Concepção de São João
Batista
Vox clamantis in
deserto.
Isaias cap. XL.
Eri enim magnus
coram Domino.
Evang. sec. Luc.
Cap. I.
Isaías tinha anunciado o Precursor do Messias, e na
visão do futuro tinha clamado: “Consolai, consolai o Meu povo, disse o vosso
Deus. Falai ao coração de Jerusalém e chamai-a: a sua malícia está acabada, a
sua iniquidade foi expiada; já recebeu das mãos do Senhor o dobro por todas as
culpas”.
E, subindo mais alto ainda no seu entusiasmo,
acrescentará: “Eis a voz do que clama no deserto; aparelhai o caminho do
Senhor: endereçai no ermo as veredas do nosso Deus. Os vales serão levantados:
os montes e outeiros serão abatidos... e as asperezas ficarão planas!”
“A glória de Deus será manifestada” A época
veio, e a promessa cumpriu-se.
Havia entre os Judeus um sacerdote chamado Zacarias,
da família de Abia, uma das vinte e quatro, em que Davi distribuiu os ministros
da lei e os sacrificadores. Isabel, sua mulher, descendia da raça de Arão.
Conformes, ambos, com os Mandamentos de Deus, viviam, guardando os seus
Preceitos.
Já adiantado em anos, e, abundantes dos bens da
terra, para completa ventura da sua velhice, só lhes faltava a doce consolação
de abençoarem um filho, desejado fruto do mais ditoso enlace.
Apesar da mágoa causada pela nódoa da esterilidade,
Isabel, elevando o espírito ao Senhor, não abria a boca aos queixumes. Consumia
as tristezas consigo, e não cessava de pedir Àquele, que a um aceno do Seu
braço onipotente fizera de Sara infecunda a mãe de uma geração numerosa, como
as estrelas do céu e as areias do mar.
Desde que foram instituídas, as famílias sacerdotais
serviam no Templo aos turnos; os diferentes ministros do culto eram tirados à
sorte: e cada Levita desempenhava as funções, que ela designava.
Sucedeu cair, então, a sorte em Zacarias, e
encarregá-lo da oferta do incenso no altar dos perfumes, durante a festa dos
Tabernáculos. Um véu corrido dividia o altar do santuário sacratíssimo, vedado
a todos, menos ao Sumo Pontífice, o qual entrava só uma vez por ano, cobrindo o
rosto diante da Majestade de Deus.
Já o fumo subia com fragrância, já o povo, ajoelhado
no vestíbulo, erguia as suas orações ao céu, quando
Zacarias, no momento de oferecer os aromas vê, de repente, o Anjo do Senhor ao
lado do altar. Turvou-se o ancião; o temor e o respeito tolheram-lhe os
membros. “Não receies, Zacarias (disse o enviado celeste), a tua súplica foi
ouvida. Isabel, tua mulher, dará à luz um menino, que chamarás João, e nele
terás o regozijo da tua alma. Muitos se hão de alegrar com o seu nascimento,
porque será grande aos Olhos do Senhor. Não beberá vinho, nem licor, que possa
embriagar, e já no ventre de sua mãe estará cheio do Espírito Santo. Converterá
ao seu Deus muitos dos filhos de Israel e virá adiante Dele no espírito e virtude
de Elias, para unir os corações dos pais aos filhos, reduzir os incrédulos à
prudência dos justos, e preparar ao Senhor um povo perfeito”.
Duvidando Zacarias, respondeu ao Anjo:
-
“Por onde conhecerei que é certo, sendo eu velho, e minha mulher idosa?”
O Anjo redarguiu:
-
“Sou Gabriel, e assisto na presença de Deus. Fui enviado para te dar a
boa nova. Em castigo de não creres nas minhas palavras, que a seu tempo hão de
cumprir-se, desde aqui ficarás mudo, não recobrando a fala senão no dia em que
sucederem as coisas que revelei”
Desapareceu o Anjo, e ainda ele falava, já o
sacerdote sentia os efeitos da sua admoestação. Entretanto, o povo, lá fora,
esperava por Zacarias, maravilhado da demora. A final, quando saiu,
rodearam-no, apertando-o com perguntas; mas vendo que não podia responder,
entenderam, que tivera alguma visão no Templo, o que ele próprio confirmava por
gestos e sinais.
