“Meus filhos, diz o nosso Santo, não há caminho mais curto nem mais seguro para adquirir a perfeição, do que sofrer por Jesus Cristo, que é nosso Soberano Bem”.
Frei Pedro arrebatava-se todo quando evocava a Encarnação: Quando lerdes o Evangelho, dizia aos confrades, juntai as mãos e tende um profundo respeito. Esse livro trata do Mistério sublime de um Deus que se fez homem por nosso amor”.
Frei Pedro faz um pacto com o irmão burro. “Esse mundo, não é um lugar de consolação; por isso, combinarei com o corpo de não lhe dar descanso nessa vida em troco de repouso na outra”.
Frei Pedro oprime constantemente o corpo, que, depois de resistência assanhada, se dobra e vigia quase a noite inteira. “Não gosto de dormir, dizia a Teresa d’Ávila; o sono faz o que a própria morte não faz: leva-nos a esquecer o Bom Deus, separa-nos de sua presença”.
Queixa-se o corpo de frio? Uns gestos expressivos, que evocam os bonecos de neve feitos por Francisco ao clarão da lua1, fecharão a boca do (corpo) resmungão. Frei Pedro abre porta e janela do quarto, despoja-se do manto, entrega-se tiritante às mordidas do inverno. Depois transido de frio, quase morrendo, fecha a porta, veste-se de novo e pergunta sarcasticamente ao (corpo) “protestante”: “Eia, meu amigo, foi um regalo para ti, não te zangues; estás satisfeito? Agora que estás à vontade negar-te-ás ainda a rezar?” O corpo exigente ficou, é claro, sem réplica.
O jesuíta Ribera apertava com estupor um pedaço informe de papel, em que Frei Pedro havia rabiscado, para o uso de Santa Teresa, diretivas de magnífica elevação. Uma frase marcante e vigorosa revela a alma desse desprendimento: “Guardai-vos muito, meus filhos, de possuir ou desejar o que quer que seja. Esses desejos não podem ocupar o coração sem dele banir ou alterar o amor de Deus… Quem se contenta com o menos torna-se mais semelhante ao Senhor, o qual, tendo tudo em Si mesmo, de nada necessita”.
Os Bispos, os grandes do mundo o procuram com instâncias. As multidões lhe arrancam pedaços do hábito. Ele permanece calmo e pensa consigo: “Não estás tu morto para o mundo? Deixa-te, pois, tratar como um morto que, apesar de lhe darem incenso, permanece insensível a tudo”.
“A humilhação é o pão dos Santos”, gostava de dizer. “O Demônio receia as vigílias, os jejuns, as orações, a pobreza voluntária, a humildade e sobretudo a superioridade da alma que ama a Deus”.
Por outro lado, não significa que ele sujeitasse os outros ao seu regime. Insiste com Teresa para que se modere na penitência. Ela protesta: “Por que tanta indulgência para mim e tanto rigor para o senhor?” Frei Pedro limita-se a responder: “Irmã, não tenho mérito nisso, comigo é costume”. O próprio Deus, a seu pedido, havia-lhe insensibilizado o corpo.
O “Tratado da Oração” testemunha em muitas passagens esse sadio equilíbrio, característica da autêntica santidade. Falando da sonolência que impede a conversação com Deus, ele sublinha que “o sono vem por vezes da necessidade, e então o remédio está em não recusarmos ao corpo o que é preciso para que ele não nos impeça de dar o que devemos à alma”.
Essa amizade se estende aos favoritos do Salvador. Desde a infância, nosso Santo se consagrara a Maria. Ela é a Rainha de seus conventos. Que alegria quando o Bispo de Olivenza presenteia o convento de Valverde com uma imagem de culto já secular! Na procissão que trouxe a Senhora, Frei Pedro parecia fora de si. No eremitério de Nossa Senhora de Belém, muito próximo do mosteiro de Vilhaviciosa, ouviam-no exclamar: “Ó Maria, ó Maria! Virgem Santíssima, Mãe de Deus, Rainha do Céu, Senhora do mundo, Santuário do Espírito Santo, Lírio de pureza, Rosa de paciência, Paraíso de delícias, Espelho de castidade, Exemplo de inocência, intercedei por esse pobre peregrino, e dai-lhe uma parcela da plenitude de vosso amor”. Será que nos haveremos ainda de admirar que a Imaculada lhe tenha aparecido durante o Ofício, cercada de Anjos luminosos? E que, na hora da morte, ela em pessoa o tenha vindo acolher e dar-lhe a felicidade?
