tua graça é possível aos homens, vendo-se abismados na tua baixeza, ter esperança de levantar-se unicamente com teu auxílio.

Por isso, ergamos diretamente a Deus os olhos da nossa alma e vejamos onde estamos submergidos, a fim de conhecermos a nossa queda. E, conhecendo-a, clamemos altamente do mais profundo dos abismos ao Senhor, para que nos estenda a mão auxiliadora da Sua misericórdia, “que nunca há de encolher-se para nos salvar”.9 “Não percamos a confiança, que tem uma grande recompensa… Aproximemo-nos confiadamente do trono da Sua graça, para alcançarmos o fim da nossa fé, a salvação das nossas almas”.10

Não nos detenha nenhuma tardança, pois que já nos chama a vida, espera-nos a salvação, e a tribulação nos impele a entrar. Por que hesitamos, pois? Por que tardamos? Apressemo-nos a entrar no repouso da eterna Bem-aventurança, onde há coisas grandes, inapreciáveis e maravilhosas sem número.11 Seja Jerusalém o objeto dos nossos pensamentos, suspiremos pela nossa pátria, ergamos as nossas almas para o alto, “internemo-nos na consideração das obras do Senhor”,12 contemplemos o nosso Rei reinando gloriosamente, e comovam-se os nossos corações pelas Suas misericórdias.

Demos-Lhes graças de todo o coração, pois não levou em conta a nossa ingratidão, e não nos privou da Sua benigna misericórdia, inspirando-nos o desejo de “palmilhar a senda dos seus Mandamentos”,13 senda essa que ninguém pode trilhar sem este desejo. Não desprezemos este benefício, mas reputemo-lo bem grande, pois, que o mais esclarecido dos Profetas assegura que o ambicionou, dizendo: “A minha alma desejou ansiosa em todo o tempo as tuas justas leis”.14

É sabido que este desejo, não raras vezes, se frustra em consequência da nossa nímia tibieza, do nosso descuido e negligência. Resolvi, por esse motivo, colecionar alguns documentos que servissem de estímulo à perfeição. Neles estão indicadas as coisas a evitar, e as que se hão de seguir, a fim de que, recordando-as carinhosamente todos os dias, de um modo eficaz, recobremos o primitivo fervor e cresçamos constante e infatigavelmente nas virtudes e graças, com o divino amor, até que cheguemos ao perfeito desejo das colinas eternas.

Exporei, primeiro, oito memoriais gerais, fazendo seguir alguns especiais.



Memoriais Gerais

Há algumas virtudes que são como degraus da escada da perfeição. Quem nelas fielmente exercita-se, chegará por meio delas à perfeição da vida e ao cume da glória. Tais são:

um santo pudor em todas as palavras e ações;

tardança em falar;

prontidão em obedecer;

frequência na oração;

fuga da ociosidade e das inobservâncias;

confissão sincera e frequente;

o servir prazenteiro;

e o evitar as companhias infrutíferas.

Estas virtudes são comparáveis a pérolas resplandecentes, enchendo a quem as possui, de graças aos olhos de Deus, dos Anjos e dos homens. “Mas quando aprouve Àquele que te destinou desde o seio da tua mãe, e te chamou por sua graça a fim de revelar-te o seu Filho”, transladando-te da miserável escravidão do Egito para a “liberdade gloriosa dos filhos de Deus” e, posto no caminho do homem novo, começares a palmilhar pela senda da humildade que fica estabelecida entre o temor e o amor, então, subindo pelo mesmo caminho da humildade as coisas mais altas, poderás exercer-te em coisas maiores, acerca das quais seguem imediatamente alguns memoriais.



Memoriais Especiais

1. Da mortificação das paixões. Querendo seguir os vestígios do Salvador é necessário, antes de tudo, desconfiares inteiramente de todas as consolações deste mundo, fixando toda a tua esperança no Senhor.

2. Da extirpação dos vícios. Com todas as tuas forças procura purificar-te completamente de todos os vícios e paixões para que, “purificado do velho fermento da malícia e da corrupção”, vivas uma vida nova com Cristo, porquanto, se não romperes, primeiro, as cadeias da iniquidade, tua alma, obumbrada pelas trevas, não conseguirá alçar-se às coisas celestes.

3. Da ruptura dos laços. Corta e desata de ti todo laço exterior, a fim de que, tua alma poder unir-se totalmente a Deus.

4. Da paciência nas tribulações. Suporta com paciência, por amor ao Altíssimo, todas as perseguições deste mundo. Ainda mais: acolhendo-as com prazer, folga unicamente nos padecimentos de Cristo. Desprezando as alegrias temporais, alegra-te nas mesmas tribulações, lembrando que todas elas revertem na purificação dos pecados e em méritos da alma.

