Quintus Septimius Florens Tertullianus
A Moda Feminina
Se tanto a Fé na terra se conservasse
quanto no Céu, sua mercê nos espera, nem uma só dentre vós – ó diletíssimas
irmãs –, logo que houvesse conhecimento do Deus vivo e tomasse consciência da
sua condição de mulher, voltaria a apetecer as roupas de mais formosura, para
não dizer de mais vaidade. Antes, viveria vestida de andrajos; antes,
ambicionaria trajar-se de luto, apresentando-se como chorosa e arrependida
Eva, a fim de melhor expiar no seu modo de vestir, o que de Eva recebeu: a vergonha
do Primeiro Pecado e a desgraça da perdição humana.
Ó mulher, nas dores e ansiedades dás à
luz, vives girando em volta do teu marido, és dominada por ele, e não sabes
que, afinal, Eva és tu mesma? Ainda vive em nossos tempos a sentença de Deus a
respeito do teu sexo: necessário é que vivas na condição de culpada. És a porta
do Diabo, aquela que tocou a árvore proibida. És quem primeiro fugiu à Lei
divina, quem persuadiu aquele que o Diabo não conseguira agredir. És quem tão
facilmente despedaçou a Imagem de Deus, que o homem era. Por teu merecimento –
a morte – o próprio Filho de Deus teve de morrer. E o que trazes no
pensamento é cobrires de joias os teus vestidos de pele?
Mais ainda: se desde o princípio do Mundo
tosquiaram os habitantes de Mileto suas ovelhas, teceram os Seres o fio das
árvores, tingiram os habitantes de Tiro os tecidos, fizeram bordados os Frígios
e recamaram estofos os Babilônios; se refulgiram de brancura as pérolas e
flamejaram as pedras ceráunias; se o mesmo ouro saiu do ventre da terra já
seguido da cobiça; se tanto ao espelho foi dado mentir; e se todas estas coisas
à Eva apeteceram, cuido eu ter sido já morta, expulsa do Paraíso. Portanto,
também hoje, se Eva deseja regressar à vida, não pode apetecer nem conhecer o
que não possuiu nem conheceu quando estava viva. Todas essas coisas não passam
de bagagens da mulher condenada e morta, diríamos que constituídas para as
pompas do seu funeral.
... Mas, para que pus eu tanto empenho em
mostrar e em relatar coisas tais? Acaso as mulheres não conseguem agradar aos
homens sem as matérias do luxo e sem as artes do enfeite...?
A moda feminina envolve dupla espécie: os
adereços e o enfeite. Chamamos adereços às alfaias da mulher, enfeite ao que se
pode dizer a sua impuridade. Os primeiros consistem no ouro, na prata, nas
joias e nas peças de vestir; o segundo consiste no trato do cabelo, da pele e
daquelas partes do corpo que atraem os olhares. Àqueles atribuímos o crime da
ambição, a este o da prostituição, para que desde agora antevejas – ó serva de
Deus – o que de tais coisas convenha ao teu modo de vida, tu que te consideras
assente em outros princípios, que são o da humildade e o da castidade.
O ouro e a prata, principais matérias da
ostentação mundana, serão necessariamente aquilo de onde vêm, ou seja terra, a
qual é com toda a evidência bem mais gloriosa porque, lavada nas lágrimas pelo
trabalho dos condenados nas oficinas funestas dos malditos metais, perde no
fogo o nome de terra, para a partir daí se transmudar de tormentos em
ornamentos, de suplícios em delicias, de ignomínias em honrarias...
... Mas, em seguida à distribuição das
riquezas que Deus ordenou como bem entendeu, a raridade e o exotismo, os quais
sempre encontram o agrado dos estrangeiros pela simples razão de não possuírem
o que Deus colocou noutro lugar, despertam a concupiscência da posse.
Da concupiscência gera-se um outro vício:
o desejo de possuir sem medida. É que, embora seja necessário possuir, uma
medida se impõe, no entanto. Chama-se ambição a este vício, nome que há de
interpretar-se pelo fato de nascer da concupiscência, a qual se faz ambiente da
alma para o desejo da vanglória, esse crescido desejo que, já o dissemos, é
oferta não da Natureza nem da verdade, mas da perversa paixão do espírito, a
concupiscência. Altos vícios são, na realidade, a ambição e a vanglória e foi
assim que a concupiscência inflamou o preço de tais coisas para a si mesma se
atear. Pois, tanto maior se torna a concupiscência quanto mais valor dá àquilo
que cobiça. De minúsculos cofres retiram-se largos haveres; num só fio mete-se
um milhão de sestércios; enroladas num frágil pescoço trazem-se herdades e
casas de renda; delicados lóbulos de orelha consomem um inteiro livro de contas
e a mão esquerda brinca com uma bolsa em cada um dos cinco dedos. Tamanhas são
as forças da ambição para um pequenino corpo de mulher carregar sozinho com o
peso de tantos lucros!
Os Adereços da Mulher
A salvação, tanto para as mulheres como
para os homens, tem por condição primeira a prática da castidade. Sendo todos
nós o templo de Deus, depois de em nós introduzido e consagrado o Espírito
Santo, a castidade é a guardiã e a superiora desse templo, a qual não permitirá
que nada de impuro e de profano se introduza, não vá Deus que nele tem morada
abandonar ofendido a sua habitação maculada.
Não vamos, porém, falar da castidade, a
cuja determinação e exigência bastam os instantes e universais Preceitos
divinos. Falaremos, sim, de coisas que a ela dizem respeito, ou seja, o modo como vos convém que
procedais. A maior parte das mulheres – Deus me consinta repreender-vos neste
ponto, ainda que eu próprio em tudo seja repreensível – comporta-se, ou por
simples ignorância ou por descarado fingimento, como se a castidade apenas
consistisse na integridade de corpo e na aversão ao pecado sexual, sem que nada
de exterior fosse preciso, quero dizer, sem regras respeitantes ao modo de
adornar-se e aos cuidados de beleza. Persistem, ao invés, nas antigas preocupações
de beleza e de elegância, ostentando as mesmas aparências que as damas pagãs,
às quais falece a consciência da verdadeira castidade, porque nenhuma verdade
se encontra em quantos ignoram Deus, Senhor e Mestre da verdade. Mesmo que
entre os pagãos se acredite numa certa castidade, ela mostra-se tão imperfeita
e confusa, apesar de algumas vezes agir tenazmente no espírito, que logo se
dilui na licenciosidade da moda, com fundamento na verdade pagã de buscar uma
compensação para aquele efeito cuja realidade ela evita. Em suma, quantas serão
as que não desejem agradar a outrem, que não queiram para o mesmo fim pintar-se
só para recusarem os desejos, ainda que seja vulgar à castidade pagã não fazer
o mal apesar de o apetecer ou, até, de o não querer apesar de o não recusar?
Que há nisto de admirar? Tudo o que não provém de Deus é perversão. Olhem-se
aquelas que, não conseguindo o bem total, misturam desenvoltamente com a
maldade o bem que conseguem! Necessário é que vos distingais delas pelo vosso
procedimento como pelo resto, porque haveis de ser perfeitas como o é vosso
Pai que está nos Céus.
