Blog Católico, para os Católicos

BLOG CATÓLICO, PARA OS CATÓLICOS.

"Uma vez que, como todos os fiéis, são encarregados por Deus do apostolado em virtude do Batismo e da Confirmação, os leigos têm a OBRIGAÇÃO e o DIREITO, individualmente ou agrupados em associações, de trabalhar para que a mensagem divina da salvação seja conhecida e recebida por todos os homens e por toda a terra; esta obrigação é ainda mais presente se levarmos em conta que é somente através deles que os homens podem ouvir o Evangelho e conhecer a Cristo. Nas comunidades eclesiais, a ação deles é tão necessária que, sem ela, o apostolado dos pastores não pode, o mais das vezes, obter seu pleno efeito" (S.S. o Papa Pio XII, Discurso de 20 de fevereiro de 1946: citado por João Paulo II, CL 9; cfr. Catecismo da Igreja Católica, n. 900).

sábado, 8 de abril de 2023

SEXTA-FEIRA SANTA.


Este dia, chamado também de sexta-feira maior, por causa do grande Mistério da nossa Redenção, nele operado, desde sempre foi olhado como o mais Santo, o mais Augusto e o mais Venerando de todos os dias, e aquele que os Cristãos têm sempre celebrado com mais devoção. É o grande dia das misericórdias do Senhor, pois é o dia em que este divino Salvador quis, por excesso de amor incompreensível a todo o entendimento criado, sofrer os mais atrozes tormentos, expirar ignominiosamente em uma cruz, para que, diz o sagrado texto, fôssemos curados com Suas Chagas, lavados com Seu Sangue, purificados e justificados pela sentença de Sua condenação, e para que em Sua morte achássemos o princípio de nossa vida. Este é o grande dia das expiações, pois é o grande dia em que Jesus Cristo expiou com Seu Sangue os pecados de todos os homens. “O homem que não se mostrar sensibilizado neste dia da expiação, dizia o Senhor, perecerá em meio de seu povo”.

Queria Deus que no dia destinado para as expiações de Seu povo, todos se movessem à dor; e se por desgraça houvesse algum tão insensível e tão endurecido, que não participasse da aflição comum, ordenava que fosse exterminado e que não se contasse mais entre o Seu povo. Este é o grande dia das expiações. Porventura, não tem Deus direito para dizer neste dia: a alma, que não se afligir neste dia perecerá? E que seria, se, ao passo que o amor de um Deus se mostra tão sensível a nossos interesses, nós nos mostrássemos insensíveis a Suas penas? Esta insensibilidade e indiferença não seria um caráter visível de reprovação?

Nenhum dia do ano é mais respeitável, nenhum, para assim dizer, mais cristão, nenhum mais distinto que o de Sexta-feira Santa.

Sua celebridade nasceu com a Igreja. Todos são de parecer que os Apóstolos, instituíram aquelas festas cujos Mistérios se desenrolaram à sua vista. Quem não vê, diz Santo Agostinho, que a festa de Sexta-feira Santa precedeu todas as outras? Pode até afirmar-se que a Igreja consagrou todas as sextas-feiras do ano como a Oitava Perpétua da festa deste dia, assim como o Domingo o é da festa da Ressurreição e do Santo dia de Páscoa.


É este o motivo porque os príncipes cristãos proibiram que se instaurassem processos ou se sustentassem pleitos na Sexta-feira Santa e todas as sextas-feiras do ano, em memória da Paixão do Senhor. Com efeito, ao menos na Espanha não se executa sentença alguma em Sexta-feira Santa em veneração da morte de Jesus Cristo.

Neste dia se reúnem ou verificam duas épocas: o fim da Antiga Aliança e o princípio da Nova. A morte de Jesus Cristo marca o nascimento da Igreja e para assim dizer, a sepultura da Sinagoga: Seu Sangue, como dilúvio de bênçãos celestiais, renovou toda a terra, suscitando um novo povo de Povo de Deus e reprovando o antigo. Deu-se a este dia o nome Parasceve, que é uma palavra grega, que significa preparação, porque no sexto dia da semana, preparavam os judeus quanto era necessário para celebrar o sábado.

Entre os gregos, Sexta-feira Santa chamou-se Pascua Staurossime, que quer dizer, de Jesus crucificado, e o Domingo seguinte Pascua Anastassime, que significa, de Jesus ressuscitado. A festa deste dia tem sido sempre na Igreja uma festa de prantos, de luto e de penitência: e ainda que o tempo haja introduzido algum temperamento, ao jejum da Quaresma, pode asseverar-se que nada tem alterado o jejum de Sexta-feira Santa.

Este é propriamente o único dia em que se observa, igualmente nas Casas Religiosas e mesmo nas Seculares, a Xerophagia, quer dizer, o jejum reduzido a legumes, raízes ou ervas e muitos também jejuam hoje a pão e água. Dos Apóstolos vem o não haver Missa neste dia. O grande luto da Igreja e a morte do Salvador não permitem que haja o Divino Sacrifício. Antes que o Ofício da noite de Páscoa se adiantasse para o Sábado, também não havia Missa neste dia por aquela razão: Hoc biduo, diz o Papa Inocêncio, Sacramenta non celebrantur. O Quarto Concílio de Toledo, no ano 633, diz que, em todas as igrejas de Espanha fechavam neste dia as portas dos templos, para significar a profunda tristeza e aflição em que estava mergulhada a Santa Igreja; não obstante, ordena que se faça o Ofício e se pregue a Paixão. Antigamente o Clero e o povo comungavam na Sexta-feira Santa: este costume já não se observa em algumas abadias.

