Sermão
de Maria Rosa Mística
(Padre
Antônio Vieira, S.J.)
I. Extollens
vocem quaedam mulier de turba, dixit illi: Beatus venter qui te
portavit et ubera quae suxisti.
Não
é coisa nova no mundo, posto que lastimosa, que homens letrados e
religiosos degenerem em hereges. Tais foram antigamente
Pelágio, e modernamente Lutero: um e outro, letrados de fama, um e
outro, religiosos de profissão, e ambos heresiarcas impiíssimos. E
se das escolas e claustros da Igreja Católica saem monstros tão
horrendos, não é maravilha que na Sinagoga judaica, e na história
do presente Evangelho os vejamos semelhantes. Os escribas eram os
letrados da lei, os fariseus eram os religiosos daquele tempo, e uns
e outros se declararam tão blasfemamente heréticos no milagre do
demônio mudo, que em uma só proposição negaram a Cristo a
divindade, enquanto Deus, e a santidade, enquanto homem. Disseram e
ensinaram publicamente aos que se admiravam do milagre, que era
falso e aparente, e que Cristo lançava os demônios dos corpos com
poder do príncipe dos demônios: In Beelzebub principe
daemoniorum ejicit daemonia. Em
dizerem que obrava com poder alheio, negavam-Lhe a onipotência; e
em julgarem que esse poder era recebido do demônio, negavam-Lhe a
santidade: e a quem? Àquele mesmo Senhor, a quem os mesmos demônios
confessavam por Deus e por santo: Scio qui sis,
Sanctus Dei. Convictos,
porém, neste famoso ato da fé, e saindo escribas e fariseus todos
com mordaças na boca, emudecidos pelas razões com que Cristo,
juntamente mestre e juiz, lhes confutou e condenou as blasfêmias,
levantou a voz uma mulher, aclamando a vitória da fé, e dando todo
o louvor à Mãe de tão glorioso Filho: Beatus
venter qui te portavit et ubera quae suxisti.
Para
expositor e intérprete deste insigne texto, e seus mistérios,
elegeu a Igreja, entre todos os doutores sagrados ao Venerável
Beda, o qual diz duas coisas notáveis. A primeira, que
esta mulher do Evangelho foi figura da Igreja Católica, que nela se
representava: Cujus haec mulier typum gessit. - E a
experiência tem mostrado a verdade e propriedade desta exposição,
pois, tomando a Igreja da boca da mesma mulher estas mesmas
palavras, não só as autoriza como suas, mas as repete, canta e
celebra como divinas, em todas as solenidades da Virgem, Senhora
nossa, e com particular eleição as aplica ao dia do seu Rosário.
A segunda coisa, e mais notável ainda, que diz o
mesmo Beda, é que nas mesmas
palavras, nas quais se contem os primeiros mistérios do Rosário
somente – como são os da infância de Cristo: Venter
qui te portavit et ubera quae suxisti -
não só estão refutadas e convencidas as heresias e blasfêmias
dos escribas e fariseus - que eram os hereges presentes - senão
também, e com a mesma evidência, as de todos os hereges
futuros: Scribis et
pharisaeis, Dominum tentantibus et blasphe-mantibus, tanta ejus
incarnationem prae omnibus sinceritate cognoscit, tanta fiducia
confitetur, ut et praesentium procerum calumniam et futurorum
confundat haereticorum perfidiam.
Isto
suposto, que é tudo o que até agora nos tem ensinado a Igreja, eu,
insistindo na verdade católica da mesma doutrina, e não me
apartando um ponto da autoridade dela que é na terra a do céu - o
que determino dizer hoje é muito mais. Se a verdade do mistério da
Encarnação, que é um só dos quinze
do Rosário, bastou para refutar os hereges de Judeia,
e os que depois deles impugnaram o mesmo mistério, o que acrescento
e digo de novo é que todos os mistérios e orações de que se
compõe o Rosário, juntos não só refutam e convencem as heresias
de Judeia,
senão as de todo o mundo, nem só as dos escribas e fariseus, senão
as de todos os heresiarcas e seus sequazes, nem só as daquele tempo
e do futuro, senão as do futuro, as do presente e as do passado. De
sorte que, examinadas, não em comum somente, senão também em
particular, todas as heresias, todas as blasfêmias, todos os erros
de todas as seitas, de todas as idades, de todas as terras, de todas
as nações, e de todos os infiéis do mundo, todas no Rosário
estão detestadas, todas no Rosário, condenadas, todas no Rosário,
confundidas, e todas no Rosário, anatematizadas.
Isto
é o que hei de pregar hoje. E agora, Senhor, me dou eu o parabém
de que Vossa infinita Majestade, patente nesse trono visível, se
dignasse de divinizar com sua real presença a solenidade deste
grande dia, e agora reconheço a justa razão e correspondência com
que o mistério por antonomásia da fé desce do céu a honrar os do
Rosário. Não podia faltar a maior e melhor parte a este todo, de
que o diviníssimo Sacramento também é parte. Nesse diviníssimo
Sacramento adora a nossa fé o maior mistério dela: no Rosário
reconhece e confessa todos. Nesse diviníssimo Sacramento condena a
quantos hereges o negam: no Rosário a nenhum perdoa, nem ainda aos
que se não atreveram a negar. No Sacramento detestamos uma heresia
nova: no Rosário as novas e as antigas. No Sacramento, enfim, uma
heresia, e no Rosário todas as heresias. Sendo,
pois, o Rosário a maior e mais universal protestação da fé, e o
mistério da fé a fonte de toda a graça, não nos poderá faltar
com a graça a mesma Senhora, de quem a mesma fonte teve seu
nascimento: Ave
Maria.

II.
Uma das mais notáveis prerrogativas, ou a mais notável e a maior,
que a Igreja Católica reconhece e celebra na Virgem Santíssima,
Senhora nossa, e de que Lhe dá o parabéns, é aquela famosa
antífona: Gaude, Maria Virgo, cunctas haereses sola
interemisti in universo mundo. - Quer dizer: Alegrai-vos,
Virgem Maria, porque Vós só degolastes em todo o mundo todas as
heresias. - O louvor que
encerram estas palavras não pode ser maior, mas a dificuldade delas
também é grande. Primeiramente, S. Pedro pelejou contra Simão
Mago, que foi o primeiro heresiarca da Igreja, e o derrubou das
nuvens, e, com os pés quebrados, o prostrou aos seus nos olhos de
toda Roma. S. João Evangelista pelejou contra Ébion e Cerinto,
contra os quais principalmente escreveu o Evangelho. S. Paulo, não
só a um ou a poucos hereges, mas a todos os de seu tempo confundiu,
aniquilou e fez em cinza, com tantos raios quantas foram as suas
epístolas. Depois dos apóstolos estas foram as batalhas e as
vitórias dos fortíssimos antigontistas de todos os heresiarcas, os
Inácios, os Policarpos, os Irineus, os Justinos, os Lactâncios, os
Epifânios, os Atanásios, os Jerônimos, os Agostinhos.
Como
diz logo e canta a Igreja que a que degolou as heresias foi a
Virgem, Senhora nossa, e Ela só: sola? Mais. Estas
heresias não foram todas, nem de todo o mundo, porque todas
nasceram na Grécia e na Itália, donde se estenderam por algumas
províncias da África e da Europa, e
ainda não tinham saído do inferno os Erasmos, os Luteros, os
Calvinos, e tantos outros monstros, em cujas heresias está ardendo
hoje a França, a Holanda, a Inglaterra, a Alemanha, a Dinamarca e a
Suécia, e todo o Setentrião enregelado e duro. Pois,
se ainda vivem, e crescem, e nascem no mundo tantas heresias, como
as degolou a Virgem Maria, e as matou todas: Cunctas
haereses interemisti in universo mundo?
Trataram
esta questão dois famosos autores do nosso século, entre os
teólogos, Soares,
e entre os escriturários, A Lápide. E que é o que dizem? O padre
Soares responde que degolou a Senhora todas as heresias, porque
foi Mãe de Cristo, que é a luz que alumia a todos os
homens, e porque depois de Cristo foi mestra da fé e
dos apóstolos, e porque é singular protetora de todos os que A
defendem. Mas esta resposta, posto que verdadeira e sólida no que
diz, bem se vê que não satisfaz inteiramente à dificuldade
proposta, nem enche os vazios de tamanha prerrogativa. O padre A
Lápide mais a confirma com a Escritura do que dá a razão dela.
Diz que aqui se cumpriu a sentença fulminada por Deus contra a
Serpente, de que uma mulher lhe quebraria a cabeça, e que esta
mulher é a Virgem Maria, a Serpente o Demônio, e a cabeça da
Serpente todas as heresias: Beata Maria contrivit serpentem,
quia illa fuit semper plena et gloriosa victrix diaboli, omnesque
haereses - quae caput sunt serpentis - in universo mundo contrivit,
ut canit Ecclesia.
Que
na cabeça da serpente se entendam todas as heresias, bem dito está,
porque todas saíram daquela astuta, inimiga e venenosa cabeça.
Assim o afirmam Santo Agostinho, S. João Crisóstomo, Santo
Atanásio e, primeiro que todos, Santo Irineu,
o qual acrescenta que todos os heresiarcas tiveram demônios
familiares, que eram os seus mestres, e lhes ensinavam os erros que
haviam de semear. E esta verdade é tão certa, que os mesmos
heresiarcas e os mesmos demônios a confessam. Lutero,
o maior heresiarca do século passado, em o livro que intitulou De
Massa Angulari, confessa
ou se gaba de que ele e o demônio eram tão amigos e tão
familiares na conversação e na mesa,
que tinham comido juntos mais de meio alqueire de sal: Diabolum,
et se inter se mutuo familiariter nosse, et plus uno salis modio
simul comedisse.
- E dos demônios refere Cassiano, na colação sétima, que em sua
presença e na de outros religiosos confessara pública e
declaradamente um demônio que a heresia de Ário e de Eunômio ele
lha inspirara: Audivimus apertissime confitentem se
inspirasse haeresim Arrii et Eunomii.