5. De nada te queixes. Desde que reconheces haveres ofendido ao teu Criador e ao de todas as coisas, não exijas que criatura alguma te respeite.

6. Da pobreza e do desprezo de ti próprio. Menosprezando-te a ti mesmo, desejando seres menosprezado pelos teus semelhantes, e zelando pela santíssima pobreza, guarda quanto puderes a aspereza, a vileza e a economia em tudo que te concerne. Todavia, não exijas isto dos demais; pelo contrário, sempre alegre e prazenteiro por toda consolação dos teus irmãos, assiste-lhes sempre que necessário, obsequiando-os e servindo-lhes, lembrado de que são dignos de todo alívio, a menos que (não o permita Deus), em alguma coisa vires claramente uma ofensa divina que careça de toda desculpa. Então, compadecido e cheio de temor, doe-te por ela do íntimo do coração.

7. Da fuga das honras. Vivendo sempre cheio de temor, foge com todo o empenho das lisonjas deste século, de suas honras, glórias, favores e das auras da vanglória, assim como se foge de pestes mortíferas. Conhecendo-te a ti mesmo, considera-te indigno de toda honra. Quando, porém, alcançares a perfeita vitória sobre ti próprio, nenhum inimigo interior ou exterior conseguirá prejudicar-te.

8. Da verdadeira humildade. Por amor d’Aquele que, sendo o Senhor de todas as coisas do Céu, da terra e dos abismos, tomou por nós a forma de vilíssimo servo, submetendo-se voluntariamente ao poder dos homens – tu, humilhando-te a ti mesmo, considera todo homem como senhor teu, e a ti verdadeiramente como servo de todos, em todas as coisas. Assim alcançarás tranquilidade, viverás em perpétua paz com todos e conhecerás em absoluto o escândalo.

9. Da paz da tua alma e como se a consegue. Não te intrometas em coisa alguma que não te diga respeito e não te traga utilidade espiritual; isto é, não te preocupes de modo nenhum, quer interior quer exteriormente, de coisa alguma que não sirva de proveito à tua alma; nem tampouco permitas que outrem te envolva em assuntos desta espécie. Nisto está um segredo admirável, oculto aos inexperientes.

10. Da guarda dos sentidos. “Guarda solicitamente” tua vista, tua língua e os demais sentidos corporais, de sorte que não queiras ver, ouvir ou tocar senão o que for útil à tua alma. Refreia energicamente a tua língua, de maneira que não fales senão quando perguntado, ou obrigado por necessidade ou evidente utilidade. E ainda neste caso, brevemente e em voz baixa, se possível, mas sempre com respeito e prudência de ânimo, evitando o palavreado e reduzindo as ocasiões ao mínimo estrito.

11. Da solidão e das vigílias. Ansioso pela santa e pacífica solidão, considera como preciosa a prática das vigílias, oferecendo nelas a Deus as tuas orações com atenção nas palavras, com fervorosa devoção e com profunda humildade.

12. Do divino Ofício. Ao rezares o Ofício divino, recolhe-te em ti mesmo de tal sorte que te esqueças de tudo quanto é terrestre e, concentrado o teu espírito na contemplação dos Mistérios celestes, o recites com tamanha devoção, respeito, júbilo e temor como se estivesses no meio dos coros angélicos e juntamente com eles oferecesses os louvores à divina Majestade.



13. Da devoção à gloriosa Virgem Maria. Com grande afeto e veneração afeiçoa-te sempre à gloriosa Rainha, Mãe de Nosso Senhor, e a Ela volve, como a um refúgio seguríssimo, em todos os instantes, tribulações, necessidades, pedindo-Lhe o apoio do seu patrocínio, tomando-A por Advogada e confiando-Lhe devota e seguramente a tua defesa, pois que Ela é a Mãe da misericórdia. Todos os dias procura oferecer-Lhe algum obséquio particular. E para que tua devoção Lhe seja agradável, e aceita a tua veneração, empenha-te por imitar-Lhe os exemplos de humildade e mansidão, conservando solicitamente incontaminada em ti a virtude de sua castidade na alma e no corpo.

14. Evita a companhia de mulheres, e procura um Diretor Espiritual. Em toda parte evita estar com mulheres e com jovenzinhos, exceto em caso de necessidade ou utilidade manifesta. Onde quer que te encontres, busca um único Diretor Espiritual que seja um varão santo, discreto, manso e piedoso, mais douto pela experiência da virtude que pela sublimidade da doutrina. Que ele te instrua e te inflame no amor divino com palavras e exemplos eficazes e abrasados. A ele acode em todas as necessidades para teu consolo espiritual.