Acabados os dias do seu turno, recolheu-se o
sacerdote a casa e pouco depois concebeu Isabel; mas no auge do seu jubilo
ocultava-se, dizendo: “É a graça do Senhor, no dia em que se dignou pôr termo
ao meu opróbrio”; e persistiu no segredo cinco meses, até serem evidentes os
indícios da gravidez. Desde que não admitiram dúvida, a esposa de Zacarias
tornou a apresentar-se com espanto e admiração de muitos, que não compreendiam
como em tão avançados anos houvesse alcançado de Deus a bênção, que a fizera
mãe.
Nascimento de São João
Batista
Et postulans
pugilarem scripsit, dicens:
Joannes est nomen
ejus. Et mirati sunt universi.
Evang. sec. Luc.
cap. I
Chegada ao termo da gravidez, deu Isabel à luz um
filho, e os vizinhos e parentes vieram regozijar-se com ela, acompanhando-a nos
louvores com que não cessava de exaltar a Deus.
Ao oitavo dia vieram todos outra vez para assistirem
à circuncisão do menino, e depois dela, segundo o uso, quiseram lhe por o nome,
e davam-lhe o de seu pai; mas, Isabel acudiu logo e recusou, dizendo:
“Chamar-se-á João!”
Insistiam eles observando, que em toda a sua
linhagem não existia um só daquele nome; mas, desenganados de não a poderem
persuadir, voltaram-se para Zacarias, fizeram-lhe sinal para que decidisse.
Então este pedindo as suas memórias escreveu: “João é o seu nome”.
E, repentinamente, desprendeu-se-lhe a língua, e levantando
a voz bendisse o Senhor.
Quantos presenciaram tantas maravilhas, e quantos as
ouviram referir, ficaram tomados de espanto: e uns e outros clamavam: “Quem
julgais que virá a ser este menino?”
Ao uso da palavra Zacarias juntou ali o dom da
profecia. Inspirado do Espírito Santo, abriu os lábios para revelar os prodígios futuros; e o cântico,
que encerra a promessa do Evangelho, e a pintura da Igreja nos seus dias
gloriosos, desatou-se da sua boca:
“Bendito seja o Senhor Deus de Israel, que visitou e
remiu o seu povo, e nos suscitou um Salvador poderoso na casa de Davi, seu
servo, pois nos tinha prometido pela boca dos Profetas, nos passados séculos,
que nos livraria de nossos inimigos e da mão de todos os que nos aborrecem,
para favorecer a nossos pais, e se lembrar do seu santo pacto, e do juramento
feito a Abraão, para que, livres de opressores, o sirvamos sem temor em
santidade e justiça por todos os dias da nossa vida”. E iluminado pela luz da
visão divina, voltando-se para seu filho, acrescentou: “E tu, menino, profeta
do Altíssimo serás chamado, porque irás diante da face do Senhor a aparelhar os
seus caminhos, para dar conhecimento da salvação ao seu povo em remissão dos
pecados, e não por merecimento nosso virá este bem, mas pelas entranhas da
misericórdia de Deus, que fez que do alto nos visitasse este sol no Oriente
para iluminar os que viam nas trevas e na sombra da morte, e para dirigir os
nossos passos no caminho da paz!”
O Messias representado nesta figura sublime não é o
conquistador e o guerreiro onipotente, que os Fariseus esperavam, mas sim o
Salvador pacífico e o Cordeiro imaculado, vindo para remir as culpas, e pagar o
peso delas com o Sangue do maior sacrifício.
À antiga sucede a nova época! As trevas, que vestiam
de escuridão a sociedade velha rasgam-se; e a claridade do novo astro ilumina a
terra e aponta o céu. A Religião do Amor substitui as falsas seitas e os
terrores; e o homem, que antes morava na sombra da morte, vê no mundo o seu
desterro, e pela imortalidade vê no paraíso a verdadeira pátria.
Eis a ideia, que Zacarias nos dá do reinado do
Messias; e depois a vida de Cristo, a Sua Doutrina, e a pregação dos Apóstolos
não fizeram senão confirmá-la.
Os locais, onde tantas maravilhas sucederam não
podiam deixar de ser assinalados pela devoção desde os primeiros tempos. As
duas casas de Zacarias, tanto a que viu o nascimento do Precursor, como a que
ouviu as saudações de Isabel e de Maria na Visitação, foram convertidas em
santuários. Situadas a curta distância, de modo que do alto de uma se descobre
a outra, ambas foram preferidas por solitários desenganados das vaidades
terrenas para refúgio das tempestades humanas, e teatro de oração e penitência.
