Blog Católico, para os Católicos

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"Uma vez que, como todos os fiéis, são encarregados por Deus do apostolado em virtude do Batismo e da Confirmação, os leigos têm a OBRIGAÇÃO e o DIREITO, individualmente ou agrupados em associações, de trabalhar para que a mensagem divina da salvação seja conhecida e recebida por todos os homens e por toda a terra; esta obrigação é ainda mais presente se levarmos em conta que é somente através deles que os homens podem ouvir o Evangelho e conhecer a Cristo. Nas comunidades eclesiais, a ação deles é tão necessária que, sem ela, o apostolado dos pastores não pode, o mais das vezes, obter seu pleno efeito" (S.S. o Papa Pio XII, Discurso de 20 de fevereiro de 1946: citado por João Paulo II, CL 9; cfr. Catecismo da Igreja Católica, n. 900).

sábado, 22 de abril de 2023

CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIRTUDE DA HUMILDADE, INCLUSIVE, A DA SANTÍSSIMA VIRGEM E DE SÃO JOSÉ.


1ª Parte


Das Virtudes Cristãs1


Virtude. (do latim “virtus”, “vis”, força). Segundo a etimologia, a palavra “virtude” significa “força”. Para fazer o bem, é necessário lutar contra as inclinações que levam ao mal: a prática da virtude exige, portanto, esforços.

Teologal. (do grego “theos”, Deus e “logos”, discurso). As virtudes teologais são assim qualificadas, ensina São Tomás, porque é Deus, o seu objeto imediato, porque vêm de Deus, e fundam-se na Revelação divina.

Moral. (do latim “moralis”, “mores”, costumes). As virtudes morais, são assim designadas, porque seu fim, é pautar o procedimento, e dizem respeito aos bons costumes. Seu objeto direto não é Deus. Quando sobrenaturalizadas, levam-nos a obrar por motivos de fé, e então, têm a Deus como objeto indireto.

Cardinal. (do latim “cardinalis”, principal; de “cardo”, gonzo2). São Tomás para justificar esta designação, diz que as virtudes cardinais, são o fundamento de todas as outras, análogas as dobradiças que sustentam a porta.

Definição

Virtude. A virtude, no sentido geral, é o hábito do bem3, ou seja, é uma disposição da alma que nos leva a fazer o bem e a evitar o mal.4 Pode-se dizer ainda, que é a facilidade de praticar o bem, adquirida pelo exercício constante, e a inclinação da vontade para o bem.5

Bem – é o que se conforma com a vontade de Deus, isto é, o que agrada a Deus. – Pelo exercício de escrever, pintar, nadar, esgrimar, jogar, adquire-se uma certa habilidade (hábito) para estas coisas, e a vontade ganha inclinação para elas. O mesmo acontece com as ações boas ou más. O exercício faz-nos mestres (São Francisco de Sales alcançou tal domínio sobre a ira que chegou a pedir perdão a quem o injuriava). O hábito é uma segunda natureza. Quando nos habituamos a uma coisa, não a deixamos facilmente. (O imperador Tito entristecia-se no dia em que não houvesse dispensado algum benefício). – Os pagãos entendiam por virtude a força corporal, e raras vezes a força moral.6

A virtude é:

a) hábito (do latim “habitus”, estado), isto é, qualidade permanente e não ação passageira.

b) hábito do bem. Assim como o vício é tendência que nos incita ao mal, assim também a virtude estabelece, em nós, uma disposição que nos impele a praticar o bem.

Espécies

A. No ponto de vista da sua FONTE, cumpre distinguir: a) virtudes adquiridas, e, b) virtudes infusas.

a) Virtudes adquiridas, são hábitos formados pela repetição dos mesmos atos, ou pela continuação das mesmas impressões. De um lado, a repetição dos mesmos atos comunica as nossas faculdades maior força, maior império, e mais facilidade, para executá-los. A prática é que faz os mestres. De outro lado, a continuação das mesmas impressões embota a sensibilidade: assim é que uma pessoa se acostuma ao frio, ao calor, aos cheiros, e até certo ponto, ao sofrimento.

b) As virtudes infusas, são produtos da graça. Chamam-se infusas, porque Deus as infunde, em nossa alma, com a justificação. Desde que acompanham a graça santificante, vão avultando ou diminuindo com ela, e se desvanecem com o pecado mortal, com exceção, no entanto, da fé e da esperança.

B. No ponto de vista da NATUREZA, as virtudes são: a) naturais, ou, b) sobrenaturais.

a) Virtudes naturais, nós as adquirimos por meio, unicamente, das forças da natureza, e para lograrmos alguma vantagem terrena.

b) As virtudes sobrenaturais, pertencem à ordem da graça. Seu fim é conduzir-nos a nosso destino supremo, à Bem-aventurança do Céu.

Também se chama virtude, a simples aptidão para praticar ações virtuosas, infundidas por Deus (virtude sobrenatural infusa), ou conatural ao homem.

Há certas aptidões inatas ou naturais, ou disposições para a prática das virtudes morais. Alguns homens são, por natureza ou índole, inclinados à mansidão, à docilidade ou obediência, à generosidade, etc. Assim, encontramos alguns que entre os pagãos brilharam por estas virtudes naturais. Em sentido metafórico, aplica-se este conceito da virtude mesmo aos animais (o cão é fiel, o elefante é casto, o cavalo é generoso, etc.). Há outras virtudes sobrenaturais infusas, que o Espírito Santo comunica, juntamente, com a graça santificante, no mesmo instante da justificação, isto é, no Batismo ou na Penitência; com elas nos confere aptidão para praticar os atos sobrenaturais das virtudes. Mas estas virtudes não dão facilidade para a prática dos seus atos, a qual só se obtém pela repetição deles. Estas virtudes infusas crescem ao mesmo tempo que a graça santificante e perdem-se com ela pelo pecado mortal (exceto a fé e a esperança infusa, que só se perdem pela infidelidade ou desesperação). Em relação ao exercício dos atos virtuosos, essas virtudes são como as potências da alma em relação aos seus atos, os quais não se exercem com facilidade, se à potência não se ajuntam os hábitos. Por isso, para a firmeza da vida virtuosa, é necessário que às virtudes infusas se juntem as virtudes adquiridas pela repetição dos atos. As virtudes infusas são como sementes depositadas na alma do justo (mesmo da criança batizada que não chegou ao uso da razão), as quais se devem cultivar com a prática dos atos virtuosos.7

Depois da morte só alcançarão prêmio as virtudes sobrenaturais, com as quais fazemos o bem com os olhos postos em Deus, em pleno estado de Graça Santificante.

Sucede nisto como nas boas obras, as quais só serão premiadas com glória eterna se forem sobrenaturais, isto é, feitas em estado de graça. Quem não está unido com Cristo, como a vara à videira, não pode produzir frutos de vida eterna.8 Só as ações que se fazem em Deus são merecedoras do Céu.9 Estas virtudes, que produzem frutos de vida eterna, chamam-se perfeitas, sobrenaturais ou cristãs. Há virtudes naturais (imperfeitas), que se inspiram em motivos puramente naturais e têm só prêmios temporais.10 Tais são as que tiveram os pagãos, movendo-se pela honestidade natural, sem ser com os olhos em Deus, ou então pela reputação entre os homens, etc. Santo Agostinho diz que Deus premiou aos romanos estas virtudes naturais com a glória e extensão do seu império. As virtudes naturais diferenciam-se das cristãs, como os objetos dourados dos que são de ouro maciço, ou como o ímã do ferro magnetizado. O ferro magnetizado não adquire em si mesmo a força magnética e só atua com ela enquanto dura o influxo exterior; como a virtude natural, enquanto a favorecem as circunstâncias humanas. Mas o ímã tem uma virtude intrínseca, com a qual se orienta sempre na direção do polo; como a virtude sobrenatural, que por si se volta para Deus. A virtude sobrenatural é uma participação da vida divina, e diviniza o homem que a possui.11

C. No ponto de vista do OBJETO, as virtudes classificam-se em: a) virtudes teologais, e, b) virtudes morais.

a) Virtudes teologais, têm como objeto imediato, Deus. São: a Fé, a Esperança, e a Caridade. Estas três virtudes promanam sempre da graça, e portanto, não podem deixar de ser sobrenaturais ou infusas. Desempenham, na vida cristã, papel saliente, porquanto merecem estudo acurado… As outras virtudes morais, são as que pautam nossos costumes e comportamentos, para conosco e para com o próximo. Referem-se a Deus só indiretamente. As virtudes morais, podem ser naturais ou sobrenaturais. Quando naturais, não são apanágio12 dos cristãos: também os pagãos as podem ter. Quando sobrenaturais, elevam-se a um grau mais alto de perfeição, por efeito da graça, a qual tem por função desenvolver e acrisolar o bem que existe na natureza humana.