15. Da fuga da indolência e da tristeza. Repelindo com energia toda indolência e tristeza, nas quais se esconde o caminho da perturbação, “que conduz à morte”, vive sempre tranquilo e sereno, interior e exteriormente. A nada contradigas ou te oponhas, mas concorda com todos, em tudo e por tudo, desde que não seja contra a glória de Deus e o bem das almas.

16. Aceita o bom exemplo dos outros. Conforma todos os teus afetos e desejos com a vontade divina. Tudo te edifique e nada neste mundo perturbe a graça da pureza e inocência que te outorgou a bondade divina. Não te manches com imundícies alheias, escandalizando-te dos defeitos dos outros, acrescentando iniquidade a iniquidade. Não suceda que, procurando salvar a outrem, caias tu mesmo nalgum abismo ainda pior. O melhor é cobrires caridosamente aquelas faltas que não podes remediar sem dano próprio e as abandonares às mãos da grande Sabedoria que mesmo do mal sabe tirar o bem. Assim, com permissão do Senhor, poderás reunir proveito espiritual não só de todos os bens, mas ainda de todos os males.

17. Da Guarda do coração. Vigiando com solicitude teu coração e dedicando-te exclusivamente a exercícios espirituais, não consintas que se imprimam nele as imagens das coisas visíveis, a fim de que, abstraído de todas as criaturas, possa abandonar-se desembaraçadamente ao Criador de todas.

18. Da caridade para com o próximo. Considerando em todos os homens a imagem e a semelhança da divina Majestade, ama-os com afeto de uma genuína caridade. Interessa-te por todos, especialmente pelos enfermos e necessitados, contanto que daí não te nasça alguma distração prejudicial às coisas espirituais. Ama-os tanto “como uma boa mãe ama ao seu muito amado filho único”.

19. Da oração e da santificação do trabalho. Mantém tua alma constantemente voltada para Deus de tal sorte que toda obra e exercício, quer mental quer material, seja uma oração. Desempenha todos os teus ofícios, sobretudo os mais humildes, com tamanho fervor e caridade, como se os prestasses a Cristo em pessoa. Podes e deves pensar que efetivamente assim é, porquanto di-lo Ele mesmo no Evangelho: “Tudo o que fizestes a algum dos meus irmãos mais pequeninos, a mim é que o fizeste”.

20. Da santa obediência. A todos presta honra e respeito, quer devida quer convenientemente, e procura guardar sempre ilesa, como a “menina dos olhos”, a santíssima obediência, não só nas coisas grandes e nas que admitem dúvida, mas ainda nas pequenas. Obedece não só aos Superiores, senão também a todos os inferiores, sujeitando-te a todos e abnegando-te por amor de Cristo. Nas coisas boas e nas indiferentes procura fazer sempre a vontade de outrem, não molestando a ninguém, amando a todos em Cristo e agradando a todos sem distinção. Evita as afabilidades, amizades e intimidades particulares. Cuida sobremodo de não seres, de forma alguma, nem por ti nem por outros, quer por palavras quer por obras ou gestos, causa ou motivo de rancor, ódio, clamor, injúria, perturbação, murmuração, crítica, escândalo, adulação e de outras coisas idênticas.

21. Conserva ocultas as consolações e as tribulações. Trata de ocultar a todos, quanto possível, as virtudes e graças espirituais que a divina misericórdia se dignar de efetuar em ti ou por ti, como também as tribulações, as lutas, os propósitos de santificação e outras coisas parecidas, excetuando todavia aquilo que deves revelar ao Sacerdote na confissão, a menos que, por motivo de utilidade espiritual, as manifestes a algum amigo teu especial e perito, cujo conselho e doutrina crês que te possa aproveitar nestes assuntos. Sê afanoso em economizar o tempo, a fim de poderes entregar-te à costumada oração e santa meditação, e, assim, “recolhendo-te solitário, te eleves” pelo desejo às coisas celestes.