Sabeis que o querer da castidade
perfeita – a castidade cristã – é não somente não serdes desejadas, como serdes
aborrecidas. E a principal razão é que de uma consciência íntegra não vem a
preocupação de agradar por meio da elegância, a qual sabemos que é um natural
convite às paixões. Por que haverás, pois, de acordar em ti semelhante mal? Por
que atrais a ti aquilo a que te confessas estranha? Além do mais, não devemos
abrir caminho às tentações que – Deus as guarde longe dos seus! - algumas
vezes teimosamente realizam os seus intentos ou, pelo menos, perturbam a alma
com o escândalo. Devemos caminhar tão santamente e tão na integridade da Fé
que nos mantenhamos confiantes e seguros sobre a nossa consciência e assim
prefiramos conservar-nos, embora sem presunção. De fato, quem presume menos se
arreceia, quem menos se arreceia menos se precavem, quem menos se precavem
mais perigo corre. O temor é o fundamento da salvação, a presunção o
impedimento do temor. Mais vantajoso é esperar que podemos cair do que presumir
não poder. Esperar é recear, recear é precaver-se, precaver-se é salvar-se. Ao
contrário, se presumimos, sem temor nem precaução, dificilmente nos salvaremos.
Quem age seguro de si e não preocupado não é possuidor de uma inteira e firme
segurança. Ao invés, quem se preocupa, esse pode estar verdadeiramente seguro.
Aceitemos que, na Sua misericórdia, Deus
vele pelos Seus servos e até os deixe presumir sem maus resultados sobre aquilo
que têm de bom. Por que havemos de ser, porém, um perigo para outrem? Por que
havemos de suscitar a outrem a concupiscência? Se o Senhor, alargando a Lei,
não distingue no castigo a concupiscência do ato de pecado sexual, não sei se
ficará impune quem for para outrem causa de perdição. De fato, quem desejou a
tua beleza e aceitou em pensamento o que desejou, logo se perde. De tal modo,
te tornaste para ele uma espada que, mesmo ficando inocente, não estás livre
da indignidade. Acontece o mesmo quando é feito um assalto à mão armada em
determinado campo. O crime não se inculpa ao proprietário da terra, mas
enquanto a sua herdade for marcada pelo fato desonroso, também ele será
atingido pela infâmia.
Vá, pois, de pintar-nos para perdição dos
outros! Onde está, então, o “ama a teu próximo como a ti mesmo”,
ou o “não procureis o vosso interesse, mas o dos outros”? Todas
as palavras do Espírito Santo podem ser dirigidas e tomadas não só quanto ao
seu objeto imediato, como também em relação a todas as ocasiões em que sejam
úteis. Uma vez que na preocupação dos tão perigosos atrativos estão em causa a
nossa sorte e a sorte dos outros, sabei que deveis não só recusar os
artifícios de uma beleza fingida e esmerada, como também esquecer a vossa
natural graciosidade, encobrindo-a e descuidando-a como igualmente nociva à
incursão dos olhares.
De fato, embora não se deva acusar a
beleza – a qual é a graça do corpo, o acabamento da modelação divina, uma agradável vestimenta da alma –, ela haverá, no entanto, de ser temida, nem que
seja por causa dos ultrajes e das violências daqueles que andam atrás dela. O
próprio Abraão temeu-se de tais violências, dada a beleza da sua esposa, e,
fazendo passar Sara por sua irmã, conseguiu salvar a vida a preço de uma
afronta.
Suponhamos agora que a beleza do aspecto
não é coisa de ser temida, por não ser nem um peso para as que a possuem, nem
causa de ruína para os que a cobiçam, nem um perigo para os cônjuges. Não a
consideremos nem exposta às tentações, nem cercada pelos escândalos. É bastante
não ser necessária aos Anjos de Deus. Onde estiver a castidade, inútil a
beleza. É que, propriamente, a prática e o fruto da beleza são a luxúria, a
não ser que alguém considere que da beleza do corpo são outra colheita que
possa fazer-se! Deixem o trabalho de aumentar, se a têm, a formosura, ou de
forjá-la se a não têm, àquelas que julgam ceder às exigências da formosura
também por causa de si mesmas, quando o fazem por outrem.
“Pois quê? - dirá alguém – Se repelirmos
a luxúria e abraçamos a castidade, não há de ser permitido gozar o simples
louvamento de ser bela e agradarmo-nos das vantagens do corpo?” Glorie-se quem
quiser da beleza carnal. Em nós, porém, não existe lugar para quaisquer
preocupações de vaidade, que a vaidade é um sinal de soberba. Ora, a soberba,
segundo a vontade de Deus, não convém aos que professam a humildade. Além do
mais, se toda a vaidade é vã e emparvoece, quanto mais a vaidade da carne, ao
menos para nós! E, ainda que tenhamos de gloriar-nos, que o seja por agradarmos
nas coisas do espírito e não nas coisas da carne, porque é das coisas do
espírito que nós somos seguidores.
Naquilo em que nos ocupamos, nisso nos
alegremos; daquilo de onde esperamos a salvação, disso tiremos glória. Sem
dúvida, o cristão será glorificado na carne, mas só quando, dilacerada pela
causa de Cristo, perseverar a fim de que nela o espírito seja coroado, em vez
de atrás de si arrastar os olhos e os suspiros dos adolescentes.
Assim, a essa beleza que sob todos os
aspectos vos é supérflua, com razão a aborrecereis se a não tiverdes e a
descuidareis se a tiverdes. Guarde uma santa mulher o seu encanto natural, mas
que o não seja para ocasião de queda. E, se acontece que o vem a ser, não o há
de ignorar, mas, prevenir-se.
Como se falasse a mulheres gentias,
lembrar-vos-ei uma regra pagã, mas que a todas vós se aplica: só aos vossos
maridos deveis agradar. Ora, vós agradar-lhe-eis na medida em que não cuidardes
de agradar aos outros. Estai
sossegadas, ó mulheres benditas, que aos olhos do seu marido não há esposa sem
beleza: ela agradou bastante quando o marido foi levado a escolhê-la, fosse
pelo caráter, fosse pela beleza. Nenhuma de vós vá pensar que, moderando os arranjos
da sua pessoa, o marido acabe por detestá-la ou afastar-se dela. Todo marido
exige o tributo da castidade: se é cristão, não está à espera da beleza,
porque nós não somos seduzidos por aquelas mesmas coisas que os pagãos
consideram vantagem; se, ao contrário, o marido é pagão, até irá tomar como
suspeita essa beleza, nem que seja pela opinião de delinquentes que eles fazem
acerca de nós. Para que andas, então, a cuidar da tua beleza? Se é para um
marido cristão, ele não a requer; se é para um gentio, ele tem desconfiança.
Por que hás de por tanto esmero em agradar a quem de tal coisa suspeita ou a
quem a não deseja?
Estes pensamento vos são sugeridos,
evidentemente, não para vos convencer a adotar um aspecto de total grosseria e
de animal selvagem, nem para vos persuadir do valor da sordidez e dos andrajos,
mas apenas da medida, limite e justeza que há de haver no cuidado do corpo. Não
deveis ir além de um modo simples e bastante de embelezar-vos. Mais do que
isso, agradai a Deus.
Pecam, de fato, contra Deus, as
mulheres que sobrecarregam de cremes a pele, que sujam as faces de vermelho,
que alongam os olhos com tinta preta. Decerto lhes desagrada o que Deus moldou;
em si mesmas recriminam e criticam o Artista de todas as coisas. Criticam
quando corrigem, quando acrescentam, mormente aceitando esses acessórios vindos
do artista inimigo, que é o Diabo. Realmente, quem incitaria a modificar o
corpo senão aquele que transfigurou com a maldade o próprio espírito humano?
Foi ele, sem dúvida, quem maquinou tais artimanhas para que em nós, de algum
modo, pudesse levantar a mão contra Deus.
O que vem da Natureza é obra de Deus.