Dentre as virtudes morais, que são assaz numerosas, destacam-se, geralmente, quatro principais, ditas cardinais, por causa da sua importância. Vêm a ser: prudência, justiça, fortaleza e temperança.

Além das quatro virtudes cardinais, convém mencionar as virtudes morais opostas as vícios capitais: humildade, oposta ao orgulho; desapego, oposta à avareza; castidade, oposta à luxúria; caridade, oposta à inveja; temperança, oposta à gula; paciência cristã, oposta à ira; e, a diligência, oposta à preguiça. Falemos, neste breve ensaio, apenas sobre a virtude da humildade.

Da Virtude da Humildade13

Esta virtude14 poderia, sob certos aspectos, considerar-se anexa da justiça, pois que nos inclina a tratar-nos a nós mesmos como merecemos. Considera-se, contudo, geralmente anexa da temperança, porque modera o sentimento que temos da nossa própria excelência. Exporemos: 1º) a sua natureza; 2º) os seus graus; 3º) a sua excelência; 4º) os meios de a praticar.

I. Sua Natureza. 1º) A humildade é uma virtude que os pagãos não conheceram: para eles, a humildade designava algo de vil, abjeto, servil, ignóbil. O mesmo não passava entre os Judeus: iluminados pela fé, os melhores dentre eles, os justos, cônscios do próprio nada e miséria, aceitavam com paciência a provação como meio de expiação. Deus, então, inclinava-Se para eles, para os socorrer; comprazia-Se em escutar as orações dos humildes, e perdoava ao pecador contrito e humilhado. Quando, pois, Nosso Senhor Jesus Cristo veio pregar a humildade e mansidão, puderam os Judeus compreender a sua linguagem. Nós, porém, compreendemo-la melhor ainda, depois de havermos meditado os exemplos de humildade que Ele nos deu na Sua Vida oculta, pública e padecente, e não cessa de nos dar na Sua Vida Eucarística.

Pode-se definir a humildade: uma virtude sobrenatural que, pelo conhecimento que nos dá de nós mesmos, nos inclina a nos estimarmos em nosso justo valor e a buscarmos o abatimento e o desprezo. Mais concisamente a define São Bernardo:15 “virtus qua homo, verissima sui agnitione, sibi ipsi vilescit”. Esta definição melhor se compreenderá, quando houvermos exposto o fundamento da humildade.

2º) Fundamento. A humildade tem um duplo fundamento: a verdade e a justiça: a verdade, que faz, com que nos conheçamos a nós mesmos tais quais somos; a justiça, que nos inclina a tratar-nos em conformidade com esse conhecimento.

A) Para nos conhecermos a nós mesmos, diz São Tomás, é necessário ver o que em nós pertence a Deus e o que nos pertence a nós, como próprio; ora, tudo quanto há de bom vem de Deus e a Deus pertence, tudo quanto há de mau ou defeituoso vem de nós: “In homine duo possunt considerari, scilicet id quod est Dei, et id quod est hominis. Hominis autem est quidquid pertinet ad defectum; sed Dei est quidquid pertinet ad salutem et perfectionem”.16

A justiça exige, pois, imperiosamente que se dê a Deus, e a Deus só, toda a honra e glória: “Regi saeculorum immortali et invisibili, soli Deo honor et gloria...17. Benedictio, et claritas, et sapientia, et gratiarum actio, honor et virtus et fortitudo Deo nostro”.18

Não há dúvida que alguma coisa boa há em nós, o nosso ser natural e sobretudo os nossos privilégios sobrenaturais. A humildade não nos impede de os ver e admirar; mas, assim como, quando se admira um quadro, é para o artista, que o pintou, que vai a nossa homenagem, e não para a tela, assim também, quando admiramos os dons e graças de Deus em nós, é a Ele e não a nós mesmos que se deve dirigir a nossa admiração.

B) Por outra parte, a nossa qualidade de pecadores condena-nos à humilhação. Em certo sentido, não somos de nós mesmos senão pecado, porque, nascidos no pecado conservamos em nós a concupiscência que nos leva ao pecado.

a) Ao entrarmos no mundo, viemos já contaminados com a mácula original, de que só a misericórdia divina nos pode purificar. b) E quantas faltas atuais não temos nós cometido desde o primeiro despertar da nossa razão! Se cometemos um só pecado mortal, merecemos por esse motivo, eternas humilhações. Mas, ainda quando não hajamos cometido senão faltas veniais, devemo-nos lembrar que a menor delas é uma ofensa a Deus, uma desobediência voluntária à Sua Lei, um ato de revolta pelo qual preferimos a nossa vontade à Sua: uma vida inteira passada na penitência e humilhação não bastaria para expiá-la. c) Mas, além disso, conservamos em nós, ainda depois de regenerados, tendências profundas para o pecado, para toda a espécie de pecados, de tal sorte que, segundo o testemunho de Santo Agostinho, se não temos cometido todos os crimes do mundo, à graça de Deus o devemos.19

Devemos, pois, por justiça, amar as humilhações, aceitar todas as afrontas; se nos dizem que somos avaros, desonestos, orgulhosos, devemos convir nisso, porque conservamos em nós a tendência a todos esses defeitos. “E assim, conclui M. Olier,20 em qualquer enfermidade, perseguição, desprezo e outra aflição, é necessário pormo-nos do partido de Deus contra nós mesmos, e dizer que tudo isso merecemos justamente e ainda mais, que Ele tem direito a usar de todas as criaturas para nos castigar, e que adoramos a grande misericórdia que Ele exerce agora sobre nós, pois sabemos perfeitamente que no tempo da Sua justiça nos tratará mais rigorosamente”.

Eis aqui, pois, o duplo fundamento da humildade: não sendo de nós mesmos mais que nada, devemos amar o esquecimento e o abatimento; pecadores, merecemos todos os desprezos e humilhações.

HUMILDADE. É virtude oposta ao orgulho; virtude desconhecida do mundo pagão21. Leva o homem a reconhecer a sua verdadeira situação, os seus defeitos, o seu nada. A humildade impregna nossas relações:

a) Com Deus. O homem humilde confessa que é simples criatura, e Deus, o Criador. Proclama que tudo vem de Deus. Julga-se profundamente indigno das Suas dádivas.

b) Com nossa própria pessoa. Quem é humilde, sabe o lugar que lhe compete, as qualidades e os defeitos que tem. Não quer dizer que aumente suas misérias, suas falhas, e diminua ou desconheça seus talentos, ou se furte às honras todas, não. Gosta da verdade, e não ambiciona dignidades que não sejam legítimas pelo valor e pelo merecimento.

c) Com o próximo. Quem é humilde não tem, de certo, que estabelecer paralelos deprimentes; mas, quando faz comparações, sabe por em relevo e admirar os dotes, as vantagens que Deus preparou aos outros. Recebe os elogios com a maior singeleza; mas, não faz coisa alguma para atraí-los, para granjear aplausos.

Humildade e Mansidão:22 Dize, muitas vezes, com Santo Agostinho: “Senhor, fazei-me conhecer quem sois Vós e quem sou eu, para que Vos ame e me despreze”. Sabes quantos pecados cometestes; sabes que tua vida inteira é uma cadeia ininterrupta de faltas e que merecestes talvez mais castigo do que recompensa, por tuas boas obras, visto estarem cheias de imperfeições. Persuade-te, pois, que ignomínia e desprezo é que mereces, e alegra-te quando os tiveres de suportar.

