P.
João Pinamonti, S. J.
A
Cruz Aliviada
Motivos
de Consolação
nos
Trabalhos
Terceira edição portuguesa
revista
por Acácio Casimiro, S. J.
PORTO
LIVRARIA APOSTOLADO DA
IMPRENSA
Rua de Cedofeita, 628.
1939
IMPRIMI
POTEST.
Vimarani, 13 mail 1939.
Paulus
Durão, S. J.
Praep. Prov. Lusit.
Pode imprimir-se.
Porto, 16 – V – 1939.
A.
J. Pereira.
Prólogo
“Date
siceram moerentibus et vinum his qui amaro sunt animo – Dai
um licor forte aos aflitos e vinho aos que têem o coração
amargurado” (Prov. 30, 6).
Consolar
ao próximo em suas tribulações, é ordem que o Senhor nos intima a
todos e cuja inobservância tem Salomão por uma das maiores misérias
desta vida mortal. Vi
as lágrimas dos inocentes e nenhum consolador.
Esta consideração inspirou-me a ideia de escrever o presente
livrinho, para expor nele os motivos mais eficazes que nos animem a
padecer. Procurei ser breve o mais que pude, com o fim de mais
facilmente se ler e passar de mão em mão. Assim como também reduzi
a pouco e como que condensei, os principais motivos que a Fé nos
ensina para as tribulações; deste modo, à maneira de água
abundante recolhida em canal estreito, terão esses motivos mais
força em nossa alma.
Para estarem mais à mão, vão
distribuídos pelos dias da semana; e a oração, ao fim de cada um
deles, é para implorar e obter os mais eficazes auxílios da divina
graça, pois o sofrimento é aquilo a que mais repugnância sente a
natureza.
Debaixo
deste nome genérico de padecer,
foi intenção minha incluir tudo o que se opõe às inclinações da
mesma natureza; quer nos venha imediatamente de Deus, como as securas
do espírito, as faltas de luzes na oração, as desolações; quer
imediatamente do Demônio, como as sugestões para o mal, as
angústias, os temores; quer dos nossos próximos, como são as
murmurações, as calúnias, as perseguições.
Numa
palavra, padecer
diz tudo aquilo que ou mortifica o corpo, como a inconstância dos
climas, a pobreza, o cansaço, as doenças; ou aflige o espírito,
como os escrúpulos, os cuidados, as melancolias. Tudo isto
compreenderei neste nome genérico; e ao passo que as pessoas
espirituais verão nele principalmente o que atribula a alma, as mais
imperfeitas verão principalmente o que contraria os sentidos.
Só
falta que os que me lerem, não passem superficialmente a vista por
estas verdades, senão que as meditem com seriedade e constância. Se
pois vos aproveitardes destas considerações na devida forma, espero
que chegareis a levar o sofrimento não só com paciência, mas até
mesmo com alegria; e que, longe de fugir da cruz, a ireis buscar,
como quem vê no padecer a coisa mais preciosa desta vida.
“Bem-aventurados
os que choram”,
diz Cristo Senhor Nosso.
A
bem-aventurança da vida imortal está em gozar de Deus; a
bem-aventurança desta vida perecedoura está em sofrer por Deus.
1ª Meditação
Domingo
A Necessidade do Sofrimento
Serve de Alívio na
Tribulação
________________
1 – Devemos sofrer,
porque somos homens.
Considera
a necessidade imprescindível do sofrimento, pelo mero fato de seres
homem. Para
que outro fim vieste ao mundo, senão para sofrer?
O homem nasce para o trabalho, como a ave para voar.
Todas
as outras coisas te são acessórias; só o sofrimento te é como
essencial e inevitável. Apenas nasceste à luz do dia, começaram
logo a chover sobre ti males sem conta, à maneira de flor que nasce,
como diz Jó, e é pisada;
e estes males hão de te ir seguindo e molestando enquanto a vida te
durar.
O
mesmo Santo Jó, que nesta ciência do sofrimento, assim teórica
como prática, ocupa um lugar muito avantajado, pinta-nos o homem
cheio de contínuas misérias, sem que aquelas de que se vê livre
por um lado, impeçam que entrem muitas mais por outro: Vivendo
pouco tempo, está cheio de muitas misérias.
E a palavra que exprime esta ideia (Repletur),
merece bem ser considerada; porque não diz que se enche uma só vez
à maneira de cisterna, senão que se está enchendo sempre como poço
inesgotável, que quanto mais água dele se tira, tanto mais recebe
da sua fonte perene.
Tu
bem queres lisonjear-te com a esperança de que chegarás por fim a
secar essa fonte de misérias, fugindo aos trabalhos; mas não cais
na conta de que fugir a um trabalho leve é cair noutro mais pesado.
É como quem foge da vista do leão, o qual ainda que terrível a
quem lhe faz frente, é manso com aquele que se humilha, para se ir
meter nas garras do urso, o qual se enfurecerá logo em te avistando,
e fartará em ti a sua raiva, por mais que te lances rendido em terra
diante dele.
E
como pode ser de outro modo, se temos continuamente a guerra de
portas a dentro? Desapareçam muito embora as doenças, não nos
incomodem as inclemências do Céu, deixem as criaturas de nos
perseguir, sempre há de ser inevitável dentro de nós, em guerra
acesa,
a sedição e o tumulto das nossas paixões desordenadas.
Uma tal criatura, rodeada e cheia de tantas misérias, amassada, para
assim dizer, com suas próprias lágrimas, não há de envergonhar-se
de romper em ira contra os trabalhos e sacudir o pesado jugo que a
natureza nos impôs a todos os filhos de Adão?
Se
és filho de Adão, não tens direito de recusar pena alguma; porque
todas são devidas aos filhos de um pai rebelde. Deves confundir-te,
por teres andado até agora com as tuas impaciências tão afastado
do caminho direito, e confessar a tua incrível necedade em antes
quereres ser arrastado do que levado por uma senda que todos
forçosamente têm
que
andar.
Pede
perdão humildemente ao Senhor e suplica-lhe que te dê força de
ânimo, para levar as tribulações; e que, depois de um curto
inverno de trabalhos momentâneos, amanheça para ti a eterna
primavera de consolações imortais: Passou
o inverno, cessou e acabou-se o tempo das chuvas; as flores
apareceram na nossa terra.
2
– Devemos sofrer, porque
somos desterrados.
Outro
motivo que nos obriga a sofrer, é o desterro em que vivemos. Não
chamaste tu mesmo muitas vezes um vale de lágrimas a esta miserável
terra? Pois como te há de parecer coisa estranha ter de chorar,
enquanto nela estás? Com lágrimas anunciaste a tua vinda a este
mundo; lágrimas há de ser a tua principal ocupação. Tempus
flendi:
“Tempo de chorar”.
Quanto
menos chorares, mais deplorável te há de ser esta vida. Para que a
terra não estivesse semeada de espinhos, deveria o nosso primeiro
pai Adão ter permanecido fiel a Deus, atendendo assim ao seu próprio
bem como
ao nosso. Então, nesse estado de inocência voaríamos num instante
do Paraíso terreal ao Paraíso da glória; agora, já não é
possível. Porque te enfadas, pois, tanto com os trabalhos? Porque te
afliges tanto? Sai do mar, se não queres sentir o amargor das suas
águas; sai
desta vida, se não queres padecer.
Já
que um tal remédio não está na tua mão, faze da necessidade
virtude; e em vez de te lamentares, dá
graças ao Senhor por ter coberto o teu desterro de tantos males que
te vejas forçado a suspirar de contínuo pela tua verdadeira pátria.
Se assim não fosse, se o teu coração achasse neste mundo a plena
satisfação dos seus desejos, como planta que não se pode mover da
terra onde tem todo o seu bem, nunca se elevaria a Deus nas asas dos
seus afetos. Feliz de ti, se destas máximas fizeres a regra da tua
vida! Serás verdadeiramente sábio aos olhos de Deus.
Confunde-te,
pois, por teres andado tão longe desta doutrina, que mais parece
haveres posto na terra o centro da tua felicidade, e chamado ao
triste lugar da tua prisão o real palácio da tua vida. Pede perdão
a Nosso Senhor; e roga-lhe humildemente te dê graça abundante, para
saberes viver entre os falsos bens e os verdadeiros males do mundo,
de tal maneira que chegues por fim ao eterno descanso do Céu:
Passamos
pelo fogo e pela água; mas enfim,
levaste-nos a um lugar de refrigério.
3 – Devemos sofrer,
porque somos cristãos.
Considera quanto cresce esta
necessidade de sofrer, à vista da profissão que fazemos de
cristãos. Ainda supondo que todos os homens, menos tu, vivessem em
perpétuas delícias, esse estado de vida deveria ser tido em horror,
por todo cristão que quisesse ser o que significa um tal nome,
consagrado com o Sangue de inumeráveis Mártires e com o que
derramou na Cruz o Nosso Divino Redentor.
Este
santíssimo nome obriga-te seriamente, senão a ir em busca dos
padecimentos, pelo menos a receber com submissão todos os que a
Divina Providência te enviar, e além disso, a estares preparado
para sofrer tudo o que pretender desviar-te da observância dos
Mandamentos Divinos. Esta é a promessa a que te obrigaste no
Batismo; esta é a condição que o Evangelho exige, para entrar na
Escola do Salvador: Se
alguém quer vir após Mim, negue-se a si mesmo e tome a sua cruz
cada dia.
Ninguém
te força, pois a todos se diz: Se
alguém quer.
Mas, para seguires a Cristo, Sumo e Único Bem, apresenta-se-te, como
condição necessária, indispensável, que tomes a cruz e a ponhas
de bom grado sobre os teus ombros. E não há de ser de quando em
quando, nem somente no tempo da prosperidade e consolação, senão
sempre em todas as circunstâncias, de luz ou de trevas, de secura ou
devoção: “Tome
a sua cruz cada dia”.
Assim
pois, tu que tanto desejas achar a causa destes padecimentos,
lembra-te que és cristão e logo darás com ela. Não
vos admireis,
diz
o Apóstolo, nem
muito menos desanimeis
com as contrariedades que experimentais.
Se
somos cristãos, havemos de ser provados e exercitados seguindo as
pisadas do Nosso Divino Redentor; e se o Batismo nos faz cristãos de
nome, o padecer faz-nos cristãos de obras e na realidade: In
hoc positi sumus.
Certamente,
se tivéssemos bem fundo no coração o espírito de Jesus Cristo,
parecer-nos-ia até coisa monstruosa fugir da cruz. Não sabemos que
a primeira lição dada ao homem por Nosso Divino Mestre, foi, que
“são
bem-aventurados os que sofrem, bem-aventurados os que choram?”
E, pelo contrário, que “são
infelizes, desventurados, os que tem na terra a sua consolação?”
E não é fazer guerra à doutrina de Cristo com as obras, quando um
cristão foge da cruz a cada hora?
Envergonha-te,
pois, de também teres sido do número dos inimigos que perseguem a
Cruz do Redentor, do número desses homens que o Santo Apóstolo
tanto deplora e tão afastados andam do caminho da salvação:
Inimigos
da Cruz de Cristo que vão a dar na perdição.
Faze
propósito de receber de hoje em diante a tribulação com bom rosto,
exclamando com Santo Inácio Mártir ao vê-la chegar: Agora
que começo a sofrer, começo a ser discípulo de Cristo.
Pede, finalmente, ao Senhor, que se compadeça das tuas misérias
passadas e te dê força, com a Sua Divina Graça, para que todos
estes motivos de sofrimento te sejam outros tantos estímulos, que te
façam abraçar a cruz mais de coração e perseverar nela até a
morte.