Portanto, o que é fingido será negócio do Diabo. Ó, sacrilégio, ajuntar à obra
divina as invenções de Satanás! Os nossos servos não aceitam nada que venha de
quem nos hostiliza; os soldados nada querem do inimigo do seu comandante. De
fato, solicitar alguma coisa para teu uso, ao adversário daquele em cuja mão
estás, é traição. Vai um cristão receber ajuda do malvado? Não sei se tal nome
de cristão lhe caberá por mais tempo, pois, tornar-se-á pertença daquele em
cujas doutrinas deseja ser instruído. Que contradição com os vossos princípios
de moral e as vossas promessas de fé, que indignidade para um nome cristão,
passear uma cara artificial aquele que é convidado a uma total simplicidade,
mentir com a aparência aquele que não pode mentir com a língua, apetecer o que
não recebeu aquele que aprende a abster-se do bem alheio, cometer adultério em
aparências aquele que tem a obrigação da castidade! Acreditai-me, benditas
mulheres, como haveis de guardar os Preceitos de Deus, se em vós não guardais
os seus divinos traços?
Vejo algumas de vós que pintam os cabelos
com açafrão. Chegam a envergonhar-se da sua pátria, de não terem nascido na
Germânia ou na Gália. Trocam, assim, a pátria pela cabeleira. Coisa ruim, coisa
péssima a si mesma pressagiam com a sua cabeça da cor do fogo! E consideram
elas embelezar o que degradam! Ora, a força das drogas causa prejuízo aos
cabelos, além de que o uso frequente de um líquido qualquer, mesmo que puro,
traz consigo a ruína do cérebro, da mesma forma que o ardor do sol, necessário
para avivar e ao mesmo tempo secar a cabeleira. Que tem a ver o decoro com o
agravo? E a beleza com as imundícies? Derramará a mulher cristã o açafrão sobre
a própria cabeça como sobre um altar? Realmente, tudo o que se costuma queimar
ao espírito imundo – a não ser que seja empregue para os usos retos,
indispensáveis e benéficos a que são destinadas as coisas que Deus criou – pode
parecer uma oferta sacrifical.
Enquanto o Senhor afirma: “Quem de entre
vós pode tornar preto o cabelo branco ou branco o cabelo preto?”, eis que
elas refutam a Deus. “Vê-de – dizem –, em vez de brancos ou pretos,
tornamos loiros os cabelos, o que favorece mais a graciosidade”. E vemos
ainda esforçarem-se por tornar pretos os cabelos brancos outras que lamentam
ter vivido até à velhice. Oh, temeridade! Envergonhar-se de si a idade que
tanto se desejou: é um roubo que se comete. Suspira-se pelo tempo da juventude
em que pecamos. Estraga-se o tempo favorável da idade provecta. Longe das
filhas da sabedoria uma tamanha estupidez! Quanto mais a velhice procurar
esconder-se, mais se trairá.
Vem, então, a vossa eternidade da
juventude da vossa cabeça? É, então, oferecida pela acácia a incorruptibilidade
com que havemos de revestir-nos para entrar na Mansão do Senhor! Estais,
realmente, a correr a passos largos ao encontro do Senhor! Estais, realmente,
com pressa de sair deste mundo de tanta iniquidade, vós para quem é horrível
ver chegar-se o fim!
De que serve para a vossa salvação todo
esse afã no ornamento da vossa cabeça? Por que não deixais em paz os vossos
cabelos, ora apanhados, ora soltos, ora levantados, ora caídos? Umas desejam
apaixonadamente prendê-los em caracóis; outras querem-nos soltar, livres e
esvoaçantes, numa falsa simplicidade. Juntais, ao depois, nem sei que
enormidades de perucas, cosidas e entrelaçadas, seja para servir de barrete à
maneira de um estojo para a cabeça com uma tampa no cocuruto, seja usado em
carrapicho a cobrir a nuca. Espantoso que não esteja contra os Mandamentos do
Senhor! Foi dito que ninguém podia acrescentar nada ao seu tamanho. Vós, muito
sabiamente, acrescentais o vosso peso, juntando às vossas nucas ornatos que
fazem lembrar bolos de filhós ou os botões dos arneses. Se não tem vergonha da
enormidade, tenham ao menos vergonha da imundície, por forma a não adaptar a
uma cabeça santa e cristã os despojos de uma cabeça estranha, talvez impura,
talvez criminosa e votada ao Inferno. Atirai, pois, para longe de uma cabeça
que é livre toda essa escravidão de ornamentos! Inutilmente vos esforçais por
parecer embelezadas, inutilmente recorreis aos mais famosos cabeleireiros. Deus
manda-vos cobrir com um véu, penso que para não serem vistas as cabeças de
certas mulheres.
Queira Deus que eu, assim tão mísero como
sou, no Dia do Triunfo Cristão possa erguer a cabeça ao menos, à altura dos
vossos calcanhares! Hei de ver se vós ressuscitareis com o alvaiade, a púrpura
e o açafrão e esse enfatuado envoltório na cabeça; hei de ver se é de tal modo
pintadas que os Anjos vos levarão em nuvens ao encontro de Cristo nas alturas.
Se essas coisas são hoje bem recebidas de Deus, também naquele dia elas
acorrerão aos corpos ressuscitados e garantirão o seu lugar. Mas, nada mais
pode ressuscitar além da carne e do espírito, só e puro. Está, pois, condenado
o que não ressurge na carne e no espírito, porque não vem de Deus. Afastai-vos
desde hoje das coisas condenadas; que desde hoje, Deus vos olhe como, então,
vos há de olhar!
Pelos vistos, o que eu estou a querer é
desapossar as mulheres, como homem e rival no sexo, das suas vantagens! Mas,
por ventura, não nos são impostas também a nós certas obrigações em relação à
gravidade, pelo temor a Deus devido? A verdade é que, nos homens por culpa das
mulheres e nas mulheres por culpa dos homens, gerou-se por falha da Natureza o
desejo de agradar, e também o meu sexo conhece os seus próprios artifícios de
beleza: cortar a barba perfeitamente em ponta, depilar aqui e além, rapar em
volta, arranjar o cabelo e pintá-lo mesmo, arrancar as primeiras brancas que
nasçam, limpar as zonas pilosas de todo o corpo com o mesmo depilatório que as
mulheres usam, amaciar as restantes partes com um pó abrasivo, depois
consultar o espelho a todo o momento, mirar ansiosamente. E, afinal, quando
se conhece Deus, suprimido o desejo de agradar, com a ausência da
sensualidade, tudo isso é recusado como ociosas coisas, hostis à castidade.
Onde está Deus, aí está a castidade e a circunspecção, sua auxiliar e
companheira. Como havemos, pois, de praticar a castidade sem a circunspecção
que é o seu instrumento? E como havemos de aplicar a circunspecção ao serviço
da castidade se a severidade não envolver o rosto, as vestes e a imagem de
toda a nossa pessoa?
É por isso que, também no referente ao
vestuário e à restante bagagem dos vossos enfeites, deveis ter o cuidado de
cortar e atirar para longe, toda a elegância supérflua. De que serve, de
fato, mostrar um rosto de virtude, escorreito e conforme com a simplicidade dos
princípios divinos, e carregar o resto do corpo com as complicadas
frivolidades do fausto e das delícias? É fácil discernir como faz este fausto o
jogo da luxúria e como ele se opõe às regras da castidade, porque prostitui o
encanto da beleza com o acréscimo dos adornos, de tal modo que, se ele falta,
torna-se apagada a beleza e sem atrativo, como que desmantelada e à deriva. Ao
invés, se o que falta é a beleza, o esteio da elegância supre, como por
virtude própria, a graciosidade. Enfim, o esplendor e a fascinação dos enfeites
desnorteiam as idades que estão já no repouso, já entradas no porto da
modéstia, e desassossegam com desenfreados desejos a severidade, decerto para
compensar a algidez da idade com as excitações da moda. Em conclusão, benditas
mulheres, antes de mais nada não queirais admitir em vós, como devassos e
prostituidores, os vestidos e os ornamento; depois, se acontece a algumas de
vós que a razão das suas riquezas ou do seu nascimento ou de anteriores
dignidades obrigue a andar em tanto fausto, ao menos tenham toda a cautela,
como discípulas da sabedoria, em usar de moderação neste campo, para que, a
pretexto de tal ser necessário, não venham a entregar-se a um desregramento sem
freio. De fato, como haveis de ser fiéis à humildade que nós, cristãos, professamos,
se não reformardes o uso das vossas riquezas e dos vossos luxos, que tanto
contribuem para a vanglória? A vanglória costuma levar ao orgulho, não à
humildade.