Finalmente,
sem sair do caso em que estamos, dele consta quem foi o primeiro
heresiarca, e quais os primeiros hereges. O
primeiro heresiarca foi o Demônio,
os primeiros hereges foram Adão e Eva. O
Demônio
foi o primeiro heresiarca, porque, tendo Deus dito a Adão e Eva que
no dia em que comessem do fruto vedado morreriam: In
quocumque die comederis, morte morieris
- contra esta proposição, que por ser de Deus era de fé, o
Demônio
pronunciou e ensinou a contraditória, em que consiste a heresia,
dizendo que de nenhum modo morreriam: Nequaquam
morte moriemini.
- E Adão e Eva foram os primeiros hereges, porque ambos não só
duvidaram da palavra divina - o que bastava - mas ambos creram mais
ao Demônio
que a Deus, ambos perderam a fé, como prova Santo Agostinho, e
ambos foram réus e cúmplices no primeiro crime de heresia.
E
como a sentença fulminada contra a Serpente assentava sobre estas
culpas, e tanto em castigo da presente heresia - de que fora o
primeiro dogmatista - como em presságio de todas as futuras, que na
sua cabeça se haviam de maquinar, e dela haviam de sair; bem
se segue que a mulher, que lhe havia de quebrar a mesma cabeça, era
a que havia de destruir todas as heresias.
Mas, ainda que esta exposição do texto declare o verdadeiro
sentido da profecia, não concorda, porém, com o cumprimento dela,
nem com o que canta a Igreja, porque a profecia diz conteret,
e a Igreja diz interemisti: a profecia fala do futuro, e
que se havia de cumprir, e a Igreja fala do passado, e que de
presente já está cumprido. E se já está cumprido que a Virgem
Maria, e só Ela, degolou todas as heresias do mundo: Cunctas
haereses sola interemisti in universo mundo - como se
verifica esta verdade tão decantada da Igreja, e quando ou de que
modo obrou a Virgem, Senhora nossa, esta tão universal e tão
prodigiosa façanha?
Respondo
que assim é como o afirma a Igreja Católica, cuja verdade não
pode faltar; e
que o modo ou instrumento com que a Virgem Maria degolou todas as
heresias foi o Rosário.
E porque o Rosário é somente Seu, Ela foi a que as degolou quando
o instituiu: Cunctas haereses sola interemisti in universo mundo.
- Quando a Senhora instituiu o Seu Rosário, e o seu primeiro
pregador, o patriarca S. Domingos, o começou a publicar pelo mundo,
referindo o papa Gregório IX os efeitos maravilhosos da sua
pregação, diz na bula da canonização do mesmo santo estas
grandes e ponderosas palavras: Dominico sagitante delicias
carnis, et fulgurante mentes lapideas impiorum, omnis haereticorum
secta contremuit
- como se
a pregação de Domingos fosse um arco que despedisse setas contra
os corações de carne, e como se a sua voz fosse um trovão do céu
que fulminasse raios contra os entendimentos de pedra, assim fez
tremer as seitas de todos os hereges:
Omnis haereticorum secta contremuit. - Mas, se as
seitas dos hereges tremeram, também a Igreja ocidental tinha
tremido, diz o Beato Alano de Rupe, vendo a força e progressos com
que as mesmas heresias se iam estendendo e abrasando a Europa: Hic
vero intremuit Ecclesia Occidentalis, talium adhuc inexperta
malorum. - Não houve meio de que a Igreja não intentasse para
apagar ou atalhar este incêndio, porém, todos debalde: Non
arma, non doctrina deerant, deerat oratio: Não
faltava a doutrina sã dos teólogos, não faltavam também as armas
dos príncipes católicos, mas faltava a oração.
- Trouxe-a,
finalmente, do céu a Rainha dos anjos, ensinando a do seu Rosário,
e tanto que o Rosário se introduziu no mundo, cresceu a oração e
desfaleceu a heresia: Praedicandi
ac orandi Rosarium, ut in usum venit, crevit oratio, decrevit
haeresi.
Só
na Lombardia converteu S. Domingos, por meio do Rosário, mais de
cem mil hereges albigenses. Mas, que têm que ver - torna agora a
mesma dúvida, não já absolutamente, senão sobre o Rosário - que
têm que ver os albigenses com todos os hereges? E que proporção
tem a Lombardia com todo o mundo? De que modo, logo, se pode ou há
de entender que por meio do Rosário degolou e matou a Virgem,
Senhora nossa, todas as heresias do mundo? Digo
que o Rosário, própria e verdadeiramente, mata todas as heresias,
pelo modo próprio e verdadeiro com que a heresia mata a fé, e a fé
mata a heresia. De
que modo se matam entre si a heresia e a fé? A fé e a heresia são
atos do entendimento, com que cremos ou negamos o mistério e
verdade que se nos propõe; e nesta contrariedade ou guerra dos
entendimentos é que a fé pode matar a heresia, ou a heresia pode
matar a fé. Se a heresia nega o que crê e confessa a fé, mata a
heresia a fé; se a fé crê e confessa o que nega a heresia, mata a
fé a heresia; e deste modo, por meio do seu Rosário, matou a
Virgem, Senhora nossa, todas as heresias, porque tudo o que
todas as heresias do mundo negam é o que se crê e confessa no
Rosário. De sorte que, para o Rosário matar todas as heresias, não
é necessário que converta e convença os hereges, e mate as
heresias neles, mas basta que as deteste e as mate em si mesmo.
Excelente
e admirável prova, e, quanto se podia desejar, adequada. Antes de
Cristo vir ao mundo, havia entre os judeus e os gentios a mesma
oposição e contrariedade que hoje há entre os católicos e
hereges; e porque Cristo, Senhor nosso - por isso chamado Príncipe
da Paz - quis por meio da sua fé acabar esta guerra, e fazer de
ambos os povos, judaico e gentílico, um só povo: Qui fecit
utraque unum
- o mesmo S. Paulo, de quem são estas palavras, diz que Cristo
matou aquelas inimizades em si mesmo: Interficiens inimicitias
in semetipso, ut duos condat in unum, et reconciliet ambos.
- Mas quando fez Cristo esta união e esta reconciliação dos dois
povos inimigos, e quando matou estas inimizades? Matou-as nos
últimos anos de sua vida, quando instituiu a lei nova, na qual não
há distinção de judeu e gentio: Non est distinctio Judaei
er Graeci.
- Agora entra a grande dúvida. Pois, se Cristo há mil e seiscentos
anos que matou as inimizades que havia entre os judeus e gentios,
como perseveram ainda inimigos entre si, e por mais que os gentios
convertidos querem converter também os judeus, eles, contudo,
perseveram obstinadamente na mesma inimizade? Porque Cristo não
matou as inimizades neles: matou-as em si mesmo: Interficiens
inimicitias in semetipso. - O
mesmo fez a Virgem, Senhora nossa, por meio do seu Rosário. Ainda
que muitos hereges em todas as partes do mundo se conservam
obstinadamente hereges, a Virgem Maria por meio do Seu Rosário
matou todas as heresias em todo o mundo: Cunctas
haereses sola interemisti in universo mundo -
porque o Rosário, ainda que não mate as heresias nos hereges que
se não querem converter, mata-as todas em si mesmo, porque em si
mesmo detesta as heresias e os erros de todos.

III. Dai-me
agora particular atenção, e assim na parte mental do
Rosário, que são os quinze mistérios, como na parte
vocal, que são as duas orações de que se compõe, vede como
nele detestamos todas as heresias do mundo.
Primeiramente
no número e fundamento dos quinze mistérios, é muito digno de
reparo que os primeiros treze sejam todos tirados do Evangelho, e os
dois últimos mistérios, que são os da Assunção da Virgem,
Senhora nossa, e os de Sua Coroação no trono da glória, não
constam dos Evangelhos, nem de outra Escritura Sagrada, senão
somente por tradição dos apóstolos e da Igreja.
Pois, se todos quinze se puderam inteirar de outros mistérios que
referem os evangelistas, por que mete junta e igualmente com eles o
Rosário os que só cremos por tradição apostólica e
eclesiástica? Porque assim era
necessário para a inteira e completa protestação da fé e
detestação das heresias. Os hereges modernos negam a fé das
tradições, e dizem que só se há de crer o que se lê nas
Escrituras Sagradas: Neque
alia doctrina in Ecclesia tradi et audiri debet, quam purum verbum
Dei, hoc est, Sancta Scriptura - diz Lutero, tão inchado como
ignorante.
- Vem cá, herege sobre apóstata: na lei da natureza houve fé?
Sim. E houve alguma Escritura? Nenhuma. Na lei escrita houve muitas
Escrituras? Muitas. E criam-se também as tradições? Também, que
a mesma lei o mandava assim. Na lei da graça houve sempre fé desde
seu princípio? Sempre. E houve sempre Escrituras? Não, porque o
Evangelho de S. Mateus, que foi o primeiro, foi escrito oito anos
depois da Ascensão de Cristo, e o de S. João, que foi o último,
sessenta e seis anos depois. Pois, se as tradições em todas as
leis tiveram autoridade de fé, como és tu tão sem fé e sem lei
que as negas? E se queres ler isto mesmo nas Escrituras Sagradas, lê
a S. Paulo, onde diz: Accepi a Domino quod et tradidi vobis;
e outra vez, onde diz: Laudo vos, quod sicut tradidi vobis,
praecepta mea tenetis;
e terceira vez, onde expressamente declara uma e outra coisa. Tenete
traditiones, quas didicistis, sive per sermonem, sive per epistolam
nostram. E
como as verdades que cremos tanta autoridade têm pela Escritura
como pela tradição, por isso os mistérios do Rosário se
compuseram de umas e outras, condenando nesta católica composição
a ímpia doutrina de Lutero e dos seus quatro evangelistas, tão
falsos como ele, Calvino, Brêncio, Kemnício, e Hamelmano.
Vindo
à série dos mistérios, no primeiro,
que é o da Encarnação, confessa o Rosário, com a fé católica,
que o Filho de Deus encarnou e tomou a nossa carne por verdadeira e
real união da subsistência do Verbo à Humanidade, ficando Cristo
verdadeiro Deus e verdadeiro homem com duas naturezas, não
confusas, senão distintas: uma inteiramente divina, e outra
perfeitamente humana, e não em duas, senão em uma só pessoa. E
com a fé e protestação deste mistério degola
o Rosário cinco famosas heresias.
A primeira, de Valentino, de Cedron, de Proclo, e de todos os
maniqueus e priscilianistas, os quais diziam que Cristo não era
verdadeiro homem como nós, senão fantástico e aparente, e não
nascido na terra, senão descido do céu.
