Os
protestantes de todos os matizes estabelecem como princípio, que
Deus concedeu a todos os homens o livre exame dos livros da Bíblia
como meio de cada qual reconhecer com segurança a verdade religiosa,
isto é, o que deve crer e praticar; que para este fim inspirou os
autores destes diversos livros; e concede aos que os lerem a
assistência do seu Espírito. Ora, este princípio é fecundo em
toda a espécie de contradições.
§
1º
Contradições
Resultantes das Impossibilidades
Inerentes
à Aplicação do Princípio.
I
É
claro para todo o homem razoável que se Deus, infinitamente sábio,
estabeleceu para toda a gente a prática do livre exame, havia de
torná-la possível a todos. Mas, ao mesmo tempo, é certo que,
durante muitos séculos, que precederam a invenção da imprensa, foi
fisicamente impossível esse exame à grande maioria dos homens, seja
porque existia apenas limitadíssimo número de manuscritos da
Bíblia, seja porque a arte da leitura era mui pouco divulgada; ou
porque a maior parte dos leitores, não conhecendo a língua original
dos livros da Bíblia, achavam-se fora do estado de verificar a
exatidão das traduções, ou de certificar-se da fidelidade daqueles
que poderiam fazer-lhes a leitura. Primeira contradição.
II
É
evidente, que devo usar do livre exame de modo racional, e por
consequência, a minha primeira investigação será saber se os
livros da Bíblia são ou não autênticos, e se a esse respeito
merecem a minha confiança.
Mas,
ao mesmo tempo, é certo que esta questão científica, supondo que
não é superior às minhas forças, ultrapassou sempre as da grande
maioria dos homens. É igualmente certo que, neste particular, não
posso encostar-me à autoridade dos sábios, o que nunca se fez,
porque não estão e nunca estiveram de acordo a tal respeito; e
ainda sobretudo, porque o ato de nos regularmos pela autoridade dos
sábios, equivale a abjurar o livre exame. Segunda contradição.
III
É
evidente que, ainda supondo a autenticidade dos livros da Bíblia,
demonstrada por mim e pela maior parte dos homens, tenho a examinar
com eles se estes livros não foram interpolados, introduzindo-lhes
fábulas e doutrinas errôneas no decorrer dos séculos. Mas, ao
mesmo tempo, é certo que esta questão é insolúvel para eles e
para mim próprio. Terceira contradição.
IV
É
manifesto que supondo esta questão resolvida afirmativamente, por
modo seguro, ainda me resta examinar se esses livros foram realmente
inspirados por Deus, sem o que de nada me serviria ter a certeza da
sua autenticidade e integridade.
Mas,
também é certo, que não tenho meio algum infalível de segurar-me
sobre esta inspiração, e que o mesmo sucede aos outros homens;
porque se lhes dessem a ler, sem advertência prévia, um dos quatro
livros da Imitação de Jesus Cristo
e o Cântico dos cânticos,
e que se lhes perguntassem qual dos dois é inspirado por Deus, não
hesitariam em optar por algum dos primeiros. Quarta
contradição.
V
É
claro que era possível que esses livros fossem em parte inspirados
no que é doutrinal, e deixassem de
sê-lo na outra parte, que é histórica. Mas ao mesmo tempo é certo
que não tenho critério algum infalível por onde possa discernir as
partes inspiradas das que poderiam não o ser. Quinta
contradição.
VI
Supondo
mesmo a autenticidade, integridade e inspiração dos livros da
Bíblia, e que disto haja certeza, não posso assentar as minhas
crenças e as regras da moral senão comparando as diversas passagens
dos diferentes Livros Sagrados uns com os outros, a fim de me apossar
do verdadeiro sentido de cada um; explicar umas pelas outras e
discernir o que é figurado do que é dito no sentido próprio, o que
é Preceito do que só é recomendação ou conselho. Mas também, eu
sou incapaz deste trabalho, e a maior parte dos homens não está
para isso melhor habilitada do que eu. Sexta
contradição.
§
2º
Contradições
Resultantes
da
Origem e Consequências do Livre Exame.
I
É
claro que teria sido indigno de Deus o escolher, para restituir a
Igreja, fundada pelos Apóstolos, à sua pureza doutrinal e santidade
primitivas, por meio deste princípio, homens cuja vida e caráter
formassem com os mesmos Apóstolos um hediondo contraste, e que, além
disso, privados de todas as cartas de crédito superior, não
confirmassem a sua doutrina por algum fato sobrenatural.