Oração
a Jesus atribulado no Horto,
para alcançar a Paciência
Amorosíssimo Redentor,
Caminho, Verdade e Vida desta Vossa pobre criatura. Vede, Senhor,
como de contínuo estou a dar provas de que sou filho de Adão; pois,
sendo desterrado e peregrino, só penso em levantar um palácio de
delícias neste vale de lágrimas. Aqui desejo ter em sossego, todos
os meus dias; aqui procuro achar remédio a todos os meus males; e
não me envergonho de mim mesmo quando, esquecido de que sou
discípulo de um Deus crucificado, deixo para Vós todos os trabalhos
e quero para mim todos os prazeres.
Ah Senhor! Que pouco me pareço
Convosco que, não contente com o Sangue, que dentro em pouco Vos
haviam de tirar das Vossas Sacratíssimas veias os algozes, quisestes
no Horto fazer do Vosso amor um desapiedado verdugo, que Vos
dilacerasse o coração e se antecipasse a derramar esse mesmo Sangue
em tanta abundância, que chegasse a ficar banhada a terra! Parece
que andamos à porfia, Senhor, Vós em me dar exemplos cada vez
maiores de paciência, e eu em fugir cada vez mais de Vos imitar.
Ó
glória do Paraíso! Ó riqueza do Céu e da terra, meu Salvador e
meu Deus! Até quando há de durar esta oposição entre a Vossa vida
e a minha! Oh! Acabe já por uma vez e seja este o último dia!
Trocai a delicadeza deste meu coração num grande desejo de sofrer
por Vosso amor; livrai-me deste amor desordenado que tenho a mim
mesmo, para amar mais puramente a Vós só. Basta o tempo que tenho
malbaratado com o prazer dos meus sentidos; fazei que de hoje por
diante, me aproveite daquele Sangue Divino, tão prodigamente
derramado, para dar novos alentos à minha força; e, juntamente, com
isso, fazei também, que todos os Santos Vos deem,
por Ele,
glória eterna no Céu.
Grandes são, na verdade, as
coisas que Vos peço; mas peço-as àquele Senhor que por mim fez
coisas infinitamente maiores; e assim espero que não me será negado
o que para mim ganhastes com tantos trabalhos. A minha vontade,
Senhor, é entregar-me todo em Vossas Divinas Mãos; e quero agora,
mais que nunca, ter por felicidade grande estes sofrimentos, que me
abrem o caminho para Vos imitar, e me ensinam a amar-Vos sobre todas
as coisas, hoje e sempre. Amém.
2ª Meditação
Segunda-feira
A Utilidade do Sofrimento
serve de Alívio na
Tribulação.
___________
I – O Sofrimento purifica
a alma.
A tribulação é nas mãos de
Deus o instrumento mais poderoso para lavrar as almas escolhidas,
conseguindo facilmente por meio dela aquilo a que, por fim, se reduz
todo o nosso aproveitamento; isto é, purifica-nos, ilumina-nos e
aperfeiçoa-nos.
Em primeiro lugar, limpa-nos
não só dos pecados, como depois veremos, senão também de toda a
sorte de imperfeições. Que seria do ouro, se não fosse o crisol?
Quão pouco se diferenciaria da terra! Que seria das almas virtuosas
a quem a tribulação não visitasse? Ficariam sempre cheias de
imperfeições e não passariam nunca de uma virtude vulgar.
Como
morreria nelas o amor-próprio que tanta guerra lhes faz sempre, que
infecciona com o seu veneno até as obras mais santas, que tão sutil
se mostra para buscar o seu
próprio interesse, ainda naquelas ações em que às vezes parece
buscar-se unicamente a glória de Deus?
As
consolações espirituais apartam-nos, é verdade, da terra; mas
nunca nos apartam totalmente de nós mesmos; antes são a causa de
procurarmos com mais avidez a nossa própria satisfação, crendo que
assim o podemos fazer sem o menor mal e sem remorso nenhum. O
sofrimento, pois, é muitas
vezes o remédio mais eficaz, e ainda o único, para nos curar de tão
grande enfermidade. Se ele não fosse, as nossas paixões na vida
espiritual não mudariam de natureza, senão de objeto; e, em vez de
morrerem, desprender-se-iam do que tinham de mais tosco e baixo, para
conservarem o que tinham de mais elevado, ou melhor, de mais
diabólico.
Ó
santas tribulações, remédio de todas as nossas desordens! Oh! Se
os homens vos conhecessem! Certamente, em lugar de fugirem de vós,
como se fosseis inimigas,
vos abririam os braços e vos estreitariam ao coração.
Acontece
às vezes que uma alma está toda cheia de si, estima-se como uma
coisa grande e ainda diz no seu coração como aquele soberbo da
parábola evangélica: “Não sou como os demais homens”. Mas,
nisto sobrevem-lhe uma grande adversidade; assalta-a uma doença
grave, apodera-se dela uma desolação. Logo se humilha e abate; e,
como a péla inchada que,
perdendo o ar, se contrai e aperta, assim o coração cheio de si
mesmo cede ao peso da tribulação e finalmente se rende, podendo
dizer com Davi: Muito
bem, Senhor, que me humilhaste.
Considera,
pois, os altíssimos desígnios de Nosso Senhor em te afligir com
trabalhos e espanta-te da tua cegueira em fugires tanto deles, como
até agora tens feito. Pede-lhe humildemente perdão, e que daqui em
diante te dê força para O servires na tribulação, a qual é sem
dúvida o tempo das suas misericórdias mais assinaladas: A
misericórdia de Deus mostra-se, sobretudo, na tribulação.
II – O sofrimento
ilumina-nos.
Considera
que o Senhor, por meio do sofrimento, além de purificar a nossa alma
das imperfeições, é também a sua luz na prática da virtude:
Caminharão iluminados
com a luz das tuas setas.
As setas com que Deus fere a tua alma são setas luminosas, que ao
mesmo tempo descobrem o caminho e dão alento para andar: Quem
não é ferido destas setas, o que é que sabe?
Não se conhece a si nem conhece a Deus, isto é, ignora os dois
objetos a cujo conhecimento se dirige toda a ciência do espírito:
Conheça-vos a vós,
conheça-Me a Mim.
Não
se conhece a si; porque quem não é provado com o fogo da
adversidade, de certo não vê o que tem em seu coração; ante, no
meio da abundância e felicidade, forma de si uma ideia muito
diferente do que é na realidade. Eu
disse no tempo da prosperidade: Não experimentarei mudança em tempo
nenhum.
Se tivéssemos sempre lua cheia, e não somente de quando em quando,
quem não diria ser própria deste astro a luz que o ilumina? Mas,
porque umas vezes a vemos faltar-lhe a luz e outras nos aparece toda
radiante, ainda os mais rudes do povo conhecem facilmente, que
não vem dela aquele resplendor, senão do sol.
Ai
das almas, se sempre estivessem em prosperidade, sobretudo, no
tocante ao espírito! Dificilmente deixariam de atribuir a seus
próprios merecimentos a posse daquela paz e ventura. Por isso,
convém que Deus Nosso Senhor, para as fazerem entrar no conhecimento
das suas misérias e do seu nada, empunhe de vez em quando a vara do
rigor; convém que se lhes
mostre irado, que lhes tire a luz, que os prive daquele vigor de que
antes o Seu divino rosto as enchia: Eu
sou o homem que vejo a minha miséria na vara da indignação de
Deus.
Não
conhece a Deus. Enquanto a alma, guiada pela mão do Senhor, não
entrar pelo caminho real da Cruz que todas as almas grandes
percorreram, enquanto não se sentir falta de
toda a consolação humana, deixada, perseguida, desprezada: só sabe
de Deus o que a fé lhe ensina. Conhecia-Vos,
Senhor, como de ouvido,
dizia o Santo Jó antes da tribulação e no meio da prosperidade.
Mas, tanto que se viu despojado de todos os bens, feito todo uma
chaga, desamparado dos amigos, cheio de amargura, debaixo de um Céu
de bronze, e reduzido a não ter na terra senão aquele monte de
podridão e uma telha com que a limpar do próprio corpo; então, é
que a sua mente de tal maneira se esclareceu, que pode dizer: Agora,
Senhor, te veem os meus olhos.
Onde
estão, pois, aquelas almas tímidas que, mal veem assomar uma doença
ou tribulação, logo se queixam que não podem praticar o bem? Como
é possível que a tribulação assim as embarace, se nela
precisamente está o meio mais eficaz para a virtude? Deus Nosso
Senhor vale-se das trevas, para alumiar a nossa cegueira. Com lôdo
abriu os olhos do cego de nascença; fazendo-nos sentir as nossas
misérias, reduzindo-nos ao estado de pobreza, privando-nos de toda a
luz e dando-nos outras provas, abre-nos também
os olhos do espírito e dispõe-nos para que O conheçamos a Ele e
nos conheçamos a nós.
Como as almas do Purgatório,
que não chegam a ver a Deus senão depois de terem passado pelas
chamas purificadoras, deixando nelas tudo o que tinham de terreno e
mundano; assim nós neste mundo não estaremos nunca em disposição
de ver a Deus, com aquela luz que a seus amigos comunica, enquanto
não tivermos passado pelo fogo da tribulação. Tu, por conseguinte,
que tantas vezes pediste luz a Nosso Senhor, para O conheceres a Ele
e para te conheceres a ti, como não cais na conta de que com esta
oração pedias te admitisse a ser participante da Sua Cruz? A noite
mais escura daquelas desolações, que tanto te afligem o coração,
é a disposição mais próxima para que o Sol divino amanheça em
ti.
Ganha,
pois, bom ânimo; confunde-te da tua passada covardia; pede perdão
ao Senhor e suplica-lhe que, se é necessário o fel das amarguras,
para te abrirem os olhos da alma, como a Tobias os do corpo, não
demore um instante em o
aplicar-te, por mais que doa à natureza rebelde; mas que ao mesmo
tempo te conceda a graça de saberes tirar da tribulação o fruto
que Ele deseja.
III – O sofrimento
aperfeiçoa-nos.
Considera
finalmente que a tribulação, depois de purificar e esclarecer a
alma, leva-a também à perfeição, exatamente como o fogo, o qual,
depois de tirar ao ouro toda a escória da terra, depois de
lhe dar aquele brilho, aquilata-o a tão subido grau, que já não há
chamas que o façam minguar em nada. Por
isso mesmo que eras agradável aos divinos olhos, foi necessário que
a tentação te provasse,
disse a Tobias o Arcanjo São Rafael.
Como se lhe quisesse dar a entender que as obras de caridade e
religião: dar esmolas, enterrar os mortos e render verdadeiro culto
ao Senhor; ainda que bastavam por si para o purificar e esclarecer,
contudo, sem o sofrimento não o poderiam fazer perfeito: A
paciência é a que aperfeiçoa as nossas obras,
a que dá a última demão à
santidade, a qual entre as consolações apenas estava esboçada.
E
a razão é clara. Porque, havendo dois gêneros de virtudes, umas
que consistem mais nas obras, outras que consistem mais nos
sofrimentos, estas últimas são as de maior estima e valia, por
servirem à própria custa a caridade, que é a rainha de todas. Nas
obras, pode tomar parte a natureza, e não pouco; no sofrimento, em
vez dela achar o seu próprio cômodo, acha o seu desprezo
e a morte.
Quando a alma e o corpo
desfrutam de completa felicidade, quem pode saber se vivem para Jesus
ou se se buscam a si mesmos nessa felicidade que o Céu lhes dá?
