Introdução
Ninguém
põe em dúvida a popularidade da devoção ao Coração de Jesus no
século dezenove e nas primeiras décadas do século vinte.
Na
primeira sexta-feira de cada mês, numerosos fiéis assistiam à
Santa Missa e acorriam à Mesa Eucarística. Floresciam as
irmandades. Muitas Congregações de Religiosos entregavam-se a essa
devoção. O Diretório Católico para a Inglaterra e o País de
Gales arrola seis Congregações de homens e dezessete de mulheres
que professam sua fidelidade à devoção, de acordo com o nome que
ostentam, e muitas outras sociedades, especialmente os Jesuítas,
fizeram (e ainda fazem) grandes esforços para difundir a devoção
entre o povo.
Infelizmente,
temos que reportar o pensamento ao entusiasmo do passado, visto que a
devoção arrefeceu sensivelmente nas últimas décadas, até mesmo
entre religiosos pertencentes a Congregações do Sagrado Coração
de Jesus. Efetuou-se, em 1966, uma pesquisa na Grã-Bretanha e
Irlanda. O resultado foi bastante desanimador, pois, os questionários
haviam sido encaminhados unicamente a Congregações de Religiosos,
cuja espiritualidade enfoca esse culto. Oitenta por cento dos que
responderam ao questionário opinavam que a devoção, como era
comumente encarada naquele tempo, carecia de atualização para
conservar sua força espiritual e importância na Igreja. Os outros
vinte por cento achavam-se divididos em grupos iguais. O primeiro
grupo estava totalmente satisfeito com a devoção tradicional e o
segundo julgava que a devoção estava simplesmente ultrapassada.
Não ficando a situação restrita a este país, facilmente podemos
entender porque a Encíclica “Haurietis Acquas”
defende longamente a devoção contra ataques e porque o melhor livro
escrito sobre o assunto, desde a Segunda Guerra Mundial (“O Coração
do Salvador”, por Stierli, Rahner e Gutzwiller) começa por um
capítulo intitulado “Objeções”...
Uma
Invenção do Século XVII?
Eis
uma acusação frequentemente ouvida: Esta devoção não
é verdadeiramente baseada na Escritura e na Tradição; surgiu no
século dezessete e procede exclusivamente das revelações
particulares a Santa Margarida Maria.
Isso é uma grave acusação, pois a vida cristã deve encontrar sua
última inspiração na Escritura e na Tradição. Revelações
feitas a um Santo não são, por si, base suficiente para solidificar
uma devoção. Considerando o assunto de capital importância,
estudemos as raízes que esta devoção encontra na Escritura e na
Tradição.
Breve
Histórico
“A
devoção para com o Sagrado Coração de Jesus tem o seu gérmen na
origem da humanidade.
Foi
no Paraíso, depois da queda primitiva de Adão e Eva, que o Filho de
Deus recebeu, pela primeira vez, o justo tributo da veneração e de
amor.
Apresentado
e prometido por Deus mesmo ao gênero humano, como Redentor,
suspiravam por Ele incessante e ardentemente todas as nações. Com
seu Nascimento, exultaram de alegria os descendentes de Adão, por
virem realizados os seus votos. Desde esta data gloriosa surgiu e
foi-se desenvolvendo, rapidamente, a devoção para com o Divino
Coração.
O
Fundador do Cristianismo ainda não havia instituído os Santos
Sacramentos, nem lançado os alicerces inabaláveis destinados a
sustentar o edifício grandioso da Igreja Católica, e já se
venerava e adorava o seu Sagrado Coração. Já naquele tempo, era
este o objeto do amor entranhado da Virgem Mãe de Deus e de São
José.
Anjos
do Céu aparecem cá na terra convidando os homens a renderem ao
Salvador recém-nascido as suas homenagens. Aos coros angélicos se
unem os bons pastores, os três Reis Magos do Oriente, porfiando em
testemunhar os sentimentos de fé e confiança, de gratidão e
respeito, de submissão e amor ao Sagrado Coração de Jesus. Ao
contemplá-Lo, todos ficaram cativos e extasiados.
E,
com efeito, o que há de mais nobre e sublime, se acha concentrado no
Amantíssimo Coração de Jesus, como na sua fonte original. O seu
amor transcende todos os afetos, por mais puros que sejam. Símbolo
tocante, imagem perfeita e personificação do amor infinito de Deus
para com os homens é o seu Sagrado Coração.