A segunda, de Cerinto, de Ébion, de Carpocrates, de
Teodoro, Artemon, Paulo Samosateno, Fotino, os quais concediam que
Cristo era homem, mas negavam que fosse Deus; e este erro é também
dos judeus e dos maometanos. A terceira, de Nestório,
de Elipando, de Bonoso, e outros, os quais confessavam em Cristo as
duas naturezas, divina e humana, mas não em uma só pessoa, senão
em duas, e essas não unidas substancialmente entre si, mas
acidentalmente, e só por graça. A quarta, de Êutiques,
Dióscoro, Filopono, os quais diziam que de tal maneira Deus se
fizera homem, que a humanidade, por verdadeira transformação, se
convertera na divindade, ficando o que fora homem, não já homem,
senão Deus. A quinta, de Polêmio, a quem seguiram os
jacobitas, e de Severo, a quem seguiram os acéfalos, os quais da
natureza humana e da divina faziam em Cristo uma terceira
substância, assim como dos elementos simples se compõem os corpos
mistos. Deixo os erros de Apolinar, e de outros na mesma matéria,
dos quais, por serem tantos, se convence também a sua mesma
falsidade, porque para acertar há um só caminho, e para errar
muitos.
No segundo
mistério, que foi o da Visitação da Senhora a Santa
Isabel, e santificação do Batista, temos
antes de sua degolação a de duas grandes heresias antigas e
modernas. A santificação
do Batista caiu sobre o pecado original, no qual incorreram todos os
filhos de Adão, como em primeiro pai e cabeça universal do gênero
humano. Ele pecou, e nele todos, como expressamente diz S. Paulo:
In quo omnes peccaverunt.
- E com ser este texto tão claro, Pelágio e Celéstio negaram
obstinadamente haver pecado original. O mesmo erro continuaram Pedro
Abailardo primeiro, depois os hereges albigenses, e quase em nossos
dias o ressuscitaram Erasmo, Fabro, Zuínglio, e outros monstros com
nome de cristãos, não reparando, como notou Santo Agostinho contra
Juliano, que quem nega o Pecado
Original,
derroca o primeiro fundamento do Cristianismo, e quer tirar do mundo
a Cristo.
Por isso o mesmo Cristo, que reservou o resto da Sua doutrina e
milagres para depois dos trinta anos, no mesmo instante em que foi
concebido, partiu logo a livrar do pecado original a um homem que
ainda não era nascido. E por que foi este homem, ou este menino,
mais um filho de Isabel e Zacarias que outro? Para condenar com o
mesmo ato, e desfazer a segunda heresia.
Buccero,
Calvino e Bolingero de tal modo admitem o pecado original que
excetuam dele os filhos dos fiéis, e dizem que, ainda que morram
sem batismo, se salvam porque pela fé de seus pais nascem santos.
E para Cristo convencer também, e condenar esta heresia, aquele
menino que escolheu entre todos para livrar do pecado original, não
só quis que fosse filho de pais fiéis, mas tão fiéis e tão
santos ambos como Zacarias e Isabel. E estas são as duas heresias
que de um golpe degola o Rosário no segundo mistério.
Contra
o terceiro - que é o do nascimento de
Cristo - se levantaram outras
quatro: uma
pertencente ao Filho, e três à Mãe.
Citiano, Terbinto, Manes e os hereges chamados sampseus, ussenos, e
helcesseus, não só negaram haver nascido o Filho de Deus da Virgem
Maria, mas disseram que em Adão se vestira exteriormente da nossa
carne, da qual logo se despira, e a vestia somente quando havia de
falar aos patriarcas, e que nela aparecera depois quando veio
ensinar e remir o mundo, dando cor a este seu fingimento com as
palavras de S. Paulo: Et habitu inventus ut homo.
- Pode haver fábula mais quimérica e mais ridícula? Mas tão
cegos e tão estólidos como isto são os hereges. Os que creem e
confessam a Cristo como nascido de Maria Santíssima, escurecem e
corrompem a metade desta verdade com três blasfêmias, de que
estremecem os ouvidos católicos. - Nós, Virgem e Mãe sempre
puríssima, confessamos que fostes Virgem antes do parto, Virgem no
parto, e Virgem depois do parto. E a primeira destas singulares
prerrogativas negaram os ebionitas, e teodotianos; a segunda,
Gualtero, Buccero, Molineu, e outros protestantes; a
terceira, Helvídio, Auxêncio, Joviniano, e os hereges
antidicomarianitas, merecedores todos de que o fogo da sarça, cuja
perpétua verdura se conservou inviolável entre as chamas, os
abrasasse e consumisse.
Mas nós, Virgem das Virgens e Mãe admirável, já desde então na
mesma sarça verde antes do fogo, no fogo verde, e verde depois do
fogo reconhecemos os três estados maravilhosos de Vossa virginal
pureza, cantando todos com a Igreja: Rubum, quem viderat
Moyses incombustum, conservatam agnovimus tuam laudabilem
virginitatem
- e esta é a espada, não de dois, mas de três fios, com que o
Rosário degola estas três heresias.
Esta
mesma pureza da Mãe de Deus a isentou da lei da Purificação - que
é o quarto mistério - como também e muito
mais a seu Filho, por ser o supremo legislador, e de nenhum modo
sujeito a ela. Mas esta imunidade de ambos, excetuada claramente na
mesma lei de Moisés, negaram depois todos os hereges que então
havia em Judeia, fariseus, saduceus, desiteus, hemerobatistas,
herodianos,
cumprindo-se neles a profecia de Simeão pregada no mesmo dia e no
mesmo templo: Eccepositus est hic in ruinam, et in
resurrectionem multorum in Israel, et in signum cui contradicetur.
Foi Cristo para Israel a ruína dos que O negaram, e a exaltação
dos que O creram: In ruinam, et in resurrectionem multorum
in Israel. - E para todos os outros foi um alvo de
contradição: In signum cui contradicetur -
porque todos os que erram na fé atiram contra Ele as setas de suas
heresias, e, pelo contrário, todos os que a creem
e professam, como nós no Rosário, contradizendo e refutando essas
mesmas heresias, lhes quebramos as setas.
E
para que isto se veja com maior clareza, sem sair do mesmo Templo,
passemos ao quinto mistério. Achou a Senhora a
Seu Filho depois de perdido, assentado entre os doutores, admirados
eles de tanta sabedoria em tão tenra idade, e das respostas que
dava a todas as questões que lhe propunham. E porque o evangelista
diz que também ouvia e perguntava: Audientem illos, et
interrogantem
- como o ouvir é mais próprio de quem aprende, e o perguntar de
quem duvida ou ignora, daqui tomaram ocasião muitos hereges para
crer e ensinar que em Cristo podia haver ignorância e erro. Assim o
creram antigamente os gnósticos, os temistianos, os agnoítas,
e assim o dogmatizaram em nossos tempos Lutero e Calvino, e o
discípulo destes, e mestre de muitos outros, Beza.
Tão longe esteve, porém, da baixeza de semelhante pensamento
Apolinar; que, sendo também herege, errou tanto por alto, que
negando à alma de Cristo o entendimento humano, pôs em seu lugar
divino. Mas o que ensina a fé católica neste ponto, é que assim
como em Cristo há duas naturezas, assim tem dois entendimentos, um
divino, outro humano. E a ciência deste entendimento humano foi tão
perfeita e consumada, não depois dos doze anos, senão desde o
instante de Sua conceição, que tudo soube com evidência, nenhuma
coisa ignorou, em nenhuma pôde errar. E isto é o que em todos os
mistérios gozosos, desde o primeiro até o último, confessa e
protesta o Rosário.

IV.
Passando aos mistérios dolorosos não só discreta, mas
verdadeiramente disse Tertuliano que a nossa fé sempre está
crucificada entre duas heresias, como Cristo entre dois ladrões.
Porque uns a impugnam de uma parte, e outros da outra, não unidos
na mesma sentença, ou no mesmo erro, senão contrários entre si.
Por isso Santo Ambrósio e Santo Agostinho
compararam os hereges às raposas de Sansão, as quais ele atou, não
pelas cabeças, senão pelas costas, voltadas umas contra as
outras: Caudasque earum junxit ad caudas, et faces ligavit
in médio.
Para queimarem a seara unidos, mas tirando cada um para sua parte, e
essas contrárias.
O primeiro
mistério doloroso, e da Paixão de Cristo, foi o do Horto:
e que dizem os hereges? Uns dizem que não padeceu o Senhor as penas
e aflições que referem os evangelistas, outros dizem que as
padeceu muito maiores e inauditas. Tão conformes contra a fé, como
negarem todos o Evangelho, e tão contrários entre si, quanto vai
de padecer Cristo a não padecer; e não só encontrados no que
dizem, senão também nos fundamentos falsos por que o dizem.
Menandro e Saturnino, e Apeles, disseram que não padecera Cristo,
porque não tomara verdadeiro corpo, senão fantástico;
Serveto, Menon e os anabatistas, porque era de matéria celestial e
divina. Juliana Alicarnasseu, Caiano, Teodoro, e outros,
posto que concedem que a carne de Cristo era como a nossa em tudo o
mais, negam contudo que padecesse ou pudesse padecer; porque era
impassível. Em suma, que todos estes hereges, por tão diversos
caminhos, vêm a concordar em que as penas de Cristo não foram
verdadeiras, por mais que o Evangelho de Isaías esteja
clamando: Vere languores nostros ipse tulit
- e o de S. Lucas afirme que Lhe fizeram suar sangue.
Isto
é o que disseram os hereges que não creram aos evangelistas. E os
que os creram contentaram-se com isso? Não foram eles hereges, se
se acomodaram com a verdade. Foi tão blasfema a língua, e tão
sacrílega a pena do impiíssimo Calvino, que se atreveu a pregar e
a escrever que, desde o Horto até expirar na Cruz, padecera Cristo
as penas do inferno, e que assim fora necessário, como Redentor,
para satisfazer pena por pena e inferno por inferno, a mesma pena e
inferno a que estavam condenados aqueles a quem remia.
O mesmo seguiram Melancton e Brêncio, não entendendo a soberba
ignorantíssima destes blasfemos precitos que bastava a menor gota
de suor de Cristo no mesmo Horto, ainda que não fora de sangue,
para pagar e apagar mil infernos.