Mas, quando o seu peso te oprime o corpo e aperta o coração, sem
contudo perderes a resignação e a paz; então, bem podes crer que a
graça é a que te fortifica e, se te deixas guiar, será também a
que te conduzirá ao puro amor de Deus. Porque, próprio é do amor
deste Senhor nascer entre as consolações espirituais; mas para
chegar a ser forte, tem que passar pelo cadinho do sofrimento.
Tira
daqui quão injustamente te queixas quando, suspendendo Nosso Senhor
a luz da sua graça e os ternos sentimentos de devoção, te deixa em
estado de puro sofrimento. Então, parece-te impossível praticar a
virtude; mas ser-te-á também impossível o padecer? Pois esse é
precisamente o fruto que de ti espera Deus Nosso Senhor; e às
tuas queixas bem pode responder
com aquelas suas divinas palavras: Não
sabes o que pedes. Podes beber o cálice da Minha Paixão?
Oh!
Ditoso de ti, se souberes corresponder à graça, sofrendo e calando,
à maneira de paciente cordeirinho que se oferece como vítima ao
Senhor! Este sofrer silencioso e com tanta resignação na vontade
divina será de maior merecimento do que todas as mais obras,
quaisquer que sejam. Esta estrada coberta de espinhos levar-te-á bem
depressa a um grau de perfeição a que dificilmente chegarias por
outro caminho mais plano e agradável: Meus
filhos delicados pisaram ásperos caminhos.
Oração a Nosso Senhor
açoitado à Coluna
para alcançar a Paciência
Amabilíssimo Redentor: que
lei é esta que o mundo usa agora contra Vós, declarando-Vos como
inocente e açoitando-Vos como culpado? Ah! Senhor! É a lei do vosso
amor, que não conhece outra senão a que conduz ao meu
aproveitamento. Eu sou aquele a quem são devidas essas Chagas, eu
fui o que mereci essa crueldade desapiedada; e contudo, apesar de ser
o culpado, vejo-me tão poupado e sem trabalhos, quando sobre o vosso
Corpo Santíssimo caem os golpes como tempestade desfeita. E o pior é
que, se para meu bem lançais às vezes mão do açoite, se para
iluminar a minha alma a feris com as setas da vossa luz, se me
quereis aperfeiçoar algum tanto naquele mesmo bem que Vos dignastes
por em mim e que eu misturo de tanto mal; logo rompo em queixas e
lamentos, caio desalentado em terra e me dou por perdido de todo, sem
advertir que é o amor-próprio a buscar-se sempre a si, sob pretexto
de maior bem, e a fugir sempre da cruz para me levar miseravelmente a
seus enganos.
Mas
a tudo isto, que posso eu responder senão confessar diante de Vós a
minha miséria e implorar remédio para ela? Em tudo me pareço
comigo, em tudo me porto como sou, como criatura miserável, cheia de
trevas e fraqueza. A Vós, ó fortaleza da minha alma, a Vós toca
mostrar-Vos como Sois, isto
é, como Senhor onipotente que com um só sinal podeis mudar este
pobre coração num coração semelhante ao Vosso. Uma gotinha
daquele Sangue divino, que se derramou a torrentes e é pisado por
aqueles mesmos por quem foi derramado, pode dar-me essa constância
invencível que tanto desejo.
Para a alcançar, entrego-me
todo a Vós; atai-me, Senhor, muito apertadamente à Vossa coluna;
açoitai-me, atribulai-me como vos aprouver. Não olheis para a minha
rebeldia; ponde os olhos unicamente no meu verdadeiro bem e na Vossa
divina glória, a qual sobressairá triunfando da minha fraqueza. Bem
vejo, que nem sei pedir como convém; mas falem por mim essas Chagas
que Vos cobrem dos pés à cabeça. Obtenham-me elas da Vossa bondade
infinita a graça que vos supliquei e da qual me terei sempre por
indigno, enquanto não me livrarem desta minha indignidade os seus
merecimentos e eficácia infinita.
Terceira Meditação
Terça-feira
O Sofrimento,
como Remédio do Pecado,
é de Alívio na
Tribulação.
____________
I – Cura os pecados
presentes.
Considera que os trabalhos são
o remédio do pecado; porque tornam a pôr em ordem, com a beleza da
justiça, o que a deformidade da culpa tinha desordenado no mundo.
Ora, para um remédio ser bom, deve conter em si eficácia para nos
curar o mal presente, reparar os males passados e preservar-nos dos
males futuros: tudo isto encontramos muito avantajadamente no
sofrimento.
Em
primeiro lugar, sara-nos do mal presente. Porque, que pensas tu que é
o teu coração? É uma esponja embebida em veneno mortífero,
composto das culpas atuais
que cada dia cometes, dos maus hábitos que com elas contraíste e,
sobretudo, do teu amor-próprio tão apegado às coisas da terra, tão
ávido de prazeres, tão insaciável, enfim, tão maligno, que se
insinua nas obras mais santas e se põe a si mesmo como fim de todas
as tuas ações; de maneira que os orvalhos mais preciosos do Céu
somente lhe servem para o fazerem mais prejudicial e nocivo: Banhado
para seu mal com o orvalho do Céu.
E sendo assim, bastará que
Nosso Senhor toque somente ao de leve a um coração tão depravado,
para dele sair todo o veneno da sua malícia? Certamente que não! É
necessário que o aperte com o peso da tribulação, por muito tempo
e com mão firme: só deste modo poderá deitar até a última gota a
peçonha que o mata. Todas estas iniquidades que tinham endurecido,
como endurece o gelo no rigor do inverno, e que com o andar do tempo
facilmente se tornariam duras como rocha, desfazem-se logo ao
primeiro sopro da tribulação, sem que no teu coração fique sinal
delas.
E, ainda, continuarás a
queixar-te das tuas aflições, sem refletir que te queixas do teu
próprio bem e que, em vez de te levantares contra o pecado, que é o
teu verdadeiro mal, te levantas contra o seu remédio? Dirás que a
tribulação não te ajuda na virtude, antes te fazes pior com ela.
Mas, infeliz de ti se assim fosse. Pois seria este um sinal de
perdição que te faria semelhante àquele réprobo Acaz, o qual com
o infortúnio aumentou, ainda mais, a sua impiedade contra o Senhor.
Humilha-te pois com todo o teu
coração, por teres tantas vezes resistido às inspirações daquele
Senhor que, ferindo sara e castigando cura os verdadeiros males da
alma: Ele mesmo é o que faz a chaga e a sara, fere e cura com
suas mãos.
Confessa que em tuas obras te tens mostrado até agora como um
frenético; e por isso deves suplicar ao teu divino Médico, que de
hoje em diante, não faça caso das tuas loucuras, antes tendo só em
conta o bem da tua alma, use de todo o rigor necessário para a cura
das tuas chagas cancerosas, e deste modo possas com o santo Job
consolar-te no meio daquelas aflições que tanto medo te causavam:
Sirva-me de consolação o não dissimular o Senhor os meus
pecados, e que me os castigue, afligindo-me com dores.
II – Repara os danos dos
pecados passados.
O sofrimento, além de nos
livrar do mal presente do pecado, repara também os males que o mesmo
pecado deixou na alma. Todo o pecado, trás consigo duas coisas: a
obrigação de nos convertermos a Deus com arrependimento, e a
obrigação de satisfazer à divina justiça pela injúria que Lhe
fizemos. Que imaginas tu que fazes quando pecas? Contrais uma dívida
que, forçosamente hás de pagar, ou nesta vida ou na outra, ou
padecendo por necessidade ou padecendo livremente, quer por tua
escolha, quer, pelo menos, com resignação ao que Deus te envia.
Por
isso, o santo Job se mostrava tão cauteloso em todas as suas ações,
ainda que em si tão boas; pois via que irremediavelmente havia de
receber o castigo de qualquer culpa que fizesse: Temia-me
de todas as minhas
ações, sabendo que não deixais impune pecado nenhum.
Como, pois, não queres passar pelo castigo, sendo culpado como és?
Bem se vê que, não conheces quão grave é teres ofendido a Deus,
ainda que não fosse senão uma vez.
Só
uma curiosidade em olhar para a Arca do Senhor, não custou a vida no
mesmo instante a mais de 50 mil Betsamitas? E tu, sobre quem pesam
tantos pecados, queixas-te de que alguma vez o Senhor te mostre menos
propício o seu divino rosto? Te sentes carregado de dívidas, e não
queres pagar? Fizeste sofrer por tanto tempo ao mesmo Deus, e
não queres que Deus te faça sofrer nada a ti? Saboreaste o doce do
pecado, e não lhe queres provar o amargor? Vê
quão má e quão amarga coisa, é teres deixado ao Senhor teu Deus.
Para
não comeres os frutos da desobediência, não devias ter antes
desobedecido a Deus: Não
pratiques o mal e o mal não virá sobre ti;
mas querer ser culpado e não querer estar sujeito a castigo nenhum é
a maior das monstruosidades. E se Deus não deixa impunes nem as
imperfeições e os descuidos dos Santos, se quer que este cálix de
penalidades e trabalhos seja bebido até pelos inocentes, como há de
permitir que nem seja provado por ti? Se
ainda aqueles que não estavam sentenciados a beber o cálix da ira
do Senhor, terão de o beber sem falta; tu hás de ficar excetuado
como inocente?
Isto nem sonhando: Não
serás tratado como inocente; bebê-lo-ás sem remédio.
Reconhece
por consequência a grande misericórdia da divina justiça contigo,
tomando tão ligeira vingança das tuas iniquidades, pelas quais te
poderia com toda a razão condenar a uma pena eterna; e confessa com
o santo rei Davi esta mesma misericórdia, dizendo: Senhor,
Vós mostras-te-Vos propício com eles, ainda quando Vos vingáveis
das injúrias que eles Vos faziam.
É
uma grande piedade que o Senhor te castigue aqui, onde a pena é tão
leve e ao mesmo tempo vai acompanhada de tanto merecimento; não te
devias queixar, senão, pelo contrário, dar muitas graças a Deus.
Pede-lhe que se compadeça da tua ignorância; e quando daqui em
diante ouvires ao teu perverso amor-próprio sair em desatinos contra
a Cruz, tapa-lhe a boca imediatamente, com aquelas belíssimas
palavras do bom ladrão: Nós
justamente sofremos este suplício, porque pagamos o que merecem os
nossos crimes.
E,
certamente, somos tratados por Deus, não segundo os nossos
merecimentos, senão com infinita misericórdia e piedade; somos
castigados com pena infinitamente menor do que a que nos é devida;
de sorte que cada um de nós pode muito bem dizer de si: Pequei
e verdadeiramente delinqui, e não fui castigado segundo merecia.
III – Preserva das culpas
futuras.
O sofrimento não só estende
a sua eficácia ao mal presente e ao mal passado, mas ainda ao que
pode vir; que é quanto se pode desejar de um remédio. Para te
convenceres desta verdade, observa que o pecado ou nasce do prazer ou
do temor; porque sempre pecamos ou para adquirir algum bem ou para
fugir de algum mal.
Suposto
isto, a tribulação livra-nos, por uma parte, da matéria mais
ordinária dos nossos erros, tirando o pasto à nossa sensualidade;
e, por outra, dá à nossa alma uma força acima do ordinário, para
resistir a qualquer encontro, avigorando o coração com os
trabalhos. Daqui se vê, que o sofrimento é o maior e talvez o único
remédio para curar a nossa alma, como diz o profeta Isaías: Só
a aflição fará entender as coisas que se ouviram.