Nele
habita a plenitude da Divindade, estão encerrados todos os tesouros
da ciência e sabedoria e o Pai Eterno pôs Nele todas as suas
complacências, é portanto, digníssimo de louvor, veneração e
adoração.
No
reino glorioso do Céu, não há um só Santo, que não houvesse sido
devoto do Sagrado Coração”.
O
Novo Testamento: Torrentes de Água Viva
“Desde
os primórdios do Cristianismo, o Coração transpassado de Cristo
foi contemplado como um símbolo de Sua personalidade íntima,
principalmente, de Seu amor. Essa Tradição origina-se,
preponderantemente, de duas passagens do Evangelho de São João, a
saber 7, 37-39; 19, 31-37.
No
capítulo sete, São João nos relata os acontecimentos da Festa dos
Tabernáculos. Era um dia de ação de graças pela safra. Num país
semelhante à Palestina, com suas imensas regiões semi-áridas, isso
resultava num agradecimento pela chuva. Nesse dia, as cerimônias no
Templo lembravam aos judeus um acontecimento semelhante e
particularmente extraordinário, a saber, a intervenção de Deus no
deserto do Sinai, quando outorgou a Moisés o poder de produzir água,
ferindo a rocha,
e destarte salvou seu povo que estava morrendo de sede.
Nosso
Senhor observava as cerimônias e subitamente disse à multidão que
tudo isso realizar-se-ia n'Ele mesmo: 'Se alguém tiver sede,
venha a Mim, e beba o que crê em Mim!'
Pois, a Escritura afirmou isto de Mim: 'Correrão do seu
seio rios de água viva'.
E, se alguém não entendesse que essa água é o Espírito Santo,
São João acrescenta: 'Referia-se ao Espírito que
haviam de receber os que acreditassem n'Ele'.
Em
outras palavras, o Espírito de Deus brotará do Coração de Cristo
como água viva, de uma fonte. Como a água traz nova vida à terra
ressequida, salvando a colheita e o povo que dela depende, assim
Jesus, o novo Moisés, trará salvação para Seu povo. Durante as
cerimônias desse dia de ação de graças, os sacerdotes cantavam as
palavras de Isaías: 'Com alegria haurireis a água nas
fontes da salvação'.
Aqui, no meio deles, estava quem fora esperado, há tantos anos, quem
traria salvação por Sua Morte e Ressurreição.
Do
Lado Aberto
Há
uma íntima relação entre o texto citado e a cena descrita
por São João no capítulo dezenove. Lá vemos o Coração de Jesus
transpassado, saindo Sangue e Água de Seu lado. Lemos: 'Um
soldado lhe transpassou o lado com a lança, e, no mesmo instante,
saiu Sangue e Água. Aquele que viu dá testemunho e seu testemunho é
verdadeiro. E ele sabe que diz a verdade, a fim de que também vós
acrediteis. Pois, tudo isso sucedeu para que se cumprisse a
Escritura: 'Nenhum osso lhe será quebrado'. E a Escritura diz
também: 'Contemplarão aquele que transpassaram'.
Notemos como São João nos afirma ter presenciado tudo isso com seus
próprios olhos. Não apenas para ressaltar que Cristo morreu
realmente. A Bíblia de Jerusalém observa: 'A
importância do acontecimento é destacada por dois textos da
Escritura. O Sangue mostra que o Cordeiro foi verdadeiramente imolado
para a salvação do mundo; a Água, símbolo do
Espírito, mostra que o Sacrifício é rico manancial de graças'.
E assim, o Prefácio da Missa do Sagrado Coração possui verdadeira
inspiração bíblica quando anuncia: 'Torrentes de amor
e graças brotaram do lado aberto'.
A
Tradição
Os
Primeiros Séculos: Nas
obras de Santo Irineu, Bispo de Lyon, morto em 202, encontramos a
referência mais antiga ao mistério do Coração de Cristo. Era ele
discípulo de São Policarpo de Esmirna, o qual, por sua vez,
conhecera pessoalmente a São João. Ele escreveu: 'A
Igreja é o manancial de água-viva que
mana do Coração de Cristo para nós. Onde estiver a Igreja, aí
estará também o Espírito de Deus, e onde estiver o Espírito de
Deus, aí estará a Igreja e toda a graça. Mas o Espírito é
verdade. Portanto, quem não participar deste Espírito não é
alimentado no seio da Mãe Igreja e não pode beber da fonte
cristalina que emana do Corpo de Cristo'.