Mas perguntareis: “Não podemos nós
usar o que nos pertence? Quem no-lo proíbe?” Sigamos, no entanto, o
Apóstolo que nos avisa a usarmos deste mundo sem cairmos em abuso. “O aspecto
deste mundo – diz ele – é coisa que passa”. “Aqueles que compram
– continua – façam-no como se nada possuíssem”. Por que assim? Porque já
antes afirmara: “O tempo é apertado”. Se, pois, o Apóstolo expõe que até
as próprias esposas devem ser tidas como se não se tivessem, por causa da
brevidade do tempo, que dizer dos seus fúteis ornamentos? Não há, de fato,
muitos que assim fazem e dão a si mesmos a condição de eunucos, por causa do
Reino de Deus, espontaneamente renunciando a uma vontade tão forte e
absolutamente física? Alguns proíbem a si mesmos o que é criatura de Deus,
abstendo-se de vinho e de animais comestíveis, cujo proveito nenhum perigo ou
agitação traz consigo. Cortando, porém, na própria alimentação, oferecem em
sacrifício a Deus a humildade da sua alma. Já vos bastou, portanto, o gozo das
riquezas e das delícias, já retirastes bastante proveito dos vossos dotes antes
de conhecerdes as verdades da salvação.
Nós estamos no momento em que chegaram ao
fim os limites dos séculos; destinados por Deus antes da criação do mundo para
o extremo final dos tempos, somos instruídos pelo Senhor como que para castigar
e, ouso dizer, para castrar o mundo. Nós somos inteiramente circuncidados,
tanto no espírito como na carne, porque no espírito e na carne fazemos a
circuncisão dos bens mundanos.
... Mas vamos supor que Deus teria
preparado de antemão estas coisas, e as haja consentido; suponhamos que Isaías
(3, 18-19) não faz increpações
contra as vestimentas de púrpura, nem reprova os crescentes de ouro, nem zurze
nos cachos postiços das cabeleiras. Não chegaria a ser razão para nos deixarmos
embalar como os pagãos, pensando que Deus foi apenas o Criador e não, também,
Aquele que regula do alto as obras da Sua criação. Quanto melhor e mais
cautamente não agiríamos se antes julgássemos ter Deus um dia providenciado e
posto no mundo todas as coisas para que hoje servissem de prova ao
comportamento dos Seus servos e para que, pela licença de as usar, fosse levada
a bom êxito a experiência da temperança! Não vemos nós os avisados chefes de
família porem deliberadamente à vista e à disposição dos seus criados certas
coisas para os experimentar sobre se, e como usam eles do que é permitido, se
honestamente e com moderação? Quanto mais digno de louvor quem se abstiver
totalmente, quem temer a própria bondade do seu senhor! Assim, afirma o
Apóstolo: “Tudo é permitido, mas nem tudo convém” (1 Cor. 10, 23).
Quanto mais facilmente temerá as coisas proibidas quem se arrecear das
permitidas!
Aliás, que razões tendes vós para
andardes assim tão ajaezadas, quando vos encontrais afastadas do que exige um
tal aparato? Vós nem visitais os templos, nem procurais os espetáculos, nem
aceitais os dias de festa pagãos. É, de fato, por causa de tais reuniões e para
ao mesmo tempo verem e serem vistas que são promovidas todas essas pompas
públicas, seja para negócio da luxúria, seja para enfatuamento da vaidade.
Mas, para vós, não há nenhuma causa de sairdes à rua que não seja severa: ou se
vai visitar um irmão enfermo, ou se vai oferecer o Sacrifício, ou se vai
receber a Palavra de Deus. Qualquer destas causas é empresa de circunspecção e
de santidade, que não precisa – como se algo o precisasse! - de um modo de
vestir excepcional, rebuscado e imoderado. Se vos obriga a força das amizades e
dos deveres em relação aos gentios, por que não saís de casa vestidas com as
vossas armas, sobretudo, se ides visitar mulheres que estão fora da Fé, para
que haja uma diferença entre as servas do Diabo e as servas de Deus, para que
sejais um exemplo para elas, para que em vós encontrem motivo de edificação,
para que – como diz o Apóstolo – Deus seja glorificado no vosso corpo? Ora,
Deus será glorificado no corpo pela castidade, evidentemente, e pelo modo de
apresentar-se que à castidade convém.
Alguns dizem, no entanto: “Não será
blasfemado em nós o nome cristão se retomarmos alguma coisa da nossa antiga
maneira de vestir e dos nossos enfeites”. Nesse caso, não nos despojemos
também dos antigos vícios; conservemo-nos com os mesmos costumes e sob as
mesmas aparências: então será verdade que os gentios não blasfemarão. Ó,
grande blasfêmia se de alguma de vós alguém disser: “Desde que se fez
cristã, a sua apresentação é mais pobre”! Terás medo de aparecer mais
pobre por te haveres tornado mais pura? Os cristãos devem comportar-se
segundo o agrado dos pagãos ou segundo o agrado de Deus?
Desejemos tão somente não ser uma
justa causa de blasfêmia. Quão mais justa causa de blasfemarem sereis vós,
porém, se – intituladas sacerdotisas da castidade – vos apresentais no ritual
das meretrizes, como elas adornadas e pintadas! Que têm de menos essas infortunadas
vítimas dos prazeres públicos? Se havia leis que as mantinham segregadas das damas
da sociedade e das vestimentas próprias destas senhoras, a corrupção do mundo,
que aumenta de dia para dia, já as igualou às mais honestas damas, a ponto de
haver engano ao distingui-las. Aliás, as próprias Escrituras apresentam os
artifícios de beleza sempre ligados e reservados à prostituição do corpo. Se a
cidade poderosa, entronizada no alto das sete colinas e sobre as incontáveis
águas (Apoc. 17, 1), mereceu da
parte do Senhor o nome de prostituta, qual foi o ornamento que lhe valeu este
nome? Está, com certeza, sentada na púrpura, no escarlate, no ouro e nas pedras
preciosas (Apoc. 17, 4). Ó, malditos enfeites sem os quais ela não
poderia ser descrita como maldita e prostituta! A famosa Tamar, porque se
pintara e adornara, por isso mesmo apareceu aos olhos de Judá fazer profissão
de meretriz. Escondida sob o véu, pelo tipo das suas vestes fingindo-se
prostituta, foi como tal que ele a desejou, lhe dirigiu a palavra e fez o
acordo (Gên. 38, 14-16). Do fato, tiramos lição de que por todas as
maneira nos havemos de precaver em relação aos encontros e mesmo às suspeitas
impudicas. Por que se há de macular a pureza de um coração casto na suspeição
que outrem faz? Por que se há de esperar de mim aquilo a que tenho aversão? Por
que não há de o porte exterior anunciar os meus costumes, a fim de que a alma
não seja ferida pela impudência através dos ouvidos? Tenha a mulher pudica o
direito de parecer o que é, já que o tem a impudica.