22. Da presença de Deus em toda parte. Desembaraçado inteiramente e não desejando nada de terrestre, desprezadas todas as criaturas, ocupa-te do teu Criador com tamanho interesse da alma e energia da vontade que, como esquecido das coisas inferiores, tudo o que fizeres, onde quer que te encontrares, em quaisquer assuntos sobre que conversares, de dia e de noite, a todo instante e a toda hora, tenhas Deus presente à tua memória, crendo e pensando verdadeiramente que estás em Sua presença e que te vê em toda parte. Compenetra-te disso com grande respeito e temor, com grande discrição e ardentíssimo amor, já prostrado aos pés de Sua imensa Majestade, pedindo-Lhe perdão dos pecados com o coração dolorido; já ferido pela espada da compaixão da Sacratíssima Paixão do Filho de Deus, transpondo-te aos pés da Cruz, com lágrimas e com pesar; já propondo-te o curso de toda a Sua vida, qual uma linha reta, a fim de retificares a tua anormalidade; já recordando em tua alma os seus inúmeros e imensos benefícios, demorando-te na ação de graças; já ferido ardentissimamente pelos estímulos do seu amor entrevendo o teu Criador em todas as criaturas; já considerando o Seu poder, a Sua sabedoria, a Sua bondade, a Sua clemência, glorificando-O em todas as Suas obras; já atraído pelo desejo da pátria celestial, suspirando por ela amorosamente; já considerando as entranhas da Sua inestimável caridade para conosco, desfalecendo n’Ele o teu corpo e a tua alma com uma alegre e excessiva admiração; já imaginando que, ou cais, ou foges, ou que Deus te acolhe, te levanta e te atrai, ou que perseveras ingrato em tudo, embora te sejam manifestas as inefáveis entranhas da divina misericórdia, acercando-te d’Ele com grande ardor de caridade, desfazendo-te todo em pranto; já atendendo solicitamente aos ocultíssimos, profundíssimos, admirabilíssimos, mui secretos e estupendos juízos da Sua justiça, venerando-O fiel e constante, discreto, suplicante e humilde em tudo com grande amor e também com grande temor, guardando sobretudo uma recordação viva e incessante da Sua Sacratíssima Paixão na tua alma e no teu corpo.

23. Da sacratíssima vigilância sobre si mesmo. Velando por “tua guarda”, fugindo como o pássaro dos laços dos caçadores; defende-te constantemente e com cautelosa solicitude contra as ilusões do antigo Inimigo que, “transfigurado em Anjo da luz”, frequentemente espraia laços e redes por todos os caminhos dos homens, a fim de capturar as almas. Seja tão grande a tua pureza, acompanhada pela santa humildade, que nem sequer as redes mais sutis possam amarrar-te. Delas, com efeito, sairás incólume quando tiveres te tornado Israel, isto é, ancorado em Deus, fixando continuamente os olhos de tua alma no Senhor, porque seu custódio “não dormirá e não dorme”.

24. Da pura confissão dos pecados. Observando indefeso o rigor da tua ordem, abrasado nos sagrados ardores de desejos celestes, conservando ilibada a formosura da pureza da alma e do corpo, a candura da inocência e a delicadeza da consciência, acautela-te com diligentíssimo cuidado de não te tornares insensato, desfalecendo em alguma norma. A fim de observares isso com maior pureza e solicitude, examina a tua vida sete vezes ao dia, sempre antes ou imediatamente depois de cada hora canônica, considerando atentamente de hora em hora se andaste digno de Deus e imaculado no caminho da justiça. Não havendo quem a tal ponto guarde a disciplina e a observância que não descuide ou omita alguma coisa, necessário é que, recorrendo ao lavacro da penitência, te acuses sincera e frequentemente, com lágrimas e compunção. Nesta acusação ou confissão manifestarás ao Sacerdote, como à Deus, íntegra, verdadeira e puramente, sem algum véu de desculpa, encobrimento ou disfarce, depois de examinadas todas as faltas, as que cometeste, expondo em primeiro lugar as omissões com referência a Deus, principalmente as ocorridas na oração mental e vocal; em seguida, as faltas na observância da justiça para com o próximo; depois, as ações pecaminosas em que incorreste devido à guarda negligente dos sentidos, dos afetos e dos pensamentos que aderem aos sentidos.

Esta confissão andará acompanhada sempre pela contrição e a satisfação, isto é, deves doer-te das culpas, não só das grandes, senão também das pequenas, e, doendo-te, não tornes a pecar, procurando evitar sempre as causas e as ocasiões de pecado, enquanto te parecem melindrosas em razão do teu apego. Conforma a sentença do Senhor: “Há de arrancar-se o olho que escandaliza”, quer dizer, hão de evitar-se as ocasiões de pecado que, efetivamente, se afiguram-nos atraentes, embora nos desagradem muito as suas consequências. Daí resulta um combate veementíssimo. Pela mesma razão é necessário que o servo de Deus seja cego, surdo, mudo e insensível a todas as coisas que não redundam em bem da sua alma. Para te apegares com maior solicitude e te inflamares com mais fervor na observância dos Mandamentos divinos e da santa disciplina nas coisas sobreditas, como ainda em todas as demais, procura relembrar afetuosa e detidamente, com consciência sincera, pelo menos uma vez ao dia, estes cinco pontos de vista: quão breve é a nossa vida; quão escorregadio o caminho; quão incerta a hora da morte; que prêmio se destina aos bons; que tormentos, aos maus, a fim de que, não haja serviço sem temor, nem gozo sem tremor.