A oração era para Frei Pedro a chave da santidade. Ele escreveu a um dos penitentes, em estilo penetrante e piedoso, à maneira da Imitação de Cristo: “A oração nutre a caridade, firma a fé, fortifica a esperança, rejubila o espírito, descobre a verdade, vence a tentação, dissipa a tristeza, renova os santos propósitos, anima a virtude murcha, afasta o tédio, consome a ferrugem dos vícios e aumenta as chamas vivas dos desejos do Céu e o fogo do amor divino. Oh! Que o mérito da oração é poderoso, pois que, para ele os céus se abrem!” – “Reze sempre, acrescentava, e estará em segurança. Não se canse em procurar esse alimento espiritual, esse refresco, esse orvalho celeste, esse ardor do Espírito Santo, essa afeição sobrenatural que fortifica o coração, embriaga-o de um amor novo pelas coisas do alto e inspira aversão pelas coisas da carne”. Não há recomendação feita aos discípulos mais insistente do que essa.
A essa altura o amor se torna devorador. Transformador. Não podendo mais conter as chamas, Frei Pedro atira-se num tanque onde permanece por três horas, fixando a Cruz. O amor lhe arranca gritos que expressam o mesmo das incandescentes estrofes de Francisco de Assis, de Teresa d’Ávila, de João da Cruz.
“Espíritos de fogo, serafins que conheceis o que seja o amor e sua força, vinde em meu socorro porque desfaleço de amor e não encontro alívio para o meu sofrer. Vós que purificastes os lábios do profeta Isaías, queimai minha alma com as chamas de vosso ardente amor, para que eu não ame a não ser o meu Senhor, que só n’Ele eu encontre repouso e n’Ele eu viva por todos os séculos”.
No convento do Rosário, muitas vezes os confrades ouviram-no suspirar: “Ó minha esperança, minha glória, meu refúgio e minha alegria! Ó amabilíssimo entre os amados! Ó querido e amável esposo! Ó doçura de meu coração! Ó agradável e belo dia da eternidade! Ó resplandecente luzeiro de meu paraíso interior! Ó Princípio, único digno de ser amado! Ó toda a minha abastança, quando me chamareis, quando me levareis, quando me haveis de afogar em Vós para que não possa jamais me perder? Quando afastareis todos os obstáculos que me impedem de ir a Vós e me fareis um mesmo espírito convosco, para que eu nunca me separe de Vós? Ó Bem Amado, Bem Amado de minha alma! Doçura de meu coração! Ouvi-me, Senhor, e não olheis a baixeza minha, mas, a vossa infinita misericórdia”.
Provavelmente ele terá percebido entre os admiradores, gulosos do maravilhoso, um instinto servil de imitação que se perde longe dos caminhos palmilhados. Tratou com dureza os sonhadores espirituais. “Há pessoas que, depois de terem recebido algum favor na oração, não sabem mais medir o tempo nem guardar a discrição nos exercícios de piedade; vai nisso, a meu ver, um perigo. Entregam-se sem moderação às preces, às vigílias, às macerações até que a natureza sucumbe; dessa maneira tornam-se incapazes de todo o trabalho externo e do próprio exercício da oração. Importa, por conseguinte, nessas coisas, usar de grande prudência, sobretudo no início, quando se tem muito fervor e pouca experiência e discrição”.
Quanto ao apetite do prodigioso, eis como ele o enquadra no justo lugar: “Meu irmão, os êxtases não constituem a santidade. Sirvamos a Deus em espírito e em verdade. Apeguemo-nos às devoções sólidas, pratiquemos a Lei de Deus e as boas obras; o resto não é nada”. “Não alimentemos curiosidade pelas revelações; não procuremos saber as coisas ocultas; leiamos a Sagrada Escritura e não tenhamos outro cuidado senão o de cumprir o que Deus nos manda”. “É preciso ser pressuroso em ocultar os favores e os dons que Deus nos faz; exceção feita apenas para o Diretor Espiritual. Por isso, São Bernardo diz que o homem devoto deve ter escrito na cela estas palavras: ‘Meu segredo é meu exclusivamente, meu segredo é meu’. É bom que uma pessoa perita na matéria nos diga que a experiência mística muitas vezes não é mais do que um belo precipício!”
Citemos ainda umas regras de ouro onde vem expresso seu delicado amor para com o próximo. “A paz e o amor são os braços da alma; é com eles que ela abraça apertadamente a virtude e se liberta dos vícios. Uma máxima incontestável que o Céu nos ensina, é que a paz torna o coração do homem capaz de possuir a Deus. O gozo ou a privação de sua presença depende da conservação ou afastamento da paz. A verdadeira caridade não só não Vê mal algum nos outros, mas também receia encontrá-lo. Se o percebe por acaso, desvia os olhos e finge não o ter visto. Observem exatamente essa regra geral em todas as ações que empreenderem. Sempre que escutarem falar qualquer coisa má de alguém, mesmo que haja fundamentos para isso, não julguem mal, mas parem o pensamento naquilo que a pessoa tem de bom. Pensem bem dela e não deem ouvidos, sob pretexto nenhum, ao que lhes disserem em contrário; a caridade lhes tornará suspeita qualquer tentativa de os persuadir diferentemente e não permitirá que o acreditem”.