Portanto,
sem o fogo da tribulação não esperemos que se limpe totalmente a
ferrugem dos nossos afetos; sem estas borrascas não chegará nunca a
purificar-se e a sossegar o mar do nosso coração; sem
estas angústias não se libertará dos maus hábitos inveterados.
Porque foges, pois, com tanta obstinação, de um remédio que sara a
alma de todo o pecado? A
medicina (da vigilância)
atalha os pecados mais
graves.
E com razão; porque o
sofrimento, além de pôr fim aos pecados presentes, dispondo-nos
para os aborrecermos, além de apagar os pecados passados
satisfazendo a dívida contraída, livra-nos de outros que podíamos
cometer tapando com seus espinhos o caminho, que facilmente nos
desviaria do bem começado.
Se
isto é verdade, porque não fazes tu ao Senhor uma súplica,
semelhante à que Lhe fez Jeremias: Visitai-Me,
Senhor, como divino médico; e, ainda que seja amarga e desagradável
a meus sentidos a medicina que me receitais, eu a tomarei de boa
vontade, porque esse amargor é saudável. Não queirais exercitar
comigo a vossa paciência, suportando os meus crimes sem castigo; mas
fazei que a exercite eu, sofrendo de bom grado todas as adversidades
que Vos me mandardes.
Tais devem ser os sentimentos
de um pecador que reconhece o mal que fez; e se a tua delicadeza não
te deixa desejar os padecimentos, sirva ao menos para confundir a tua
covardia, e para te animar a pedir ao Senhor uma tal fortaleza de
coração que, depois de ouvires tantos bens da Cruz, não te
horrorizes nem assustes quando a receberes da sua divina mão.
Oração a Jesus Coroado de
Espinhos,
para alcançar a Paciência
Eu Vos adoro, ó meu Jesus, a
Quem as próprias estrelas são indignas de coroar, e que, não
obstante, estou vendo coroado de espinhos por minha causa! Adoro-Vos,
formosíssimos olhos, alegria do Paraíso, vendados e cobertos de
lágrimas por meu amor! Adoro-Vos, rosto diviníssimo, que os Anjos
não se cansam de contemplar e que eu agora vejo tão denegrido,
lívido e baixamente cuspido! Ó espelho sem mancha, feito por amor
de mim, espelho de opróbrios e dores! Como é possível que, fixando
atentamente a vista em Vós, não reconheça a minha cegueira; pois,
carregado de pecados, recuso beber uma gotinha sequer desse cálix
amargo que Vós, ó bem único da minha alma, quereis tomar até ao
fim?
Não sou eu o que tantos
pecados tenho cometido, e pecados tão feios e de tanta malícia?
Pois, como não quero agora pagar alguma parte daquela dívida
imensa, que contraí pecando? Ainda mais. Posso tornar facilmente a
cometer os mesmos pecados; e serei tão louco e cego, que continue a
olhar com horror para as tribulações? Não são as tribulações
que, à maneira de espinhos, nos vedam o caminho que leva ao
precipício? Ah! Senhor! Sou como um frenético que não conhece o
mal que tem, nem o remédio que o cura. E assim, quanto mais virdes
que me enfureço, mais Vos peço que tenhais compaixão de mim; e
quanto mais virdes que fujo de aceitar o remédio, mais Vós me
obrigais na vossa bondade a tomá-lo.
Aquele amor infinito que Vos
levou a padecer tanto por mim, mova-Vos também agora a ter paciência
com a minha ingratidão e miséria. Vós bem sabeis que posso muito
facilmente cair, não porém levantar-me; que sou muito capaz de me
impacientar, mas não tenho força para sofrer. Senhor, refúgio e
verdadeira fortaleza minha, ajudai-me a levantar, amparai-me, fazei
que comece de uma vez a ser imitador Vosso. Debaixo de uma cabeça
coroada de espinhos, não está bem que haja membros tão delicados
como eu.
Desejo mudar totalmente de
vida; desejo ser o que não sou agora; de hoje em diante, desejo ter
tanto amor ao sofrimento como antes era a repugnância e aversão que
lhe tinha. Vós cuja bondade me dá este desejo, dai-me também a
graça de o cumprir com fidelidade; a fim de que, depois de ter sido
semelhante a Vós na terra com os trabalhos, chegue a ser no Céu
semelhante a Vós na glória e felicidade eterna. Amém.
Quarta Meditação
Quarta-feira
A Lembrança do Inferno
é de alívio na Tribulação
_______________
I. Sofre, porque mereceste
o Inferno.
Considera a grande cegueira de
uma alma que, depois de ter merecido o Inferno, ainda que fosse uma
só vez, se atreve não obstante a queixar-se nas tribulações. Esta
alma quase se pode afirmar que és tu que, não uma vez só, senão
muitas e talvez inumeráveis, mereceste a condenação eterna; e
agora esquecido de tudo, pareces receber uma injúria quando tens
alguma coisa que sofrer, e te dás por ofendido sempre que se te
oferece alguma cruz, por pequena que seja.
Deves,
pois, lembrar-te da sentença que o Senhor pronunciou no Céu contra
ti, logo que pecaste, a qual foi unanimemente aprovada por todos os
habitantes do Paraíso. Esta sentença foi, que em castigo de teres
iniquamente faltado à obediência, devida aos Mandamentos divinos,
fosse como escravo fugitivo, acorrentado com cadeias inquebrantáveis
e aferrolhado em
prisão de fogo, onde com eternos tormentos e eterna desesperação
desses a Deus por força a glória que, pecado, lhe tinhas roubado:
Lançai-o
atado de pés e mãos às trevas exteriores, onde haverá pranto e
ranger de dentes.
Pois, imagina tu agora que
Deus, em cumprimento desta ordem, te houvesse entregue nas mãos dos
Demônios, para que te arremessassem àquelas chamas eternas; e que,
quando já estavas à boca daquele abismo de fogo, quando já
começavam a queimar-te as primeiras labaredas daquele incêndio,
quando a teus ouvidos chegavam os rugidos desesperados daqueles
infelizes, ao sentires pela primeira vez o cheiro insuportável
daquela sentina infernal, te fizessem em nome de Deus a seguinte
pergunta: – Que darias tu, para tornar atrás e sair desta voragem
e lugar de tormentos?
Imagina
tudo isso com viveza e considera a sério, se em tal aperto te
pareceria duro outro qualquer partido, que então te propusessem. Não
só te pareceria coisa de nada, e como um sonho, o ser retalhado em
pedaços, membro por membro, como um São Clemente de Ancira; o
estar trinta e oito anos cravado numa cama, vítima de toda a sorte
de enfermidades, como uma Santa Ludovina; mas ainda terias em muito
pouco o penar no mesmo fogo do Inferno tantos milhões de anos como
de areias tem o mar, se por fim, viesses a ser aniquilado. Este
partido e esta troca seriam para ti um tão grande favor, que era
para te mostrares eternamente agradecido a teu Juiz, por ter sido
contigo sumamente benigno.
E contudo, não é muito maior
graça e mercê muito mais assinalada, não te ter deixado
experimentar nem por poucos instantes, aquelas infinitas misérias,
do que, depois de nelas teres caído, arrancar-te de tais horrores? E
se tu, depois de teres provado um só trago daquele cálix tão
amargo da ira de Deus, terias como benefício inefável a graça de
poderes trocá-lo por outra calamidade, qualquer que ela fosse,
contanto que tivesse fim; como é que te dás por agravado agora,
quando Deus te substitui esses males eternos por outros, que em
comparação deles se podem chamar pinturas?
Te dóis das angústias
interiores do coração, te dóis do enfado que te causam os
inimigos, te dóis das perdas que experimentas, da pobreza, das
doenças; e não comparas males com males, número com número, peso
com peso, medida com medida!
Coteja
o que presentemente sentes
com o que devias sentir; e, se à vista destes dois extremos – do
que mereces e do que sofres –, tens ainda ânimo para te queixares,
quase me atreverei a dizer que são justas as tuas queixas.
Mas
estou seguro que à viva luz daquelas chamas, por tantos títulos a
ti devidas, não poderás deixar de confessar que não és tratado
como mereces: Não
nos tratou segundo mereciam os nossos pecados, nem deu às nossas
iniquidades o castigo que mereciam.
Entra
pois dentro de ti, e envergonhando-te e condenando como injustíssimas
todas as tuas passadas queixas, roga
a Deus Nosso Senhor que continue a usar contigo daquela misericórdia
infinita com que até agora te tem tratado como Pai amorosíssimo e
não como justo Juiz: Grande
é a vossa misericórdia comigo; tirastes a minha alma do fundo do
Inferno.
II.
Sofre, porque foste preservado do Inferno.
Considera que este grandioso
benefício de teres sido preservado do Inferno até agora, obriga-te
não só a aceitar com resignação as tribulações, mas também a
sair-lhes ao encontro e a desejá-las com ardor, para deste modo
satisfazeres à divina Justiça. Se nesta preservação a
misericórdia de Deus foi glorificada em te perdoar, a sua justiça
não foi satisfeita, ao menos por ti e à tua custa.
Pois bem, o amor que deves a
este divino atributo, obriga-te também a tomar a peito os seus
interesses e a fazer com que se lhe dê a honra que os teus pecados
lhe roubaram. Certamente, se alguma vez entendeste quanta é a
formosura da divina justiça, de nenhuma outra coisa te lamentarias
tanto como de que as tuas penas e trabalhos não possam glorificar,
quanto desejavas, a este Senhor ofendido. E pela mesma razão, os
padecimentos porque passas não os terias como tais, se pensasses no
gosto que Deus sente em ver restabelecida a ordem com o teu castigo.
Este
é o exemplo que nos deixou o nosso divino Redentor, o qual, tendo
tomado à sua conta satisfazer à justiça do seu Eterno Pai, depois
de passar todos os dias da sua vida em um contínuo desejo da Cruz e
numa sede ardentíssima de derramar nela todo o seu Sangue,
comprazia-se,
quando já pregado nesse madeiro de ignomínia, em ver o seu
santíssimo Corpo desfeito em mil Chagas, trespassado de cravos e
espinhos, submergido num mar de tormentos, só por assim dar glória
a seu Pai, e glória infinitamente maior do que a dívida por nós
contraída e por Ele pleníssimamente satisfeita.
Deixa-te
animar também deste espírito de penitência; e já que não tens
valor bastante para afligir, como devias, a tua sensualidade, entra
pelo menos a tomar parte nos desígnios da divina justiça e
não leves a mal que ela, por meio dos teus trabalhos, restaure as
perdas da sua glória e, à custa do teu amor-próprio, compense de
algum modo as tuas injúrias.
Não te dês por satisfeito
com aceitar humildemente e como réu que és, os males presentes. Em
obséquio daquele Senhor, que te trocou os eternos e horríveis
tormentos do Inferno em ligeiríssima e momentânea tribulação
neste mundo, reúne, como num feixe todas as misérias que hás de
padecer até ao fim da vida, quais são: frio, calor, pobreza,
cansaço, dores, enfermidades, desprezos, perseguições, tristezas,
desolações e tudo o que te espera de mais penoso neste vale de
lágrimas, e oferece-o em holocausto à divina Justiça, protestando
que aceitas tudo de boa vontade, em satisfação dos teus pecados.