Acrescenta
o heresiarca, que destes tormentos se quis livrar o Senhor quando
disse: Si possibile est, transeat a me calix iste
- e Cristo acrescentou: Non mea voluntas, sed tua fiat
- para deixar confutada outra grande heresia. Macário Antioqueno,
Cipro Alexandrino, Sérgio Constantinopolitano, e todos os que pelo
mesmo erro se chamaram monotelitas, posto que reconheciam em Cristo
duas naturezas distintas, não só admitiam nelas mais que uma só
vontade, que era a divina mas, para que cressem e entendessem todas
que assim como as naturezas eram duas, assim eram também duas as
vontades, por isso distinguiu tão claramente o Senhor a vontade
humana da divina, dizendo: - Não se faça a minha vontade,
senão a Vossa. - E toda esta é a fé que confessa, e todas
estas as heresias que degola o Rosário na meditação do primeiro
mistério doloroso.
No segundo -
que é o dos açoites à coluna - padeceu Cristo atado a ela, não
já as dores da própria e interior apreensão, senão as da
violência e crueldade atroz de Seus inimigos. E foi tal o
deslumbramento da heresia, assim neste como nos outros passos da
Paixão, que muitos hereges tiveram para si que a divindade de
Cristo, imortal por natureza, e impassível, fora a que nele morrera
e padecera. Assim o escreveu no século passado tão impudente como
ignorantemente Lutero, ressuscitando as antiquíssimas heresias de
Êutiques, Dióscoro, Sérgio, Pirro e Paulo, e de todos os
eutiquianos, divididos em tantas blasfêmias como seitas.
Não atinava a filosofia cega destes presumidos idiotas, como era
possível que sendo Cristo Deus, e padecendo Cristo, não padecesse
a mesma divindade, pela qual é Deus! Padeceu Deus, e morreu Deus,
são proposições católicas e de fé; logo se Deus morreu e
padeceu, como não morreu nem padeceu a divindade? A verdadeira
teologia o declara facilmente com a que nela se chama comunicação
dos idiomas. Assim como do mesmo homem se diz com verdade que vê e
ouve e com a mesma verdade que entende e ama, e não se segue por
isso que entende e ama pelos sentidos do corpo, nem que vê e ouve
pelas potências da alma, assim de Cristo, que é Deus e homem, se
diz verdadeiramente que padeceu e morreu, mas nem por isso se segue
que padeceu pela divindade, que é imortal e impassível, senão
pela humanidade, que é passível e mortal. E isto é o que professa
o Rosário, e com que facilmente degola essas blasfêmias e
heresias.
Em
Cristo coroado de espinhos - que é o terceiro mistério -
e adorado por escárnio com a injuriosa saudação de Ave
Rex Judaeorum
- três foram as heresias que
então e depois lhe negaram este glorioso e verdadeiro título, até
por Pilatos, que o condenou, confessado. Os primeiros dogmatistas
delas foram os escribas e fariseus, e os príncipes dos sacerdotes
de Jerusalém, quando com as vozes de todo o povo clamaram: Non
habemus regem, nisi Caesarem
- sendo este César Tibério. Os segundos foram os
herodianos, chamados assim porque, tendo cessado o cetro de Judá,
por adularem a Herodes o reconheceram por Messias e adoraram por rei
dos judeus.
Os terceiros, não só da mesma nação, senão também
romanos, foram os que, aplicando as profecias de Cristo ao imperador
Vespasiano, o tiveram e aclamaram por tal, entre os quais seguiram e
celebraram o mesmo erro Cornélio Tácito e Suetônio, e, o que é
mais, Josefo, que então vivia, com ser judeu, cegueira e infâmia
abominável se assim o cria, e maior ainda se o escreveu sem o crer.
Tão vil é a dependência e a lisonja!
Coroado,
pois, de espinhos o supremo Senhor e verdadeiro Rei, não só dos
judeus, mas de todos os homens e anjos - como confessa a nossa fé
no terceiro mistério do Rosário - o quarto, em
que levou a cruz às costas, e o quinto, em que
foi pregado e morto nela, de tal sorte os envolveu, e ajuntou a
heresia, que nem nós referindo-a os podemos separar. Basilides,
antiquíssimo heresiarca, ensinou à sua escola que o crucificado e
morto no Monte Calvário não fora Cristo, senão Simão Cirineu, o
mesmo que lhe ajudou a levar a Cruz. Assim o escrevem Santo Irineu,
Tertuliano, Eusébio Cesariense, Santo Epifânio e Santo Agostinho.
E, pois, tão grandes padres da Igreja julgaram que não ficasse em
silêncio um tão fabuloso fingimento, eu o quero referir pelas
palavras de seu mesmo autor, que tiradas de Santo Epifânio, são
estas: Illum, in eo quod portabat crucem, transformavit in
suam speciem, et seipsum in Simonem, et prp seipso tradidit Simonem,
ut crucifigeretur. Cum autem crucifigeretur, stabat ex opposito
invisibilis Jesus, diridens eos, qui Simonem crucifigebant: ipse
vero discessit ad caelestia.
Quer dizer que, quando Simão levava a cruz às costas, Cristo o
transformara em si, e pusera nele a sua semelhança, e deste modo o
entregara para ser crucificado, e que no mesmo tempo o Senhor, feito
invisível, estava defronte, rindo-se dos que crucificavam a Simão,
cuidando que o crucificavam a ele, e que dali se fora para o céu. -
Tal foi o desatino deste bruto com nome de racional, ao qual imitou
outro da mesma fé e do mesmo juízo, chamado Marcos, e destes se
derivaram os hereges basilidianos e os marcitas. Também negaram a
morte e cruz de Cristo todos os já referidos, que lhe atribuíram
corpo fantástico, ou celestial, ou divino, ou humano, mas
impassível, tendo uns e outros por menos inconveniente admitir em
Cristo este fingimento que a verdadeira morte de cruz, como se não
fora maior indignidade em Deus o enganar que o morrer, pois o
enganar é mentir, e o morrer amar. Nós, porém, confessando no
Rosário, e pregando com S. Paulo: Christum, et hunc
crucifixum
- não só degolamos esta feia e monstruosa heresia, mas a outra
ainda maior que nela se encerra, com que juntamente negavam a
salvação do mundo.

V. Nos mistérios
gloriosos, que são os últimos, também tem muito que fazer
ou desfazer o Rosário. O da Ressurreição de Cristo foi
o primeiro, e os primeiros hereges que o negaram
foram os judeus, os quais, assim como lhe tinham comprado a morte,
lhe quiseram também comprar a ressurreição. Deram dinheiro aos
soldados que guardavam o sepulcro, para que dissessem que, estando
eles dormindo, vieram os discípulos e o roubaram. Tal é a verdade
das testemunhas como a fé dos que as compraram. Ou os soldados
dormiam ou não dormiam: se não dormiam, como o deixaram roubar? E
se dormiam, como viram que o roubaram? Já Davi disse que a maldade
se mentia a si mesma: Mentita est iniquitas sibi
- mas que se minta e se creia, só na obstinação da heresia se
acha. Todos os hereges que negaram a Cristo a morte Lhe negaram
coerentemente a ressurreição, porque quem não morre não
ressuscita. Mas o errar coerentemente, não é emendar o erro, é
multiplicá-lo. Hereges na morte, hereges na ressurreição, e por
isso dobradamente hereges. Até os que concedem a Ressurreição de
Cristo, erram nela torpemente.
Apeles disse que ressuscitara, mas não na mesma carne em que
morrera, se não em outra. Outros, que refere Tertuliano, que
ressuscitara sem corpo; outros que com corpo, mas sem sentidos.
Cerinto, com nova e ridícula distinção, diz que o que morreu não
foi Cristo, senão Jesus, e do mesmo modo o que ressuscitou também
foi Jesus, e não Cristo. E para que não houvesse circunstância de
ressurreição sem sua heresia, os armenos disseram que ressuscitara
ao segundo dia, e não ao terceiro, e os cerintianos, que nem ao
terceiro dia ressuscitara, nem ainda em seu tempo estava
ressuscitado, mas que ressuscitaria depois. Tudo isto disseram as
heresias; e o Rosário que diz? Diz o que dizem as Escrituras, às
quais só no mistério da Ressurreição se refere o Símbolo: Et
ressurrexit tertia die secundum Scripturas.
Diz, pois, o Rosário que ressuscitou ao terceiro dia, e que se
ressuscitou a si mesmo, como Deus que era. E com estas três
cláusulas, em que consiste toda a fé da Ressurreição, assim como
Cristo triunfou da morte e do inferno, triunfa ele de toda esta
farragem de heresias.
No segundo
mistério, que é o da gloriosa Ascensão de Cristo, também
deliraram muito os hereges, e por muitos modos. Alguns, como refere
Santo Agostinho,
disseram que só a alma de Cristo subira ao céu, e o corpo ficara
na terra: donde se segue que nem na terra nem no céu estaria hoje
Cristo. Na terra não, porque Cristo é corpo sem alma; no céu não,
porque não é alma sem corpo. Os maniqueus só admitiam que Cristo
subiu em forma corporal visível, mas até as nuvens somente, e que
ali se resolvera em ar, e se desvanecera.
Erro que depois abraçaram Brêncio e Ilírico, igualmente heréticos
e blasfemos. Os seleucianos e hermianos, partindo a jornada da
Ascensão, fingiram que Cristo subira em corpo e alma até o quarto
céu, e que deixando o corpo no sol, dali se partira para o empíreo.
Assim interpretavam o verso de Davi: In sole posuit
tabernaculum suum
- aos quais seguiu Hermógenes no mesmo fingimento. Porém, Fabro,
com nova fábrica, e depois dele Lutero, Brêncio, Uvigando,
Músculo, Smidelino, e toda a canalha de hereges de nosso tempo,
dizem que nem Cristo subiu nem podia subir ao céu.