“Meus amigos, dizia ainda, é uma marca infalível da presença de Deus numa alma, quando ela mostra interesse em encontrar o bem no mal; é verdade que há gente arguta por descobrir os defeitos mesmo nas coisas mais perfeitas; já que cada um fala da abundância de seu coração, a alma possuída de inveja e dominada pela malícia trai-se a si mesma e revela-se pela linguagem. Mas aquela que está todo possuída pela caridade pensa e fala bem de todo o mundo e pensa que os outros são muito mais perfeitos que ela e servem a Deus com maior fidelidade”.
Nosso místico, como vimos, tem uma saúde moral robusta e seus pés estão solidamente plantados no chão das realidades. Ele se pintou a si mesmo neste trecho do Tratado da Oração: “A alma, por maiores graças que tenha recebido de Deus e por mais favorecida que seja, não deve nunca deixar de voltar os olhos para si mesma, de considerar sua indignidade, de recolher as asas e humilhar-se diante de tão grande Majestade”. Frei Pedro era digno de receber as confidências de uma Santa Teresa.
Que nos adianta prolongar a análise ou fazer citações? Melhor é terminarmos com este tópico que sintetiza perfeitamente a doutrina de nosso Santo: “Não procuremos as revelações, as coisas maravilhosas e extraordinárias, mas sim aquelas que o Senhor diz e ensina no Evangelho e nos propõe a Santa Igreja Romana. Muitas vezes nesses assuntos o Demônio se transforma em Anjo de luz. Amemos a cela e o recolhimento. Falemos interiormente com Deus. Apresentemos o coração despido de tudo diante de Sua Majestade e coloquemo-nos em suas mãos. Dediquemo-nos à oração e aos cuidados celestiais conforme a obediência o permitir. Enquanto andarmos com ela estaremos em caminho seguro e Deus nos ajudará… Queremos afastar-nos do pecado? O remédio é rezar. Isso não significa que a oração encerra todas as virtudes. Sozinha, ela é insuficiente para santificar a alma, mas ela é, como disse um Santo, causa de toda a virtude e da justiça… Quanto mais formos santos e amigos de deus, mais nos entregaremos à oração e mais tempo a ela dedicaremos”.
Que equilíbrio e que sabedoria nessas frases testamentárias do mais louco dos ascetas e mais caloroso dos amantes!
Santa Teresa assim qualificou essas coisa: “Conheci um religioso chamado Frei Pedro de Alcântara, que julgo um Santo, já que sua vida e seus atos não deixam disso dúvida, que passava muitas vezes por louco extravagante junto dos que o ouviam falar; e certamente ele era louco de fato, mas tratava-se de loucura de que estava possuído o profeta quando convidava, no cântico do Benedicite, todas as criaturas do Céu e da terra a louvar a Deus…”.
Reflexão de Ouro Puríssimo2
Um dia, o conde de Oropesa, seu amigo, se lamentava das desordens e dos escândalos da sociedade. Disse então o Santo:
“Vossa Senhoria não se aflija; para isto há um remédio: antes de tudo, sejamos nós dois aquilo que devemos ser, e teremos feito já a parte que nos toca; cada um faça o mesmo, e a reforma será certamente eficaz. O mal é que cada um fala em reformar os outros, e ninguém pensa em reformar-se a si próprio, e deste modo fica o mal sem remédio”.
O conde ficou edificado com esta prudente resposta e dela tirou proveito.
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Fonte: Frei Estefânio José Piat, O.F.M., “São Pedro de Alcântara, Patrono do Brasil”, Caps. III, IV, V e VI, pp. 18-58. Editora Vozes Ltda, Petrópolis/RJ, 1962.
1. Uma vez, sentindo São Francisco tentação contra a castidade, despiu-se e se pôs ao relento, em pleno inverno, a fazer bonecos de neve. Armou um boneco maior e alguns menores. Depois disse para si mesmo: pronto, Francisco, aí está tua mulher e teus filhos, trata de dar-lhes de comer. A essa altura, gelado de frio que estava, já não sentia o instinto tentador.
2. São Pedro de Alcântara, “Tratado da Oração e Meditação”, Notícia Biográfica, p. 25. Editora Vozes Ltda, Petrópolis/RJ, 1951.
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