Mais
em particular, oferece-lhe a tua morte, e o estado miserável a que
será
reduzido o teu corpo na sepultura, quando estiver convertido em
podridão, comido de bichos, reduzido a um punhado de cinza e como
que a nada. Alegra-te de que seja destruído e aniquilado esse mesmo
corpo, que foi o estímulo, o instrumento e o culpado de tantas
injustiças; e que, por se ter levantado contra o seu Senhor, seja
humilhado com um abatimento tão espantoso até ao fim do mundo, para
deste modo tributar a homenagem devida à Majestade infinita. Oh! De
quanto alívio são para uma alma, ilustrada com a luz do Céu, estes
sentimentos e verdades! E de quanto o serão para ti, se lhes abrires
humildemente o coração!
Confunde-te,
pois, agora da tua ignorância, faze propósito de não ouvires o que
te pede a natureza corrompida;
e como este é um grau de perfeição, a que não podes chegar com as
tuas próprias forças, suplica ao Senhor que te dê
a sua graça, para te abraçares com a Cruz tão apertadamente, que
só a morte consiga separar-te dela.
III.
Sofre, pra não tornares a merecer o Inferno.
Considera,
que o teres sido até agora preservado do Inferno não te assegura
que não o tornes a merecer e não venhas a cair nele. Cercam-te de
todos os lados inimigos poderosíssimos que, de dia e de noite, por
força ou por engano, te combatem e armam ciladas, para te arrastarem
àquele lugar de tormentos. E o que é mais, trazes dentro de ti
mesmo a sensualidade rebelde que, à maneira de traidor doméstico,
se coliga com os inimigos de fora e a cada passo te quer precipitar
naquele abismo sem remédio; de sorte que não podes mover um pé sem
perigo de te perderes: Caminhas
no meio de laços.
Sendo
isto assim, qual é a tua maior defesa entre tantos perigos? O
sofrimento; quer seja aceitando de boa vontade o que a divina
Providência te envia de trabalhoso, quer ajuntando tu, para mais te
assegurares, outras penitências voluntárias, como sempre fizeram os
Santos. A
paciência deve ser perfeita nas obras.
A paciência dá grande fortaleza à alma, para vencer todos os
obstáculos; pelo contrário, quem não está acostumado a padecer
facilmente cede, como espada temperada em banho de azeite, cujo fio a
cada golpe se embota, ou como árvore medrada em terreno mole, que ao
menor peso se fende.
Além
disso, a tribulação confirma-te o direito que, já como cristão,
já como justo, tens de possuir como herança o mesmo Deus. O
Senhor,
diz o Profeta,
encheu-me o coração de amargura, inebriou-me de absinto.
Mas que se seguiu depois? O
Senhor é a minha herança, disse a minha alma.
Ele possuirá o meu coração. Ditosas penas, se tais frutos
produzis!
Pelo
contrário, deplorável condição de prosperidade temporal, que tão
facilmente vai acabar na miséria eterna! Recebeste
bens durante a tua vida,
disseram àquele desgraçado rico do Evangelho. Recebeste,
e não roubaste.
Porque, se bem os contentamentos e alegrias desta vida são também
dons de Deus, e se recebem da sua mão como esmola, contudo, ainda
que em si sejam inocentes, põem-nos em grande perigo de perder a
paga, devida aos poucos serviços que ao Senhor fazemos, e que é a
parte da herança que nos toca.
De
maneira que, quanta é a segurança da salvação que nos dá o
padecer com Lázaro, tanto é o perigo em que nos põe o ter gozado
com o rico avarento: Recebeste
bens durante a vida e Lázaro, pelo contrário, males; pois agora
este é consolado e tu atormentado.
Como é, pois, que buscas tão constantemente o que te faz mal, isto
é, o que deleita; e foges com a mesma insistência do que te faz
bem, isto é, do que custa? Ora pois, daqui em diante não troques os
nomes às coisas para desgraça tua: Chamai
mal ao bem e bem ao mal.
Todo
o nosso bem está na Cruz; pela Cruz conseguiremos achar a Cristo;
para levar a Cruz foi-nos dada a vida. Que fazemos neste mundo
miserável, se não padecemos!
Ou
padecer ou morrer! Aut
pati aut mori,
repetia constantemente Santa Teresa.
Oração a Nosso Senhor
com a Cruz às costas,
para alcançar a
Penitência.
Pacientíssimo
Jesus, que coisa tão monstruosa não é a que em mim vedes! Que
lamente os seus trabalhos quem mereceu o Inferno! Se o vosso
amorosíssimo Coração não se houvesse
posto entre a vossa divina justiça e as minhas maldades, não se
tivesse pago por todas as minhas dívidas, onde estaria eu neste
momento? Não seria a minha habitação um abismo
de fogo, numa desesperação eterna, num apartamento eterno do Sumo
Bem? E
eu, esquecido de tudo isto, dou-me por ofendido quando me desprezam;
parece-me coisa estranha que a vossa mão benigníssima não me
regale, e que não desfrute sempre daquela serenidade, da qual nem
ainda as almas mais inocentes chegam a gozar de contínuo neste
mundo! Ó cegueira do meu entendimento! Ó perversidade do meu
coração!
Vós, inocentíssimo Cordeiro,
ides por diante desfalecendo, debaixo do peso de uma Cruz que eu
agravei com os meus pecados; e eu que os cometi, fujo, como se não
fossem meus, de Vos seguir com a minha cruz tão leve?
Ó Luz incriada, que
aparecestes no mundo para iluminar a todos os homens, compadecei-Vos
das minhas trevas e dissipai-as. Vós conheceis a fundo os meus
males; só Vós os podeis remediar; remediai-os, pois, para glória
vossa.
Eu deveria andar em busca das
tribulações, para com elas dar à vossa divina justiça a honra
que, com o castigo, de mim teria direito a exigir; mas, se a tanto
não chego, pelo menos não seja eu tão covarde que tenha medo até
da sua sombra. Eis-me aqui, pois, entregue nas vossas divinas mãos;
e, contanto que, não me veja eternamente separado de Vós, como até
agora mereci e me o faz temer a minha fraqueza, entrego-Vos a chave
da minha liberdade, e terei por grande dita beber aquele cálice da
vossa Cruz, que a todas as horas me ofereceis.
E, já que estas resoluções
são vossas, e Vós as inspirais ao meu coração, confirmai-as,
Senhor, até à morte, depois da qual espero que, se Vos tiver
seguido aqui na terra com a minha cruz, também Vos hei de ver
triunfante no vosso trono e reinar convosco para sempre no Céu.
Amém.
Quinta Meditação
Quinta-feira
A Lembrança do Céu
Consola a Alma na
Tribulação
_______________
I – O Sofrimento é sinal
de predestinação à glória.
Considera
que a razão da nossa predestinação à glória é a conformidade
com Jesus Cristo, segundo o sentir de São Paulo: Os
que Ele viu de antemão que se haviam de salvar, predestinou-os para
que se fizessem semelhantes a seu Filho.
Segundo isto, o nosso divino Redentor despido na Cruz, coberto todo
de Chagas, saciado de opróbrios, submergido num mar de penas e,
desde o primeiro instante da sua vida mortal, Rei de dores, não só
é a razão meritória da nossa eleição à glória, senão também
a causa exemplar com que nos devemos conformar no exercício das
obras, para a chegar a obter. E assim, quem mais participa da sua
Cruz, mais seguro está de participar do seu reino. Se
padecemos com Ele, reinaremos também com Ele.
Este
é o decreto estabelecido desde a eternidade no conselho divino: que
os membros hão de, por necessidade, ser semelhantes à sua cabeça;
e por isso ninguém há de ser admitido no Céu senão pela porta da
tribulação, e não de uma só tribulação, mas de muitas e muitas:
Temos
de passar por muitas tribulações, para entrar no reino dos Céus.
De sorte que, se não houver sofrimento para ti, também não haverá
Paraíso.
Tu
crês que a herança de Jesus Cristo consiste só na posse da glória;
enganas-te. Porque a herança que deixou a seus escolhidos, é sim a
de gozar para sempre na vida futura, mas é também a de chorar antes
por alguns dias na vida presente. E nesta herança não é lícito,
como nas outras, aceitar em parte, e em parte repudiar; é de
obrigação que, em qualquer caso, quem a aceitar no tocante à
felicidade eterna no futuro, não rejeite os padecimentos
leves e momentâneos da vida presente; pois, como condição
indispensável, para ser glorificado é necessário ter padecido: Se
somos filhos, seremos também herdeiros; contanto que padeçamos com
Jesus, para com Jesus sermos também glorificados.
Eia
pois; acende-te num santo zelo contra a tua delicadeza, que te põe
tanto em perigo de perder um bem imenso: Ai
daqueles que perderam a paciência.
Parece-te que o Céu te poderá custar caro de mais? Está bem que te
queixes de Cristo Senhor Nosso, porque te vende o seu reino pelo
mesmo preço que lhe custou a Ele? Não digo bem. Jesus comprou-o com
uma Cruz, cujo peso era proporcionado aos ombros de um Deus feito
homem; e a ti vende-te esse seu mesmo reino, por uma cruzinha tão
leve e como que de palha.
Portanto,
se és prudente, em vez de fugires daqui em diante da tribulação,
deves sair-lhe ao encontro sempre que ela não te buscar; e, logo que
a achares, alegra-te, dá-te o parabéns e recebe-o dos que te amam,
como se encontrasses um grande tesouro. Graças sejam dadas ao
Senhor, pois achei
por fim a tribulação e a dor.
Alegrai-vos, pois, comigo, porque dei com a minha felicidade. Este
estado de desamparo, de pobreza, de desolação, de angústia,
promete-me tanto mais segura esperança de
chegar a ser na glória semelhante ao meu divino Mestre, quanto mais
me parecer a Ele na terra.
E,
se estas verdades são agora escuras, não deixam contudo de ser
certas, e tão certas como é certa a nossa fé. São escuras no
tempo desta vida; serão claríssimas no dia da eternidade: A
tribulação exercita a paciência, a paciência serve de prova à
nossa fé, a prova fomenta a esperança e a esperança não sairá
baldada.
II – O Sofrimento acumula
méritos para a glória.
Considera
que o sofrimento, além de ser sinal de predestinação para a
glória, ganha também méritos para a obter. Quis a divina Bondade
que os escolhidos não chegassem ao seu reino senão da maneira mais
gloriosa, que é ganhando-o por via de conquista: Preparo-Vos
o prêmio do reino celestial, como Meu Pai mo preparou a Mim.
E
assim como este reino, que consiste na glorificação do Corpo
Bem-aventurado de Nosso Senhor Jesus Cristo e na exaltação do seu
Santo Nome, não foi concedido pelo eterno Pai ao nosso divino
Redentor (ainda que por tantos títulos lhe era devido, como Filho de
Deus), senão em atenção ao mérito de ter levado a Cruz; da
mesma maneira, e ainda com muito maior razão, não te será
concedido a ti, se o não mereceres levando também a tua cruz: Não
será coroado senão o que bem pelejar.
Não
há triunfo sem vitória, nem vitória sem combate, nem combate sem
trabalho; por isso, a maior desventura que te pode sobrevir, é que
não te venha nenhuma tribulação. Este estado de paz e
tranquilidade era o que causava pavor aos Santos: A
paz é para mim a mais amarga de todas as aflições.
Porque sabiam muito bem que quem não sofre, ou,
pelo menos, não
deseja sofrer, traz consigo um sinal de reprovação;
e que a vida presente nenhum outro bem melhor tem do que o padecer
alguma coisa por Deus.
Assim
que, por perdido se pode ter todo aquele tempo em que não se padece.