O Ofício deste dia que substituiu a Missa, é um dos mais Augustos e mais ternos: tudo inspira compunção e uma religiosa melancolia: o espírito do Mistério e da Religião descobre-se e transparece em todas as cerimônias e orações: tudo aviva a triste solenidade de um dia, que é o dia da morte do Salvador, cujas exéquias celebra hoje a Igreja.


Estende-se sobre o Altar uma cobertura singela, imagem do lençol em que foi envolto o Corpo do Salvador, depois de O terem baixado da Cruz. O Presbítero, baixando o rosto para o chão, testifica nesta atitude a amargura em que está imerso o seu coração, o qual se abre neste dia comum a todos os fiéis. Começa lendo duas Epístolas; uma do Profeta Oséias, a outra do Êxodo, onde Moisés descreve a cerimônia do cordeiro pascal como figura de Jesus Cristo, imolado neste dia por todos os homens. O cordeiro pascal foi seguido do termo da escravidão dos israelitas, que viviam no Egito, e a morte de Jesus Cristo neste dia, libertou-nos da escravidão do pecado.

Não houve profecia mais clara, mais precisa e expressa acerca da morte do Salvador e do estabelecimento da Igreja, que a do Profeta Oséias, que forma o assunto da primeira Epístola deste dia, e pela qual começa o Ofício que substitui a Missa.

Isto diz o Senhor: No excesso de sua aflição se darão pressa de recorrer a mim: Vinde, dirão, voltemos ao Senhor. Venite, et revertamur ad Dóminum. Castigou-nos por causa de nossos pecados, esperemos que haja de se compadecer de nós: Sua justiça nos feriu e Sua misericórdia nos há de salvar. No sentido alegórico, estes de quem fala, são todo o gênero humano que pelo pecado atraiu sobre si aquele dilúvio de males, que por mais de 4 mil anos inundou toda a terra, e não podia ser libertado da escravidão da culpa, se não fosse Aquele que o havia condenado a ela.

Na verdade era necessário o Sangue de um Homem-Deus para curar todas as chagas do homem: isto é o que o Profeta nos prediz e se tem verificado no Mistério que celebramos. Este divino Salvador nos vivificará dentro de dois dias, diz o Profeta; e ao terceiro nos ressuscitará: e depois viveremos diante Dele, e não nos olhará já senão com olhos propícios; será nosso Deus e nós seremos Seu povo; saberemos então por uma fé viva quem é o Senhor, e O seguiremos com ânsia e fidelidade, conhecendo-O mais e mais em cada dia.

Ele se nos comunicará, não já entre raios e trovões, como no Sinai, mas como brando rocio da primavera, ou como chuva fecundante do outono, que só cai sobre a terra para a tornar mais fértil em flores e frutos; Seu regresso será semelhante ao da aurora que inspira alegria a todas as coisas: Vivificavit nos per duos dies; in die tértia suscitavit nos. Esta profecia, tomada no sentido próprio e literal, nunca se efetuou entre os hebreus, dizem os intérpretes. Em vão se investigaria na história este número de dois dias, após os quais o povo ou alguém dele recebesse uma nova vida, e o terceiro em que ressuscitasse.

Nisto insinuava Isaías a Ressurreição dos fiéis remidos com o Sangue de Jesus Cristo, e assinalava evidentemente a Ressurreição do Salvador, que segundo diz São Paulo, nos deu a vida, quando estávamos mortos por nossos pecados.1 Também nos ressuscitou com Jesus Cristo, e nos fez sentar no Céu em Sua Pessoa.2 A este lugar do Profeta faz sem dúvida alusão o Evangelista, quando diz que o Salvador ressuscitou ao terceiro dia segundo as Escrituras: Aparecerá o Salvador, continua o Profeta, como a aurora: em Sua Ressurreição foi aquele sol ardente que dissipou todas as trevas do erro e da idolatria, virá a nós como chuva que cai a tempo sobre uma terra seca, que sem ela jamais teria produzido fruto.

A Judeia estava fraccionada em dois reinos depois de Salomão; o de Judá que apenas compreendia duas tribos, e o de Israel que abrangia as outras dez; e como Jeroboão, primeiro rei das dez tribos, era da tribo de Efraim, entende-se que Deus fala a todos os judeus, quando às duas tribos principais diz por seu Profeta: Que me podeis pedir à vista do que acabo de fazer? Como se dissesse: A morte do Messias porá fim a vosso cativeiro, e na Ressurreição vos dará nova vida: Que maior maravilha podeis esperar de minha bondade? Se não houvesse atendido senão as vossas orações, as vossas obras de caridade tão frouxas, à vossa penitência tão superficial, nunca haveria resplandecido tanto minha misericórdia e compaixão para convosco; à minha pura bondade, deveis uma tão grande maravilha. Por mais ameaças que vos haja dirigido por meus Profetas, por mais vaticínios que vos faça dos males com que vou castigar vossas iniquidades, nem por isso sois menos indóceis. Aprende, ingrato; sabe que Eu prefiro o sacrifício do coração e a caridade, a todos os tais sacrifícios, e que a ciência e conhecimento que se tem de Deus pela fé, Me é mais agradável que todos os holocaustos que podeis ofertar.