Nunca fales coisa alguma em teu louvor, quer se trate de teus talentos, de tuas boas obras, de teres ilustre descendência ou de qualquer outra prerrogativa. Quando, porém, fores louvado por outros, humilha-te interiormente, lançando um vista a teus pecados. Sendo criticado, não te irrites com isso, agradece antes a quem te repreende, pois seria muito injusto, como diz São Bernardo, se quisesses te irritar contra aquele que te mostra o caminho da salvação. Mesmo sendo a repreensão injusta, deves, por amor à santa humildade, renunciar à tua defesa, a não ser que a tua justificação seja necessária para evitar um escândalo público. Convence-te que, para chegares à perfeição, deves ser humilhado sensivelmente.

Ainda que todos que te circundam fossem Santos, Deus saberia dispor as coisas de tal maneira que encontrarias toda a espécie de contradição, e serias desprezado, criticado e posposto aos outros. Por isso, toma a peito a bela admoestação que o Pe. Torres dava a seus penitentes: “Rezai todos os dias um Pai Nosso e uma Ave Maria em louvor da vida desprezada de Jesus e oferecei-vos para suportar não só com calma, mas até com alegria, toda a adversidade e desprezo que Deus vos enviar; pedi-Lhe ao mesmo tempo Seu auxílio para que possais executar a vossa resolução”.

Não te deixes dominar jamais pela ira, aconteça o que acontecer. Se às vezes te sentires internamente irritado, encomenda-te quanto antes a Deus, reprime tua língua e nada faças antes de se acalmar por completo tua irritação.

Se tiveres de dar alguma ordem a alguém, faze-o mais suplicando do que mandando. Se tiveres de agir com severidade, acautela-te contra todo o azedume, tão desaprovado por São Tiago; ajunta sempre à séria exortação algumas palavras de bondade.

Mostra-te benévolo e caridoso para com todos, em toda a ocasião e lugar, mas especialmente quando encontrares alguma contradição. Para esse fim, prepara-te na oração para todas as contrariedades que te poderão suceder; assim, praticaram os Santos essa prática levou-os a suportar com paciência todas as ofensas, e até pancadas e maus tratos. Não percas igualmente a coragem à vista de teus próprios defeitos, mas ergue-te com toda a tranquilidade de tua queda, humilha-te diante de Deus e continua resolutamente o teu caminho.

Os Diversos Graus de Humildade23

Há diferentes classificações, segundo os diversos pontos de vista em que nos colocamos. Não indicaremos senão os principais, que se podem reduzir a três: os de São Bento, os de Santo Inácio de Loyola e os de M. Olier.

1º) Os doze graus de São Bento. Cassiano havia distinguido dez graus na prática da humildade. São Bento esta divisão, acrescentando-lhe mais dois graus. Para compreendermos o fundamento desta classificação, é necessário recordar que São Bento encara esta virtude como “uma disposição habitual da alma, que regula o conjunto das relações do monge com Deus na verdade da sua dupla qualidade de criatura pecadora e de filho adotivo”.24 Funda-se na reverência para com Deus, e, compreende, além da humildade propriamente dita, a obediência, a paciência e a modéstia. Entre esses doze graus, sete referem-se aos atos internos, e cinco aos externos.

Entre os atos internos classifica:

1. O temor de Deus, sempre presente aos olhos de nosso espírito, e fazendo-nos praticar os Mandamentos: temor dos castigos primeiro, depois temor reverencial, que remata na adoração: “timor Domini sanctus, permanens in saeculum saeculi”.25

2. A obediência, ou submissão da nossa vontade à de Deus: é claro, que, se temos reverência e temor de Deus, faremos a Sua vontade em tudo. Esta obediência é sem dúvida um ato de humildade, visto ser a expressão da nossa dependência para com Deus.

3. A obediência aos Superiores por amor de Deus, pro amore Dei. É mais dificultoso submeter-se aos Superiores que ao próprio Deus: de fato, é necessário mais espírito de fé, para ver a Deus nos Superiores, e mais perfeita abnegação, porque esta obediência se aplica a maior número de coisas.

4. A obediência paciente, ainda nas coisas mais dificultosas, suportando as injúrias sem queixumes, tacita conscientia, ainda mesmo e sobretudo quando a humilhação vem dos Superiores: para o conseguir, pensar na recompensa celeste e nos sofrimentos e humilhações de Jesus.

5. A confissão das faltas secretas, incluindo os pensamentos, ao Superior,26 fora da Confissão sacramental. É este ato de humildade um freio poderoso: a ideia de que será necessário manifestar as faltas mais ocultas, trava muitas vezes a queda para o abismo.

6. A aceitação cordial de todas as privações, ocupações vis, considerando-se inferior ao seu ofício.

7. Julgar-se sinceramente, do fundo do coração, o último de todos os homens: “Si omnibus se inferiorem et viliorem intimo cordis credat affectu”. É raro este grau; os Santos chegam lá, refletindo que, se os outros tivessem tido tantas graças como eles, seriam melhores.

Estes atos internos, manifestam-se por atos externos. Eis os principais:

8. A fuga da singularidade: não fazer nada de extraordinário, mas contentar-se do que é autorizado pela Regra comum, pelos exemplos dos antigos e pelos costumes legítimos: querer singularizar-se é, efetivamente, sinal de orgulho ou vaidade.

9. O silêncio: saber calar enquanto não nos interrogam, ou enquanto não há uma boa razão de dar o parecer, e ceder aos outros ocasião de falar. De fato, na ânsia de tomar a palavra, há muita vaidade.

10. A moderação no rir: São Bento não condena o rir, enquanto é expressão de alegria espiritual, mas tão somente o riso de má pinta, a gargalhada estridente ou zombeteira, ou a disposição habitual a rir pronta e ruidosamente, que mostra pouco respeito da presença de Deus e pouca humildade.

11. A reserva nas palavras: Quando se fala, fazê-lo suave e humildemente, sem gritos, com a gravidade e sobriedade do homem sisudo.

12. A modéstia no porte: Andar, assentar-se, estar de pé, olhar modestamente, sem afetação, a cabeça ligeiramente inclinada, o pensamento em Deus e na própria indignidade de levantar os olhos ao Céu: “Domine, non sum dignus ego peccator levare oculos meos ad caelum”.

Depois de haver explicado os diferentes graus de humildade, acrescenta São Besto, que eles levam ao amor de Deus, ao amor perfeito que exclui o temor: “Ergo his omnibus humilitatis gradibus ascensis, monachus mox ad caritatem Dei perveniet illam quae perfecta foris mittit timorem”. O amor de Deus, eis pois o termo aonde guia a humildade: o caminho é árduo, mas os píncaros aonde conduz são o mais remontado do amor divino.

2º) Os três graus de Santo Inácio. Para o fim da segunda semana dos Exercícios, antes das regras sobre a eleição, propõe Santo Inácio ao exercitante três graus de humildade, que são, afinal, três graus de abnegação.

1. O primeiro, “consiste em me abater e humilhar quanto em mim caiba, para obedecer em tudo à Lei de Deus Nosso Senhor: de sorte que, nem que me fizessem senhor de todas as coisas criadas neste mundo, nem que me ameaçassem de me tirar a vida temporal, eu não ponha sequer em deliberação a possibilidade de transgredir um Mandamento de Deus ou dos homens, que me obrigue sob pena de pecado mortal”. Este grau é essencial a todo o cristão que quer conservar o estado de graça.

2. O segundo grau de humildade, é mais perfeito que o primeiro. “Consiste em me encontrar numa inteira indiferença de vontade e afeto entre as riquezas e a pobreza, as honrar e o desprezo, o desejo de longa vida ou vida curta, contanto que daí provenha para Deus glória igual e igual utilidade para a salvação da minha alma. Além disso, ainda quando se tratasse de ganhar o mundo inteiro, ou de salvar a minha própria vida, não vacilaria em rejeitar qualquer pensamento de cometer para esse fim, um só pecado venial”. É disposição já muito perfeita, a que não chegam senão muitos poucos.