O argumento com que o pretendem provar é tão falso e tão herético
como o mesmo assunto. Subir é deixar um lugar mais baixo, e
adquirir outro mais alto: Deus, a quem está unida a humanidade de
Cristo, está em todo lugar; logo, também a mesma humanidade está
em todo lugar, e quem está em todo lugar, não pode subir, porque
não pode deixar um lugar e adquirir outro. Por este argumento se
chamam estes hereges ubiquitários, os quais, cuidando que diziam
uma grande sutileza, disseram duas finíssimas heresias: uma que
supõem, outra que inferem. Supõem que a união da divindade
comunicou à humanidade de Cristo o atributo da imensidade; inferem
que nem subiu nem podia subir ao céu: e estas duas heresias se
degolam, quando menos, com quatro textos expressos. O primeiro de S.
João: Ut transeat ex hoc mundo ad Patrem
- o segundo de S. Lucas: Et ferebatur in caelum
- o terceiro de S. Marcos: Assumptus est in caelum, et sedet
a dextris Dei
- o quarto do mesmo Cristo: Ascendo ad Patrem meum, et
Patrem vestrum.
E isto é o que professa e protesta o Rosário.
O terceiro
mistério glorioso é o da vinda do Espírito Santo,
cujas línguas de fogo sempre queimaram e fizeram raivar os hereges.
Cães raivosos, chama Santo Epifânio aos basilianos e georgianos,
os quais, mordendo como Ário a Santíssima Trindade, quiseram tirar
a divindade ao Espírito Santo, e lhe chamaram criatura: Velut
rabiosi canes impudenter creaturam ipsum penitus decernunt, atque
sic affirmant a Patre et Filio alienum esse.
- O mesmo erro ensinou o impiíssimo Macedônio, e seus sequazes
Eustátio e Lêusio, Maratônio, Aétio, e todos os semiarianos, e
muito antes deles os simonianos e samaritas.
E se perguntarmos a estes e outros semelhantes hereges que é o
Espírito Santo, suposto que dizem que não é Deus, Macedônio
disse que é o primeiro anjo superior no poder e autoridade a todos.
Hierax, de quem tomaram o nome os hereges hieracitas, disse que era
homem, e não outro senão aquele que nas Escrituras se chama
Melquisedec.
Mas esta heresia refutou Macário nos desertos do Egito com um
argumento que não tem resposta.
Foi lá um herege hieracita, muito erudito e eloquente, a pregar
esta falsa doutrina aos monges, e como eles não soubessem
responder, porque não tinham estudado - Eu te responderei - disse
Macário, que era o prelado. Mandou vir um morto em presença de
todos, disse ao cadáver frio que em nome do Espírito Santo
recebesse logo espírito de vida, e que sucedeu? Levantou-se
subitamente vivo, falou o morto, e emudeceu o herege. Mas como não
bastam milagres contra a obstinação herética, ainda vão as
heresias por diante.
Pedro Abailardo disse que o Espírito Santo era a alma do mundo;
Donato disse que era Deus, mas menor que o Filho, como também o
Filho menor que o Padre; e daqui nasceu a herética distinção dos
que ao Espírito Santo chamam Deus magnus, ao Filho Deus major, ao
Padre Deus maximus.
Exlaí, heresiarca e pseudoprofeta, com fábula mais ridícula,
disse que o Verbo e o Espírito Santo,
ambos são filhos do Padre, só com a diferença no sexo.
Finalmente, os mesmos basilianos, que foram os primeiros hereges
contra o Espírito Santo, reconhecendo o seu erro, confessaram que o
Espírito Santo verdadeiramente é Deus igual em tudo ao Padre e ao
Filho, mas que o Padre e o Filho e o Espírito Santo não são três
pessoas distintas, senão uma só. Tal é a cega condição dos
hereges, que ainda quando acertam, não sabem emendar um erro sem
outros. Sendo, porém, tantas e tão várias as heresias que o
Rosário degola na confissão deste só mistério, ainda lhe resta
hoje mais que degolar, porque, depois de estar convencida, pacífica
e adorada em toda a Igreja a divindade do Espírito Santo por mais
de mil e duzentos anos, Serveto e Valentino Gentil, e com eles
Calvino, Beza, Melancton, e os outros hereges desta calamitosa
idade, ou negam a divindade ao Espírito Santo, com que tornam a ser
arianos, ou lha concedem com distinta pessoa e natureza, com que de
novo são trietistas.
Os
mesmos, pois, que assim tratam a divindade do Esposo, como tratarão
a glória da Esposa, que é a que só nos resta no quarto
e quinto mistério? Dos hereges arianos, que negavam a
divindade ao Verbo Eterno, e a concediam só ao Padre, disse
elegantemente Santo Agostinho que cuidavam que não podiam honrar o
Pai senão com afronta do Filho: Non se putant ad unici
Patris gloriam nisi per unici Filii contumeliam pervenire. E nós
podemos dizer dos hereges de nosso tempo que, parece, cuidam que não
podem honrar o Filho senão com afrontas da Mãe, sendo certo que ao
Filho diminuem a divindade, e à Mãe tiram totalmente a glória.
Lutero, Calvino, Melancton, Brêncio, Buccero, Lossio, Sarcério,
Culmano, Schenckio, e os demais - cumprindo-se neles a profecia das
inimizades entre a serpente e a mulher que lhe havia de quebrar a
cabeça - todos, como inimigos jurados da Mãe de Deus, a publicam
blasfemamente por indigna de toda a honra, de todo o culto, de toda
a veneração com que os católicos, muito menos do que suas
prerrogativas merecem, a celebramos. Desde o mistério da Encarnação
até o da Assunção gloriosa - que são todos os do Rosário -
nenhuma ação há da soberana Virgem que não abatam, que não
envileçam, que não mordam, que não roam, e em que não empreguem
furiosamente os dentes venenosos estes filhos da serpente infernal.
Não deixarei de dizer aqui uma só coisa que aprovou e lhe pareceu
exemplar ao irreligiosíssimo Lutero. Em um sermão da Visitação,
diz assim: Maria non sua causa Elisabetham adiit, nec aliam ob
causam, quam ut praegnanti inserviret. Per hoc subruuntur omnia
instituta, et ordines, qui eo tantum intendunt, ut sibi, non etiam
aliis commodi sint:
Maria - que tão simplesmente a nomeia - não foi visitar a Isabel
por amor de si, senão para a servir a ela. E por esta ação ficam
derrocados todos os institutos e ordens monacais que dentro dos
claustros tratam só de si, e não dos outros. Isto, infame
apóstata, isto é o que só louvas? Isto é o que só te agrada
depois que com o hábito despiste a clausura, a religião, a fé, o
juízo, a vergonha? Mas vamos ao ponto.
Proibiu
Lutero todas as festas da Virgem, Senhora Nossa, e
mais particularmente a de sua Assunção.
E por quê? Porque, segundo os fundamentos da que ele chamou
religião reformada, a mesma Mãe de Deus não teve maior santidade
que qualquer outra criatura humana, ainda que fosse tão pouca santa
como o mesmo Lutero. São palavras expressas suas: Tam
nos sancti sumus, atque Maria, si modo in Christum credamus:
Qualquer de nós é tão santo como Maria, contanto que
creiamos em Cristo. Pode haver mais atrevida e mais
descarada blasfêmia? O fundamento desta e das demais, tão
abominável como elas, é dizerem as seitas de Lutero e Calvino que
o céu não se dá por merecimentos, que pelas boas obras não se
adquire graça ou santidade, que só a fé, ainda que faltem todas
as outras virtudes, faz justos, e que os justos no céu todos são
iguais, porque a glória se dá só pelo sangue de Cristo, o qual se
derramou igualmente por todos.
Daqui se seguem duas consequências notáveis contra a Assunção e
Coroação da Virgem, Senhora nossa. A primeira, que a Mãe de Deus
no céu não teria maior glória, nem melhor lugar que qualquer
outro bem-aventurado, porque todos se Lhe igualam. A segunda, que a
mesma Mãe de Deus ainda não está nem pode estar no céu, porque
sem a fé luterana e calvinística - como eles ensinam - ninguém se
pode salvar; e sendo a fé da Virgem Maria a maior de todas, é
certo, e de fé católica, que não teve tal fé como a sua. Mas não
são necessárias consequências para inferir esta heresia, porque o
mesmo Lutero e Calvino dizem expressa e declaradamente que ninguém
até hoje entrou no céu, exceto só a pessoa de Cristo, Senhor
nosso, e que todos os outros estão de fora, esperando pelo dia do
Juízo final, entrando também nesta conta a própria Mãe de
Cristo.
Porém, a mesma Senhora, que sabia isto melhor que Lutero e Calvino,
com a experiência de mil e duzentos anos, quando instituiu o Seu
Rosário, só com introduzir nele os dois mistérios de Sua gloriosa
Assunção e Coroação, igualmente degolou no mesmo Rosário a
temeridade blasfema desta heresia, como a impiedade de todas as
outras: Cunctas haereses sola interemisti in universo mundo.

VI.
Desta maneira refuta e degola as
heresias a parte mental do Rosário, que são os mistérios; e não
com menos eficácia, antes mais declaradamente faz o mesmo a parte
vocal, que são as orações de que é composto.
E, antes que desçamos ao particular de cada uma, digo que as mesmas
orações do Rosário, por si só e geralmente tomadas, são uma
protestação universal da fé católica, com que detestam e
condenam todas as seitas e heresias contrárias. Notai muito a razão
deste dito, que, sendo evidente, não é vulgar. A razão é, porque
toda a religião ou seita diversa se funda em diferente fé, toda a
diferente fé se funda em diferente esperança, e toda a diferente
esperança pede diferente oração, porque cada um pede conforme
espera, e cada um espera conforme crê. Porque ensinou Cristo,
Senhor nosso, a seus discípulos uma tão diversa e tão nova forma
de orar, como é o Padre-nosso? Por isto mesmo. Porque como
instituía uma religião nova e diversa de todas, era necessário
que também a forma de orar fosse nesta religião nova e diversa. É
altíssimo pensamento do doutíssimo Maldonado da nossa companhia o
qual para mim, se não é o intérprete que melhor penetrou nas
Escrituras, não têm elas outro que as interprete melhor: Quisquis
unquam religionem mutavit, et orandi rationem mutavit. Nec ulla fuit
nunquam religio, quae non certam supplicandi Deo rationem haberet:
Ninguém mudou nunca a religião que não mudasse também a oração,
e não houve também religião alguma diversa que não tivesse modo
de orar a Deus também diverso - assim a diz este grande autor. E
depois de o provar com o exemplo de Cristo e de seu precursor na
mudança da lei de Moisés à lei da graça, o confirma com a
autoridade dos santos padres, que assim o advertiram e notaram na
mudança que fizeram todos os heresiarcas nas orações da Igreja
todas as vezes que mudaram a fé. Os arianos, como notou Santo
Atanásio, os valentinianos, como notou Santo Irineu, os
marcionistas, como notou Tertuliano, os maniqueus e donatistas, como
notou Santo Agostinho, e todos, finalmente, como notou Santo
Epifânio, fazendo hoje o mesmo, como é notório, os luteranos e
calvinistas.