A segunda Epístola é tirada do Êxodo. Gemiam havia muito tempo os israelitas debaixo da opressão dos egípcios, quando, movido Deus dos clamores de seu povo oprimido, enviou Moisés ao Egito para intimar da sua parte ao Faraó, que pusesse em liberdade o Seu povo. Moisés, acompanhado de seu irmão Aarão, apresentou-se diante do rei, declarou-lhe a ordem de Deus; recusando-se, porém, ao que se lhe mandava, feriu-o a ele e ao seu reino com muitas pragas, conforme o poder e ordem que recebera do Senhor. Endurecendo-se Faraó, obstinou-se em não deixar sair os israelitas; mas Deus, antes de acenar-lhe o último golpe que devia partir-lhes as cadeias, antes de os arrancar àquele longo cativeiro, disse a Moisés que os dispusesse para celebrar a Páscoa, isto é, o trânsito ou a passagem do Senhor. Esta Epístola contém o que Deus ordenou a Moisés referente a este célebre rito.

O mês, em que estais, será daqui em diante para vós o primeiro mês do ano, lhes disse; isto era no equinócio da primavera, no qual desde então se fixou o princípio do ano santo dos israelitas; o ano civil, este começava no equinócio do outono, como entre os egípcios. No décimo dia deste mês, diz o Senhor, tomar-se-á um cordeiro por família; e se a família não for assaz numerosa para comer o comer, junte da parentela ou da vizinhança um número de pessoas que sejam bastantes para cumprir esta cerimônia. Este número determinou-se que fosse pelo menos de dez. O cordeiro pascal não deve ter mais de um ano, não há de ter mancha ou deformidade alguma. A palavra hebreia significa perfeito. Os Apóstolos e os Padres da Igreja fazem-nos advertir o completo acordo entre o cordeiro pascal e Jesus Cristo, que é o único Cordeiro sem mancha, imolado por nós na Cruz, o qual por Seu Sangue nos livrou da escravidão do pecado, nos pôs a coberto do Anjo exterminador, e serve ainda todos os dias de alimento aos fiéis no Sacramento da Eucaristia. Guardá-lo-eis, diz o Senhor, até ao dia catorze deste mês; chama-se este mês Nizan e correspondia ao nosso mês de março; e toda a multidão dos filhos de Israel o imolará pela tarde. Esta imolação do cordeiro pascal era uma figura bem expressa do sacrifício sangrento do Salvador do mundo. Tocar-se-á com Seu Sangue, acrescenta o Salvador, e se ungirão com ele os dois postes, isto é, os lados e o cimo das portas das casas onde o comerem, para que o Anjo que há de matar os primogênitos dos egípcios, não entre nas casas que tiverem este sinal. Não era isto assim, dizem os Padres, porque os Anjos tivessem necessidade deste sinal para distinguirem as casas dos hebreus das dos egípcios, mas era necessário fazer compreender por alguma coisa sensível àquele povo grosseiro a proteção especial que Deus dispensava a suas famílias.

São Jerônimo parece dizer que com aquele sangue se fazia um sinal da cruz: o certo é que o sangue do cordeiro pascal era figura e símbolo do Sangue de Jesus Cristo, que nos livra muito mais eficazmente do poder do Anjo exterminador; e pondo-nos a coberto da indignação de Deus, nos torna dignos de Sua misericórdia.

Fareis assar este cordeiro, continua o Senhor; não comereis dele nada cru, nem cozido em água, mas só assado ao fogo; comer-lhe-eis a cabeça e também os pés e os intestinos; deve consumir-se toda naquela noite, sem que reserveis nada para o dia seguinte; e se ficar alguma coisa, se queimará e reduzirá a cinzas para que não se profane. Comê-lo-eis com pães não fermentados e com leitugas agrestes. Quando o comerdes, tereis cingidos os rins, calçados os pés e com báculos nas mãos, como caminhantes prontos a partir, e comê-lo-eis depressa, porque é a páscoa, isto é, a passagem do Senhor. Tudo é misterioso, e tudo figura nesta famosa cerimônia descrita detalhadamente; nunca houve figura de Jesus cristo por nós imolado na Cruz, e mais expressa, mais significativa e mais simbólica do que esta imolação do cordeiro pascal com todas as suas circunstâncias, feita à saída dos israelitas do Egito: é o trânsito ou passagem que o Senhor ordena que faça Seu povo, do cativeiro em que vivia para o estado livre, do Egito para a terra da promissão: e por Jesus Cristo imolado, do estado servil do pecado para o estado ditoso da graça. É evidente que a milagrosa liberdade que alcançaram os judeus nesta primeira páscoa não era senão figura da alforria do gênero humano da servidão do pecado pela morte de Jesus Cristo, cuja memória celebramos hoje.