3. “O terceiro grau de humildade é perfeitíssimo. Encerra os dois primeiros, e além disso, supondo que o louvor e glória da Majestade divina sejam iguais, quer que, para eu imitar mais perfeitamente a Jesus Cristo Nosso Senhor, e me tornar de fato mais semelhante a Ele, prefira, abrace a pobreza com Jesus Cristo pobre, antes que as riquezas; os opróbrios com Jesus Cristo deles saturados, antes que as honras; o desejo de ser tido por homem inútil e insensato, por amor de Jesus Cristo, que primeiro foi tido como tal, antes que passar por homem sábio e prudente aos olhos do mundo”. É o grau dos perfeitos, é o amor da Cruz e da humilhação, em união com Jesus Cristo e por Seu amor; quem chega lá, está no caminho da santidade.

3º) Os três graus de humildade, segundo M. Olier. Depois de haver exposto no Catecismo Cristão, a necessidade da humildade e a maneira de combater o orgulho, explica M. Olier, na Introdução, os três graus de humildade interna que convêm às almas já fervorosas.

1. O primeiro é comprazer-se, no conhecimento de si mesmo, da sua vileza e baixeza, dos seus defeitos e pecados. O mero conhecimento das próprias misérias não é humildade; há pessoas que notam os próprios defeitos, mas se entristecem com isso, e buscam em si alguma perfeição que as ponha a coberto da confusão que experimentam: é um efeito da soberba. Mas, quando a alma se compraz no conhecimento das próprias misérias, quando ama a sua própria vileza e abjeção, então é verdadeiramente humilde.

Quem teve a infelicidade de cometer um pecado, deve detestá-lo sem dúvida, mas ao mesmo tempo, amar a vileza a que se encontra reduzida pelo pecado. Para se comprazer em suas misérias, deve o homem refletir que este sentimento honra a Deus, precisamente porque a nossa pequenez faz realçar a Sua grandeza, como os nossos pecados fazem sobressair a Sua santidade. A alma protesta assim que não vale nada, que é incapaz por si mesma de fazer o bem, mas que tudo vem de Deus, tudo depende d’Ele e tudo deve ser operado por Ele em nós.

2. O segundo grau, é gostar de ser conhecido por vil, por abjeto, por nada e pecado, e de passar por tal no conceito de todos. É que, efetivamente, se, conhecendo e amando a nossa miséria, quiséssemos ser estimados dos homens, seríamos hipócritas, desejando parecer melhor do que somos.

É esta, infelizmente, a nossa tendência; daí nasce a pena que sentimos, quando se descobrem as nossas imperfeições, o cuidado que temos de sair bem em nossas empresas e adquirir a estima dos homens. Ora, apetecer essa estima, é ser ladrão, porque é desejar apropriar-nos do que pertence ao Ser Supremo. A alma humilde, pelo contrário, não se inquieta do que possam dela pensar; sofre, quando a louvam, e preferiria mil afrontas a um só louvor, visto aquelas se fundarem na verdade e este na mentira.

3. O terceiro grau, é querer ser não somente conhecido, senão tratado por vil, abjeto e desprezível; é receber com alegria todos os desprezos e humilhações possíveis; numa palavra, é desejar ser tratado como merece. Ora, que desprezo não é devido ao nada, que nada tem em si de recomendável, e sobretudo que confusão não é devida ao pecado, que nos afasta do verdadeiro Bem, que é Deus?!

E assim, quando Deus nos envia aridezes, desamparos e repulsas interiores, devemos tomar o partido de Deus contra nós, e confessar que Ele tem razão de rejeitar com desdém as nossas obras e pessoas. Do mesmo modo, se somos maltratados pelos nossos Superiores, iguais e até mesmo inferiores, devemo-nos alegrar disso como da coisa mais justa, mais vantajosa para nós e mais conforme ao desejo de Jesus Cristo. Nem sequer se deve, por soberba, aspirar a um alto lugar no Céu; é certo que devemos querer amar a Deus tanto como Ele deseja, e ser fiéis, para chegarmos ao ponto de glória e felicidade que Ele nos prepara; mas, quanto ao lugar que ocuparemos no Céu, é preciso entregar-nos nas mãos de Deus.

Então estamos em verdadeiro aniquilamento, e não temos mais que Deus, que vive e reina em nós mesmos”.

Conclusão. Cada um dos aspectos que expusemos, segundo São Bento, Santo Inácio e M. Olier, tem a sua de ser; pertence ao Diretor aconselhar o que melhor corresponda ao estado de alma do penitente.

A Excelência da Humildade27

Para compreender a linguagem dos Santos a este propósito, é necessário distinguir entre a humildade em si, e a humildade como fundamento das outras virtudes.

1º) Considerada em si, a humildade, diz São Tomás,28 é inferior às virtudes teologais, que têm a Deus por objeto direto, inferior até a certas virtudes morais, como a prudência, a religião, e a justiça legal, que diz respeito ao bem comum; mas é superior às outras virtudes morais (exceto talvez a obediência), por causa do seu caráter universal, e porque nos submete à ordem divina em todas as coisas.

2º) Se, porém, se considera a humildade, enquanto é a chave que abre os tesouros da graça, e o fundamento das virtudes, é, no dizer dos Santos, uma das virtudes mais excelentes.

A) É a chave que abre os tesouros da graça: “humilibus autem dat gratiam”.29

a) Deus sabe, efetivamente, que a alma humilde não se compraz nas graças que lhe dá, que não se desvanece com elas, antes pelo contrário, refere a deus toda a glória que delas provém; pode, pois, fazer afluir a ela a abundância dos Seus favores, pois desse modo será aumentada a Sua glória. Vê-Se obrigado, pelo contrário, a retirar a Sua graça aos soberbos: “Deus superbis resistit”,30 porque estes a monopolizam para seu proveito e fazem dela um título de glória para si mesmos; o que Deus não pode suportar: “Gloriam meam alteri non dabo”.31

b) Por outro lado, a humildade esvazia-nos a alma do amor-próprio e da vanglória, e assim prepara nela para a graça uma vasta capacidade, que Deus sumamente deseja encher; porque, como diz São Bernardo, há estreita afinidade entre a graça e a humildade: “Semper solet esse gratiae divinae familiaris virtus humilitas”.32

B) É também o fundamento de todas as virtudes; é, se não a mãe, ao menos a nutriz de todas elas, sob um duplo aspecto, a saber: sem ela não há virtude sólida, com ela todas as virtudes se tornam mais profundas e perfeitas.

1. Como o orgulho é o maior obstáculo à fé, é certo que a humildade torna a nossa fé mais pronta, mais fácil, mais firme, e até mais esclarecida: Abscondisti haec a sapientibus et prudentibus, et revelasti ea parvulis”.33 Como é mais fácil cativar a inteligência sob a autoridade da fé, quando temos consciência da dependência em que estamos de Deus! “In captivitatem redigentes omnem intellectum in obsequium Christi”.34 E reciprocamente a fé, mostrando-nos a infinita perfeição de Deus e o nosso nada, confirma-nos na humildade.

2. O mesmo se diga da esperança: o orgulhoso confia em si mesmo e presume demasiado das próprias forças; quase nem pensa em implorar o auxílio divino. O humilde, pelo contrário, põe toda a confiança em Deus, porque desconfia de si mesmo. A esperança, por sua vez, torna-nos mais humildes, porque nos mostra que os bens celestiais estão de tal modo acima das nossas forças que, sem o auxílio onipotente da graça, não os poderíamos alcançar.

3. A caridade tem por inimigo o egoísmo; é, pois, no vácuo de nós mesmos que aumenta o amor de Deus; e este, por sua vez, torna mais profunda a humildade, porque nos sentimos ditosos em nos eclipsarmos diante d’Aquele que amamos. E assim, com razão diz Santo Agostinho, que não há nada mais sublime que a caridade, mas que só quem é humilde a pratica: “Nihil excelsius via caritatis, et non in illa ambulant nisi humiles”.35 Do mesmo modo, para exercitar a caridade para com o próximo, não há meio mais seguro que a humildade, que lança um véu sobre os seus defeitos, e nos faz ter compaixão das suas misérias, em vez de nos indignarmos contra ele.