O convento de São João, colocado na coroa de uma
subida, e rodeado de montes, abriga hoje dentro dos seus muros o lugar
venerado, em que veio ao mundo àquele que foi aurora do saudável dia da nova
era. O santuário não está no pavimento da igreja; é necessário descer doze
degraus para baixo da terra, e entrar em uma capela lajeada de finos mármores.
Dentro está um altar preciosamente adornado, e debaixo dele venera-se o lugar
da natividade do Batista, designado por uma estrela de pedra, que sempre
iluminam seis lâmpadas de prata.
Daqui à residência de campo, onde a Virgem Maria foi
recebida por Isabel, o caminho é breve, saindo-se por uma vereda orlada de
oliveiras frondosas. Logo, a dois tiros de espingarda adiante está a fonte de
Nephtoa, correndo por três canais de lavor antigo; e depois de subida uma
encosta íngreme, nas faldas de uma dilatada montanha, acha-se sobre um outeiro,
o lugar em que passou a bela cena da Visitação. Ainda no tempo do Fr. Pantaleão
d'Aveiro, em memória do soberbo Mosteiro de Religiosas ali edificado, restavam
neste cabeço as paredes da igreja e a capela mor inteira, com pinturas de boa
mão.
Ao santuário desce-se por uma escada de vinte
degraus até uma casa debaixo da terra da grandeza de razoável capela, com seu
altar de pedra ao nascente. Aí, quer a tradição, que fosse o encontro da esposa
de Zacarias com sua Prima, e o lugar em que a Senhora entoou o formoso cântico
do “Magnificat”.
Pareceu útil dar esta leve ideia do lugar, e sempre que o assunto o exigir
seguiremos a mesma regra, descrevendo os pontos notáveis pelos fatos que
recordam. Alivia-se mais assim a severidade à narração, e une-se de algum modo
o agrado curioso de uma viagem rápida pelos lugares mais estimados dos
leitores.
Infância de São João Batista
Et erat in
desertis usque
in idem
ostentionis suae ad Israel.
Evang. Sec. Luc.
cap. I.
A mão do Senhor estava com o filho de Zacarias desde
menino; e à
proporção que ia crescendo, fortificava-se na virtude. Em todas as ações
mostrava que fora eleito por Deus para ser a voz das Suas maravilhas.
A idade em que se acolheu ao deserto não é
conhecida; mas, foi sempre opinião unânime da Igreja, que ele o habitou desde
os mais tenros anos. Dotado do uso da razão já no ventre de sua mãe, o Espírito
de Deus assistia nele, O servia-lhe de guia, preparando-O para a missão sublime
a que era destinado. Os exemplos de austeridade e os exercícios de penitência a
que se entregava, longe dos homens, devem servir de lição aos varões
apostólicos, para adquirirem a força de se vencerem a si, e de chamarem ao
caminho do céu os que mais se desviam dele, correndo pelas veredas do vício e
das paixões!
O deserto, a que João se retirou desde a infância, é
triste e espantoso, asseguram alguns dos que o visitaram. Entre as rochas e
penedos, de que está coberto, houve antigamente um mosteiro, feitas as celas
como ninhos de gaviões e andorinhas, ajudados de alguma indústria humana.
Mostra-se uma casa pequena, ou antes, gruta, aberta
na rocha viva, com um leito de pedra, à feição de poial, aonde se diz que
dormia o Santo. Por duas frestas, rasgadas, uma ao sul, outra ao poente, entra
a luz. A porta fica igual com o teto. Cinco à seis passos ao lado no mesmo
penedo, nasce uma fonte pequena, que de fora não dá mais sinal de si do que
sentirem-se as gotas de água caindo, e ver-se o lugar todo cheio de umidade. Contemplando
o lugar, dir-se-ia que de propósito fora disposto pela natureza para a vida
angélica do Precursor. Ao redondo, vão grandes matas de alcaparras, e para
baixo segue o rochedo muitas vezes quase a prumo; o vale angustiado entre duas
ásperas montanhas, que se lhe abre aos pés, é tão medonho e escuro, que faz
tristeza só olhar para ele e para o sombrio e vasto arvoredo, que o veste.