O sangue do cordeiro pascal preservou os judeus da mortandade que teve lugar naquela mesma noite nas casas dos egípcios; e o Sangue de Jesus Cristo, diz São Paulo, livrou-nos da indignação de Seu Pai. Ele é, segundo São Pedro, como o cordeiro sem mancha e sem deformidade, cujo Sangue nos salvou. Ele mesmo, para cumprir em Sua Pessoa o que estava predito Dele debaixo da figura do cordeiro pascal, Ele próprio se foi meter nas mãos dos que O haviam de imolar no dia dez da lua, isto é, no mesmo dia, em que deviam, segundo a Lei, prover-se de um cordeiro. Foi imolado no dia catorze e expirou na Cruz à mesma hora em que, naquele mesmo dia, se começava a imolação do cordeiro pascal. Não se lhe partiram as pernas, contra o procedimento usado com todos os que se crucificavam, e isto, como diz São João, para que se cumprisse a Escritura, que proibia que se quebrasse osso algum do cordeiro pascal. Comia-se o cordeiro pascal, para que se lembrassem, diz a Escritura, da passagem ou trânsito do Senhor. Nós comemos a Jesus Cristo depois de O havermos oferecido a Seu Pai no Sacrifício da Missa, que é a continuação real do sacrifício de Jesus Cristo na Cruz. O pão não fermentado, isto é, insípido, as leitugas agrestes e amargas com que se comia o cordeiro pascal, denotam assaz que a mortificação deve acompanhar sempre tanto a Sagrada Comunhão, como a celebração do divino sacrifício; este é um dos frutos que deve produzir a memória do doloroso Mistério da Paixão do Senhor.


Acabadas estas duas Epístolas, lê-se a história da Paixão, segundo São João, o qual, tendo sido testemunha de quanto nela se passou, tem toda a autenticidade de um historiador digno de fé.

Tudo causa pasmo na Paixão de Jesus Cristo; mas, sobremodo, se torna incompreensível a fúria e desumanidade dos judeus, e a paciência e caridade do Salvador.

Em meio daquela tempestade de opróbrios e tormentos, quem não teria acreditado que só a vista daquele Homem-Deus, no espantoso estado a que O reduzira a barbaridade dos que O açoitaram, os quais tinham feito de seu Corpo uma chaga viva; quem não teria acreditado que este espetáculo havia de satisfazer a raiva e furor que aquele povo cruel concebera contra o Homem divino, que não lhe tinha feito senão o bem, e que realizara em seu favor tantas maravilhas?

E no entanto, um objeto tão digno de lástima, só serve para mais acirrar sua crueldade; aquele Sangue que corre de todas as partes, inflama sua raiva em lugar de a extinguir. Mal foi o Salvador condenado à morte contra toda a justiça, logo cada qual porfia em tomar parte na execução daquela sentença. Com que frenesi se arremessam aqueles furiosos sobre este divino Cordeiro! Despojam-no de Seus vestidos; o Sangue colara a Seu Corpo a vestidura de púrpura que lhe tinham posto por escárnio; puxam com violência por esta vestidura, e com ela trazem a Carne aos pedaços; tornam a pôr-lhe seus vestidos para que melhor O conhecessem, e ainda que O veem externamente fraco e extenuado de forças, carregam-no com a Cruz, cujo peso O faz cair repetidas vezes.

Bem se deixa ver, que tudo é extraordinário na Paixão de Jesus Cristo. A quem, por mais bárbaro que fosse, ocorreu a ideia de obrigar O sentenciado a carregar com o próprio instrumento do Seu suplício? E quem muito menos levaria a desumanidade a tais requintes, que impusesse ao Salvador, já tão enfraquecido, um tão pesado lenho?

Mas Jesus quer levar Sua Cruz para nos mostrar a indeclinável necessidade que temos de levar a nossa.

E não levava Ele só à Sua parte todas as nossas? Sai Jesus de Jerusalém com aquela pesada carga aos ombros; titubeia debaixo do seu peso, cede, e cai de joelhos a cada passo; necessita de um novo milagre para não sucumbir debaixo de semelhante peso. Ter-se-ia tido compaixão de uma besta, acabrunhada com o peso da carga; mas para Jesus Cristo não há compaixão, não encontra um sentimento de humanidade; quanto mais O veem sofrer, tanto mais se discorre como há de padecer sem limites.

Chega afinal ao Calvário, que há de servir de Altar ao mais Santo de todos os sacrifícios.

Ali O despojam outra vez de Seus vestidos, abrindo-lhe novamente as Chagas; estendem-No sobre a Cruz, e por um requinte de crueldade inaudita, atravessam-lhe os pés e as mãos com grossos cravos, que a grandes golpes de martelo fazem penetrar até à Cruz, em que descansa e que O sustenta. Ó Deus, basta uma picadura para causar dores insuportáveis; que dores não seriam pois essas causadas por tão grossos cravos, que fendem, rasgam e trituram vossos pés e mãos! Concebamos, se é possível, o que Jesus padece.


Mas que tormentos, meu Deus, e que excesso de dores, quando levantaram a Cruz, e a deixaram cair de golpe em uma saliência de rocha! Que doloroso estremecimento este para aquele Corpo, a quem o próprio peso arrasta para baixo, e os cravos prendem à Cruz! Quanto é verdade que morrer na Cruz é morrer tantas vezes, quantos os momentos que se passam nela!