Talvez haja alguma de vós que diga: “Não
preciso da apreciação dos homens, nem procuro uma testemunha humana. Deus vê o
que vai no coração” (1 Rs. 16, 7). Todos o sabemos, mas
apesar disso recordemos o que o mesmo Deus disse por meio do Apóstolo: “Que
a vossa virtude apareça diante dos homens" (Fil. 4, 5). E que outro fim
senão para que a maldade não tenha qualquer entrada em vós e para que sirvais
aos maus de exemplo e testemunho? Ou que significa: “Que as vossas obras
brilhem?” Ou por que nos chamou o Senhor a luz da terra (S. Mat 5,
14-16)? Por que nos comparou a uma cidade construída no alto de um monte
(S. Mc. 4, 20; S. Lc. 8, 16; 11, 33), se nós não brilharmos no meio dos
homens em trevas e não nos elevarmos acima dos que submergem? Se esconderes a
tua lanterna debaixo do alqueire, é inevitável que, abandonada nas trevas,
sofras o assalto de muitos. O que faz de nós os luzeiros do mundo é o bem que
em nós está. Mas o bem, desde que seja verdadeiro e total, não ama as trevas;
antes, alegra-se de ser visto e exulta quando é apontado com o dedo.
À castidade cristã não basta apenas
ser, mas também parecer. A sua plenitude haverá de ser tal que transborde da
alma para o aspecto exterior e brote da consciência para a superfície, de modo
que se veja exteriormente apetrechada, como convém à preservação da Fé para
sempre. Sejam, de fato, arredadas as delícias cuja moleza e flacidez podem
efeminar o vigor da Fé. De resto, não
sei se a mão que anda habitualmente envolvida num bracelete conseguirá suportar
o entorpecimento na dureza de uma algema; não sei se a perna que se enfeita com
argola sofrerá o aperto dos ferros; temo que a nuca coberta com entrelaçados
de pérolas e de esmeraldas não dê lugar à espada.
Por esta razão, ó benditas mulheres,
exercitemo-nos nas coisas mais duras e não as sentiremos; deixemos as coisas
mais agradáveis e não as desejaremos; estejamos preparados para toda a
violência, nada possuindo que tenhamos medo de abandonar. Essas coisas são
entraves à nossa esperança. Lancemos fora os ornatos da terra, se escolhemos os
do Céu. Não tenhais amor ao ouro, no qual se denotaram os primeiros pecados do
Povo de Israel (Êx. 32, 7ss; Jos. 7,
10-26). Deveis ter aversão ao que perdeu os Judeus, ao que eles adoraram
abandonando em troca a Deus (Êx. 32, 20). Já nessa altura o ouro foi pasto
do fogo. De resto, é sob o sinal do ferro e não do ouro que sempre, e hoje
especialmente, decorre a existência dos cristãos. Preparem-se as túnicas dos
Mártires, os Anjos portadores são esperados. É tempo de caminhardes com os
perfumes e as vestes dos Profetas e dos Apóstolos, recolhendo da simplicidade a
alvura e da castidade o rubor, pintando os olhos com o recato e os lábios com o
silêncio, enfeitando as orelhas com a Palavra de Deus, prendendo ao pescoço o
jugo de Cristo. Curvai submissas a cabeça diante dos vossos maridos e estareis
suficientemente embelezadas; ocupai as mãos em fiar a lã, fixai os pés dentro
de casa e haveis de agradar mais do que o ouro. Vesti-vos com a seda da
honestidade, com o linho da santidade, com a púrpura da castidade. Desse modo
ataviadas, tereis Deus por amante.
(Tertuliano,
“A Moda Feminina”, A.D. 202,
Traduzido do
Latim a partir da versão original
por Fernando Melro,
Coleção
“Origens do Cristianismo”, n. 3.
Copyright by
Éditions du Cerf e Editorial Verbo,
Lisboa – São
Paulo,
1974).
Conclusão
"Talvez nunca, na história da
Humanidade, pesasse sobre o mundo uma crise tão universal e avassaladora. Já
não é um recanto isolado da terra, uma classe determinada de homens, uma nação
apenas que sente essa espécie de angústia e de insegurança. Os tentáculos dessa
hidra terrível vão asfixiando todos os homens. A doce eurritmia, a
despreocupação tão feliz dos séculos passados diluiu-se como névoa ao sol da
realidade desconcertante.
Os homens são agora as vítimas agitadas de
estranha preocupação. Não estão apenas inquietos, mas ainda premidos por um
pavor universal. E isto significa, sem dúvida, a tortura de marcante
insegurança. Não há um ponto firme de apoio nessa transmutação histórica.
Sente o homem que tudo aquilo em que se
firmara desde os últimos séculos está vacilando e desmantelando-se aos embates
das agitações dos tempos atuais. As dinastias do ouro, as dinastias do
trabalho, vão se sucedendo na marcha da civilização. E nessa caminhada da civilização
que hoje parece tocar a sua culminância, não tardou que o espírito eufórico do
cientificismo e a serenidade edênica do paraíso burguês cedessem lugar à
incerteza martirizante dessa insegurança que não é apenas o traço psicológico
de alguns espíritos ou de algumas nações. É um fenômeno universal.
Mesmo antes da 2ª grande Guerra, o
Eminentíssimo Cardeal Verdier, Arcebispo de Paris, escrevia: 'O mundo moderno
está passando por uma crise cuja gravidade não é fácil exagerar. E muitos têm
dito que chegamos a um tal ponto do caminho, que prosseguir seria certamente
cair no abismo. Todas as nossas instituições, de fato, de qualquer ordem que
sejam, estão atualmente não só no estado de imperfeição comum há todos os
tempos e a todas as coisas, mas num estado de crise orgânica profunda, e que
poderia facilmente ser mortal. O mal estar, a inquietude, a incerteza do
futuro, uma espécie de ódio contra tudo o que existe, é o estado de ânimo que
se encontra em toda parte. E coisa rara! Esta crise caiu sobre o mundo ao mesmo
tempo em que a prosperidade parecia não ter limites, e quando o progresso
acreditava ter transformado as condições da vida humana' (Cardeal Verdier,
"L'Eglise devant le monde moderne, La Crisis de la Conscience", pp.
7-8).
"Dificilmente depois do Dilúvio,
escreve Pio XI, na página talvez mais sombria que já se concebeu sobre o mundo
moderno, encontramos uma crise espiritual e material tão profunda, tão universal,
como esta que agora atravessamos: os maiores flagelos, mesmo aqueles cujos
rastos ficaram indeléveis na vida e na memória dos povos, abatiam-se ora sobre
uma nação, ora sobre outra. Agora, ao contrário, é toda a Humanidade que se vê
atingida pela crise financeira e econômica e de modo tão tenaz, que quanto mais
procura libertar-se mais parecem os seus laços impossíveis de romper" (Pio XI,
Carta Encíclica "Charitate Christi compulsi", de 3 de Maio de 1932).
E depois que a Guerra feriu novamente as
nações, nós mesmo escrevíamos ainda há pouco: 'a hecatombe caiu dolorosamente
sobre todo o mundo civilizado, e já não há país desse globo imenso em que os
homens não vivam temerosos e angustiados. Em que a chamada questão social não
levante sérias interrogações. Em que não fraquejem as autoridades nas concessões
criminosas; em que não se aperceba a fermentação da revolta; em que não se note
a ausência da columba da paz, como outrora sobre os destroços do
Dilúvio' (Capital e Trabalho, 2ª Edição, Introd.).
Donde procede, pois, a crise
contemporânea? Se é um fenômeno universal, a sua causa deve ter um fundamento
universal. Aliás, é por esse característico de universalidade que poderemos
surpreender a causa última deste momento agudo da civilização. Um velho e
profundo axioma filosófico nos faz tocar o ponto obscuro da grande tragédia.
