Cada um Pode, se Quiser,
Igualar-se aos Santos em
Virtude
Sempre que
escutássemos falar dos Apóstolos e as suas belas ações fossem celebradas,
deveríamos logo gemer por estarmos a tão grande distância deles. Mas não
pensamos sequer que haja nisto uma falta, e vivemos na ideia de que nos é
impossível atingir semelhantes alturas. E se nos perguntam por que, logo
alegamos esta desculpa estúpida: era Paulo, era Pedro, era João. Que significa:
era Paulo, era Pedro? Dizei-me: não é verdade que aqueles homens participaram
da mesma natureza que nós? Que foram introduzidos no mundo pelo mesmo caminho?
Nutridos com os mesmos alimentos? Que respiraram o mesmo ar? Que se utilizaram
das mesmas coisas? Não havia alguns entre eles que possuíam mulher e filhos,
que exerciam ofícios para viver, e que, inclusive, foram lançados no abismo de
todos os vícios?
– Mas eles
tiveram em abundância o benefício da graça de Deus.
– Ah! Se nos
mandassem ressuscitar os mortos, dar luz aos olhos dos cegos, tornar sãos os
leprosos, fazer os coxos andarem direito, libertar os demoníacos, curar outras
enfermidades deste gênero, a desculpa alegada teria cabimento. Mas quando se
trata de disciplinar a própria conduta e dar provas de submissão, qual a
relação entre isto e aquilo? Também vós gozais da graça divina, por efeito do
Batismo. Tendes a vossa parte do Espírito Santo, se não ao ponto de operar
milagres, pelo menos tanto quanto é necessário para terdes uma conduta correta
e irrepreensível, de sorte que nossa perversão provém unicamente de nossa
indolência...[1]
Nem as Tentações
Diabólicas,
nem os Maus Exemplos
Explicam
e Desculpam as Nossas
Faltas.
O Adversário é
mau, eu o reconheço, mas mau para ele mesmo, se perseverarmos na vigilância.
Tal é a natureza da maldade: ela só é funesta para aqueles que a possuem…
Deus permitiu
intencionalmente que os maus vivessem junto com os bons;[2]
Ele não concedeu aos maus uma terra diferente, nem fez com que os bons vivessem
num outro mundo, mas misturou uns com os outros, realizando, assim, uma obra de
grande utilidade. Os bons demonstram possuir um mérito mais firme quando vivem
e se faze virtuosos, no meio de pessoas que procuram desviá-los do caminho da
justiça e arrastá-los para o mal. Pois, segundo está escrito: “porque, também,
é preciso que haja facções no meio de vós, a fim de que, entre vós, sejam
conhecidos aqueles que são de virtude comprovada”.[3]
Este é pois, o motivo pelo qual Deus permitiu que os maus subsistissem no
mundo: para que os bons brilhem com mais vivo esplendor. Vedes que grande
vantagem para eles? Vantagem que não vem dos maus, mas da coragem dos bons…
O mesmo
raciocínio deve ser observado com respeito ao Adversário: Deus permitiu que ele
também ele estivesse ali para que vos tornásseis valorosos, para que o atleta
tivesse mais esplendor, e maior fosse a grandeza dos combates. Quando, pois,
vos perguntarem: por que Deus permitiu a existência do Adversário? Respondeis
nestes termos: longe de prejudicar os que estão vigilantes e atentos, o
Adversário lhes presta serviço, não em consequência de sua vontade própria (que
é perversa), mas em consequência da coragem destes homens que sabem tirar bom
partido da perversidade dele.
Quando ele se
voltou contra Jó, não foi com a intenção de aumentar-lhe o esplendor, mas de
destruí-lo. Por isso mesmo, pela natureza do propósito e da intenção, ele era
perverso; todavia, ele não causou dano algum ao justo, muito pelo contrário:
foi este último quem tirou proveito do combate, como o demonstramos: o
Adversário deu testemunho de perversidade, e o justo de coragem.[4]
O Erro não é uma
Consequência
Inevitável de Nossa
Natureza
– Mas, direis,
sou constrangido pela natureza; é certo que amo o Cristo, mas a natureza me
constrange a fazer o mal.
– Se sofrêsseis
constrangimento e violência, seríeis perdoados; mas se é por indolência que
caís, não há perdão. Vejamos, pois,; examinemos se as faltas são cometidas por
necessidade ou constrangimento, ou então por indolência e negligência grave.