De sorte que as orações do Rosário,
só por si mesmas e por serem próprias da Religião Católica, são
uma protestação geral da verdadeira fé, com que também
geralmente se confundem, refutam e degolam todas as seitas e
heresias contrárias.
Agora
desçamos em particular à consideração das mesmas orações, e
vejamos como em todo o Padre-nosso e Ave-Maria, não
há cláusula ou palavra em que se não refute alguma ou muitas
heresias. Farei esta
demonstração mais correndo que discorrendo, pois a brevidade do
tempo não dá lugar a maior detenção.
Pater
noster. Esta palavra com que chamamos a Deus pai, ou se pode
considerar com respeito à geração eterna, ou por ordem à criação
temporal, que por isso acrescentamos nosso. Enquanto à geração
eterna protestamos que o Eterno Padre tem Filho, que é o Verbo
Eterno, e com esta protestação, supondo já degolados os ateístas,
degola o Rosário a Praxeas, a Noeto, a Sabélio, a Paulo
Samosateno, a Fotino, a Ário, e a Eunômio, os quais, ou não
distinguiam a pessoa do Filho da pessoa do Padre, ou negavam que
fosse gerado da mesma natureza divina.
Enquanto à criação temporal, professa a nossa fé e reconhece a
Deus por único criador do céu e da terra e de todas as coisas
visíveis e invisíveis, não produzidas de alguma pressuposta
matéria, mas criadas por Sua onipotência do nada; e com esta
protestação não só degola o Rosário os estóicos, os
platônicos, os pitagóricos, os epicureus, que foram os hereges da
lei da natureza e os patriarcas de todas as heresias, como lhes
chama Tertuliano,
mas também, e mais particularmente, os que depois de Cristo os
imitaram nas mesmas cegueiras e acrescentaram outras maiores, os
simonianos, os menandrianos, os basilidianos, os valentinistas, os
marcionistas, e por vários e novos erros dogmatizaram ao contrário,
e, entre todos, os brutíssimos maniqueus, que com tão ignorante fé
como herética filosofia, dividiram a primeira causa em dois
princípios ou deuses: um, a que chamaram autor do bem, e outro do
mal, dizendo que o bom criara a alma, o mau o corpo; o bom o dia, o
mau a noite; o bom a saúde, o mau a enfermidade; o bom a vida, o
mau a morte.
Qui
es in caelis. Deus tanto está no céu como na terra, e em
todo o lugar; mas dizemos que está no céu porque no céu, como em
Sua própria corte, se manifesta visivelmente a todos os
bem-aventurados. E posto que o céu empíreo seja um só céu,
chama-se, contudo, céus - in caelis - para maior
declaração de Sua grandeza e majestade, assim como Jerusalém, que
era a corte de Deus na terra, se chamava Jerosolimas. E com a
propriedade e significação singular desta palavra, degola nela o
Rosário a heresia de Saturnilo e Basilides, os quais diziam que os
céus eram trezentos e setenta e cinco, criados, não por Deus,
senão por outros tantos anjos, e que no último e ínfimo de todos
morava o Deus dos judeus.
Novo erro, e segunda e maior heresia, porque o Deus que entre os
judeus se chamava Deus de Abraão, Deus de Isac e Deus de Jacó, é
o mesmo Deus que os cristãos cremos e adoramos, então mais
conhecido pela unidade da essência, como hoje pela unidade da
essência e pela Trindade das Pessoas.
Sanctificetur
nomen tuum. Em dizer que seja santificado o nome de Deus,
detestamos a mais atroz e horrenda heresia, com que entre os hereges
setentrionais é profanado e blasfemado Seu santíssimo Nome.
Zuínglio, Calvino e Beza dizem que Deus quer que os homens
pequem, e que ab aeterno decretou que
pequem, e que os obriga a que necessariamente pequem, e que não
possam deixar de pecar, ainda que quisessem. Donde se segue, como
douta e largamente demonstra Belarmino, que na sentença impiíssima
destes mais ateus que hereges, Deus é a causa do pecado e de todos
os pecados, e que quando os homens pecam, Deus é o que mais própria
e mais verdadeiramente peca que os mesmos homens.
E como a santidade e a
puríssima e infinita santidade de Deus é a que mais se opõe ao
pecado, de nenhum modo mais e melhor pode detestar a atrocidade
desta blasfêmia e a maldade mais que diabólica desta heresia, que
dizendo e repetindo, como diz uma e muitas vezes o
Rosário: Sanctificetur
nomen tuum.
Adveniat
regnum tuum. O mais próprio sentido desta petição é
pedirmos que acabe de chegar o reino de Cristo, que será na Sua
segunda vinda, quando vier a julgar vivos e mortos, já todos vivos
pela ressurreição universal. Assim o diz em próprios termos S.
Paulo: Per adventum ipsius, et regnum ejus
- e o mesmo Cristo aos discípulos: Donec videant Filium
hominis venientem in regno suo.
E a protestação deste artigo de fé que fazemos no Rosário degola
duas insignes heresias mais antigas que modernas. A primeira,
que negava o Juízo universal, e foi dos barborianos, gnósticos,
florianos, maniqueus e proclianistas. A segunda,
que negava a ressurreição também universal, que foi de Himeneu e
Fileto, de Valentino e Apeles, de Marco, Cedron e Almarico, dos
caianos, dos ofitas, dos marcionistas, dos severianos, dos
seleucianos, dos arcônticos, e outros.
Fiat
voluntas tua sicut in caelo et in terra. Observa
nestas palavras S. João Crisóstomo que não dizemos a Deus: fazei,
Senhor, a Vossa vontade em nós - ou façamos nós a Vossa vontade,
senão, fiat; seja feita; e com que mistério? Para
confessarmos que o fazer a vontade de Deus não depende só de Deus,
nem só de nós, senão do seu e do nosso concurso juntamente. Do
seu, por meio da Sua graça, do nosso, por meio do nosso alvedrio,
porque, como douta e elegantemente disse S. Bernardo: Tolle
liberum arbitrium, non erit quod salvetur; tolle gratiam, non erit
unde salvetur.
E com esta protestação degolamos de um golpe outras duas
fortíssimas heresias: a dos pelagianos, que negavam a necessidade
da graça, e a dos luteranos e calvinistas, que negam a liberdade do
alvedrio. Em negarem o livre alvedrio, negam totalmente o ser
humano; e assim era necessário que o fizessem em boa consequência,
porque só deixando primeiro de serem homens podiam cair em erros
tão irracionais e tão brutos.
Panem
nostrum quotidianum da nobis hodie. Aqui pedimos a Deus,
como Pai do céu, o sustento temporal e espiritual necessário para
esta vida e para a outra; e na confissão desta paternal e universal
providência, detestamos aquela heresia tão assentada entre os
filósofos gentios, e não abjurada totalmente entre os cristãos,
com que eles criam que havia fortuna e fados, e nós, ainda que o
não creiamos, nos queixamos dela, como se a fortuna, e não Deus,
fora a que reparte o pão, dando tão pouco a uns, e tanto a
outros.
Et
dimitte nobis debita nostra. Nesta grande e importantíssima
cláusula rogamos a Deus que nos perdoe nossos pecados, com
detestação e arrependimento deles. E que homem haverá com nome de
cristão que negue ser este ato, ou dentro ou fora do Sacramento,
louvável e de verdadeira penitência? Mas, sendo esta a que faz
tremer o demônio e a que despoja o inferno, foi tão infernal e
mais que diabólico o espírito de Lutero, que se atreveu a dizer
que semelhante contrição faz ao pecador hipócrita e mais
pecador: Haec contritio facit hypocritam, et magis
peccatorem.
- O mesmo professa toda a escola cega e torpe deste infame mestre,
Melancton, Beza, Tilemana, Kemnício, e com seu colega Calvino, toda
a outra sentina dos hereges de nosso tempo. Acrescentamos, para
mover a misericórdia divina a que nos perdoe, o perdão que também
nós damos a nossos inimigos: Sicut et nos dimittimus
debitoribus nostris - e sendo este o maior ato da
caridade cristã, também a esta heroica obra, como a todas as boas
e de virtude, negam os mesmos hereges o valor e merecimento,
chegando a dizer que todas são injuriosas à satisfação do mesmo
Cristo, que nos ensinou a orar assim, com que eles e todas estas
heresias ficam degoladas.
Et
ne nos inducas in tentationem. Aqui
nos ensinou o mesmo Senhor a desconfiar de nossa fraqueza, e
recorrer a Seu auxílio e graça para não cair em tentação.
Mas, assim como antigamente Pelágio tinha escrito que para resistir
as tentações não era necessária a graça de Deus, e bastavam as
forças do alvedrio humano, e assim como Joviniano disse que o homem
legitimamente batizado não podia ser vencido das tentações do
demônio, assim, e com mais abominável erro, e com furor e
arrojamento verdadeiramente infernal, ensinam os mesmos luteranos e
calvinistas que nem a constância nas virtudes ajuda, nem a fraqueza
e caída nos vícios impede a salvação.
E se pedirmos a razão a estes brutos - como o bruto de Balaão lha
pediu a ele, que também era herege - respondem os libertinos, como
discípulos da mesma escola, que as ações dos homens todas são
indiferentes, e que nelas não há bem nem mal. Mas esta estólida
heresia degola, como as demais, o Rosário, concluindo com a última
cláusula do Padre Nosso: Sed libera nos a malo.

VII.
Passando à oração da Ave Maria, logo nas
primeiras palavras e como na vanguarda, se opõe contra o sagrado
uso e exercício dela um exército de hereges armados de cegueira,
de impiedade, de furor, de blasfêmia. Calvino, Pomerano, Brêncio,
Bucero, Pelicano, Belingero, Marbáquio, Uvigando, e outros, todos
condenam aos católicos o uso da Ave-Maria, dizendo que esta oração
é supersticiosa, porque nela louvamos e engrandecemos tanto a
Senhora, que de criatura a fazemos deusa. As palavras do último que
nomeei são estas: Qui Mariam hac salutatione compellant, in
crimen superstitionis incurrunt, quia contra Dei verbum ex creatura
faciunt deam, et Mariae divinitatem ascribunt.