25. Quais devemos ser em nosso conceito, posto que perfeitos. Ainda que, com auxílio da divina graça desempenhes bem todos os teus deveres, reconhece-te como servo inútil e como pecador. Julga-te indigno de todo benefício de Deus, mas conserva sempre robustíssima a fé, cheio de amor divino, esperando com máxima confiança que pelo mesmo misericordiosíssimo Pai ser-te-ão abertas as entranhas da misericórdia, para que – depois de, infatigavelmente, haveres lançado com profunda humildade os alicerces solidíssimos da fé, e depois de haveres levantado os brilhantíssimos muros de uma caridade contínua e fervorosa, adornados com as decorações de todas as virtudes, e depois de teres colocado glorioso teto da desejada esperança felicíssima por fim, dispostas em ordem todas as coisas, o supremo Morador dos Céus e doce Hóspede das almas fiéis, cujas “delícias consistem em viver com os filhos dos homens”,15 se digne habitar longo tempo contigo, por meio da graça, no presente desterro até que, depois do remate desta vida, mereças ver com júbilo, em companhia de Todos os Santos, revestido da gloriosa veste da imortalidade perpétua, a claridade de sua face na pátria da Bem-aventurança celeste, onde haverá suma felicidade e alegria sempiterna, fim e complemento de todos os nossos desejos.



Conclusão

Além do mais, fica sabendo e convence-te disso, irmão caríssimo, que se não te abnegares totalmente a ti mesmo, não poderás seguir as pegadas do Salvador, que sem esforços contínuos não conseguirás obter a Sua graça; que, se não bateres assiduamente à Sua porta, não ingressarás na paz da alma; e que, se não te mantiveres forte no temor de Deus, logo desmoronar-se-á tua casa e cairá no abismo. Ao contrário, se praticares fiel e constantemente as sobreditas verdades, espero na misericórdia do Salvador, que Ele te fará digno da Sua graça na presente vida e que com Ele fruirás da Sua glória na futura. Amém. Caríssimo, escrevi-te estas coisas não por crer que tu delas tivesses necessidade, mas porque as colhera para mim mesmo, já que conheço quão pequena é a minha constância. Pensei em enviá-las a ti, meu fiel auxiliar, a fim de que aquilo que foi omitido pela fraqueza e a negligência de minha tibieza, seja completado pela magnanimidade e a solicitude de teu fervor, principalmente porque sei que concordando comigo, te alegras em quase todos meus desejos, mesmos nos mais simples. Por isso, caríssimo, rogo-te que recebas estas linhas com aquela caridade com a qual sei que as enviei a ti com afeição e devoção, a fim de que, estas coisas todas – “cuja observância no presente não parece ser causa de alegria, mas de temor” – pelo exercício dos estudos celestes aprendas a obtê-la de tal modo que no futuro produzam o “suavíssimo fruto da justiça”, e na doce memória de sua expectativa a tua alma já no presente seja repleta da abundância e da plenitude dele em Cristo Jesus, Nosso Senhor, a quem nas orações de tua devoção recomendarás a mim, árido e falador mais do que devoto. “À Ele a honra e a glória, o decoro e o império, pelos infinitos séculos dos séculos. Amém”.


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Fonte:Escritos Espirituais de São Boaventura” – Opúsculo “25 Memoriais sobre a Vida Espiritual”. Escolhidos e traduzidos por Frei Saturnino Schneider, O.F.M., Editora Vozes Ltda, Petrópolis/RJ,1937.

1.  Is. 58, 6.

2.  I Tim. 2, 4.

3.  Filip. 4, 7.

4.  Mat. 11, 28.

5.  Mat. 11, 28.

6.  Heb. 4, 12.

7.  Is. 5, 20.

8.  Ps. 102, 14.

9.  Is. 59, 1.

10.  Heb. 10, 35; 4, 16; I Ped. 1, 9.

11.  Job 5, 9.

12.  Ps. 10, 16.

13.  Ps. 118, 32.

14.  Ps. 118, 20.

15.  Prov. 8, 31.


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