“Não Matarás”,[5]
está escrito. Que é que vos constrange a fazê-lo? Que é que vos força a tanto?
A pessoa se violenta para matar: quem de nós preferiria, de bom grado, enfiar
uma espada na garganta do próximo e sujar suas mãos de sangue? Ninguém. Assim,
contrariamente ao que pretendeis, é antes para praticar o mal que a pessoa se
constrange e se força. Deus pôs em nossa natureza, como que um encanto, que faz
com que amemos uns aos outros. Vedes que, por natureza, possuímos inclinações
para a virtude? Os vícios são contra a natureza; se eles conseguem triunfar,
isto só prova quão grande é a nossa indolência.
E o que diremos
do adultério? Que necessidade impele as pessoas a praticá-lo?
– A tirania da
concupiscência.
– E quereis
dizer-me por quê? Não vos é permitido manter relações com vossa mulher e pôr,
assim, um termo a essa tirania?
– Mas eu estou
apaixonado pela mulher do próximo!
– Neste caso,
não há constrangimento; o amor não constitui uma questão de constrangimento,
ninguém ama por constrangimento, mas por livre e espontânea vontade. É possível
que a relação carnal se imponha ao homem, mas não o amar esta ou aquela mulher;
o que o leva a agir em tal circunstância, não é o apetite da relação carnal, é
a vanglória, o orgulho, a sensualidade excessiva…
– E o furto, é necessário?
– Sim, é a
pobreza que o causa.
– E eu vos digo
que a pobreza força mais é ao trabalho, e não ao furto. A pobreza age ao
inverso do que dizeis: o furto é o resultado da ociosidade; a pobreza costuma
produzir não a ociosidade, mas o amor ao trabalho. Também o furto, pois,
decorre da indolência. Escutai ainda isto: – que é mais difícil e desagradável:
perambular à noite sem dormir, transpor os muros, caminhar nas trevas, arriscar
a vida, estar pronto para matar, tremer, morrer de medo, ou então aplicar-se
aos trabalhos cotidianos e desfrutar, sem temor, de uma situação de segurança?
Isto é mais fácil; e porque é mais fácil, maior número de pessoas levam esta
vida ao invés da outra.
Vedes que a
virtude se faz segundo a natureza, e o vício contra a natureza; é como a doença
e a saúde. Que dizer da mentira e do perjúrio? Que pode haver neles de
necessário? Nada de necessário, nada de forçado: inclinamo-nos para eles porque
assim o queremos.
– Mas não
acreditam em nós!
– Não acreditam
em nós porque o queremos assim; deveríamos inspirar confiança mais por nosso
caráter que por nossos juramentos. Dizei-me por que acreditamos em certas
pessoas sem que seja preciso que elas jurem, e nos recusamos a acreditar em
outras, apesar de seus juramentos? Os juramentos, pois, não servem para nada…
– E quando se
comete uma injúria, obedece-se à necessidade?
– Sim, a cólera
me faz perder a cabeça, me abrasa, não permite que a minha alma tenha sossego.
– Homem, não é a
cólera, é a mesquinhez da alma que faz com que a pessoa se torne injuriosa. Se
fosse a cólera, todos os homens, estando sujeitos a ela, não cessariam de
injuriar. Nós somos acessíveis à cólera, não para injuriar nosso próximo, mas
para corrigir os faltosos, para reedificar-nos, para livrar-nos do torpor. A
cólera atua em nós como um aguilhão, que deve fazer com que rilhemos os dentes
contra o Adversário, nos tornemos mais enérgicos em dar-lhe combate, e não que
nos voltemos uns contra os outros.[6]
A Origem do Mal
– Mas por que
Deus fez o homem tal qual ele é (quer dizer, inclinado a praticar o mal)?