Um viajante moderno não pinta, porém, os locais com
tão severas tintas; e tendo visto pelos seus olhos o que descreve, merece-nos o
conceito de verdadeiro e de bom observador. No quadro, que nos traça, o deserto
de São João não é a penedia árida, e a floresta povoada de feras e de aves de
rapina, que alguns autores representaram. O ermo, aonde se criou a infância e
robusteceu a juventude do filho de Zacarias, encerra uma dessas deleitosas
solidões, que a alma deseja muitas vezes para descansar do mundo, e viver
consigo. Há em
volta dela vales enfeitados de arbustos e de flores, searas de trigo, e uma
vegetação viva e suave, que atrai, e parece separar-nos das regiões assoladas
pela maldição de Deus. A alfarrobeira cresce com frequência nestes lugares. A
gruta a que se recolhia São João é um rochedo côncavo, suspensa na encosta de
um outeiro elevado. Acima da gruta jazem as ruínas de uma igreja. Ao lado corre
a fonte onde o filho de Zacarias apagava a sede.
O ermo, em todo ele, não contém a menor cabana, nem
o mais leve indício de habitação. As aves do céu, os rouxinóis, as cotovias, e
os pardais, são os únicos moradores da selva, os que a atravessam com os seus
voos, e a animam com as suas vozes. No resto a solidão mais completa!
Por estes lugares cheios de silêncio é que o
Precursor passava coberto de uma pele de camelo presa numa correia do couro,
colhendo o mel silvestre e os gafanhotos, de que se nutria. E ainda hoje o caminhante, em
presença da profunda paz desta paisagem santa, afiando os ouvidos para
subitamente, parecendo-lhe que no meio dos trinados dos pássaros, escuta aquela
austera voz do deserto, que a dezenove séculos dizia às gerações corrompidas do
mundo velho: “Aparelhai o caminho do Senhor; endireitai no ermo as veredas do
nosso Deus!”
Desde a infância, João cumpriu à letra a palavra do
profeta quando disse que se veriam os meninos brincando com as serpentes.
Destinados a admirarem o Salvador do mundo, os seus olhos afastaram-se de tudo
o mais, reputando-o menos digno. As entranhas dos desertos foi respirar ares
livres da podridão do século e das cidades, procurando morada áspera, mas
aberta, donde pudesse contemplar o céu a todas as honras, adorar a Deus, e
contando com a vista os exércitos de estrelas, que brilham durante a noite,
considerar na grandeza do Criador, e na baixeza da criatura.
Enquanto não chegava a hora de anunciar o reinado do
Messias, e de padecer pela verdade, buscou este refúgio, para conversar com os
Anjos, e ouvir sem pavor a voz de Deus, quando o chamasse como a Moisés,
dizendo: “Estou aqui!”
Um dos Santos Padres mais antigos e veneráveis, São
Pedro Alexandrino, assegura como coisa aceita geralmente, que João Batista se
refugiara no deserto para escapar à barbaridade de Herodes, que não contente de
buscar a Jesus, menino, para lhe dar a morte, queria também descarregar a
espada sobre o Precursor; e acrescenta, que iludido na sua crueldade pela fuga
do Batista com sua mãe, o tirano se vingara em Zacarias, que mandou assassinar
entre o Templo e o altar dos holocaustos. Cristo, repreendendo a dureza dos
Hebreus, cita de feito um Zacarias como o último dos justos sacrificados; e
ainda no quinto século a piedade dos fiéis no lugar do Templo, aonde a Tradição
aponta o crime, mostrava algumas pedras, no pavimento, vermelhas com a
indelével nódoa do sangue!
Seguindo o preceito do Anjo, que o anunciara, João
nunca bebeu vinho, nem provou licor espirituoso, excedendo na mortificação dos
apetites os rigores impostos aos Nazarenos. O mesmo pão lhe parecia regalo
demasiado.
Para comover os Judeus endurecidos, pôs-lhes o
Senhor diante dos olhos o exemplo de uma vida superior a todas as fraquezas da
terra, para que, ensinada por esta voz do deserto, a verdade penetrasse melhor
no coração do século, recordando a grande imagem do profeta Elias.
Antes do Messias, que vinha trazer a paz e a
esperança ao mundo novo, era preciso que a penitência encerrasse as portas do
mundo velho, e que o mais santo depois de Cristo e da Virgem, sua Mãe,
aparelhasse o caminho, e chamasse os homens transviados!
_________________________
Fonte: Obras Completas de Luiz Augusto Rebello da Silva,
Escritos Religiosos I – “Fastos da Igreja” – Vida de Jesus Cristo, Vol. II, pp.
23-26; 33-36; 37-41; Sociedade Editora: Livraria Moderna - Typographia, Lisboa,
1907.
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