É
todavia certo que, Lutero e Calvino, que se supõe haverem recebido
de Deus a missão de pregar o livre exame, como base fundamental da
sua reforma, se apresentem no espelho da história, comprovada por
escritos, dignos de toda a fé, um, como amigo de boa mesa, dado à
embriaguez e à voluptuosidade, gracejador grosseiro, ou, para melhor
dizer, chocarreiro imundo, orgulhoso, arrebatado, fogoso e insensato;
o outro, menos vicioso, arrogante e desesperado, mas de caráter
sombrio e altivo, maligno e cheio de agrura artificiosamente
tranquila; áspero no seu trato, intolerante até à crueldade,
déspota para com aqueles que o contradizem, não lhes poupando as
injúrias mais afrontosas; ambos pregando com descaramento a
inutilidade das boas obras, e confirmando a imoralidade desta máxima
pelo seu repreensível comportamento. E por outra parte, não
provaram a sua missão por qualquer ato miraculoso; e nem os seus
aderentes lhes atribuem esse testemunho inegável de uma missão
divina. Sétima
contradição.
II
É
evidente que um princípio,
donde os seus autores têm
deduzido imediata e logicamente uma consequência, que equivale à
negação da liberdade humana, e à negação do princípio mesmo, é
claramente falsa.
Mas
também é certo, que Lutero afirma “ser o livre arbítrio
apenas uma quimera, e que todos os nossos atos se fazem pela vontade
de Deus, o qual torna as nossas ações necessárias e imutáveis”;
que, segundo Calvino, cuja doutrina confirmou e desenvolveu Beza, o
mais fiel e afamado dos seus discípulos, “a vontade de
Deus faz a necessidade das coisas, e os maus não podem evitar a
necessidade de pecar, que recebem de Deus mesmo”:
o que destrói o princípio
do livre exame, porque, como pode o homem examinar com liberdade, se
esta lhe falta? Oitava
contradição.
III
É
manifesto que se o Espírito de Deus assiste os leitores da Bíblia,
para lhes fazer conhecer exatamente o sentido dos textos, só pode
inspirar a todos a mesma interpretação, porque não pode
contradizer-se. Mas também é certo, que não acontece assim, porque
grande número de passagens importantes da Bíblia são interpretadas
em sentidos diametralmente opostos por uma multidão de homens, todos
animados de boa fé. Nona
contradição.
IV
É
óbvio que Deus, infinitamente verdadeiro, devia escolher, para fazer
conhecer aos homens com exatidão a verdade religiosa, um meio que
devesse acautelá-los de caírem no erro, e por força de maior razão
um meio que não fosse
manancial inexaurível de antagonismos nas crenças.
Mas
é incontestável que, desde a origem do Protestantismo, o livre
exame só tem produzido divisões profundas, dúvidas insolúveis,
cujo número cresce constantemente, de modo que os dogmas mais
positivamente afirmados pelos autores deste sistema, a Trindade, a
Divindade de Jesus Cristo, a Necessidade do Batismo, a Eternidade das
Penas, são hoje negados ou postos em dúvida pelos adeptos desta
doutrina. Décima
contradição.
V
Deus,
infinitamente Santo, devia escolher meios próprios para afastar os
erros morais, assim como os erros dogmáticos.
Mas
também é certo que, o meio, cuja escolha se supõe que Ele fizera,
só foi bom para dar nascimento a uns e outros erros, porque os
homens, usando do livre exame, podem racionalmente, tanto na moral
como no dogma, interpretar a Bíblia em sentidos diametralmente
opostos e deduzir dela as doutrinas mais
abomináveis e infames, como é a Seita Protestante dos Mórmons,
cujas doutrinas só podem revoltar as almas honestas. Décima
Primeira contradição.
VI
Deus,
essencialmente Uno e
imutável nos seus pensamentos e vontades, não podia escolher, para
fazê-los conhecer, um meio essencialmente fomentador de divisões e
variações. – Mas também é certo que, o princípio do livre
exame produz tantas divisões e variações, que M. Vinet, ministro
protestante suíço, homem muito distinto, fez esta notável
confissão: “Só se vê na Bíblia o que se quer ver, de
modo que, na realidade, cada qual tem a sua Bíblia e tira dos seus
textos os erros mais anti-bíblicos. Todas as aves do ar, desde a ave
noturna até a águia, que ama o sol, fazem os seus ninhos nos ramos
desta árvore imensa”.
Décima Segunda
contradição.
VII
É
evidente que, é impossível que Deus me haja conferido o direito de
todos os dias variar nas minhas crenças religiosas.
Mas
é certo que, se Deus me concedeu a faculdade do livre exame, deu-me
o direito de crer hoje com Lutero na Presença Real de Jesus Cristo
na Eucaristia; e amanhã, com toda a evidência lógica, com os
calvinistas, que só aí está figurado; que Ele me deixou entregue a
todas as oscilações de uma razão incerta e de uma imaginação
inconstante, sem me fornecer prova alguma da sua assistência pró ou
contra esta ou aquela interpretação da Escritura. Décima
Terceira contradição.