Padecer
e não morrer,
dizia Santa Maria Madalena de Pazzi, verdadeiro serafim de amor. Só
desejava que se lhe prolongasse a vida, para padecer por mais tempo;
só
se queixava da morte, por não ter podido padecer mais. Por
conseguinte, pouca coisa é sofrer com paciência os teus
contratempos, as trevas do espírito, as desolações; deves levá-los
também com alegria e com ação de graças.
Não
sabes porventura que os trabalhos são um especial dom da divina
liberalidade? O Apóstolo olha para as tribulações como para uma
graça quase tão preciosa como a graça da fé; e para a merecermos,
quer que interponhamos todos os merecimentos do nosso amorosíssimo
Redentor: Pelos
merecimentos de Cristo se vos fez a graça, não só de crer n’Ele
mas também de padecer por seu amor.
E nós havemos de fazer tão
pouco caso da nossa cruz, que nos contentemos apenas com a levar sem
impaciência? Se é verdade, então a linguagem do Evangelho veio a
ser para nós uma linguagem estranha ou bárbara; fazemos profissão
de ser discípulos de Cristo e não nos envergonhamos de pôr em
dúvida a sua doutrina.
Não
merece o nome de cristão, quem não confessa diante do mundo,
enlouquecido no meio dos seus prazeres, esta grande verdade:
Bem-aventurado o que padece; mais Bem-aventurado
o que mais padece; sobremaneira Bem-aventurado o que padece tanto que
fica submergido nos mesmos padecimentos. Todavia, confortado com a
virtude da esperança e da caridade, recebe aquele mar de amargura
como se fosse um saborosíssimo leite.
III – Os padecimentos são
a medida do gozo na glória.
Considera
que o sofrimento não só é um sinal de predestinação e uma obra
meritória da eterna Bem-aventurança; é também a medida da glória
que nela teremos: À
proporção das muitas dores que atormentaram o meu coração, as
tuas consolações encheram de alegria a minha alma.
Deste
teor é a regra, que Nosso Senhor segue com os seus escolhidos:
contrapõe número a número, peso a peso, medida a medida.
Mas
com que vantagem e desproporção da nossa parte! Pois a um tão
pequeno número de aflições, a um peso tão leve, a uma medida tão
pequena de penalidades, contrapõe um número sem número de bens
celestiais, um peso imenso de felicidade, um cúmulo de prazeres
digno da divina magnificência: As
aflições tão leves e tão breves da vida presente produzem-nos o
eterno peso de uma sublime e incomparável glória.
E,
se esta mesma regra se há de observar também com os réprobos, que
serão castigados à proporção dos seus deleites neste mundo:
Dai-lhes
tão grande tormento e pranto, quanta foi a soberba e prazeres que
tiveram;
julga tu, se não há de ser guardada ainda mais exatidão, na
retribuição dos predestinados.
Dirás
que a cidade do Paraíso se mede com a cana de ouro da caridade e não
com o palmo de ferro da paciência. É verdade. Mas que caridade mais
fina se pode dar do que a que resiste a toda a prova? O ouro que não
perde no fogo nada do seu peso, é puro; assim é perfeita a caridade
que, em vez de se esfriar nas aflições, cresce e aumenta com elas.
A
caridade é paciente… tudo sofre.
Quão verdadeiramente amam a Deus aquelas almas, que acodem logo
aonde sabem que há alguma coisa que padecer por seu amor, nem sabem
o que é viver sem cruz!
De
maneira que o amor natural foge das penas, mas o amor sobrenatural
vai buscá-las; porque sabe que, quanto mais sofre pelo seu Senhor na
terra, melhor se dispõe para o amar no Céu e gozar eternamente da
sua posse como prêmio dos seus trabalhos, conforme aquela promessa:
Eu
serei teu galardão sobremaneira grande.
E,
se isto é verdade, que coisa mais digna de compaixão aos olhos da
fé do que um homem do mundo rodeado de aplausos, de prazeres e de
grandezas! Os verdadeiros servos de Deus choram por Ele como por um
morto que é levado com grande pompa ao sepulcro.
Essas
que o mundo chama fortunas são verdadeiras desgraças e verdadeiras
maldições: Ai
de vós os que agora rides!
Pelo contrário, as verdadeiras fortunas são as perseguições, as
enfermidades, a pobreza, as angústias, as desolações; pois esta é
a verdadeira semente do Paraíso que, quanto mais abundante for,
maior colheita dará de bens celestiais na glória.
Eia
pois, enxuga as tuas lágrimas, muda as tuas queixas
em ações de graças: Cessem
teus lábios de prorromper em vozes de pranto e teus olhos de
derramar de lágrimas.
Não está perdido o fruto dos teus trabalhos, o teu choro não foi
em vão: As
tuas obras terão o seu prêmio.
Uns padecimentos momentâneos preparam-te um bem eterno e tão
grande, que o gozar dele, somente por um abrir e fechar de olhos,
mereceria que o comprasses com todos os tormentos dos Mártires.
Daqui a pouco, quando já
estiveres naquele excelso posto da eterna Bem-aventurança, voltando
a vista para tornares a ver as tribulações que passaste, também tu
pasmarás de ti mesmo por lhes teres chamado tribulações; e, se
naquele estado de glória pudesse haver vergonha, muito te haverias
de envergonhar, por não teres agradecido a Deus Nosso Senhor um dom
tão assinalado.
Também
nesse feliz estado não poderás
desejar nada; mas, se pudesses, tem a certeza de que o teu maior
desejo seria passares por novos trabalhos, para mereceres novos graus
de glória. Pelo menos, dispõe-te agora antecipadamente para estes
afetos; e pede ao Senhor que, pois te assegura com a sua divina
palavra serem Bem-aventurados
os que padecem,
te dê uma tal fortaleza nas tribulações que, assim como agora és
feliz com a esperança,
sejas depois eternamente felicíssimo na posse
do bem infinito do Céu. Amém.
Oração a Jesus
crucificado,
para alcançar a paciência.
Que
pretendeis Vós, Senhor, da minha alma, em Vos deixardes pregar numa
Cruz e no meio de dois ladrões? Se fazeis isto para me remir e
tornar participante da Vossa glória, basta um só dos Vossos
suspiros. Para que derramais o Vosso preciosíssimo Sangue? E, se
apenas com uma gota podíeis salvar a mil mundos, para que dá-lo
todo entre tantas dores? Ah! Todo este excesso tem por fim, animar a
minha grande fraqueza e covardia e ensinar-me que,
se não padecer Convosco também não poderei reinar Convosco.
Eis quanto Vos custa, Mestre
divino, esta importantíssima lição que me destes; e contudo,
depois de tanto tempo que ando em Vossa escola, ainda não acabo de a
entender bem. Se confesso que somente Vós sois o meu guia, daí a
pouco tenho medo de Vos seguir. Se Vos chamo a minha verdadeira luz,
não me decido a admitir a Vossa doutrina. Se creio que sois toda a
minha saúde, parece que não sei fiar-me inteiramente de Vós,
parece que me espanto de me pôr todo em Vossas divinas mãos.
Nos outros considero as
tribulações como um dom muito grande; mas se Vos dignais de me
fazer a mim o mesmo favor, acho logo mil razões para me desculpar ou
não as receber de boa vontade. Queria que a santidade não tivesse
dificuldade nenhuma, queria que a virtude não se opusesse em nada ao
meu gênio.
Ó que abismo de misérias é
sempre este meu pobre coração! Que abismo de trevas! Mas por isso
mesmo é que eu recorro a Vós, Senhor, que sois um abismo de
misericórdia e de todo o bem. Criai em mim um coração limpo, que
me sirva de espelho onde fielmente se retrate a verdade que me
ensinais. Renovai o meu espírito, de maneira que se conforme com o
Vosso e abrace os trabalhos como um grande bem.
Esta é a graça que me haveis
de fazer, benigníssimo Jesus, tão amoroso em sofrer a minha
ignorância como poderoso para me livrar dela. É verdade que não a
mereço; mas também é verdade, que não posso desmerecer tanto o
Vosso auxílio, quanto é grande o Vosso poder e bondade para me
fazerdes mercês.
Eu bem sei, ó meu Jesus, a
quem acudo; bem sei que, se em todas as coisas sois grande e
magnificentíssimo, não haveis de ser agora apertado com este Vosso
pobre servo; o qual Vos invoca e pede aqui remédio para suas
fraquezas, a fim de merecer aquela coroa que desde a eternidade
tendes preparada a Vossos escolhidos, e que eles hão de ganhar por
meio das tribulações neste mundo. Assim seja.
Sexta Meditação
Sexta-feira
O Exemplo de Jesus
Consola na Tribulação
______________
I – Jesus, padecendo,
enobreceu os trabalhos.
Reflete no que era a cruz
antes de nela morrer Nosso Senhor, e no que é agora depois que
expirou em seus braços. Antes servia de patíbulo aos malfeitores, e
quem pendia de uma cruz era maldito; agora não somente se honram com
ela as coroas dos príncipes, mas é o trono do divino Redentor, onde
ele se ostenta com Majestade infinita como triunfante dos seus
inimigos.
Pois
bem; faze tu agora de conta que
tudo, com a devida proporção, se verificou também com a Cruz
espiritual dos cristãos, que é a tribulação. Todas as penas,
antes que martirizassem os membros inocentíssimos de Jesus Cristo e
amargurassem o seu divino Coração, eram como uma cicatriz do pecado
e traziam consigo necessariamente um caráter de ignomínia.
Mas
ao contato das Chagas do nosso amorosíssimo Salvador, como se fossem
águas passadas por esta mina do Paraíso, adquiriram um preço
imensamente maior do que adquirem as águas desta terra, ao passarem
por minas riquíssimas de ouro.
Quem há que disto possa
duvidar, sem renunciar por isso mesmo à sua fé? O Verbo encarnado,
tocando as águas do Jordão em seu Batismo, enobreceu-as tanto que,
segundo dizem os Santos, imprimiu nelas e em todas as demais águas
do mundo virtude divina, para santificarem pelo Sacramento de
regeneração as almas dos fiéis. Pois de um modo semelhante,
padecendo e morrendo na Cruz, imprimiu em todas as tribulações dos
cristãos uma dignidade mais que humana e uma virtude particular,
para nos elevar acima das forças da natureza, a um estado como
divino.
Por
isso, os Apóstolos desde os primeiros tempos da religião cristã, e
todos os Santos depois dos Apóstolos, tinham
para si que chegavam ao sumo da verdadeira honra, quando sofriam
grandes coisas por Deus: Saiam
da presença do conselho muito alegres, por terem sido achados dignos
de sofrer afrontas pelo Nome de Jesus.
E na verdade, assim como no Céu, o que está mais perto do trono do
divino Redentor glorificado é o que mais participa da sua glória,
assim também na terra, quem mais se chega ao trono do mesmo Senhor
humilhado, despido e cheio de dores, esse é o mais estimado e
honrado; e são tão excelsos em dignidade estes homens, que deles
diz o Espírito Santo não ser digno o mundo: Desamparados,
angustiados, maltratados, dos quais não era digno o mundo.
Tanto
assim que, estando-nos severamente proibido por outra parte o
gloriar-nos de coisa alguma, podemos contudo gloriar-nos, a exemplo
de S. Paulo, dos nossos trabalhos; o qual ao mesmo tempo nos ensina
que o podemos fazer com segurança: Se
algumas coisas há de que me possa gloriar, gloriar-me-ei daquelas
que são próprias da minha fraqueza.
