“De labore solis – Do sofrimento do sol”.
Depois do atentado de 1981, soube que lhe foi fornecido sangue
infectado por um vírus não descoberto. O Papa teve que lutar durante meses
contra o vírus. Eu tentava me lembrar se o Papa parecia sofrer, especialmente
nas últimas semanas e nos últimos dias, mas eu sabia que era um esforço sem
esperança. Karol Wojtyla nunca deixava transparecer o sofrimento. Eu me lembro
de uma recepção na Organização das Nações Unidas para a Agricultura e
Alimentação (FAO). O Papa proferiu um discurso, depois desceu as escadas e caiu
no chão. Parecia mal, seu Secretário, D. Stanislaw Dziwisz queria levá-lo
imediatamente ao hospital, mas o Papa se recusou. Ele insistiu em cumprimentar
pessoalmente todos os aproximadamente duzentos Delegados da FAO, apertar a mão
de cada um. Somente depois deixou que o levassem ao hospital. E se revelou que
ele dera a mão aos Delegados com um braço quebrado. O Papa João Paulo II não
era homem inclinado a reclamar.
… “Esse Karol Wojtyla sofredor se tornou uma potência. Desde a
operação no intestino, em 1992, dizem que sempre tem febre, e desde a operação
nos quadris, em abril de 1994, parece que nunca mais ficou sem dores, ele não
consegue sentar, nem andar, nem ficar em pé sem sentir dores”.
“Eu sei”, disse eu, “ninguém pode dizer, mas todos sabem que a operação
nos quadris foi um erro, alguém cometeu um engano aí”.
“Mas exatamente esse Papa sofredor e lutador”, completou meu
interlocutor; “se tornou uma incrível potência. Pense! Hoje as coisas acontecem
como antigamente seria inconcebível. Mesmo a Ortodoxia, que nos odeia há quase
mil anos, de repente quer se reconciliar com Roma, os Chefes de Estado aparecem
no Vaticano, novamente temos a juventude ao nosso lado. Pela primeira vez desde
séculos somos alguém no cenário político mundial, e isso graças a um homem e
seu sofrimento, porque ele é tão infinitamente convincente, um lutador que
mostra algo único: que a Religião pode fazer bem, que Papas podem fazer mais do
que se deixar carregar numa cadeira na Basílica de São Pedro, que podem criar
paz sem possuir um exército. Os soviéticos passaram por isso”...
… A mídia, naturalmente eu também tinha rido dele. Tinha rido de sua
tentativa de alcançar os jovens. Parecia uma piada sem graça que um homem velho
quisesse ser aceito em todo o mundo por milhões de jovens, e com algo tão
antigo como a mensagem da Igreja Católica. Nem mesmo a indústria do entretenimento consegue
alimentar os jovens do mundo com modas constantemente novas. A moda muda a cada
semana, os brinquedos eletrônicos já parecem antigos quando chegam ao mercado,
e esse homem da Polônia queria vender a mensagem com dois mil anos de idade de
um filho de marceneiro de Nazaré? E quando conseguiu, o mundo não compreendeu
que vários milhões de jovens não só iam à Love Parade, mas também peregrinavam
para o Papa. Cada um que esteve presente naqueles anos sabe por que Karol
Wojtyla conseguiu conquistar os jovens, entusiasmá-los. Ele levava a sério o
que dizia. Ele não fazia tudo aquilo para ganhar dinheiro ou ser reeleito; ele
não queria ensinar as pessoas. Ele acreditava no que dizia e estava pronto a
dar tudo por isso. E ele também sabia que muitos no Vaticano lhe davam as
costas exatamente quando era necessário.
Nunca tinha visto isso de maneira tão drástica como no dia 8 de
novembro de 1999. A delegação do Vaticano chegou da Índia e todos tinham se
intoxicado com a comida na nunciatura em Nova Délhi. Os Cardeais sofriam de
dores de barriga, arrepios, febre alta e depois do pouso em Tiflis, na Geórgia,
todos fugiram o mais rápido possível para o hotel ou para a nunciatura, para
quartos e camas confortáveis. Eles deixaram Karol Wojtyla voar sozinho para a
antiquíssima catedral em Mtskheta para um encontro com os Bispos da Geórgia, o
Papa que estava igualmente doente, que tremia tanto que não conseguia segurar
uma vela. Na época eu temia que ele perdesse a consciência.
Às vezes eu me envergonho por todos esses anos, me envergonho de tê-lo
olhado durante duas décadas, de não tê-lo perdido de vista, mesmo quando ele
simplesmente não podia mais. Ele não só o suportou como ele assim o quis. Essa
era sua mensagem. Teria sido tão fácil para ele dizer simplesmente: agora
chega! Eu não posso mais. Eu fico no Vaticano e não quero mais essas centenas
de câmeras, mas ele não o fez. Ele queria até o fim ser um pescador de homens,
como Pedro. E para mim é muito difícil acreditar que Deus não existe quando me
lembro como o vento folheou a Bíblia sobre seu caixão.
Como ele disse no dia 29 de maio de 1994: “Quando estou diante dos
poderosos do mundo...” e já essa parte da frase era incrível. Todos os
poderosos do mundo, Mikhail Gorbachev, Ronald Reagan e Helmut Kohl e muitos
outros já tinham reconhecido que ele era um dos homens mais influentes do
mundo. Mas ele mesmo não via a coisa assim, ele não se contava entre os homens
poderosos do mundo, ele se via diante dos poderosos como um mendigo. Então, na
época, ele disse: “Quando estou diante dos poderosos do mundo, então o que
posso dizer a não ser falar sobre o sofrimento? Eu quero lhes dizer:
compreendam por que o Papa precisa ir novamente ao hospital, porque ele
precisa sofrer, compreendam, pensem sobre isso”. A debilidade do homem
Karol Wojtyla tornou-se uma parte importante de sua mensagem, ele parecia ser
um montezinho de miséria, mas acompanhado por um Deus todo poderoso. “O
Papa escreveu quatorze Encíclicas, e uma, a mais importante e última, ele
não escreveu, viveu-a. Seu sofrimento se tornou parte de sua mensagem”.
Assim descreveu o então porta-voz do Papa Joaquín Navarro-Valls depois da morte
de Karol Wojtyla.
E agora, aparentemente, esse Papa estava novamente doente, tão doente
que examinavam em segredo seu sangue. Será que Deus deixava esse homem
sofrer para mostrar que o homem era seu instrumento e falava em Seu Nome?
Era nisso que o Papa acreditava...
“Quem esquecerá sua última aparição na janela de seus aposentos? Esforça-se
para falar, mas não lhe sai a voz. Com um último esforço, então, lança o Sinal
da Cruz sobre a multidão reunida na praça e abençoa a todos. Retira-se, mais
curvado ainda, como que pedindo desculpas por não poder falar aos seus amados
filhos. Mas não se entrega. Precisa deixar sua última mensagem. É seu
secretário particular por quase 40 anos que nos conta:
- Ao deixar a janela,
escreve em um papel pela última vez: Totus Tuus.”
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Fonte: Andreas
Englisch, “O Papa dos Milagres – João Paulo II”, Cap. “O Poder do Papa
Sofredor”, pp. 74-82; Universo dos Livros Editora Ltda, São Paulo, 2011.
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