4. A religião é tanto mais perfeitamente praticada quanto mais claramente se vê que tudo se deve aniquilar e sacrificar a Deus.

5. A prudência exige-a: os humildes folgam de refletir e consultar antes de empreenderem qualquer coisa.

6. A justiça não se pode praticar sem humildade, porque o orgulho exagera os seus direitos em detrimento dos do próximo.

7. A fortaleza cristã, como vem não de nós mesmos, senão de Deus, verdadeiramente só existe naqueles que, cônscios da própria fraqueza, se apoiam no Único que os pode fortificar.

8. A temperança e a castidade, já vimos que supõem a humildade. A mansidão e a paciência não se praticam bem, senão quando se sabem aceitar as humilhações.

Assim pois, se pode dizer que sem humildade não há virtude sólida e duradoura, e que por ela, ao contrário, todas as virtudes crescem e se enraízam mais profundamente na alma. Podemos concluir com Santo Agostinho: “Desejas elevar-te? Começa por te abaixar. Sonhas construir um edifício que se levante até o Céu? Estabelece primeiro o fundamento sobre a humildade. E quanto mais elevada há de ser a construção, mais profundos têm que ser os alicerces: Magnus esse vis? A minimo incipe. Cogitas magnam fabricam construere celsitudinis? De fundamento prius cogita humilitatis”.36

A Prática da Humildade37

Os principiantes combatem sobretudo o orgulho, como indicamos (anteriormente). Os proficientes esforçam-se por imitar a humildade de Nosso Senhor Jesus Cristo.

1º) Esforçam-se por atrair a si os sentimentos de Jesus humilde. É expressamente o que nos diz São Paulo: “Hoc enim sentite in vobis quod et in Christo Iesu: qui, cum in forma Dei esset… exinanivit semetipsum”.38 É necessário, pois, meditar muitas vezes, admirar e esmerar-se em reproduzir os exemplos de humildade que Jesus nos deu na Sua vida oculta, na Sua vida pública, na Sua vida padecente, e que não cessa de nos dar na Sua vida eucarística.

A) Na vida oculta, o que Jesus sobretudo pratica é a humildade de obscuridade.

a) Pratica-a, antes de nascer, encerrando-Se durante nove meses no seio de Maria, onde oculta os Seus atributos divinos da maneira mais completa, “exinanivit semetipsum”; submetendo-Se a um edito de César, “exiit edictum a Caesare”;39 sofrendo, sem se queixar, as repulsas desdenhosas de que é vítima Sua Mãe, “non erat eis locus in diversorio”;40 padecendo sobretudo da ingratidão dos homens, que não pensam em Lhe preparar um lugar nos seus corações, “in própria venit et sui eum non receperunt”.41

b) Pratica-a no Nascimento, onde nos aparece como um menino pobre, enfaixado, colocado numa manjedoura, sobre uns retraços de palha: “invenietis infantem, pannis involutum, positum in praesepio”.42 E este menino é o Filho de Deus, igual ao Pai, a Sabedoria Incriada!

c) Pratica-a em todas as circunstâncias que seguem o Nascimento: como um menino vulgar, é circuncidado, resgatado pelo preço de duas rolas; é obrigado a fugir para o Egito, a fim de escapar à perseguição de Herodes, Ele, que com uma só palavra podia reduzir a pó esse cruel tirano!

d) E que obscuridade, que apagamento na Sua vida de Nazaré! Escondido numa pequena povoação da Galileia, ajudando a Sua Mãe nos cuidados domésticos, aprendiz e operário, passa trinta anos a obedecer, Ele, o Senhor do mundo, “et erat subditus illis”.43 Compreende-se, então, a exclamação de Bossuet: Ó meu Deus, eu pasmo e torno a pasmar! Mais um golpe! Vem, orgulho, vem morrer diante deste espetáculo! Jesus, filho de um carpinteiro, carpinteiro Ele próprio, conhecido por este exercício, e não se fala de qualquer outro emprego ou ação”.44

B) Na Sua vida pública, não cessa Jesus de praticar o esquecimento de Si mesmo na medida compatível com a Sua missão. É certo que tem de proclamar por palavras e por atos que é o Filho de Deus; mas fá-lo de modo discreto, moderado, assaz claramente, para que os homens de boa vontade possam compreender, sem aquele esplendor, contudo, que force o assentimento. A Sua humildade aparece em todo o Seu proceder.

a) Rodeia-Se de apóstolos ignorantes, pouco cultivados, e por isso mesmo pouco estimados: pescadores e um publicano! Mostra acentuada preferência para aqueles que o mundo despreza: os pobres, os pecadores, os aflitos, os meninos, os deserdados deste mundo. Vive de esmolas e não tem casa própria.

b) O Seu ensino é simples, ao alcance de todos, e as Suas comparações, como as Suas parábolas, são derivadas da vida ordinária; procura não fazer-Se admirar, senão instruir e mover os corações.

c)raramente opera milagres, e ainda recomenda muitas vezes àqueles que sara que não digam nada a ninguém. Nada de austeridades afetadas: toma as Suas refeições como toda a gente, assiste às Bodas de Caná e a alguns banquetes a que é convidado. Foge a popularidade, não receia desagradar a Seus discípulos (durus est hic sermo45); e, quando O querem fazer rei, foge.

d) Se penetrarmos os Seus sentimentos mais íntimos, vemos como quer viver em dependência do Seu Pai e dos homens: não julga ninguém de Si mesmo, mas toma o parecer de Seu Pai: “Ego non iudico quemquam”;46 não fala senão para exprimir a doutrina d’Àquele que O enviou: “A meipso non loquor”...47 “Mea doctrina non et mea, sed eius qui misit me”;48 não faz nada de Si mesmo, mas unicamente por deferência para com Seu Pai: “Non possum a meipso facere quidquam… Pater autem in me manens ipse facit opera”.49 E assim não é a Sua própria que Ele busca, é a de Seu Pai; não viveu na terra senão para O glorificar: “Ego… non quaero gloriam meam...50 Ego te clarificavi super terram”.51 Mais ainda, o Senhor do mundo faz-Se servo dos homens: “Non veni ministrari, sed ministrare”.52 Numa palavra, esquecido de Si mesmo, sacrifica-Se constantemente por Deus e pelos homens.

C) É isto mesmo o que aparece ainda mais na Sua vida padecente, em que pratica a humildade de abjeção.

Jesus, a mesma Santidade, quis tomar sobre Si o peso de nossas iniquidades, e sofre a pena que lhes era devida, como se fosse culpado: “Eum, qui non noverat peccatum pro nobis peccatum fecit”.53

a) Donde aqueles sentimentos de tristeza, abatimento, tédio que experimenta no Jardim das Oliveiras, vendo-Se coberto dos nossos pecados: “coepit pavere, taedere, moestus esse… Tristis est anima mea usque ad mortem”.54

b) Daqui os opróbrios de que foi saturado: traído por Judas, não tem para com ele senão palavras de amizade: “Amice, ad quid venisti?”55Desamparado por Seus apóstolos, não cessa de os amar; preso, amarrado como um malfeitor, cura a Malco ferido por Pedro. Entregue à criadagem, suporta as afrontas que Lhe fazem, sem se queixar; injustamente caluniado, não se justifica, nem fala senão para responder à adjuração do Sumo Sacerdote, no qual respeita a autoridade de Deus; sabe que a Sua resposta Lhe valerá a pena de morte, mas diz a verdade, apesar de tudo. Tratado como louco por Herodes, não dirá uma palavra, não fará um milagre, para vingar a Sua honra. O povo, a quem havia feito tanto bem, prefere-Lhe Barrabás, e Jesus não deixa de sofrer pela sua conversão! Injustamente condenado por Pilatos, cala-Se, deixa-Se flagelar, coroar de espinhos, vilipendiar como um rei de teatro; aceita sem murmúrio a pesada Cruz que Lhe carregam sobre os ombros, deixa-Se crucificar sem uma palavra de protesto. Insultado sarcasticamente por Seus inimigos, ora por eles e desculpa-os perante Seu Pai. Privado das consolações celestiais, desamparado de Seus discípulos, ferido na Sua dignidade de homem, na Sua reputação, na Sua honra, dir-se-ia que sofreu todos os gêneros de humilhação imaginável e pode repetir com mais razão que o Salmista: “Sum vermis et non homo, opprobrium hominum et abiectio plebis”.56 E foi por nós pecadores, em nosso lugar, que suportou tão heroicamente todos estes insultos, sem uma palavra de queixa: “Qui cum malediceretur, non maledicebat: cum pateretur, non comminabatur, tradebat autem iudicanti se iniuste”.57 Poderíamos, então, nós, soltar jamais uma palavra de queixa, nós que somos tão culpados, ainda quando alguma vez fôssemos injustamente acusados?