Que diz o teu coração ao ouvir estas verdades, acostumado a encarar
as cruzes com horror e os dons que o Senhor te faz, como se fossem
outras tantas feridas? Não acabas de ver que és ainda indigno de
vestir a libré de Jesus Cristo e de seguir mais de perto as suas
pisadas, imitando-o no sofrimento?
Anima-te
a receber daqui em diante com humildade as ocasiões de sofrer,
admirando-te de que Jesus te trate nelas como a companheiro. E, se a
natureza grita e protesta, se os sentidos se rebelam, triunfa
gloriosamente deles, opondo a seus gritos e rebelião as máximas do
Evangelho e confessando em face do mundo ignorante esta verdade, tão
certa em si como é certa a Palavra de Deus: – Que não há coisa
de tão sublime dignidade na terra como o padecer por Cristo e por
amor de Cristo: Alegrai-vos
de ser participantes da Paixão de Cristo; porque a honra, a glória
e a virtude de Deus, e o seu Espírito repousam sobre vós.
II – Jesus, padecendo,
suavizou os trabalhos.
Considera
que a Cruz de Jesus Cristo, além de enobrecer em sumo grau, os
nossos trabalhos, também os faz suaves e doces. Os animais bravios
já não são tidos como tais, quando com o trato do homem foram
domesticados.
Pois é isto exatamente o que passa com as tribulações, as quais
noutro tempo, à maneira de feras indômitas, aterravam tanto o nosso
coração; e agora, amansadas com o exemplo de Cristo, nem são
chamadas já tribulações pelos Santos nem lhes causam horror
nenhum, mas até jogam com elas como com inocentes cordeirinhos:
Brincou
(Davi)
com
os leões como se fossem cordeiros.
Desta maneira, os Mártires
chamavam rosas aos carvões acesos, refrigério aos maiores
tormentos, dia de bodas ao da sua morte; e todas as penas lhes
pareciam tanto mais doces, à vista dos padecimentos do Senhor,
quanto eram em si mais cruéis e atrozes; à semelhança do que
acontece com as frutas verdes e azedas, as quais, postas em calda,
são muito mais saborosas do que as maduras.
Como
os Mártires, pensam também todas as almas puras, para quem uma vida
sem Cruz seria a maior cruz; nem saberiam, sem a esperança de sofrer
alguma coisa a exemplo de Cristo, levar com paciência o desterro
desta vida miserável. Até quando, pois, quererás tu ser menino na
virtude, não amando senão o que te agrada? Até
quando, à maneira das criancinhas, haveis de amar as criancices?
O
nosso divino Redentor teve em suma honra o padecer por amor de ti
mais do que homem nenhum jamais padeceu;
e quererás tu continuar a ter medo e horror de padecer tão pouco
por Jesus? À vista de um Deus apaixonado de amor para contigo e em
presença da sua Cruz, não te envergonharás de correr ainda atrás
dos prazeres da terra, quando havias de converter em delícias, por
meio de amor a Jesus, as tuas penas e trabalhos? Ah! Senhor! Quão
poucos são os amigos do sofrimento, apesar de os terdes amado e
suavizado tanto com o vosso exemplo!
Confunde-te
de teres sido até agora contado no número destes; pede humildemente
perdão da tua ignorância e roga ao Senhor, pois se dignou de descer
do Céu à terra para te ensinar, com palavras e exemplos, a
felicidade dos padecimentos, que te dê a graça de sentir o sabor
desta divina ciência, e de achar a doçura encoberta nas
tribulações, para que se verifique também em ti a Palavra divina:
O
coração que chegou a conhecer o preço das suas amarguras,
experimenta um gozo puríssimo e livre de todo o prazer estranho.
III
– Jesus, padecendo, tornou necessários os trabalhos.
Considera que o exemplo de
Jesus paciente, se enobrece e suaviza as nossas dores, também as
tornou necessárias. Aquele excesso de tormentos e humilhações que,
desde o primeiro instante da sua vida mortal até ao último suspiro,
tomou sobre Si o Filho de Deus humanado, não teve somente por fim a
nossa redenção; para isso, bastava um gemido do seu divino Coração.
Quis também ser o nosso verdadeiro guia e modelo, e que nós
fossemos imitadores seus: Para isto fostes chamados à dignidade
de filhos de Deus, pois Cristo padeceu também por nós, dando-nos
exemplo para que sigamos os seus passos.
E assim, quem despreza a cruz
ou foge dela, despreza o excesso dos tormentos, dos exemplos e do
amor de Jesus Cristo, e nem é digno do nome que tem – soldado que
segue a bandeira do Redentor – segundo altamente o declara o mesmo
Senhor, dizendo: Quem não toma a sua cruz e Me segue, não é
digno de Mim.
Para que são, pois, tantos discursos? Para quê tanto deliberar!
Para quê tantas réplicas? “Podes (diz-te também a ti
Jesus Cristo) podes beber o cálice dos sofrimentos
que Eu hei de beber.
Tens ânimo, pelo menos para provar por meu amor esse cálice amargo,
que Eu desejo levar até a última gota por amor de ti? Se o não
tens volta atrás, que não és digno de te alistares debaixo da
Minha bandeira: O que é medroso e covarde, não passe adiante;
torne para trás”.
Não está bem que tenha honra
tão grande quem é para tão pouco que, nem à vista de um Deus
abrindo-lhe caminho, se resolve a seguir as suas pisadas. Revertatur:
“Para trás”. Sim, torne para trás; mas lembre-se que o juízo
da sua vida e ações se há de fazer segundo as aparências que
tiver com o seu divino exemplar, Jesus. O nosso adorável Redentor,
como Imagem substancial do Seu eterno Pai, quis que os seus
escolhidos fossem uma viva imagem da sua vida trabalhosa.
Por conseguinte, que será de
ti, se, em vez de achar em tuas ações conformidade de vida, achasse
uma total dissemelhança? Se tivesses fugido de tudo o que Ele amou,
que são os trabalhos, e amado e abraçado tudo o que Ele fugiu, que
são os prazeres e gostos? E ainda hás de continuar a ter por
inocente uma delicadeza tal e tão monstruosa?
Confunde-te, pois, de todo o
teu coração e faze propósito de não admitir em tuas deliberações,
sobre este assunto, o voto do amor-próprio para nada. Jesus é o
Anjo do Grande Conselho; e não sabe dar-te outro melhor do que o de
seguires ao teu Senhor com a tua cruz às costas. Pede-lhe, pelo
preço do Seu Sangue divino, que dê força ao teu coração fraco, e
com a memória dos seus merecimentos te faça inexpugnável a todas
as acometidas do inimigo. Tendo, pois, Cristo padecido por nós a
morte em sua carne, armai-vos também vós desta consideração.
Oração a Jesus,
desamparado na Cruz,
para alcançar a paciência.
Ó verdadeira consolação dos
atribulados! Ó esperança da minha alma e meu único bem! Que seria
de mim neste momento, se a vossa paciência não tivesse sido
infinita? Como teríeis podido sofrer um coração tão vil como o
meu, que, por mais que Vos vê caminhar adiante e abrir deste modo a
estrada do Céu, não sabe mover um pé para Vos seguir?
Se tivésseis passado a vida
entre delícias, teria eu alguma aparente escusa, quando fujo tanto
do que me custa. Mas, tendo Vós enobrecido tanto os nossos trabalhos
com o Vosso exemplo, tendo-os suavizado e facilitado tanto e, o que é
mais, tendo exalado a alma em tão completo desamparo do Céu e da
terra, que escusa posso eu alegar em minha defesa para fugir tanto ao
sofrimento?
Não acabarei de entender que
estou a vilipendiar o excesso do preço dado por meu resgate, quando
corro atrás do prazer de que Vós sempre fugistes, e fujo dos
padecimentos que Vós sempre abraçastes? Quando me consolais, digo
que sou todo Vosso, peço-Vos que me façais semelhante a Vós,
faço-Vos grandes oferecimentos e parece-me estar resignado por
completo em Vossas divinas mãos.
Porém, se vindes à prova,
miserável de mim! Já sou outro muito diferente do que era, já me
tenho por deixado de Vós, já tenho por boas as razões do
amor-próprio; e já não é pouco, se não me chego a queixar dos
meus trabalhos. Que cego sou! Este é o modo de seguir o exemplo de
um Deus que morre por mim num patíbulo, desamparado do Seu mesmo
Pai? Buscando ao meu Redentor desta maneira, fugindo da Cruz onde O
vejo crucificado, pretendo acaso que hei de dar com Ele?
A Vós, Senhor meu e luz da
eterna verdade, a Vós toca iluminar esta minha cegueira e inflamar
este meu coração em Vosso amor. Se me levais atrás de Vós, com
que ligeireza correrei o caminho da virtude! Mas, se me deixais
entregue as minhas fraquezas, não serei homem para dar um passo.
Esta é a prova que fica ainda por fazer a Vossa divina graça:
mudar-me inteiramente noutro homem.
Não
Vos peço favores nem consolações; só desejo um coração tão
conforme a Vossa
divina vontade, que o amargo
me seja doce e veja com bons olhos qualquer estado de desamparo e
desolação, em que me quiserdes pôr para Vossa maior glória. Que
louvores Vos tributarão os Anjos, se me ouvis? Que fruto tão
estimado do Vosso preciosíssimo Sangue, que glória do Vosso braço
Onipotente será, se de tal sorte fortaleceis este barro do meu ser,
que chegue a resistir a todos os ataques dos meus inimigos!
Esta é a graça que espero da
Vossa bondade; a qual já desde agora começo a agradecer-Vos com
todo o meu coração, confiando que hei de continuar a louvar-Vos por
ela para sempre no Céu. Amém.
Sétima Meditação
Sábado
O Amor de Deus
Consola na Tribulação
________________
I – O amor que Deus nos
tem é origem e causa dos nossos padecimentos.
Considera que o primeiro
desígnio da divina bondade, a respeito do homem, foi tratá-lo
sempre com toda a sorte de regalos; e para este fim, logo depois de o
ter criado, o colocou num Paraíso de delícias, para mais tarde o
trasladar dos prazeres breves da terra aos gozos imortais da vida
eterna no Céu.
Mas,
como Deus Nosso Senhor, à vista da culpa, se viu forçado a mudar
estes planos amorosos, que para nosso bem tinha determinado, e a dar
entrada no mundo aos trabalhos, às lágrimas e ao sofrimento; de tal
maneira quis fazer isto, que esse mesmo justo rigor viesse a ser um
efeito da Sua misericórdia, e fosse tão grande o bem encerrado nas
penalidades desta vida que bastasse a fazer-nos felizes: Tende
por objeto de sumo gozo, irmãos meus, quando cairdes em várias
tribulações.
Assenta
pois, no coração, como fundamento da tua paciência, estas duas
verdades incontestáveis: A
primeira,
é que toda a tribulação, seja qual for, ou venha da natureza ou
dos homens ou do Demônio, não pode te tocar em nada, sem que antes
passe pelas mãos de Deus, sumamente bom: Não
há mal nenhum na cidade, que não seja por disposição do Senhor.
A
outra verdade é,
que esta mesma Providência, assim quando te aflige para castigar as
tuas culpas como quando te prova para te aperfeiçoar na virtude,
sempre o faz com amor incompreensível, à maneira de mãe
amorosíssima, a qual, ao mesmo tempo que põe a seu tenro filhinho
nas mãos do médico para que o cure, chora ao ver as feridas que lhe
fazem, e mistura as lágrimas dos seus olhos com o sangue que o filho
derrama.
Para
que pois te afliges com os trabalhos? Porque assim te desalentas e
quase desmaias? Meu
filho, não desfaleças quando o Senhor te castiga. Porque o Senhor
castiga a quem ama e compraz-se
nele, como um pai em seu filho.