Triste e cruel estado; e no entanto, Jesus Cristo passa três horas nela! Então foi, como diz São Paulo, quando o Salvador dos homens, estando cravado na Cruz, pregou nela o decreto ou cédula da nossa condenação, apagando-a com Seu Sangue; foi então que desarmou as potestades e os principados, arrebatando-lhes os despojos, e triunfando deles em Sua Pessoa à vista de todo o mundo.

Teria ao menos o lenitivo das lágrimas da multidão, que concorrera ao lúgubre espetáculo? Não. O mesmo foi ver-se levantado ao alto em presença de todo aquele povo, que ver-se insultado, carregado de opróbrios, de ultrajes e maldições: as blasfêmias e as indignidades parece que se fizeram só para Ele. Que padecente se viu jamais carregado de execrações e de injúrias na forca em que expirava?

Tudo é singular, tudo é inaudito, incrível, na morte do Salvador; mas o que mais impressiona ainda, é a Sua mansidão, Sua paciência, Sua caridade; pede a seu Pai pelos que O faziam morrer, morre por eles e solicita-lhes o perdão. É um Deus quem padece e quem morre, mas que padece e morre como Deus.

A Sua paciência, e tão extraordinária mansidão move e enternece um dos criminosos que morre a Seu lado. Ditosa conversão e conversão terrível! Ah, Senhor, o dia de vossas grandes misericórdias, o mesmo dia em que morreis para expiação de todos os pecados e para salvação de todos os homens, de dois pecadores que haviam diferido até àquela hora a sua conversão, ambos a vosso lado, um e outro salpicados de Sangue que corria de vossas Chagas, um só se converte, um só se salva e o outro perde-se. Quem pode diferir até à morte a sua penitência, e lisonjear-se que morrerá penitente?!

A Santíssima Virgem tomava demasiado parte neste Sacrifício, e amava com demasiada ternura a Seu bendito Filho, para O abandonar nestes transes.

Quem poderá conceber a dor de um tal Filho e de uma tal Mãe nestas cruéis circunstâncias? Aqui foi onde o vaticínio de Simeão se verificou à letra; aqui foi a Alma de Maria trespassada da penetrante espada, que lhe fez padecer uma dor mais acerba que a morte. Enfim, vendo o Salvador entre ladrões, em meio de opróbrios e ignomínias de que estava saturado, vendo que os decretos do Céu tinham recebido completa execução, que a justiça divina estava plenamente satisfeita, que os oráculos dos Profetas estavam verificados, a obra da Redenção cumprida, pagas as dívidas de todos os homens, satisfeito o Seu Amor, disse com voz moribunda: Tudo está consumado, e ao mesmo tempo, baixando Sua cabeça para terminar Seu sacrifício, pôs Sua Alma como em depósito nas mãos de Seu Eterno Pai, dizendo: Pai, em tuas mãos encomendo meu espírito, e acabando de dizer isto, expirou. Apenas morto o Salvador, deu-se um tremor de terra universal. O véu que separava as duas partes do templo, rasgou-se ao meio. Esta divisão do véu denota significativamente que as figuras do Antigo Testamento desapareciam diante da realidade, que o Céu ficara de ora em diante aberto pela morte de Jesus Cristo; que se haviam dissipado as sombras da Lei; que a Aliança com o povo judaico, rescindia com o deicídio; que ao povo cristão se ia a inteligência dos maiores Mistérios pelas luzes da fé. Santo Efrém diz que ao rasgar-se o véu do templo se vira sair uma pomba do interior do santuário, como para significar que o Espírito Santo abandonava um templo, em que Deus não havia de ser já adorado em espírito e verdade. Muitos sepulcros se abriram por ocasião da morte do Salvador; mas crê-se que os mortos não ressuscitaram senão por ocasião de Jesus ressuscitar, pois devia ser Ele o primeiro dentre os mortos. E crê-se também que subiram ao Céu em corpo e alma com Ele.


À vista de tantos prodígios, os corações mais endurecidos abrandaram-se. Os judeus retiravam-se do Calvário, batendo no peito, detestando seu erro e endurecimento; o centurião, o oficial encarregado de custodiar com a força armada o Corpo de Jesus, assombrado de um espetáculo tão maravilhoso, não pode deixar de exclamar: Este homem era verdadeiramente Filho de Deus.

Ah, Senhor, que caro vos custa, por que preço remistes minha alma, divino Salvador meu!

Poderei ver-vos na Cruz, e nem sequer misturar minhas lágrimas com vosso Sangue? Poderei recordar-me de que foram meus pecados os que Vos pregaram na Cruz, e não sentirei senão uma dor mediana de minhas culpas?

Os mais duros corações abrandaram-se por fim em vossa morte, e só o meu há de ficar insensível? Não, não, Senhor; eu sinto o efeito de vossa graça; é tempo já de que meu coração se renda a um objeto tão terno. Lembrai-Vos, Senhor, que prometestes que quando fosses levantado sobre a Cruz atrairíeis a vós todas as coisas: aqui me tendes, Senhor, pronto a seguir-Vos, cumpra-se em mim vossa promessa; este coração já não Vos resistirá mais; Vós morrestes por mim; justo é, Senhor, e muito justo que eu não viva senão para Vós.