Alguns
dos antigos Padres desenvolveram mais amplamente essa ideia. A
água-viva torna-se o símbolo de todos os dons que de Cristo vem até
nós: os Sacramentos, e até mesmo a Igreja.
A
Idade Média:
A Idade Média acrescenta um elemento muito pessoal e subjetivo à
doutrina. As ideias dos Teólogos moveram os Místicos medievais a
uma veneração pessoal do Coração de
Cristo. Descobriram, no lado aberto, o coração do esposo ferido com
amor; e as dádivas que fluem deste Coração eram consideradas
dádivas do amor pessoal de Cristo. Grandes místicos e Santos, como
Bernardo e Boaventura, Gertrudes e Matilde,
Alberto Magno, Suso, Catarina de Sena, e, mais tarde, os Cartuxos,
praticaram essa devoção com grande fervor e entusiasmo.
Pelo
fim da Idade Média, a contemplação do Coração alanceado de
Cristo começou a difundir-se entre o povo mais simples. Tudo corria
maravilhosamente. É digno de nota que a Companhia de Jesus, então
recentemente fundada, foi fortalecida por uma devoção sempre maior
ao Coração de Cristo. Foi isso bastante providencial, pois,
preparou o terreno e favoreceu a missão de Santa Margarida Maria”.
“A
devoção ao Sagrado Coração de Jesus Cristo não era inteiramente
desconhecida, quando Nosso Senhor a revelou à Santa Margarida Maria
Alacoque.
No
século XIII, Santa Gertrudes e Santa Matilde a haviam praticado com
grande fervor, após terem recebido a respeito revelações sensíveis
de Nosso Senhor, e mencionaram-na nos seus escritos. Nos séculos
seguintes Jesus Cristo favoreceu ainda diversos Santos com a visão
de Seu divino Coração, os quais praticaram também esta devoção,
relatando às vezes nas suas obras as graças que haviam recebido.
São
Francisco de Sales, que fundou em 1610, com Santa Joana de Chantal, a
Ordem da Visitação de Santa Maria, tinha uma ardente devoção ao
Sagrado Coração de Jesus, do qual fala diversas vezes em seus
escritos.
O
Bispo de Coûtance, na Normandia, dedicou em 1688 a igreja de seu
Seminário aos Corações de Jesus e de Maria; o Padre J. de
Galliffet relata a respeito o seguinte, no seu notável livro
'L'excellence de la dévotion au Coeur adorable de Jésus-Christ':
'Nela
foi celebrada separadamente, com grande solenidade, a Festa destes
Sagrados Corações, com Oitava e Ofícios próprios: e nela foi
estabelecida, com o título dos Corações de Jesus e de Maria, uma
Confraria que o Papa Clemente X já permitira erigir com uma Bula de
indulgências, datada de 4 de outubro de 1674 e que só foi publicada
em 1688'.
São
João Eudes pediu e obteve em 1674, por seis Breves do mesmo Papa
Clemente X, a autorização de celebrar separadamente a Festa dos
Sagrados Corações de Jesus e de Maria, para as igrejas de sua
Congregação, 'com permissão de erigir nelas Confrarias com o
título dos Sagrados Corações de Jesus e Maria'.
A
Ordem de São Bento, na França, começava também a celebrar naquela
época essa mesma Devoção, com Missas e Ofícios próprios, e o
mesmo faziam os Irmãos Menores da Grande Província de França, com
um Ofício particular.
Desde
várias décadas, muitos Arcebispos e Bispos vinham concedendo
aprovações pastorais relativas à Devoção, ao Ofício e à Festa
dos Sagrados Corações de Jesus e de Maria, todos eles confirmados
por um legado 'a latere', e mesmo pela Santa Sé Apostólica.
Constata-se
pois, que as revelações de Nosso Senhor a Santa Margarida Maria,
para a instituição da Devoção ao Sagrado Coração, foram feitas
numa época em que os católicos começavam a aspirar por esta
devoção”.
Devoção
Franciscana
Entre
os franciscanos, como em toda a Igreja, o culto ao Coração de Jesus
teve duas origens: alguns chegaram a ele através da meditação
privada da Paixão; outros, através da revelação bíblica ou
particular.