A universalidade de um fenômeno confirma a sua origem na própria natureza das
coisas: 'quod universaliter fit ultimo in natura radicatur'. Tudo aquilo que
acontece universalmente funda-se na própria natureza que é uma confirmação. A
crise, porém, é um fenômeno de negação. O desequilíbrio universal é a
negação da própria natureza.
Pois só uma tal negação poderia ter
repercussão tão ampla, abrangendo toda a vida das nações, das sociedades e dos
próprios indivíduos. Nenhuma outra causa seria bastante para responder por essa
universalidade, porque seria sempre uma parcela cuja projeção não teria senão
amplitude parcial e jamais alcançaria uma extensão universal. A causa política,
a causa econômica, as circunstâncias sociais, poderiam, certamente, desbordar
em consequências que acarretassem desequilíbrio, mas esse mal estar estaria em
proporção ao campo de sua influência no mundo.
A razão profunda da crise atual está,
pois, a nosso ver, na negação de uma natureza tão essencial que se faz o ponto
de referência de todas as relações que entram na composição do mundo
civilizado.
As ciências sociais, econômicas,
políticas, filosóficas, são as expressões de ralação dessa natureza para com
todas as outras realidades do universo. Porque só a sua negação poderia ser a
gênese de crise tão vasta, capaz de tudo submeter à sua influência.
Ela atingiu ao indivíduo, porque destruiu
a soberania da personalidade; atingiu a família, porque a transformou numa
convergência ocasional de instintos; atingiu a sociedade, porque aviltou o conceito
sublime da autoridade, processando a sua hipertrofia ou a sua anulação; atingiu
a própria ordem internacional, porque transformou o direito das gentes em
simples método de auferir vantagens, ou em imposição de caprichos pela força
brutal (Hartmann, Lasson, Paulsen).
A realidade cuja negação desencadeou a
crise universal e processou a desintegração dolorosa do mundo, é a realidade
Divina. A ordem humana depende em tudo do conceito que tivermos da Divindade.
E o nosso século é um século do alheamento completo de Deus. Os cientificistas
orgulhosos, os evolucionistas materialistas, os positivistas, os burgueses
modernos, pretenderam cortar as amarras que prendiam o homem ao Criador.
Reduziram Deus a um ser ensimesmado,
soterrado no abismo do seu empíreo, sem nenhuma relação com o mundo, figura
decorativa de um museu de coisas inadequadas. Fizeram Dele o incognoscível,
espécie de oceano cujas vagas batem às nossas praias e não temos barco para
explorá-Lo (Littré). Transformaram-No
em uma projeção apenas do anseio subjetivo do homem pela perfeição e pela
beleza, mas inteiramente irreal (Feuerbach, L'essence du Christianisme,
trad. de Roy, p. 323). Ou então, no mistificador idealista que ministra o
narcótico da resignação às massas sofredoras (Lenine).
Relegado para a inércia, ou negado, a
ausência de Deus no mundo lançava o germe terrível da desintegração social.
Sem a presença de Deus, o direito internacional seria apenas a imposição
violenta do mais forte, desde que, desalicerçado do direito natural, dependeria
apenas do conceito individualista das nações (Cathrein, Filosofia Morale, Del Diritto Internazionale in genere, 2º
Vol., p. 763). Sem a presença de Deus, desapareceria forçosamente o ponto de
referência para a Moral, e o bem confundir-se-ia com o útil e o agradável, na
concepção edênica dos filósofos materialistas.
O indivíduo reduzido a si mesmo como
única finalidade, na concepção burguesa e liberal, só poderia ter como ideal
supremo a sua própria expansão material e econômica. O sacrifício perderia
completamente o seu sentido transcendente. O direito não seria mais um correlato
necessário do dever, porque perdida a ideia de um Juiz Supremo e Remunerador,
só haveria direitos. O justo uso da liberdade confundir-se-ia com as
possibilidades físicas e econômicas do homem.
Já não se poderiam harmonizar os
indivíduos, uns agindo conforme o direito e outros cedendo conforme o dever,
porque só seria possível uma lei: o interesse. E o interesse individual como
finalidade suprema jamais foi força harmonizadora, mas eterna gênese de luta.
Um notável sociólogo (Gonzague de
Reynold, L'Europe Tragique, últimos Capítulos) consubstanciou perfeitamente
esta verdade, quando procurou traçar o substrato da moral burguesa.
O interesse individual seria a única
lei do homem, porque negaram a Deus, ou realmente, ou por uma displicência
propositada. Pois há esses negadores práticos de Deus. Vede: que homem debruçado sobre o pano verde dos
cassinos, ou açulado pelas paixões na vertigem da beleza transformada em
ânfora de prazer; ou embriagado pelas noitadas salpicadas de desonras dos jogos
modernos; ou acossado pelas ambições que guardam montões de moedas de lucro
torpe, embora sabendo-as manchadas com lágrimas de esposas sofredoras, de filhos
esfomeados, de suores furtados, de abandonos e desesperos − que homem assim pensa sequer
que há um Deus e que esse Deus pessoal, onisciente, onipotente, o julgará um
dia?
Que mulher de espáduas nuas,
rodopiando freneticamente nos ricos salões de bailes sensualizados; que mulher desvairada, dilaceradora da aliança de sua
fidelidade; que mulher mercenária, que abandona os filhinhos sem carinho,
mesmo nos palacetes luxuosos, para malbaratar dignidade e fortuna nas modernas
tabernas domésticas; que mulher, quando sufoca, pelo egoísmo do gozo sensual e
pela insaciabilidade do prazer e do bem-estar, a flor do próprio filho que
surge na fecundidade sacrificada de suas próprias entranhas − mãe de morte em vez de mãe de
vida − que mulher
assim pensa sequer que há um Deus e que esse Deus conhece toda a vileza de sua
vida e descobre nas suas mãos alvas e fidalgas as manchas de sangue que
denunciam o mais cruel dos assassinatos?
Negando a Deus abertamente ou negando
a Deus burguesmente, na calculada indiferença dos sibaritas, o mundo
necessariamente negaria o homem. E nunca sentimos de maneira tão profunda a
verdade do Gênesis: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança" (1, 26-27) − como nesses momentos terríveis da história em que o
homem é negado, dilacerado, morto, como uma consequência necessária da própria
negação de Deus.
Porque, se anulam a realidade divina,
se destroem a Deus, que sentido terá mais a Sua imagem, que valor terá mais a
Sua similitude? ...
O mundo moderno que provara até o fim as
iguarias do banquete das ilusões procurou todos os caminhos para a paz e o
equilíbrio. Procurou o caminho da ciência, da riqueza, do progresso, da
técnica. Só se esqueceu do caminho de Deus! E é este o único meio de voltar
à casa paterna e encontrar o coração infinito do Pai: "Ibo ad Patrem
meum" (S. Luc. 15, 18). A nós que não desertamos da Casa do Pai, porque se a
deixássemos não teríamos para quem ir (S. Jo. 6, 69), a nós compete
gritar a esse mundo enlouquecido, indigitando-lhe a direção da paz suprema.
Eis o remédio da crise moderna: voltar
para Deus. Não a um deus mitológico, apático, indiferente (Penido, "O Cardeal Newman", p. 8)! Mas a
um Deus, Princípio e Razão de todas as coisas, Criador e Senhor dos Homens e
que, por ser o Senhor, tem direito à obediência completa e total de todas as
suas criaturas. À volta a um Deus que, por ser Onisciente, conhece todos os
seus pobres filhos e perscruta todos os seus segredos (Salm. 7, 10). A
um Deus que sendo a Eterna Bondade, a Bondade na amplitude infinita (S.