Oh, que formosas palavras são
estas que o Senhor te faz ouvir, se penetrares bem a fundo o sentido
delas!
“Quando,
pois, o teu corpo se vir cercado de dores, quando o teu coração se
inundar de tristeza, quando o teu espírito se vir envolvido em
espessas trevas, quando os homens e os Demônios, os superiores e os
inferiores, os bons e os maus se coligarem todos para te encher de
penas e aflições; traze ao pensamento que, se os açoites são
tantos, a mão que te fere é a Mão de Deus: A
Domino corriperis, ‘É o Senhor que te castiga’.
Pensa também que ferindo-te assim, mostra o Seu grande amor e o bem
que te quer: Quem
enim diligit Dominus, corripit. ‘O Senhor castiga a quem ama’.
Finalmente, quando te está dando esse castigo, também está se
agradando em ver o bem que te faz, como se agrada um pai com o
adiantamento de seu filho: Et
quasi pater in filio complacet sibi. ‘E compraz-se nele como um pai
em seu filho’.”
E
na verdade, se o estar neste mundo sem males fosse para ti um bem,
crês tu, porventura, que o amor de Cristo Senhor Nosso, para
contigo, não te havia de fazer esse bem? Reflete um pouco no muito
que fez para te livrar dos males da outra vida, que são os
verdadeiros males: carregou com toda a sorte de trabalhos; foi “um
varão de dores”, Vir
dolorum;
sofreu na honra e na fama, no Corpo e na Alma, quanto pode inventar a
raiva dos seus inimigos, o furor dos Demônios e a Sua mesma infinita
caridade. E um Deus que tanto padeceu, para que tu não padeças, não
te evitaria os trabalhos, as tribulações e todos os sofrimentos, se
em tudo isto houvesse verdadeiros males, e não pelo contrário,
verdadeiros bens e muito grandes bens, disfarçados com a aparência
de males.
Portanto,
sendo o amor de Deus às nossas almas a causa e origem donde nascem
as tribulações; o amor, o
que as permite; o amor, o que as mede e pesa; o amor, o que sempre as
acompanha; que ingratidão a nossa, se não as recebemos com amor?
Deus oferece-nos por Sua própria mão o cálice amargo, mas salutar,
do sofrimento; e nós fugimos constantemente a bebê-lo. Vemos um
pobre cego fiar sua vida e deixar-se guiar de um animalzinho fiel,
mas sem entendimento; e nós, não acabaremos de nos lançar nas mãos
amorosíssimas de Deus, que tanto nos tem amado desde toda a
eternidade, e que em nada mais parece ter pensado senão em fazer-nos
bem.
II – Os nossos
padecimentos são o meio para alcançarmos o Amor Divino.
Considera que o meio mais apto
para alcançar o amor de Deus é padecer pelo mesmo Deus. O madeiro
da Cruz é o que melhor pode acender em nós o fogo do amor divino,
segundo dizia Santo Inácio; e assim todo aquele que deseja ser
santo, deve pedir a Nosso Senhor que lhe dê muito que sofrer. Não
há meio de levar a cabo a grande empresa de nos revestirmos de Jesus
Cristo, senão começando por arrancar de nós os hábitos do homem
velho; nem pode morrer em nós esta vida terrena, senão pela morte
contínua com o sofrimento.
Sendo
isto assim, quem está resolvido a deixar de viver para a natureza,
para os sentidos, para
o amor-próprio, deve também estar resolvido a não tratar mais de
consolações, senão de tudo o que é cruz. Beberá
da torrente (da
tribulação) no
caminho (da vida);
por isso, levantará
logo a cabeça.
Enquanto não beberes e te saciares desta torrente das penalidades e
trabalhos, não chegarás a levantar a cabeça,
não te elevarás acima de uma virtude muito frágil e vulgar.
Boas
são as consolações espirituais; mas da nossa parte há sempre
perigo que a natureza se acostume a elas e, às vezes, tão
disfarçadamente que nem nós mesmos caímos na conta. Roga também
ao Senhor que, se é necessário ferir por mais tempo a dura pedra do
teu coração, para acender em ti o fogo do divino amor, não perdoe
aos golpes, nem dê ouvidos aos gritos da natureza rebelde; senão
pelo contrário, que vá atravessando a tua alma com a espada da dor,
até reduzir a estado de nada, aborrecer mais que a si mesma, nem
amar nada mais que a Deus; de maneira que possas também dizer com
verdade: Alegrar-nos-emos
pelos dias em que nos humilhastes, pelos anos em que sofremos
calamidades.
III
– Os nossos padecimentos são indício de termos alcançado o
amor divino.
Considera,
que o sinal menos enganoso do amor, é padecer de boa vontade pelo
amado. Os benefícios são certamente boa prova de benevolência, mas
não há neles prova tão segura como nos padecimentos. Porque quem
dá e faz mercês a outro, mostra ter em pouco as próprias coisas,
em atenção à pessoa amada; mas quem padece pelo amigo, a si mesmo
é que mostra ter-se em pouco. E, se é grande coisa fazer a outro
feliz, em favor e para o bem do seu amigo?
Assim
que,
sofrer por Deus com alegria é a prova mais concludente de que O
amamos; nem de outra se serviu Cristo Senhor Nosso quando, para
mostrar o amor que tinha a seu eterno Pai, saiu generosamente ao
encontro da Cruz: Para
que o mundo conheça que amo a meu Pai… levantai-vos e vamos
daqui.
Enquanto,
pois, a alma se acha entre delícias, ainda que sejam delícias
espirituais; enquanto é favorecida com sentimentos e luz interior
ainda que esta luz e estes sentimentos venham do Céu; enquanto
abunda (e neste caso com muito maior razão) em bens da terra; não
pode saber, com bastante segurança e fundamento, se ama
verdadeiramente a Deus.
Quando,
porém, se vê a braços com o infortúnio, com a enfermidade e com
os desprezos; quando sente o desamparo, assim exterior de pobreza e
perseguições, como interior de securas e trevas de espírito,
então, se apesar de tudo, como lua eclipsada, prossegue
ordenadamente o seu caminho, do mesmo modo que antes, bem pode ter
grande confiança de que vai pela senda do divino amor, a qual está
toda semeada de cruzes e eriçada de espinhos.
Esta
foi a glória do Santo Tobias, e será sempre a de todas as almas
escolhidas: não largar nunca a senda da verdade, qualquer que seja a
tribulação que se atravesse: Ainda
que em cativeiro, não deixo o caminho da verdade.
Que glória seria, então, a tua até agora, em seguires a Jesus no
Tabor, se O não acompanhas também até ao Calvário?
Feliz
de ti se podes mostrar o amor que tens a Deus Nosso Senhor, como Ele
mostrou o Seu para contigo. Ele quis ser e mostrou-se por teu amor
Esposo de sangue, a tal ponto, que não duvidou sacrificar por teu
bem a Sua liberdade, a Sua honra, o Seu descanso e a Sua vida; tu
deves dar-Lhe uma prova semelhante da tua fidelidade, sofrendo com
alegria toda a sorte de trabalhos, que, de qualquer parte que venham,
sempre serão para ti um grande bem, levando-te como pela mão até
Deus, com segurança não pequena de O chegares a encontrar: No
dia da tribulação acudi solícito ao Senhor, levantei de noite a
Ele as mãos e não fiquei enganado.
Porque
a Deus Nosso Senhor nunca ninguém buscou em vão no tempo do
infortúnio; tu que O invocaste nesse tempo, e como que O trouxeste a
ti à força de braços, bem podes ter motivos de grande confiança
que finalmente O achaste: Manibus
meis Deum exquisivi, et non sum deceptus.
Talvez te pareça estranho este modo de falar; mas certamente não o
era aos Santos, a quem tu agora chamas bem-aventurados, e que na
realidade o são, precisamente porque padeceram muito, levaram
gozosos o peso da Cruz e permaneceram nobremente fiéis na prova a
que Deus pôs o Seu amor: O
certo é que temos por Bem-aventurados os que padeceram.
Envergonha-te,
pois, de teres vivido até agora como às cegas e a impulsos do
amor-próprio, o qual tão inimigo é da verdade como de ti mesmo.
Além disto, tem entendido que, enquanto não chegares a desafiar os
trabalhos, como os Santos Mártires desafiavam as feras, a que eram
lançados, não podes estar seguro de possuir a caridade, em grau de
perfeição notável. Portanto, confessa as tuas misérias ao Senhor,
e pede-Lhe força para poderes, como o Profeta, oferecer-te a esta
experiência da Cruz, dolorosa sim, mas, salutar, dizendo: Provai-me,
Senhor, e sondai-me; acrisolai no fogo (das
tribulações) os
meus afetos e o meu coração.
Oração à Virgem
Santíssima ao pé da Cruz,
para alcançar a paciência.
Ó
Rainha dos Mártires e Mãe do Santo Amor! Se Vós amastes a Deus
mais do que todas as criaturas, também haveis de ter padecido por
Seu amor mais do que todas. Contemplo-Vos ao pé da Cruz submergida
num mar de dores, imenso como a Vossa caridade; mas, longe de Vos
cansar esse longo martírio, vejo-Vos arder em vivíssimo desejo de
sofrer ainda mais, como fidelíssima Companheira do Vosso Jesus
crucificado. Com estas provas mostrais o muito amor que tendes a
Deus, e com este fogo avivais esse grande incêndio em que já
ardeis.
Mas, estas mesmas provas são
para mim, pobre e miserável, outras tantas repreensões; porque, em
vez de Vos imitar, quereria amar sem padecer e, fugindo da Cruz a
todas as horas, persuado-me que tenho grande amor ao Vosso divino
Filho.
Cego como sou, não acabo de
entender que isto é amar-me a mim mesmo e não a Deus, que é viver
segundo o espírito do velho Adão, condescender com as minhas
perversas inclinações, e não seguir as máximas do meu
amorosíssimo Redentor.
Quem me poderá obter um bem
tão precioso como é a graça de iluminar esta minha cegueira, senão
Vós, Mãe piedosíssima, a cujos pés vejo levantado um trono de
misericórdia? Vós me podeis impetrar esta graça. Ainda mais: (não
Vos ofendais, Senhora, se assim Vos falo) Vós me a deveis impetrar.
Como fostes constituída Mãe nossa, ao pé da Cruz, muito desejais
fazer-nos semelhantes a Vós e ao Vosso divino Filho.
Prostrado, pois, a Vossos pés
e humilhado até ao pó da terra, eu Vos suplico instantemente não
que me livreis das tribulações, mas que me alargueis o coração de
maneira que de hoje em diante as comece a amar tanto como antes as
aborrecia. Só Vós, Senhora, podeis fazer com que eu, quando me vir
desamparado do Céu e da terra, quando não vir em mim senão
misérias, inclinações ao mal e aversão à virtude, não perca o
ânimo em tão duros transes, mas permaneça Convosco no cimo do
Calvário, padecendo e amando, com o Vosso Jesus. Feliz de mim, se
alcanço esta graça! É certo que não a mereço; mas, a glória da
Vossa misericórdia será tanto maior quanto mais indigno sou dela. A
minha confiança não a hei de medir pelos meus merecimentos, senão
pelos Vossos, ó Virgem Dolorosa, e pelos do meu divino Redentor, nos
quais firmemente me apoio, seguro de que jamais ficarei confundido.
Amém.
A. M. D. G.
Ad
majorem Dei gloriam
“Para maior glória de Deus”
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