D) A Sua vida eucarística reproduz estes diferentes exemplos de humildade.

a) Jesus no sacrário está escondido, mais que no presépio, mais ainda que no Calvário, “in cruce latebat sola deitas, at hic latet simul et humanitas”.58 E contudo, do fundo da Sua prisão de amor é Ele que é a causa primeira e principal de todo o bem que se faz no mundo, é Ele que inspira, robustece, consola todos os Missionários, os Mártires, as Virgens… E quer estar escondido, “nesciri et pro nihilo reputari.

b) E quantas afrontas, quantos insultos não recebe no Sacramento do Seu amor, não somente da parte dos incrédulos que recusam crer na Sua Presença, dos ímpios que profanam o Seu Corpo Sagrado, mas ainda dos cristãos que, por fraqueza e covardia, fazem comunhões sacrílegas, das próprias almas que Lhe são consagradas e por vezes O esquecem e deixam só no sacrário: “non potuistis una hora vigilare mecum?”59 E, em vez de se queixar, não cessa de nos dizer: “Venite ad me omnes qui laboratis et onerati estis et ego reficiam vos”.60

Ó, sem dúvida, na vida de Jesus há para nós todos os exemplos necessários para nos sustentar e fortificar na prática de todos os gêneros de humildade; e, quando refletimos que Ele nos mereceu ao mesmo tempo a graça de O imitar, como hesitar em O seguir?

2º) Vejamos, pois, como podemos, seguindo o Seu exemplo, praticar a humildade para com Deus, para com o próximo e para conosco.

A) Para com Deus, manifesta-se a humildade, sobretudo de três modos:

a) Pelo espírito de religião, que honra em Deus a plenitude do ser e da perfeição. O que fazemos, reconhecendo afetuosa e alegremente o nosso nada e o nosso pecado, ditosos de assim proclamar a plenitude e santidade do ser divino. Daqui nascem aqueles sentimentos de adoração, louvor, temor filial e amor; daqui, aquele grito de coração: Tu solus Sanctus, Tu solus Dominus, Tu solus Altissimus.61 Estes sentimentos brotam-nos do coração, não somente quando estamos em oração, mas ainda quando contemplamos as obras de Deus, obras naturais, em que se refletem as perfeições do Criador, obras sobrenaturais, em que os olhos da fé nos descobrem uma verdadeira semelhança, uma participação da vida divina.

b) Pelo espírito de gratidão, que vê em Deus a Fonte de todos os dons naturais e sobrenaturais, que admiramos em nós e nos outros. Então, como a humilde Virgem Maria, e com Ela, glorificamos a Deus de todo o bem que depositou em nós: “Magnificat anima mea Dominum… Fecit mihi magna qui potens est, et sanctum nomen eius”.62 E assim, em vez de nos envaidecermos desses dons, referimos a Deus toda a honra que lhes é devida, e reconhecemos que muitas vezes bem indigno foi o uso que deles fizemos.

c) Pelo espírito de penitência, que nos leva a confessar a nossa incapacidade de fazer seja o que for de bom, por nós mesmos. Nesta convicção, jamais começamos uma obra, sem nos pormos sob a influência e direção do Espírito Santo e implorarmos a sua graça, a única que pode remediar a nossa incapacidade. É o que fazem, em particular, os Diretores de almas que, no exercício das suas delicadas funções, em vez de se ensoberbecerem da confiança que lhes testemunham os dirigidos, confessam ingenuamente a sua incapacidade e tomam conselho com Deus, antes de darem aos outros o seu parecer.

B) Para com o próximo, o princípio que nos deve guiar é este: ver o que Deus nele depositou de bom, sob o duplo aspecto natural e sobrenatural; admirá-lo sem inveja nem ciúme; lançar, ao contrário, um véu sobre os seus defeitos e escusá-los na medida do possível, ao menos quando não estamos, por dever de estado, encarregados de os reformar.

Em virtude deste princípio:

a) regozijamo-nos das virtudes, dos triunfos do próximo, pois que tudo isso glorifica a Deus, “dum omni modo… Christus annuntietur”.63 Podemos, é certo, desejar as suas virtudes, mas, então dirijamo-nos ao Espírito Santo, para que se digne tornar-nos participantes delas; assim se estabelece uma nobre emulação: “consideremus invicem in provocationem caritatis et bonnorum operum”.64

b) Se virmos o próximo cair em qualquer falta, em vez de com isso nos indignarmos, oremos pela sua conversão; e digamos sinceramente que, sem a graça de Deus, haveríamos caído em faltas muito mais graves ainda.

c) É isto o que nos permite olharmo-nos como inferiores aos demais, “in humilitate superiores sibi invicem arbitrantes”.65 Podemos, efetivamente, considerar sobretudo, senão exclusivamente, o que há de bom nos outros e o que há de mau em nós.

Eis o conselho que dava São Vicente de Paulo a seus discípulos: “Se nos esforçarmos por chegar ao conhecimento de nós mesmos, encontraremos que em tudo quanto pensamos, dizemos e fazemos, quer na substância quer nas circunstâncias, estamos cheios e cercados de motivos de confusão e desprezo; e, se não nos quisermos lisonjear, ver-nos-emos não somente mais perversos que os outros homens, mas piores de algum modo que os Demônios do Inferno; porque, se estes infelizes espíritos tivessem à sua disposição as graças e meios que nos são dados, para nos tornarmos melhores, fariam deles mil e mil vezes melhor uso do que nós”.66

Questionou-se, para explicar como é possível chegar a esta persuasão que, em si, objetivamente, nem sempre é conforme à verdade. Notemos, antes de tudo, que ela existe em todos os Santos, e que, por conseguinte, deve ser fundamento sólido. Esse fundamento é o seguinte. Em face de si mesmo é o homem juiz, e, quando se conhece a fundo, vê claramente que é muito culpado e que há em si muitas tendências más; donde conclui que se deve desprezar. Quanto aos outros, porém, não é juiz, nem pode ser, visto não conhecer as suas intenções que são um dos elementos mais essenciais para julgar o seu procedimento; nem tampouco conhece a medida da graça que Deus lhe outorga, elemento a que se deve atender na apreciação das ações alheias, julgando-nos, pois, severamente a nós mesmos e não julgando os outros senão com benignidade, chegamos à persuasão prática de que, afinal, nos devemos colocar abaixo de todos os outros.

C) Para conosco, eis o princípio que devemos seguir: sem deixarmos de reconhecer o bem que há em nós, para darmos graças a Deus, devemos sobretudo considerar o que há de defeituoso, o nosso nada, a nossa incapacidade, o nosso pecado, a fim de nos conservarmos habitualmente em sentimentos de humilhação e confusão.

À luz deste princípio, mais facilmente praticaremos a humildade, que se deve estender ao homem todo: ao espírito, ao coração, ao exterior.

a) A humildade de espírito, que compreende principalmente quatro coisas:

1. Uma justa desconfiança de nós mesmos, que nos leva a não exagerar os nossos talentos, mas a humilhar-nos de havermos tão mal aproveitado os que Nosso Senhor nos deu. É o conselho do Sábio: “Não procures saber coisas mais dificultosas do que as que cabem na tua capacidade, e não especules as que são sobre as tuas forças intelectuais: “altiora te ne quaesieris”;67 é o que São Paulo recomendava aos Romanos: “Em virtude da graça que me foi dada, digo a todos os que estão entre vós que não saibam mais do que convém saber, mas que saibam com moderação; e cada um, conforme a medida da fé que Deus lhe repartiu: non plus sapere quam oportet, sed sapere ad sobrietatem”.68

2. No uso que fazemos dos nossos talentos, não procurar brilhar, nem atrair a estima dos homens, mas ser útil e fazer bem.