– Não foi Deus
quem o fez assim, absolutamente; pois, então, ele não o teria castigado. Não
censuramos os que nos servem, quando nós mesmos estamos em falta? Com muito
mais razão Deus, Senhor do mundo, não nos teria censurado. Como, então, o homem
se tornou o que é? Por sua própria culpa, por culpa de sua indolência… Deus
criou todos os homens? É evidente que sim. Como, pois, acontece que não sejam
todos iguais no que se refere à virtude e ao vício? De onde vêm os maus e os
perversos? Se a vontade não desempenha nisto papel algum, se tudo depende da
natureza, como é possível que uns sejam isto e outros aquilo? Se todos fossem
maus naturalmente, seria impossível a alguém ser bom; se fossem bons naturalmente,
impossível ser mau. Sendo a natureza uma só para todos os homens, todos
deveriam ser, relativamente a uma única sorte, bons ou maus. Diremos que uns
são bons naturalmente e outros maus? (o que não teria sentido, como já o
demonstramos). Então, estas maneiras de ser deveriam ser imutáveis, pois o que
é natural é imutável. Por exemplo: somos todos mortais, sujeitos ao sofrimento,
e ninguém pode ficar impassível, por maior que sejam sua obstinação; ora,
sabemos que muitos homens passaram de bons a maus, ou que, sendo antes maus,
passaram a ser bons; no primeiro caso por indolência, e no segundo caso por
aplicação; o que mostra que estas maneiras de ser não são naturais, visto que
as qualidades naturais não mudam e não se adquirem à força de aplicação. Assim como
não temos necessidade de fazer esforços para ver ou ouvir, também não seria
necessário esforçar-nos para praticar a virtude, se fosse a própria natureza
quem no-la tivesse dado em comum. E por que Deus faria pessoas más, quando pode
fazer com que todos os homens sejam bons?
Então, de onde
vem o mal? Fazei a vós mesmos esta pergunta; minha tarefa consiste em mostrar
que ele não tem origem, nem na natureza nem em Deus.
– Então, ele vem
ao acaso?
– Absolutamente.
– Ele não vem,
então, de coisa alguma?
– Calai-vos,
fugi da loucura de conceder a mesma honra, e a mais elevada honra, a Deus e ao
mal. Pois, se o mal não tem origem em coisa alguma, será onipotente, e, por
conseguinte, não poderá ser extirpado nem aniquilado. O que não tem origem em
coisa alguma, efetivamente, não tem fim: isto é fato comprovado. E, se o mal
tivesse tanto poder, como se explicaria que houvesse, outrossim, tão grande
número de homens de bem? Como poderiam os seres que têm começo ser mais
poderosos que o mal, que não o teria tido?
– Mas Deus pode
suprimir o mal.
– Quando? E como
Ele poderia suprimir o que goza das mesmas honras que Ele e de um poder igual,
o que é, por assim dizer, da mesma idade? Ó malícia do Adversário! Quantos
males ele não inventou! Quantas blasfêmias ele não sugeriu contra Deus! Como
ele soube imaginar, sob pretexto de piedade, uma impiedade nova! Querendo-se
estabelecer que o mal não vem de Deus, introduziu-se outros dogmas perverso, a
saber, que Ele não teria tido começo.
– Mas, enfim,
qual a origem do mal?
– No fato de
querermos ou não queremos, está a sua origem.
– E o fato de
querermos ou não querermos, de onde vem tal coisa, por sua vez?
– De nós mesmos…
O mal não é outra coisa, senão a desobediência para com as Leis de Deus.
– Mas de onde o homem
aprendeu tal coisa?
– Dizei-me: era
muito difícil aprender isto? Eu também não digo que tenha sido difícil; mas de
onde lhe veio esta vontade de desobedecer?
– De sua
indolência. Tendo a liberdade de inclinar-se para um lado ou para o outro, ele
preferiu inclinar-se para o mal. Se, depois desta resposta, estais ainda
embaraçados e confusos, eu vos farei uma pergunta, que não é nem difícil nem
complicada, uma pergunta bem simples e clara.
– Tendes sido
ora bons, ora maus? Quer dizer: já vos aconteceu ora triunfardes sobre a
paixão, ora serdes vencidos por ela? Ora sucumbirdes à embriaguez, ora
vencerdes a embriaguez? Ora cederdes ao impulso da cólera, ora não lhe
cederdes? Ora desdenhardes um pobre, ora não o desdenhardes? Ora prevaricardes
por impudicícia, e em seguida serdes castos?
– Qual a origem,
pois, de todas estas variações? Qual? Se vós mesmos não o dizeis, eu o direi: é
que vos tendes aplicados e feito esforços, e ora vos tendes relaxado e entregue
à indolência.[7]
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Fonte: O Esplendor Cristão, Vol. 1, “São João
Crisóstomo”, 1ª Parte, Cap. I, “O Livre-Arbítrio”, pp. 19-25; Ação Carismática
Cristã – Fundação São João Crisóstomo, Rio de Janeiro, 1978.
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