Luc. 18, 19), é também a Justiça invulnerável, perfeita, sem acepção de
pessoas, Juiz das próprias justiças humanas (Rom. 2, 11). À volta a um
Deus que recolhe o gemido mais oculto do que sofre, a lágrima mais silenciosa
do homem, a palavra mais humilde do seu servidor (S. Mat. 6, 4.6). À
volta a um Deus que é o Supremo Legislador, ante o qual somos responsáveis
não só pelos atos que ferem ao próximo, que desequilibram a Ordem Moral, que
postergam o direito alheio, mas até pelos pensamentos desordenados do nosso
espírito (S. Mat. 5, 28). A volta ao Deus Vivo, de que falam as
criaturas, e em cujas mãos de justiça cair é Suprema Desgraça (Heb. 10,
31). À volta a um Deus que não traz a triste fragilidade das contingências,
mas é Eterno, presidindo ao destino dos homens e de todas as coisas (Gên.
21, 33). A um Deus que, na sua infinita Presença, abrange todos os tempos, o
passado, o presente e o futuro (Apoc. 1, 18).
À volta ao Único Deus Verdadeiro, pois
que todo o resto a que se tem dado o nome de divindade não o é, como dizia São
Paulo (1 Cor. 8, 4s). A um Deus
que é realmente a Verdade, o Caminho e a Vida (S. Jo. 1, 4; 14, 6), cuja
grandeza é incomensurável e sem fim (Salm. 144, 3). Que não está sujeito
às vãs vicissitudes das nossas transmutações (S. Tiag. 1, 17). A volta a
um Deus que é fundamento eterno da verdade e não se inclina ao vento falso das
mentiras e dos engodos, um Deus que não nos engana e não nos decepciona
(Núm. 23, 19). Não só. Mas a volta a um Deus próximo de nós. Não um Deus
longínquo, distante... Porque se uma falsa concepção da Divindade ainda o
colocar longe do mundo, a crise continuará agoniando e esmagando os povos,
como bem o acentuava Pio XII: "Que época sofreu mais que a nossa o vácuo
espiritual e profunda pobreza de espírito, não obstante todos os progressos da
ordem técnica e puramente civil? Não se lhe podem aplicar as palavras
penetrantes do Apocalipse: 'Tu dizes, ó mundo: eu sou rico, e vivo na
abundância, não preciso de mais nada; tu não sabes que és um desgraçado, um
miserável, um pobre, um cego?' (Apoc. 3, 27)" (Carta Encíclica "Summi
Pontificatus", de 20/10/1939).
Porque só esse sentido de Deus Vivo,
presente, impregnando o mundo com sua Graça, impedirá a corrupção universal e
manterá a continuidade progressiva da perfeição (Gên. 17, 1). À volta a Deus como Senhor de Tudo e
Pai de Todos, que está acima de todos, em todas as coisas, e em cada um de nós
(Ef. 4, 6), imprimirá uma ordenação necessária de valores ao mundo social.
Uma ordenação que não destruirá a liberdade porque ela é dom de Deus, mas não
permitirá a anarquia, porque esta é anulação da harmonia social. A volta para
Deus anulará a moderna idolatria dos Estados e da Sociedade, porque não serão
eles fins últimos e supremos, mas simples meios conducentes Àquele que é
realmente o Fim de todas as coisas (Apoc. 1, 8). Maravilhosa filosofia
que destrói todas as possibilidades dos rudes totalitarismos e quebra as grilhetas
de todas as escravidões! Porque só um Deus, perante o qual responderão, em
juízo severo, todos os príncipes do mundo (Salm. 74, 3), coarctará as
arbitrariedades e todos os desmandos do poder. Só um Deus que faz refulgir na
fronte da autoridade a majestade de sua própria grandeza, construirá a
obediência sem humilhação e sem repugnância (Rom. 13, 1). Só a concepção
de Sua Presença Real, Viva, Constante, dará aos povos e às sociedades a
realização da mais bela harmonia social, da mais ampla compreensão humana e
fará a felicidade das Nações (Salm. 143, 15)..." (Dom Antônio de
Almeida Moraes Junior, Arcebispo Metropolitano de Niterói, Carta Pastoral
"A Crise Moderna", de 25 de Dezembro de 1948).
"A felicidade provém da
moderação: aprendamos, pois, de Maria a viver esta vida da alma, que não nos
deixa ser diligentes senão em amar a Deus, e em cumprir nossos deveres.
Folguemos com a singeleza, que é a roupa da inocência, como os filhos do século
se alegram com os vãos ornatos e pompas de Satanás. Ah! E, como esta donzela
que se olha, e se alegra com os frívolos enfeites, os trocaria por uma amável
singeleza, símbolo de um coração puro, se ela pensasse em Maria; mas, ai dela!
Fraca, como caniço, o menor sopro da lisonja a faz vergar, e por um encômio
mentiroso sacrifica a primeira de todas as graças, o pudor. De quantas faltas
tem sido causa este desejo de brilhar! Quantas moças que deveriam ignorar do
mal o nome, calcando aos pés a decência e o pudor, compram uma celebridade
escandalosa a troco de serem neste mundo infamadas e condenadas ao Inferno no
outro...
Nos tempos infelizes em que a Religião
e, por conseguinte, os costumes, parecem desaparecer da terra, devem os fiéis
mais que em todos os outros orar com perseverança, e aplicarem-se a bem
entender o Evangelho e a Doutrina dos Santos Padres para não vacilarem na Fé...
A Religião é um fato, suas Leis acham-se escritas no Evangelho, seus Preceitos
são sagrados e certos, e o cumprimento deles indispensável. Aquele que quer
crer e salvar-se deve estudar esta Lei Imutável dada por Deus, e desconfiar dos
sonhos românticos religiosos que podem ser ocasião de inovações
funestas..." (Madame Tarbé des Sablons, "Mêz de Maria ou Nova Imitação da Santíssima Virgem", pp. 101-102, 319-320, publicado pelo Editor J. P. Aillaud, Paris,
1845).
“Muitas vezes aludimos à crise que
envenenou o Ocidente cristão, e que hoje se tornou universal graças ao
movimento histórico da ocidentalização que, por paradoxo, se volta contra o
Ocidente. Mais de uma vez tentamos percorrer os marcos históricos e as
correntes de ideias que animaram a chamada civilização moderna e que agora
desaguam pelo imenso estuário de mil disparates num oceano de sombrias
perplexidades. A Renascença e a Reforma, debaixo de seus aspectos
progressistas, e a par dos reais progressos trazidos pelas ciências da
natureza, que asseguram ao homem o conhecimento e domínio das coisas exteriores
e interiores, foi o primeiro degrau do itinerário em que o homem se extravia de
si mesmo, e para ganhar o mundo hipoteca a própria alma. Depois, na Revolução
Francesa temos outro marco onde começa a grande impostura moderna das histórias
mal contadas. Num processo de sucessivas mentiras que começou nos
primórdios da Revolução Francesa, com as famosas societés de pensée
denunciadas por Augustin Cauchin, seguiu-se a história do socialismo, a
ascensão do liberalismo, a Revolução Russa, e as duas grandes guerras. Até hoje
se conta a história da 2ª Guerra como se a Rússia tivesse desempenhado nela
papel decisivo, papel de vencedor. Agora temos a super-impostura do
progressismo 'católico', como uma síntese de todos os erros cometidos pela
humanidade nestes últimos séculos. E qual é a direção geral, o efeito principal
desses movimentos históricos?
Ninguém negará, evidentemente, a
ocorrência de um progresso de que se gloria a moderna civilização: o homem
inventou o telégrafo, a máquina a vapor, os computadores eletrônicos, o raio laser
e finalmente chegou à Lua. Mas, dificilmente se contestará outra evidência: o
homem se distancia do humano, do espiritual, do sagrado. Os imbecis,
evidentemente, pensarão que o homem só se reaproximará do humano na medida em
que se afastar do espiritual e do sagrado.