É o que recomendava São Vicente de Paulo a seus missionários, e acrescentava: “Proceder diversamente, é pregar-se a si mesmo e não a Jesus Cristo; e uma pessoa que prega para buscar aplausos e elogios, para conquistar a estima ou dar que falar de si, que faz essa pessoa?… Um sacrilégio, sim, um sacrilégio! Pois quê? Servir-se da Palavra de Deus e das coisas divinas, para adquirir honra e estimação?! Sim, é um sacrilégio!”

3. Praticar a docilidade intelectual, submetendo-nos não só às decisões oficiais da Igreja, mas aceitando até cordialmente as direções pontifícias, ainda quando não infalíveis, dizendo-nos que há mais sabedoria nessas resoluções que em nossos próprios juízos.

4. Esta docilidade fará evitar a obstinação em nossas próprias ideias sobre pontos controvertidos. Temos indubitavelmente direito de abraçar, nas coisas livremente discutidas, o sistema que nos parecer mais bem fundado; mas, não é de justiça deixar a mesma liberdade aos outros?

b) A humildade de coração exige que, em vez de desejarmos a glória e as honras, nos contentemos da condição em que nos encontramos, e prefiramos a vida oculta às funções de esplendor: ama nesciri et pro nihilo reputari. Vai mais longe ainda: esconde tudo quanto nos possa fazer amar e estimar, e deseja o último lugar não somente nos postos do mundo, mas até na sua estima: “recumbe in novissimo loco”.69 Deseja até que a nossa memória pereça inteiramente na terra.

Escutemos a São Vicente de Paulo: “Não devemos jamais lançar os olhos nem fixá-los no que há de bom em nós, mas aplicar-nos a conhecer o que há de mau e defeituoso, e é esse um grande meio para conservar a humildade. Nem o dom de converter as almas, nem todos os outros talentos exteriores, que há em nós, são para nós; não somos senão os seus portadores e com tudo isso podemos perfeitamente nos condenar. Eis o motivo por que ninguém se deve lisonjear nem comprazer em si mesmo, nem conceber por isso alguma estima própria, vendo que Deus opera grandes coisas por seu meio; antes se deve humilhar tanto mais, reconhecendo-se por um pobre instrumento de que Deus se digna lançar mão”.70

c) A humildade exterior não deve ser mais que a manifestação dos sentimentos interiores; mas pode-se dizer também que os atos externos de humildade reagem sobre as nossas disposições, para as robustecer e intensificar. Não os devemos, pois, desdenhar, mas acompanhá-los de verdadeiros sentimentos de humildade, e, por conseguinte, abater a alma ao mesmo tempo que o corpo.

1. Uma habitação pobre, vestidos modestos, meio puídos e remendados, contanto que ainda estejam limpos, inclinam à humildade; vivenda suntuosa e trajes ricos sugerem facilmente sentimentos contrários a esta virtude.

2. O porte, o andar, a fisionomia, o modo de proceder modesto e humilde, sem afetação, ajudam a praticar a humildade*;71 as ocupações humildes, como o trabalho manual, o consertar os seus vestidos, produzem o mesmo resultado.

* Há um hábito de humildade exterior em que a alma sinceramente humilde conserva sempre o corpo. É um não sei que de moderado, reservado, sereno, que dá à fisionomia inteira e a todos os passos essa beleza inefável, essa harmonia, esse encanto que se exprime pela palavra modéstia. Modesto é o olhar, modesta é a voz, modesto o rir, modestos são todos os movimentos. São Paulo dizia: ‘A vossa modéstia a todos se mostre, porque o Senhor está próximo!’72 Aqui está, efetivamente, o segredo dessa arrebatadora e santa modéstia. Deus está perto desta alma e ela jamais O esquece: vive na Sua presença e opera sob a Sua vista, na companhia dos Anjos bons”.

3. O mesmo se diga da condescendência que se mostra para com os outros, bem como dos sinais de deferência e cortesia.

4. Nas conversações, leva-nos a humildade a deixar falar dos outros sobre as coisas que os interessam, e a falar pouco da nossa parte. Sobretudo impede de falar de si mesmo e de tudo quanto se refere ao eu: é preciso ser santo, para poder falar mal de si sem pensamento reservado**;73 e falar bem de si não é senão jactância.74 – Tampouco devemos, sob pretexto de humildade, fazer extravagâncias. Como diz São Francisco de Sales, “se alguns grandes servos de Deus simularam ser loucos, para se tornarem mais abjetos diante do mundo, devem-se admirar, mas não imitar; porque eles tiveram motivos para passarem a esses excessos, que lhes foram tão particulares e extraordinários, que ninguém deve tirar deles consequência alguma para si”.75

** Muitas vezes dizemos que não somos nada, que somos a mesma miséria e o lixo do mundo; mas, quanto sentiríamos que nos executassem pela palavra e nos publicassem por tais quais dizemos ser! Pelo contrário, outras vezes fazemos que fugimos e nos escondemos, para que vão em nosso seguimento e nos busquem; tomamos ares de querer ser os últimos a sentar-nos no fim da mesa, mas com o intento de passar mais vantajosamente à cabeceira. A verdadeira humildade não mostra que o é, e gasta poucas palavras de humildade”.

A humildade é, pois, uma virtude prática e santificadora, que abraça o homem todo inteiramente; ajuda-nos a praticar as demais virtudes, sobretudo a mansidão.



2ª Parte


A Humildade da

Santíssima Virgem Maria.76


A Verdadeira Grandeza, é a Humildade.


Naquela mesma ocasião aproximaram-se de Jesus os discípulos, dizendo: Quem é o maior no reino dos Céus? E Jesus, chamando um menino, pô-lo no meio deles, e disse: Na verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como meninos, não entrareis no reino dos Céus. Todo aquele, pois, que se fizer pequeno (humilde), como este menino, esse será o maior no reino dos Céus…”.77


1. Humildade Necessária. Depois das virtudes teologais e das cardeais, sem dúvida que vem a humildade.

É aquela virtude da qual diz São Francisco de Sales, que “é necessária em cada instante a todos, ainda aos mais perfeitos”…; a que é por todos considerada como o fundamento do edifício da santidade… e o primeiro passo a dar neste caminho. – A Igreja repete com frequência, no Ofício Divino, aquilo de Santo Agostinho: “Queres levantar uma grande fábrica de Santidade?… Pensa primeiro numa sólida base de humildade…, porque quanto maior for o edifício mais fundos hão de ser os alicerces”.

É certo que a árvore que não lança raízes profundas, não pode ter grande corpulência…, nem resistir à fúria do vendaval. – É um erro lamentável julgar-se alguém muito adiantado na perfeição e não ter dominada a soberba…, o orgulho…, o amor-próprio…, pois, ainda que leve uma vida de muita piedade e intensamente espiritual, está muito longe do princípio da perfeição se não é humilde… Ouve a Santa Tomás, que diz: “Aquele que não é humilde, ainda que faça milagres, não é perfeito… porque toda a sua vida está falha de solidez”.

Não duvides disto: se não chegaste já a maior santidade, é porque ainda não és profundamente humilde.

Examina-te e verás que é o terrível amor-próprio o que prende as tuas asas e não te deixa voar a Deus e às alturas da perfeição. – Deus encanta-se por completo das almas humildes e Se dá a elas sem reserva…, elevando-as a uma altura de santidade, sempre proporcionada ao aniquilamento e à sua humildade… “Deus, resiste aos soberbos…, e dá a Sua graça aos humildes”, diz São Tiago: “Todo o que se humilha será exaltado e o que se exalta será humilhado”, segundo o Evangelho.