VIII
É
óbvio que, em virtude do livre exame, posso crer na divindade de
Jesus Cristo, e consequentemente na infalibilidade das Suas
promessas. Mas, simultaneamente posso crer que faltou a elas, porque,
quanto a mim, a Sua Igreja, contra a qual prometeu solenemente “que
nunca prevaleceriam as portas do Inferno e com a qual prometeu de
estar até ao fim do mundo”,
tornou-se falível pouco depois da morte dos Apóstolos; e o Inferno
prevaleceu contra Ela, deixando Jesus Cristo de estar com Ela durante
muitos séculos, até a chegada dos reformadores protestantes, que
vieram no século décimo sexto. Décima Quarta contradição.
IX
É
claro que Deus não podia conceder aos homens o direito lógico de
anular a religião que lhes revelou.
Mas
também é certo, que se o princípio do livre arbítrio vem de Deus,
deu-lhes esse direito; porque, por virtude do mesmo, tem os homens o
direito de logicamente pôr em questão a autenticidade, integridade,
a inspiração e o sentido dos livros da Bíblia, uns após outros; e
por consequência de ficarem indecisos a respeito de todos estes
pontos, se o exame não lhes confere bastante satisfação, e
tornarem assim inútil a revelação. Décima Quinta contradição.
Apêndice
Não
tenho que examinar aqui as outras religiões opostas ao Cristianismo,
porque umas são evidentemente contrárias à razão; outras, não
tendo autoridade alguma indefectível de ensino, abandonam
necessariamente o homem à sua razão individual em matéria de fé,
fraternizando mais ou menos com o livre exame do Protestantismo. Com
efeito:
1º
As religiões pagãs são manifestamente absurdas, e consagram
práticas abomináveis.
2º
Os sistemas religiosos bramânico e budista, misto de panteísmo e
metempsicose, não demandam evidentemente exame e discussão. O mesmo
sucede ao sistema dos letrados
da China, cuja doutrina tem por base um panteísmo filosófico, e não
é na verdade mais do que uma espécie de positivismo, ao qual
aqueles, que aspiram aos cargos administrativos, adicionam o culto
oficial prestado aos gênios do céu e da terra, das estrelas, das
montanhas, dos rios, assim como às almas dos parentes falecidos.
3º
O Islamismo tem os caracteres palpáveis de uma religião feita por
mão humana e de um impostor, na sua doutrina favorável às paixões
e interesses grosseiros deste mundo; na promessa que faz de um
paraíso de voluptuosidades depois desta vida; na força brutal e
sanguinária com que impôs em outro tempo a crença àqueles que
resistiam a todas estas seduções; no seu pretenso livro sagrado do
Alcorão, onde as contradições absurdas e anacronismos abundam, e
aquilo de bom que encerra acerca de Deus e da moral é um plagiato de
Moisés e do Evangelho.
4º
O judaísmo não existe como religião, porque não tem altar, nem
sacrifício, nem sacerdócio levítico: é só a sombra de um passado
figurativo que devia acabar e acabou, como se demonstrará, na
terceira parte desta obra; e essa sombra resolve-se hoje para a maior
parte dos israelitas em indiferença religiosa, e em alguns no desejo
de uma transformação judaica com culto e dogma, acomodados à
moderna; ou até em um deísmo mais ou menos vago, para não dizer em
um racionalismo sem símbolo, prestando-se a toda a espécie de
erros.
5º
As diversas religiões heréticas ou cismáticas tem, como princípio
fundamental, que não existe autoridade infalível de ensino
doutrinal, e colocam deste modo a crença religiosa à mercê da
razão individual, que é,
por sua natureza, variável e falível; não oferecem pois ao
espírito descanso algum logicamente sobrenatural, e abrem, pelo
contrário, a porta a
todos os ventos de doutrina.
O cisma russo, em particular, é apenas uma vassalagem absurda da
razão individual à autocracia dogmática do Tzar, representado por
um sínodo, ao qual preside em nome do Imperador um dos seus
generais, e que é evidentemente falível; e o cisma grego não tem
no Patriarca de Constantinopla senão um chefe sem dignidade, sem
independência, sujeito a todos os caprichos do Sultão; autoridade
falível, e que ninguém reconhece.
E
deste modo ninguém é capaz de prever onde terminarão as divisões, subdivisões e fracionamentos de uma Igreja sujeita à terrível
lógica do erro.
______________________________
Fonte: Cônego E. Barthe, “Motivos da Minha Fé Religiosa”, 1ª Parte, Cap. XII, pp. 165-179. 2ª Edição, J.J. de Mesquita Pimentel – Editor, Porto, 1882.
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