Tudo é misterioso na história da Paixão; não há circunstância que não encerre um Mistério, e nenhuma que não possa servir-nos de instrução. Procurarei dar o sentido alegórico ou moral de certas passagens desta história sagrada, segundo a explicação dos Santos Padres e dos mais sábios intérpretes. Reservei para aqui estas curtas interpretações para não interromper o fio da história.

Ainda que a Alma de Jesus Cristo gozava continuamente da Bem-aventurança e via a Deus intuitivamente, esta visão beatífica não impediu que sentisse realmente aquela excessiva tristeza, aquele temor e tédio mortal de que falam os Evangelistas.

Todos estes movimentos lhe eram livres, e Ele mesmo os fazia nascer; mas quis sentir todo o rigor e todo o pungir destes movimentos, reservando todo o alívio para aqueles que dali em diante deviam padecer por Seu amor.

Quando Jesus rogou a Seu Pai que, se fosse possível, passasse Dele semelhante cálice, bem sabia que Sua morte estava resolvida nos eternos decretos de Deus; Ele mesmo os firmara de Sua vontade; não se arrepende disso; a vontade humana não se opõe aqui à divina, somente traduz o Salvador a repugnância natural que todo o homem sente ao padecer, a qual em Jesus cristo foi mais viva que em todos os outros homens; a prova disso está no suor de Sangue que escorria até à terra em gotas. O Salvador bem mostra por tudo quanto se passou no Horto, que sentiu todo o rigor e toda a amargura das penas e dos tormentos mais intensamente que algum outro homem.

A repugnância natural da parte inferior faz despontar o desejo natural de não padecer; mas a perfeita submissão da parte superior às ordens de Deus, diz São Leão, triunfa da oposição da parte inferior.

Vendo São Pedro que prendiam a Seu divino Mestre e O amaravam, deixando-se ir atrás de seu natural vivo e ardente, deitou mão da espada para O defender, e descarregou um golpe em um criado do sumo sacerdote, chamado Malco; furtou este o corpo ao golpe, não tanto que não lhe apanhasse uma orelha; foi, porém, curado ali mesmo pelo Salvador, que repreendeu severamente São Pedro por um zelo tão mal entendido: Jesus cristo não ensinara seus discípulos a servirem-se das armas, pois até lhes proibira trazer cajados nas mãos.


E assim aconteceu este incidente pela sua interpretação que deu às palavras do Salvador e por não haver compreendido bem o Seu pensamento.

Depois de ter Jesus Cristo lembrado a seus Apóstolos que, enquanto estivesse com eles, nada lhes havia faltado, que por toda a parte haviam sido bem recebidos, e que tinham tido muito pouco que padecer, advertia-os de que tempo viria em que tudo lhes havia de faltar e em que haviam de ser perseguidos por todo o mundo. Para lhes fazer compreender o estado de perseguição em que vão achar-se, serve-se, como tinha por costume, de um modo de falar alegórico e figurado, representa-lhes o que sucede em tempo de carestia e de guerra; então faz-se provisão de viveres e de dinheiro, e todos andam armados: “Quando vos enviei, lhes disse, sem bolsa, sem saco e sem sandália, faltou-vos porventura coisa alguma?” Nada, lhe disseram. Pois é chegado o tempo, acrescentou, em que vos vai acontecer o que acontece em tempo de fome e de guerra: todos enchem então de dinheiro a bolsa para fazer provisões de boca; e para isto se faltam sacos, buscam-se para os encher de pães; assim como em tempo de guerra se vende até a capa para comprar a espada com que defender-se, vós ides bem depressa ver-vos em tempos tão calamitosos como esses; e por certo tereis necessidade dos mesmos socorros e precauções, se vosso apoio consistisse na ajuda dos homens; mas Eu, Eu mesmo serei todo o vosso apoio e único refúgio; e por isso, não careceis de fazer iguais preparativos para esses tempos de perseguição.

Não manda pois Jesus cristo a seus discípulos que se provejam de armas e de dinheiro, só os adverte das misérias e perigos a que se hão de ver expostos dali em diante. Não tendo compreendido os Apóstolos o pensamento do Salvador, tomaram à letra o que acabava de dizer-lhes: é o que fez que lhe dissessem que tinham ali duas espadas.

O Filho de Deus, vendo que até depois de sua Ressurreição não haviam de compreender o que lhes dissesse, não teve por conveniente dar-lhes uma explicação mais clara de uma coisa que ainda não eram capazes de penetrar.

Interrompeu-lhes, portanto, o discurso, dizendo: “É assaz”. Tempo virá em que hajais de compreender que as únicas armas de que haveis de servi-vos nas perseguições são a mansidão, a confiança em Mim e a paciência.

Depois de todas as humilhações a que se entregou voluntariamente o Salvador, não deve admirar-nos que quisesse ser consolado, para assim dizer, e confortado por um Anjo. Quis com este exemplo ensinar a todos os fiéis a vencerem suas repugnâncias, e a esperar de Deus a consolação na tribulação. Não ignora o Senhor nossas penas; deseja com ânsia aliviar-no-las; nossos Anjos da Guarda fazem invisivelmente conosco o mesmo ofício que fez visivelmente o Anjo que veio consolar ao Salvador em Sua tristeza mortal e em Sua agonia.