Em nossa reta Doutrina nós sabemos que o
homem, de dois modos e em dois níveis, transcende ao mundo físico e à
história. Por sua natureza racional, o homem possui uma dimensão que ultrapassa
todo o universo; por sua elevação à ordem da Graça e por sua ordenação à glória
da visão de Deus três vezes Santo, o homem ultrapassa o próprio nível de sua
natural humanidade.
Ora, o movimento histórico a que nos
referimos parece ter o objetivo principal de negar e de destruir esses títulos
de nobreza que nos vêm da razão e da Graça de Deus.
Nas correntes filosóficas nascidas da
mesma raiz nominalista, temos o chamado idealismo que desnatura o conhecimento,
deixando o espírito humano encerrado em si mesmo; e o chamado empirismo que só
abre para o exterior a janela da experiência, do fenômeno e da medida.
Progridem as ciências físicas com essa mutilação; regridem as ciências
propriamente humanas, que só podem viver centradas no primado do espiritual,
que o empirismo resolutamente desconhece.
Nessa direção será tanto mais
avançado, tanto mais evoluído o homem quanto mais materializado se mostrar.
Pervertidas as ciências humanas, por
falta de centro e de referência a Deus, pervertem-se as tentativas de
convivência política e social.
No mundo de hoje temos os dois volumosos
resultados de tal crise: de um lado o liberalismo dissolvente da dignidade
humana, por ceticismo, tolerância e capitulação; de outro lado, o totalitarismo
socialista, que degrada o homem por achatamento e escravização.
Não diríamos que os homens estão sempre
em guerra com os homens, como disse o perverso Hobbes, mas diremos que, a
partir da grande apostasia histórica, os homens estão em guerra contra o
homem. Dispensamos a maiúscula, mas não dispensamos a referência à essência, à
natureza do homem. Há na história dos últimos séculos uma visível intenção de
rebaixar e degradar o bizarro ser que ousou crer-se a imagem e semelhança de
Deus.
A Igreja lutou tenazmente contra as duas
correntes corruptoras. Tornou-se hoje um lugar comum nas rodas progressistas
dizer que a Igreja, antes de sua comunização, nada fez pelo mundo, pela
sociedade e pelo homem. Diante do insucesso – critério que bastaria para
ridicularizar o Cristo na hora da Cruz –, a primeira ideia que ocorre aos
católicos progressistas é a de culpar a Igreja de ineficiência, e não a de
arguir o mundo de indocilidade.
O fato bruto é este: a Igreja, sobretudo,
no tumultuoso século XIX, não se cansou de apontar os erros do liberalismo, do
modernismo e do socialismo. Ora, o liberalismo cobriu a metade do planeta,
enquanto a outra metade vestiu-se de socialismo; e o progressismo 'católico'
está aí. Logo... a Igreja falhou. E se falhou é porque errou; é porque não
havia compreendido o mundo.
Agora estamos diante da obra-prima
daquelas correntes históricas que trabalharam juntas para achatar a dignidade
do homem. Estamos diante da depravação do corpo humano erigida em 'momento
histórico'. Cobre o mundo inteiro, nos seus hemisférios antagônicos, mas nisto
concertados, a maré de pornorréia que pretende amortalhar a última veleidade
de pureza inspirada pela ideia da Encarnação do Verbo, e constantemente
iluminada pela figura da Senhora que apareceu às crianças de Portugal e da França
no seu manto de Rainha e de Imaculada.
A Igreja afrontou todos os ridículos,
todas as finesses dos intelectuais que queriam ver no seu zelo germes de
neo-maniqueísmo. Lembremos a voz de Pio XI que ainda trovejava contra o
impudor. Em 1930, ontem!, o Papa se preocupava com os decotes e com o comprimento
das mangas. E como nós todos nos rimos da beatice do bom velhinho! E como
evoluímos desde então! Pio XII, já com melancolia gritava: 'Ó mães cristãs, se
soubésseis o porvir de angústia, de perigos e vergonhas que preparais para
vossos filhos e filhas, acostumando-os a viver tão despidos...'. Em vão
gritou. Como assinala Luce-Quinette, 'Itineraires' nº 139, outro poder, outra
autoridade do mundo dirige os costumes. E quando essa autoridade comandou:
'joelhos!', um bilhão de joelhos se descobriram; e quando a autoridade
decretou: 'coxas', um bilhão de coxas se mostraram com docilidade, e nas mais
variadas circunstâncias. Tudo isto parece pueril, dirão os inteligentíssimos
progressistas que desaprenderam tudo o que o Cristianismo nos ensinou sobre a
alma humana. E atrás dessa docilidade bocó com que todas as mulheres do mundo
se afastaram do seu modelo, do figurino da única 'grande Dame', veio o dilúvio
de impurezas, a maré de pornorréia que hoje nos afoga. Em Fátima, a Virgem
também trovejou como trovejaram ex-cátedra os Papas. E eis o que Jacinta nos
deixou poucos dias antes de morrer: 'Os pecados que atiram no Inferno o maior
número de almas são os da impureza. O mundo lançará modas que ofenderão Nosso
Senhor...'.
Dirão os evoluídos que Nosso Senhor não
irá perder tempo em tais futilidades, acontece que Ele tem uma estima infinita
por esse nosso machucado e tão mal servido corpo. Ele levou para o Céu o
frêmito de divina alegria que sentiu no seio de Sua Mãe, cumprindo a profecia:
ela, a Sabedoria de Deus, se alegrará no meio dos homens.
E nós, herdeiros desse júbilo divino,
devemos compreender que a dignidade humana mais depressa começa pelo decoro da
veste do que pela conquista da Lua. Não compreendemos. Rejeitamos as
profecias, os sermões de Cristo, os conselhos dos Apóstolos, dos Papas, e
deixamos invadir o mundo, a maré de pornorréia, que já começa a inquietar os
mais adormecidos católicos.
Em vão novamente clama o Papa reinante
(Paulo VI) contra o furor do erotismo, contra a sexolatria. A lepra inundou os
costumes, envenenou os espetáculos públicos, ganhou as instituições oficiais,
e conquistou lugar de honra nos institutos católicos. Sob o eufemismo de
educação sexual, o que se faz é erotização precoce e infinitamente perversa.
Degradam-se as mulheres, maculam-se as consciências infantis, e com essas duas
pontas de lança da ofensiva dos infernos, não se vê como será possível a
reconquista da dignidade do homem. Será sempre possível, com a Graça de Deus,
mas tememos muito que somente através de sofrimentos inconcebíveis poderá a
humanidade lavar-se em um novo dilúvio. O ponto a que chegamos é sinistro: eles
começam pelas crianças. Os novos pedagogos que nas Américas e na Europa querem
libertar o sexo do universo moral, começam pela dessensibilização dos
inocentes. Esse horror tem valia apologética, por tornar menos repulsiva a
ideia de Inferno. Por aí, por um primeiro temor, por uma leve e inicial
desconfiança talvez comece a onda da repressão. E nós podemos meditar nestas
palavras que não passarão com as modas: 'O que escandalizar, porém, a um destes
que crê em Mim, melhor lhe seria que se lhe pendurasse ao pescoço a pedra da
mó e que o lançassem no fundo do mar (S. Mateus 18, 6)' (Permanência, nº 18,
“Editorial”, pp. 2 - 7, Março de 1970).
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Fonte: Acessar o ensaio "Reminiscência sobre a Modéstia no Vestir", no link "Meus Documentos - Lista de Livros".
Um comentário:
Excelente texto. Tertuliano na minha opinião foi o maior Pai Apostólico. Melhor apologeta e ainda fundamentou a Teologia da Trindade.
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