No
século XII, os teólogos transmitiram a tradição da Teologia do
Coração de Jesus. Nos séculos seguintes (XIII e XIV), essa planta
cresceu e tornou-se uma árvore. Esse desenvolvimento foi preparado
por uma grande devoção à Paixão de Cristo, por um amor especial
ao apóstolo João e por um grande número de comentários sobre o
Cântico dos Cânticos. Os grandes responsáveis por isso foram os
franciscanos, as religiosas de Helfta e os dominicanos. Vamos nos
ocupar agora com os franciscanos.
A
Ordem Seráfica contribuiu muito para a preparação e propagação
do atual culto ao Coração de Cristo. Isso aconteceu no longo
período de transição da idade patrística até as ‘revelações’
de Margarida Maria, com afirmações de ordem doutrinal, ascética e
devocional, que se inserem particularmente no apogeu da devoção
mística medieval (1250-1350) e constituem, para a própria ordem, a
base das sucessivas manifestações e práticas de piedade. Dois
fatos suscitaram e favoreceram essa contribuição: a espiritualidade
e devoção de são Francisco à humanidade de Cristo,
particularmente aos mistérios da Paixão, e a renovação desses
mistérios na própria vida do Patriarca estigmatizado – dois fatos
novos e inspiradores que mantiveram a atenção dos franciscanos
voltada para o Redentor e para são Francisco.
A
representação característica de são Francisco abraçado pelo
crucificado e querendo beijar-lhe a chaga do lado (pintura de Murilo)
encontrou, assim, uma feliz correspondência na apaixonada
contemplação franciscana dos sofrimentos e das cinco chagas de
Cristo, especialmente da chaga do lado. Dessa contemplação,
aconteceu uma passagem, fácil e natural, ao próprio Coração de
Cristo, em si mesmo e como símbolo do amor e fonte de toda a graça.
Podemos dizer que uma devoção explícita ao Coração de Jesus
nasceu no ambiente de espiritualidade cristocêntrica e de misticismo
criado em torno às ordens beneditina e franciscana.
O
franciscano São Boaventura, no seu Itinerarium Mentis in Deum, guia
do coração do peregrino em seu itinerário em busca de Deus, afirma
que o único caminho para o Pai é um grande amor ao Senhor
crucificado. Esse amor deve levar a uma verdadeira comunhão de
corações, com Cristo e os irmãos. E no seu livro Vitis Mystica,
encontramos um primeiro aceno explícito à devoção ao Coração de
Jesus: “O Coração de nosso Senhor foi transpassado por uma lança
para que através da ferida visível possamos ver a ferida invisível
do seu amor”. São Boaventura pode ser considerado um dos primeiros
devotos do Coração de Jesus.
Muito
cedo, os frades menores fizeram do Coração de Cristo objeto de
meditação e pregação, de estudo e ilustração
ascético-doutrinal, de invocação e culto, chegando a ver no
Coração de Cristo a síntese e a verdadeira meta de toda a sua
espiritualidade ligada ao divino Redentor. Com Boaventura, a
verdadeira devoção, a espiritualidade e o culto do Coração de
Jesus começam a tomar forma concreta na Ordem Seráfica. Ele já
falava de um duplo objeto do culto ao Coração de Jesus: o Coração
físico e o simbólico. Tratou ainda da finalidade do culto e das
práticas devocionais. Afirmou que o objeto desse culto é o infinito
amor, a infinita ternura do Coração de Cristo. Que o Coração de
Jesus é o símbolo de seu grande amor pela humanidade. É um amor
pleno, total e permanentemente novo. Disse também que o nosso amor
por Cristo também precisa ser assim, porque a finalidade da devoção
ao Coração de Cristo é exatamente a resposta de amor a esse amor
do Senhor.
Constata-se
assim, as Revelações do Divino Espírito Santo:
“Sou
Eu que te falei pelos Profetas,
e
multipliquei-lhes as visões;
e
por meio dos mesmos Profetas
Me
descobri (a vós) sob diferentes figuras.
Acaso
poderei Eu ocultar a Abraão
o
que estou para fazer...
O
Senhor Deus não faz nada sem
ter
revelado antes o Seu segredo
aos
Profetas Seus Servos;
porque
(é Ele) quem anuncia
a
Sua Palavra ao homem,
(e)
o Seu Nome é: Senhor Deus dos Exércitos”.
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