“A razão não goza de uma liberdade desenfreada para admitir o que melhor lhe pareça. Não é uma faculdade livre, mas necessária. Não tem autodeterminação: deve obedecer ao real, sujeitar-se à verdade que a ela se impõe por si mesma”. De maneira geral, pois, não pode o homem escolher esta ou aquela filosofia. Há de admitir aquela que se conformar com a realidade, aquela que justificar, com argumentos certos, as suas conclusões. A inteligência foi feita para o real, e é obedecendo ao real que se enobrece e aperfeiçoa, que descansa na verdade.
Depois, em questões teológicas, na conceituação dos dados revelados, não tem o homem terminologias e ideias apropriadas que correspondam com precisão à realidade transcendente. Não. É em termos humanos, em conceitos humanos que se filtram os Mistérios Divinos. Conceitos e termos fornece-os a filosofia. Importa, portanto, muito à teologia qual filosofia admitir-se. Conforme a filosofia, conforme a interpretação que se der à realidade, assim se formarão os conceitos que vão acolher as verdades reveladas. Vem aqui a propósito a observação de Billot, no seu tratado do Verbo Encarnado, ao comentar a 3ª Parte da Suma Teológica (6ª edição, Roma, 1922, págs. 55-56):
“Não é indiferente ao fiel o sistema filosófico em que se traduz em conceitos a realidade das coisas, sob pretexto de que a filosofia, por isso que de ordem natural, goza de autonomia diante da teologia. De fato. Os Mistérios da Revelação são expressões analógicas, mas verdadeiramente, em linguagem humana, de maneira que a filosofia está para a teologia, como o léxico1 de que nos auxiliamos para externar nosso pensamento. Se o léxico é bom, se dá às palavras o significado próprio, podemos alimentar esperança de sermos entendidos”. E exemplifica: “Se lês uma homilia ou tratado no qual ocorre falar-se de Padres e Diáconos, e não sabes que seja “Diácono”, recorres a um léxico, no qual encontras: Diácono, espécie de Padre. Este léxico não será útil para bem entender o tratado, na parte referente aos Diáconos e sua relação com os Padres.
Assim acontece com a filosofia, o léxico humano que nos auxiliará a entender os Mistérios Divinos, uma vez que é em termos humanos que se manifesta aos homens a Sabedoria Eterna. Se não for reto e objetivo, o sistema filosófico só concorre para germinar erros e depravar dogmas.
Pode a razão humana por si mesma, utilizando seu vigor natural, e as leis essenciais de sua ação, ajuizar se é ou não objetiva uma filosofia. Não obstante, a quantos enganos não está sujeita esta nossa pobre e orgulhosa razão natural!?! Além disso, quantos estudos, e quanto engenho não pedem, por vezes, as sutis roupagens que envolvem os sistemas falsos, para serem rasgados e manifestarem o vício que encobrem? Tanto mais que a reduzida capacidade de uma inteligência finita traz consigo a tentação do desassossego de quem aspira ao infinito.
Por tudo isso, dotou sabiamente Jesus Cristo à sua Igreja de Infalibilidade em tudo que concerne à conservação e explanação da Verdade Revelada. Têm assim os homens um Guia seguro nas questões mais fundamentais de sua vida: a verdade religiosa. É em função desta missão divina, que a Igreja, não somente pode, mas deve apontar ao Gênero Humano os sistemas filosóficos errôneos, por isso que conduzem a uma incompreensão inexata e falsa da Revelação; bem como pode e deve indicar a orientação que devem os fiéis tomar em questões de filosofia para entenderem bem o legado doutrinário que a Munificência Divina se dignou outorga-lhes.
Eis em que se fundamenta a preferência da Igreja pela Filosofia Tomista. Ela foi proclamada meio indispensável para a vitoriosa defesa da Verdade Revelada contra os ataques da heresia”. (Leão XIII, Carta Encíclica “Aeterni Patris”).
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Fonte: Cônego Antônio de Castro Mayer, Revista Eclesiástica Brasileira, Vol. 7, Fasc. 4, p. 809, dezembro de 1947.
1 Dicionário.