Querendo o Salvador fazer-nos compreender a amargura e excesso de dores em que expirava, exclamou antes de dar o último suspiro: Deus meu, por que me desamparaste? Esta queixa não é efeito nem de desconfiança, nem uma recriminação que o Filho dirija a seu Pai, nem uma queixa contra a injustiça de Seu castigo, seria blasfêmia dizer que o Salvador se queixou a seu Pai por haver tratado tão cruelmente Aquele que era a mesma inocência. Nada padeceu Jesus Cristo, que não padecesse voluntariamente. Carregou sobre Si todos os nossos pecados, e quis padecer também toda a pena que lhes era devida. Foi eleição Sua o preferir a mais ignominiosa e dolorosa morte a uma vida deliciosa. Aquelas palavras são apenas a tradução fiel das excessivas dores, em que expirava. Queria o Salvador declarar o excesso de tormentos que padecia, sem que nenhum milagre suavizasse o seu rigor nem lhes embotasse as pontas, para nos dar uma ideia mais adequada do rigor dos juízos de Deus, e o muito que lhe custava a obra de nossa Redenção.


Pode também dizer-se que esta é antes uma oração que Jesus faz a seu Pai, do que uma queixa: Meu Pai, fazei que todos os homens conheçam a causa porque me abandonastes a tão cruciantes dores e a uma morte tão dolorosa como ignominiosa, fazei que todos os homens conheçam a causa porque me tratais com tanto rigor, a qual outra não é senão seus pecados, sobre mim tomados voluntariamente, e se a aparência só de pecado, se o só título de fiador vos forçou a exigir de mim, vosso Filho muito amado, uma satisfação tão rigorosa, que será deles? Se desta sorte se trata ao lenho verde, cheio de seiva, sem mácula, nem ruga, que deverá esperar o lenho seco?

Este dizer parece autorizar esta última interpretação, a qual é uma das mais literais e que mais se aproxima do sentido que a estas palavras dá São Cipriano.

Alguns Santos Padres julgaram que o Filho de Deus quisera antes de expirar cumprir a profecia de Davi, e serviu-se ele próprio das primeiras palavras do Salmo 21, que é todo de Jesus Cristo moribundo, no qual o Profeta faz dizer ao Salvador na Cruz: Deus meu, Deus meu, vê o estado em que me encontro, porque me abandonaste à raiva de meus inimigos? Os pecados que eu tomei a meu cargo te obrigam a tratar-me com tanto rigor.

A Igreja neste dia, a exemplo de Jesus Cristo, ora solenemente por todos os estados e condições assim por seus filhos, como por seus maiores inimigos; estas orações chamam-se solenes ou sacerdotais: a todas precede uma genuflexão (menos quando se ora pelos judeus), para as tornar mais eficazes por um ato de humildade tão profunda. A primeira destas orações, é pela Igreja Universal; a segunda pelo Papa, que é sua cabeça visível; a terceira pelos Bispos, Presbíteros, Diáconos e pelas outras ordens de clérigos inferiores, pelos Confessores da fé, pelas Virgens, pelas Viúvas e por todo o Povo de Deus; a quarta é pelo rei ou soberano do país; a quinta pelos Catecúmenos ou que se preparam para o Batismo; a sexta para pedir a Deus que purgue o mundo de todos os erros que preserve o seu povo da fome e dos demais flagelos; que ponha em liberdade os escravos e possessos; que guie aos caminhantes; que dê saúde aos enfermos, e que faça chegar felizmente ao porto de segurança a todos os que andam nas águas do mar; nada mostra tanto as entranhas de amor e caridade de nossa Mãe a Santa Igreja. A sétima é pelos hereges e pelos cismáticos, para que Deus se digne dissipar as trevas de seu entendimento e de seu coração, e abrir-lhes os olhos para que voltem ao seio da Igreja. A oitava é pelos pérfidos judeus, pedindo a Deus que lhes arranque o espesso véu que os cegam e endurecem, e faça com que afinal reconheçam a Jesus por seu Salvador, ao qual sempre têm recusado reconhecer. Essa oração é a única em que não se genuflete, por causa da ímpia irrisão com que este povo dobrou o joelho diante de Jesus Cristo, insultando-O com genuflexões de escárnio como a rei de teatro e de zombarias. A nona e última é pelos pagãos; nela se pede ao Senhor, que desterre em todo o universo os resquícios da idolatria, que condena ainda a tantos povos retidos pelo Diabo em seus tirânicos grilhões.

Acabada a leitura das profecias e da história da Paixão, em que se contém a primeira parte do Ofício, e lidas estas orações solenes que constituem a segunda, segue-se a Adoração da Cruz, que forma a terceira parte do Ofício deste dia.