Só o testemunho desta calúnia, em que se conjuraram tantos, basta
para conhecer quem são os hereges, e a temeridade, a mentira, e a
ignorância brutal de quanto dizem. De maneira que, porque repetimos
o que disse o anjo e o que disse Santa Isabel à Virgem Maria, somos
supersticiosos, e porque pedimos à mesma Senhora que rogue por nós
a Deus a fazemos deusa? Mas porque a futilidade blasfema desta
heresia se degola por si mesma, triunfe sobre ela o Rosário, mais
desprezando-a que convencendo-a, e faça cada católico raivar
tantas vezes cada dia a todos os hereges quantas são as que nele se
repete a mesma Ave-Maria.
Gratia
plena. Saudamos como o anjo a Virgem, Senhora nossa, com o
nome de cheia de graça, excelência tão sublime que, trazendo-Lhe
a embaixada do anjo o título de Mãe de Deus, é maior ainda o nome
da saudação que o título da embaixada. Três
coisas ensina a fé católica acerca da graça. A primeira,
que é um hábito sobrenatural inerente na alma, e não distinto
realmente da caridade, o qual faz ao homem grato a Deus, e por isso
justo e santo. A segunda, que não
consiste a graça na fé, posto que a supõe, e muito menos na
fidúcia ou confiança posta só nos merecimentos de Cristo, o qual
de nenhum modo pode justificar a alma. A terceira,
que só à graça é devida a glória, e que sem graça ninguém,
por mais obras, moral ou materialmente, boas que faça, se pode
salvar. Isto é o que ensina a fé, e o que protesta o Rosário, e
por isso nas duas primeiras protestações degola as heresias dos
luteranos e calvinistas, que são as modernas, e na terceira as dos
pelagianos e celestinos, que são as antigas.
Dominus
tecum. O sentido e energia enfática com que o anjo disse à
Senhora estas palavras, diz Santo Agostinho que foi esta: Dominus
tecum, sed plusquam mecum: O Senhor é convosco, mas muito mais
convosco que comigo. - E por quê? In me enim, licet sit
Dominus, memetipsum creavit Dominus; per te autem genitus est
Dominus: Porque comigo está o Senhor que me criou, e convosco
está o Senhor que vós gerastes. O mesmo dizemos e confessamos nós
quando dizemos na Ave Maria: Dominus tecum - e
quantas vezes repetimos esta confissão, tantas degola o Rosário a
blasfêmia e sacrílega heresia de Nestório, o qual, não podendo
negar a divindade de Cristo, para apartar o Filho da Mãe, e
o Dominus do tecum, que fez?
Confessando o mesmo todo, dividiu as partes e os tempos, e com
invento mais que diabólico veio a dizer que o Senhor nascera da
Virgem Maria homem, que depois por seus merecimentos no batismo
recebera o ser Cristo, e que finalmente pela morte que padecera
alcançara depois da ressurreição o ser Deus. Isto se atreveu a
pronunciar aquela execranda língua, a qual, porém, na vida foi
comida de bichos, e na morte não sofrendo a terra em si tão
abominável cadáver; subitamente se sumiu nela, e foi sepultado no
inferno.
Benedicta
tu in mulieribus. Aqui dizemos que é a Virgem Maria bendita
entre todas as mulheres, não só para declarar a excelência e
dignidade infinita com que excede a todas, mas para confessarmos que
foi mulher. E por que razão em coisa tão manifesta? Porque também
é necessária esta confissão para degolar duas heresias. A
primeira de homens, que foram os coliridianos, os quais diziam que a
Virgem Maria não fora mulher, senão Deus; a segunda de mulheres,
que foram as da Arábia, Trácia e Cítia, as quais, como refere
Santo Epifânio, adoravam a mesma Senhora como deusa, e lhe
ofereciam sacrifício.
Parece que mereciam algum perdão estas heresias, pela devoção e
afeto com que foram inventadas, mas onde
não há verdade não pode haver devoção. Por
isso a do Rosário excede facilmente a todas, porque não só é
solidamente verdadeira, mas destruidora de todos os erros.
Benedictus
fructus ventris tui Jesus. Nestório,
e os hereges geralmente chamados anticomarianitas, ou antimarianos,
que quer dizer inimigos ou contrários de Maria, dizem que morou
Deus em suas entranhas como em casa, ou assistiu nelas como em
templo, no qual, porém, se entra e sai, mas não se recebe dele o
ser.
Outros, como o raio de luz que passa sem lesão pela vidraça, mas
nasce no céu e do sol. Outros, finalmente, como a água do canal,
ou no rio que passa por ele sim, mas tem o seu nascimento na fonte.
E por mais que esta heresia se explique por tantos modos plausíveis
e aparentes, todos eles degola o Rosário, dizendo: Benedictus
fructus ventris tui Jesus. Assim como o fruto nasce da árvore,
e da substância da árvore recebe o ser, assim o Filho de Deus, que
é o rio da fonte, e o raio do sol, e o herdeiro da casa, e o Senhor
igualmente do templo, de tal maneira morou nas entranhas de Maria,
que delas, como verdadeiro fruto, recebeu a substância e o ser, e
delas, como verdadeiro Redentor, recebeu o sangue, que foi preço
infinito da Redenção pela qual se chama Jesus: Et
benedictus fructus ventris tui Jesus.
Sancta
Maria. Implacável é o ódio com que os hereges perseguem,
e as calúnias com que procuram escurecer a santidade da Virgem
Santíssima, arguindo pecado onde nunca houve, nem pode haver, nem a
mais venial sombra dele. Assim o fazem em vão Lutero,
principalmente, e Calvino, e todos seus discípulos, não só ímpios
contra a fé, mas ingratos à mesma Senhora, segundo suas próprias
seitas.
Em certo modo mais obrigação tinham estes hereges de ser devotos
da Virgem, Senhora nossa, que os católicos. Porque a Virgem Maria
foi Mãe de um Filho tão benigno e liberal para com eles - segundo
eles dizem - que, dando-lhe licença para viverem em todos os
vícios, sem mais arrependimento nem penitência, contanto somente
que o creiam, lhes promete o céu. E para conosco, os católicos, é
tão justo e severo juiz o Filho da mesma Senhora, que não bastando
a nossa fé, com ser a verdadeira, para nos salvar; basta um só
pecado sem arrependimento para nos lançar no inferno. Pois, se
tanto devem os hereges ao Filho desta Mãe, por que a perseguem
tanto? Porque conhecem, ainda que o dissimulem, a verdade da
doutrina católica, e como sabem que o Filho da mesma Senhora os há
de condenar sem dúvida, por isso têm tão grande ódio à Mãe.
Estes mesmos, pois, que tão blasfemamente querem pôr mancha na
santidade sempre imaculada da Virgem Maria, são também os que
tornaram a ressuscitar em nossos tempos, e atirar outra vez do
inferno, onde já estava sepultada com ele, a heresia de Nestório,
negando à mesma Senhora a própria e verdadeira maternidade do
Filho de Deus e seu. Mas assim como o Rosário degola aquela
heresia, dizendo: Sancta Maria, assim torna a degolar
esta, acrescentando: Mater Dei.
Ora
pro nobis peccatoribus. Esta tão piedosa deprecação
impugnam também os hereges, e que hereges? Quem esperara tal juízo
de uma cabeça coroada, e da coroa que maior obrigação tem de ser
católica? O imperador Constantino Coprônimo passou um decreto, que
dizia assim: Ne Mariae quidem intercessionem quisquam petat,
neque enim illa juvare quemquam potest:
Ninguém peça a intercessão de Maria, porque ela não pode
ajudar a ninguém. Eis aqui, novo Herodes das almas, para que
Deus te deu esse poder: para que o tirasses a sua Mãe. Não debalde
mereceste na pia o sujo e infame sobrenome de Coprônimo, profanando
as sagradas águas do Batismo em portentoso prognóstico de tuas
impiedades, blasfêmias, heresias e artes mágicas, chegando a
pactuar com os demônios de fazer cruel guerra aos santos. Acabou
a vida este monstro abrasado em fogo de suas próprias entranhas, e
confessando a gritos que vivo estava já entregue aos incêndios
eternos pelo que tinha feito contra a Virgem Maria: Adhuc
vivens inextinguibili igni traditus sum propter Mariam.
E porque seus infames ossos não descansassem em melhor sepultura, o
imperador Micael os mandou desenterrar; e em dia de grandes festas
queimar publicamente.
Assim castiga as injúrias de sua Mãe o mesmo Deus, que tanto sofre
e dissimula as suas. Mas a protérvia e obstinação herética, nem
com a paciência se abranda, nem com o castigo se emenda.
Constantino não teve a quem imitar mais que a Vigilâncio, e teve
depois por imitadores os petrobrosianos, os cátaros, os tabaritos,
e, em nossos tempos, a todos os calvinistas e luteranos, que tantas
e tão nobres partes da Europa têm infeccionado com esta peste.
Merecedores justamente de que vivam e morram nas trevas de sua
cegueira, pois proíbem o recurso à fonte donde nasceu a luz.
Nós,
porém, ó Mãe de Deus, e advogada única dos pecadores,
protestando a verdade desta fé, confirmada com tantos benefícios
de Vossa poderosíssima intercessão, prostrados humildemente a
Vossos santíssimos pés, todos com a voz e com o coração Vos
dizemos: Ora pro nobis peccatoribus. E
acrescentamos: Nunc, et in hora mortis nostrae,
porque não só na vida, mas na morte, e depois dela, reconhecemos
dever à mesma intercessão e amparo Vosso a indulgência das penas
do Purgatório, e a glória eterna do céu. Negaram o purgatório os
hereges aérios, os uvaldenses, os chamados apostólicos, as
uviclefistas, os hussitas, os albigenses, e para que em nada
deixassem de errar, também Lutero e Calvino com todos seus
sequazes; negaram a imortalidade das almas os saduceus, os
psíquicos, os arábicos, os hermanianos, e todo o antigo e bestial
rebanho de Epicuro, e o moderno dos ateus.