O Presbítero, tendo em suas mãos a Cruz coberta com o véu, descobre uma parte dela postado no flanco do altar, ao lado da Epístola; outra parte um pouco mais adiante; e finalmente, chegando ao meio do altar, descobre-a inteiramente, dizendo de cada vez: eis aqui o lenho da Cruz, no qual esteve pendente Aquele que é a salvação do mundo: vinde e adoremo-Lo. Esta santa cerimônia de descobrir a Cruz em três paragens diferentes significa, diz o Abade Ruperto, que o Mistério da Cruz, que foi um escândalo para os judeus e uma loucura para os gentios, mas que para os cristãos é fortaleza e sabedoria de Deus, nos foi revelado depois de ter estado oculto por tantos séculos; e que este adorável Mistério, que ao princípio apenas foi pregado em um canto da Judeia, se anunciou por último em todas as províncias e nações da terra. Na solene Adoração da Cruz fazem-se três genuflexões, como para reparar com estes três atos de religião os três insignes desprezos, e para assim dizer, as três solenes irrisões, as três afrontas que fizeram a Jesus Cristo: a primeira em casa de Caifáz, onde foi tratado como falso profeta e insigne sedutor; a segunda no pretório e na corte de Herodes, onde foi tratado de rei fantástico, e de louco; a terceira no Calvário, onde foi reputado por um pernicioso, como quem arrogantemente se confere o caráter de Messias e de Filho de Deus.

A palavra – adoração – da Cruz é comum a gregos e latinos desde os primeiros séculos da Igreja: depois do nascimento das heresias, os inimigos da da Igreja têm afetado escandalizar-se dela. Coisa alguma no entanto é mais sabida entre os fiéis do que o alcance que deve dar-se ao culto, consoante a quem é dirigido; qua a Deus só é devido o supremo, e que portanto, quando nos prostramos diante da Cruz queremos só adorar a Jesus Cristo, que nela foi cravado. O que faz ali o principal objeto do nosso culto é aquele Corpo adorável, unido hipostaticamente à Divindade, é aquele Sangue precioso de que foi tingida a Cruz. Seria uma idolatria referir a adoração ao lenho em si mesmo e separado de Jesus Cristo, porque este lenho não é Deus, e só Deus é objeto do nosso culto supremo. Quando a Igreja diz, ao mostrar o lenho a todo o povo: Vinde e adoremos; quando canta: Adoremos tua Cruz, Senhor, com tais palavras, não pretende adorar com culto de latria a Cruz, por si mesma, mas a Jesus Cristo pregado na cruz. Bastante se tem explicado a Igreja a tal respeito, sempre que tem tido ocasião, atribuir-lhe outro sentimento é ignorância ou má-fé, e sempre uma das mais atrozes calúnias. De modo que estas palavras não têm outra significação senão esta: Prostremo-nos diante da Cruz para adorar a Jesus Cristo, que esteve cravado nela por nossa salvação. Na verdade, o termo – adorar – em nossa língua parece estar consagrado para significar o culto supremo; mas tanto em latim, em hebreu, como em grego, tem uma significação mais extensa: significa em geral, prostrar-se e manifestar seu respeito: o que convém a outros além de deus, pois todos os dias nos prostramos diante dos homens sem que por isso os adoremos. A Escritura apresenta-nos disto um sem número de exemplos, e assim não devemos ajuizar da fé da Igreja pela palavra adorar, a qual admite muitas exceções, mas pelo sentido que Ela lhe dá, e pela declaração solene que faz de sua crença.


A igreja sempre protestou que não adorava senão a Deus na Cruz, e que toda a adoração quer à Cruz, quer a outras coisas inanimadas, era uma adoração relativa.

Não há dúvida, que a adoração da Cruz na Sexta-feira Santa é de Tradição Apostólica.

Os Padres mais antigos e os Concílios falam dela como de uma cerimônia de piedade estabelecida em toda a Igreja; diz o Diácono Rustino: é uma prática estabelecida em toda a Igreja o adorar a Cruz do Salvador. Era esta uma invectiva que Juliano Apóstata, fazia aos cristãos. Tertuliano, Maximianos, Félix e São Cirilo Alexandrino dizem que os pagãos acusavam os cristãos de adorar a Cruz; encontram-se provas decisivas da Tradição da Igreja sobre este ponto em São João Crisóstomo, em São Jerônimo, São Leão, São Gregório, Teodoreto e em muitos outros. Mas com que sentimento de religião, com que respeito e afetos de amor, de contrição e da mais terna devoção devemos fazer a adoração da Cruz no dia de hoje e beijar as sacratíssimas Chagas de Nosso Senhor, pois fomos nós os que lhas fizemos, e o Senhor as conserva como provas autênticas de Seu infinito amor para conosco?

Em muitas igrejas assistiam com os pés descalços a todo o Ofício de Sexta-feira Santa, e isto não só para Sacerdotes, Monges e demais clerezia, mas para todo o povo: assistiam com os pés descalços ao Ofício, diz Lanfran, em seus estatutos. O santo Abade de Cava nunca oficiava senão com os pés descalços; a mesma prática observam ainda hoje com grande edificação os Condes de Leão de França, e o Arcebispo, quando oficia: todos os que assistem ao altar estão descalços, em quanto dura o Ofício.


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Fonte: Pe. Croiset, S.J., Ano Cristão”, Vol. XIV – Próprio do Tempo (Sexta-feira Santa), pp. 208-222; Tradução do Francês pelo Pe. Matos Soares, Porto, 1923.

1.  Ef. 2.

2.  Idem.


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