Porém nós, que ensinados não só da fé, mas da experiência e da
razão, cremos que as almas são imortais, e que os pecados
cometidos na vida, ou se purgam depois da morte com satisfação
temporal, ou se castigam sem fim com pena eterna. Na mesma cláusula
com que dizemos à Virgem Santíssima: Ora pro nobis
peccatoribus nunc, et in hora mortis nostrae - detestamos e
confundimos estas duas perniciosíssimas heresias, e com a mesma
detestação acaba de degolar o Rosário assim as que pertencem à
parte mental do que medita, como à vocal do que reza.

VIII. Mas,
posto que as heresias referidas e detestadas sejam tantas e tão
várias, como a obrigação do meu assunto é mostrar que a Virgem,
Senhora nossa, por meio do seu Rosário, não só matou muitas,
senão todas: Cunctas haereses sola interemisti, parece
que contra a generalidade desta proposição se estão opondo nesta
mesma Igreja e seus altares três exceções evidentes: a
das cruzes, e das imagens,
e a da real e verdadeira presença de
Cristo no diviníssimo Sacramento. Confesso que os erros
e heresias que encontram estes três
atos da Fé e Religião Católica - que são nos templos da
cristandade os mais públicos -
ainda até agora as não degolou o Rosário, mas é porque ainda o
não consideramos todo.
Primeiramente, quem
viu jamais Rosário sem cruz? Nem há Rosário sem cruz, nem cruz no
Rosário bem rematada sem medalha. Com a cruz degola o
Rosário a heresia dos paulicianos, dos bruissianos, dos
uviclefistas, dos bogomiles, porque estes, como os calvinistas e
protestantes em nossos dias, derrubam, quebram e desterram as
cruzes, as quais nós, pelo contrário, em memória e figura da
sacratíssima Cruz em que Cristo padeceu e nos remiu,
adoramos com suma veneração.
E com as medalhas, ou sejam do mesmo Cristo, ou da Virgem, Senhora
nossa, ou de qualquer outro santo de nossa devoção, degola do
mesmo modo o Rosário a heresia de Carolstádio, de Uviclef, de
Lutero, de Zuínglio, de Calvino, e dos mais, por isso chamados
iconômacos, os quais negam e proíbem o culto e veneração das
sagradas imagens, como dantes o tinham proibido os judeus no Talmud
e os maometanos no Alcorão, que de tais mestres tais discípulos.
Chamam impiamente a este culto idolatria, sendo piedade, religião e
parte da mesma fé, definida pelos Concílios, canonizada com os
templos, altares e votos, usada dos santos padres em todas as
idades, e confirmada com infinitos milagres.
Resta
só a protestação do Santíssimo Sacramento no Rosário, a qual de
indústria reservei para este último lugar, estando no mesmo
Rosário mais expressa que todas: Panem
nostrum quotidianum da nobis hodie.
Pedimos nestas palavras o sustento temporal e espiritual para o
corpo e para a alma, e no espiritual e da alma o primeiro e
principal, e mais substancial de todos, que é o corpo de Cristo, o
qual verdadeiramente comemos no diviníssimo Sacramento. Assim o
declarou o mesmo Cristo na mesma oração do Padre
Nosso, dizendo por S.
Mateus: Panem nostrum
supersubstantialem.
Chama-se pão, porque se nos dá debaixo de espécies e acidentes de
pão. Chama-se nosso, porque é próprio dos fiéis e filhos da
Igreja Católica. Chama-se quotidiano, porque todas os dias se
consagra e oferece no sacrossanto sacrifício da missa. E chama-se,
finalmente, sobre-substancial, porque excede infinitamente a todas
as substâncias criadas, dando-se nele a do mesmo Criador. Isto é o
que confessa e protesta o Rosário expressamente naquelas soberanas
palavras, não se achando tão expressa protestação do Santíssimo
Sacramento em nenhum símbolo da fé. Os símbolos da fé
são três. O dos apóstolos, composto por eles no princípio da
primitiva Igreja, que é o que ordinariamente repetimos; o símbolo
Niceno, decretado dali a trezentos anos no Concílio de Nicéia, em
que se ajuntaram trezentos e dezoito bispos, que é o que se canta
na Missa; e o símbolo de Santo Atanásio, em que se contém a
confissão da sua fé, declarada não muito depois, e aprovada em
Roma, que é o que todos os domingos se lê na reza eclesiástica.
Agora
pergunto, e perguntarão todos com muita razão, se em todos estes
símbolos, e em cada um deles se contém o que crê a Fé Católica,
e o Santíssimo Sacramento do altar é por antonomásia o Mistério
da Fé,
por que se não faz expressa menção dele em algum dos mesmos
símbolos, ao menos no segundo e no terceiro? A razão é, como
consta de todas as histórias eclesiásticas, porque tendo reduzido
os apóstolos o primeiro símbolo ao que era somente preciso para a
pregação universal do mundo, por ocasião de algumas heresias que
de novo se foram levantando na Igreja, foi necessário declarar com
maior distinção e formalidade nos outros símbolos o que só
virtualmente se continha no primeiro. Não houve, porém, esta
necessidade - ponto verdadeiramente digno de grande reparo, e tanta
consolação para os católicos como confusão para os hereges - não
houve, digo, esta necessidade na fé do Santíssimo Sacramento. E
por quê? Porque desde seus princípios esteve tão firmemente crida
e tão estabelecida entre todos os cristãos a verdade deste
altíssimo mistério que em espaço de setecentos anos não houve
quem o pusesse em questão, e nos trezentos e cinquenta anos
seguintes só houve um homem na Igreja grega, e outro na Latina, que
em diversos tempos o duvidaram, até que no ano de mil e cinquenta
do nascimento de Cristo, o impiíssimo Berengário - que comumente
se reputa pelo heresiarca deste erro - se atreveu a querer defender
publicamente que o corpo de Cristo não estava no Sacramento. E,
posto que uma vez caído, outra relapso, e de ambas as vezes
convencido, abjurou Berengário a sua heresia; assim abjurada por
seu próprio inventor, a ressuscitaram no século passado, e a
seguiram Lutero e Calvino, não conformes porém então, senão
divididos em duas seitas. Lutero, mais moderado, confessa que no
Sacramento está o corpo de Cristo, mas diz que juntamente está
pão, e Calvino, totalmente cego e impudente, só diz que está ali
pão, e de nenhum modo o corpo de Cristo.
Estas
são as duas heresias que hoje permanecem entre luteranos e
calvinistas, com igual injúria e dano da cristandade, as quais
finalmente degola o Rosário confessando e protestando com a fé
católica que de pão não há no Sacramento mais que os acidentes,
e o que dantes era a substância dos mesmos acidentes, por milagrosa
e verdadeira transubstanciação, está ali convertida na substância
do corpo de Cristo, que é o que cremos e adoramos naquela Hóstia
consagrada. Assim que o Rosário entendido, meditado, e rezado na
forma em que foi instituído pela Virgem Maria, Senhora nossa, é
uma protestação da fé católica, tão universal juntamente, e tão
particular, que mais expressamente se refutam nele muitas heresias,
e mais extensivamente todas, que em todos os três símbolos da
mesma fé. E desta maneira se verifica
gloriosamente do mesmo Rosário que por meio dele degolou a Virgem
Maria, e ela só, as heresias de todo o mundo: Cunctas
haereses sola interemisti in universo mundo.

IX. Tenho
acabado, fiéis, o meu discurso. E, pois, ele, por haver sido tão
dilatado, não permite larga peroração, eu o resumo
a três palavras. A primeira,
que à vista de tantas e tão enormes heresias, não só alheias da
fé, mas de todo o entendimento e juízo, conheçamos quando
escurece o lume da razão a cegueira dos vícios - que são as
raízes donde todas elas nasceram - e demos infinitas graças a Deus
por em tempos tão contagiosos ter livrado a nossa pátria desta
peste, da qual ela se conservará pura e sem lesão, enquanto a
licença dos mesmos vícios, que tanto crescem, não provocarem o
céu a semelhante castigo.
A segunda, que
não faltemos jamais no santo exercício do Rosário, oferecendo-o a
Deus e a Sua Santíssima Mãe, não só como tributo da nossa
devoção e piedade, mas como protestação da nossa fé, e como um
público sinal e testemunho dela. Quando o Concílio
Antioqueno condenou a heresia de Ário, que tão grande cisma tinha
causado na Igreja, tomaram por empresa os católicos, para se
distinguir dos arianos, trazer ao pescoço as definições do mesmo
Concílio em sinal da sua fé: Tanquam symbolum fidei, ut se
catholicos, et non arianos esse profiterentur - diz,
referindo este antigo exemplo, Maldonado.
O qual acrescenta pia e doutamente que ao mesmo fim devemos
nós trazer em público o Rosário, porque só ele basta para
protestação da fé que professamos: Quemad
modum, si quae vulgo Rosaria vocant, quibus precari sacram Virginem
salemus, laco torquis ad collum geras, ut ostendas te non
haereticum, sed catholicum esse.
A terceira e
última palavra é que estejamos muito
confiados e certos que esta nossa protestação será mais agradável
a Deus, porque nela mostramos que somos Seus, e da Sua parte, e
seguimos a bandeira da Sua fé em tempo que tantos a negam. Por que
foi tão estimada a fé de Tobias? Porque, quando os outros iam
adorar os ídolos de Jeroboão, ele fazia as suas romarias ao Templo
de Jerusalém. Por que prometeu Cristo o paraíso ao ladrão, e lho
deu de contado no mesmo dia? Porque, quando todos O negavam e
blasfemavam, ele O confessou à vista de todos. E, finalmente, por
que é tão louvada e celebrada Marcela, a mulherzinha humilde do
Evangelho? Porque, quando os escribas e fariseus caluniavam a
santidade e divindade do mesmo Senhor, ela levantou a voz em Sua
defensa. Façamos
nós o mesmo com o Rosário na boca, no coração e nas mãos, e com
esta pública protestação da fé católica confundiremos e
degolaremos as heresias passadas e as presentes, assim como ela
degolou e confundiu as presentes e as futuras: Ut
et praesentium procerum calumniam et futurorum confundat
haereticorum perfidiam.
PS.: Grifos
meus, agradeço uma amiga que ajudou-me na revisão deles.
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