Repete devagar e volta a saborear o Magnificat da Santíssima Virgem em que de um modo tão belo Ela canta as excelências da humildade… E, como não? Pois diz Santa Teresa, que “a humildade de Maria foi a que atraiu a Deus do Céu às suas puríssimas entranhas e com ela O trazemos também nós por um cabelo às nossas almas”.

Considera, pois, muito devagar a grandeza de Maria…, a sua excelência quase divina…, aquela sua pureza, com todo o cortejo de virtudes que a acompanham etc., e pensa: qual será o fundamento proporcionado a essa santidade?… – Se n’Ela, por ser a Obra-prima de Deus, tudo, tudo é harmonioso, que humildade será necessária para formar o conjunto e manter a harmonia com aquela grandeza?

Na verdade, se Deus, à vista da sua humildade, tanto exaltou alguns Santos…, que humildade teria visto em Sua Mãe quando assim a engrandeceu sobre todos os outros?… Extasia-te diante da virtude de Maria e condensa na sua humildade toda a sua santidade, segundo aquilo de Santo Agostinho: “Se me perguntas qual é o primeiro e principal meio para a perfeição, dir-te-ei: em primeiro lugar, a humildade…; em segundo lugar…, a humildade; e em último caso, a humildade”… Não porque tenhamos de desprezar as outras virtudes…, senão porque tendo-a a ela verdadeiramente, temo-las todas…, pois, se a soberba é mãe de todo o pecado…, a humildade é mãe de toda a virtude. – Medita isto, ante o exemplo da tua Mãe. Examina-te muito sobre este ponto…, envergonha-te e suplica-Lhe…

2. Humildade Verdadeira. – Adverte porém, que tudo isto se aplica unicamente à humildade sincera ou verdadeira, não à aparente e fingida… E, o que é uma e outra?… A humildade verdadeira é a resposta sincera a esta dupla pergunta: Quem é Deus?… Quem sou eu?… Deste duplo conhecimento brota, naturalmente, o conhecimento da nossa baixeza em comparação da imensidade de Deus…, da nossa miséria…, do nosso nada…, da nossa incapacidade para dar um único passo no caminho da santidade…, dos nossos pecados, que são ainda pior que o nada…; das nossas contínuas imperfeições e ingratidões com as quais tens deitado a perder tantas vezes as graças de Deus… Vê a teu corpo…, quanta corrupção!… Vê a tua alma, quanta miséria!… Que coisa mais natural que a humildade diante deste quadro tão real e tão verdadeiro! – Por isso, “a humildade é a verdade”, segundo Santa Teresa.

São Francisco de Sales, tirava desta verdade estas consequências que muito devagar deves meditar:

a) Que não temos razão para nos termos por alguma coisa, senão que devemos ter um baixo conceito de nós mesmos…, pois só devemos estimar e amar a Deus…

b) Que não devemos procurar nem aceitar louvores nem estima de nenhuma espécie…, pois isto é uma injustiça, já que tudo é devido unicamente ao Senhor…

c) Que devemos ter amor pela obscuridade…, pelo desprezo…, pelo esquecimento…; isto é o que se deve ao nada e ao pecado…, e se Jesus Cristo sem pecado foi o primeiro a fazer assim, nós, carregados de tantos, com maior motivo devemos fazer o mesmo.

Aplica tudo isto, ponto por ponto, à vida da Santíssima Virgem e verás quão facilmente encontras n’Ela o Modelo prático da verdadeira humildade…, daquela humildade, da qual Jesus Cristo dizia: “Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração”… Que boa Discípula foi a Santíssima Virgem, pois aprendeu tão perfeitamente esta lição!… Porque não a aprendes tu também assim?…

3. Humildade Falsa. Não é, pois, verdadeira humildade a que consiste em meras palavras…, em ações puramente exteriores… Quantas vezes, apesar de inclinar a cabeça…, trazer os olhos baixos…, procurar o último lugar…, e dizer mal de si mesmo, etc., se junta a tudo isto um refinado amor-próprio, que não sofre a menor contradição…, e menos ainda ver-se posto de parte…, que não é capaz de sofrer uma correção de um Superior ou um aviso salutar de pessoa amiga…, que não sabe sofrer uma injúria ou um desprezo…, que anda sempre com comparações ou exigências ditadas pela inveja, para não consentir preferências de nenhuma espécie!…, etc. – Bem se vê que uma humildade assim, não merece este nome, pois é humildade fingida e aparente…, puramente externa…, que não nasce de um coração verdadeiramente humilde.

É também falsa humildade, a que não quer reconhecer as graças que recebeu de Deus, e julga que pensar nisso é grande soberba… Como foi diferente a humildade de Maria, quando não duvidou publicar que tinha recebido coisas muito grandes do Senhor, e que por isso A chamariam Bem-aventurada todas as gerações!… Mas, disso não tirava outra conclusão senão a da glória…, louvor e agradecimento ao Senhor… Reconhecer, não para envaidecer-se do que se recebeu, senão para mais louvar, servir e amar a Deus, é a verdadeira humildade.

Finalmente, é funesta humildade a que, considerando a sua baixeza e a sua miséria, deduz, como fruto prático dela, o desalento…, a desilusão…, o abatimento. – A fórmula da verdadeira humildade é: “Por mim nada sou…, nada posso, porém, tudo posso n’Aquele que me conforta”. – Tudo; portanto, não há nada impossível…, nem sequer a santidade, para o verdadeiro humilde. – Pede à Santíssima Virgem luzes para distinguir e conhecer bem estas duas humildades para que, fugindo da falsa, com a sua ajuda te firmes bem na verdadeira.

4. O Verdadeiro Conhecimento. Como a humildade é a verdade…, e funda-se na verdade…, e é fonte da verdade, por isso, é ela a que nos dá o verdadeiro e exato conhecimento de nós mesmos. – Vê quão bem se conhecia a Santíssima Virgem a Si mesma. – Ninguém tinha recebido de Deus mais graças e privilégios extraordinários do que Ela… Imaculada na Sua Conceição…, cheia de graça, por isso mesmo, desde o Sue primeiro instante…, mais Santa que todos os Santos e Santas juntos… Rainha do Céu e Corredentora dos homens…, Bendita entre todas as mulheres…, enfim, com o título único que tudo resumia: “Mãe de Deus!”…

Assim se via Maria, assim se reconhecia a Si mesma, e, não obstante… vê, como Ela é sempre humilde! Sabia que tudo isto estava n’Ela…, porém, nada era d’Ela…; tudo era de Deus…, tudo era porque se tinha dignado o Senhor olhar para a Sua escravazinha, com olhos de misericórdia…, como o cantou no Seu Magnificat…; tudo atribuía a Deus…, tinha uma consciência perfeita do Seu nada…, e assim se considerava diante de Deus, como o mesmo nada…, como a última das suas criaturas…, como a mais indigna das escravas que O servem… Assim adorava Ela a Deus…, assim se aniquilava na Sua presença…, assim se submetia em tudo e sempre à Sua Divina Vontade…, assim estava toda a vida recebendo e praticando a Sua fórmula sublime de humildade…, o programa da vida do verdadeiro humilde: “Eis aqui a escrava do Senhor… Faça-se em mim segundo a vossa palavra”. E como tinha este conhecimento profundo de Si mesma… e operava sempre com este conhecimento e persuasão do Seu nada, assim aparecia também perante os outros. – É Rainha dos Anjos…, porém, não o mostra… Com que reverência os trata!… Vê neles os servos fiéis de Deus…, os Seus emissários e embaixadores… e por isso, se humilha diante deles… Desgosta-Se e perturba-Se ao ver-Se reverenciada e louvada por eles.

Deste mesmo modo trata com os homens… Fixa-te, especialmente, no Seu porte humilde e respeitoso, para com os Seus pais…, para com os sacerdotes…, para com os superiores…, para com São José…, enfim, para com todas aquelas aldeãzinhas de Nazaré… Vê como vive exatamente igual a elas… como a humilde esposa de um carpinteiro… e tão convencida estava do que era em Si mesma…, que não aspirava a outra coisa, julgando que não tinha direito a outro gênero de vida…, e sempre contente com a Sua sorte, e isto, que era a Rainha do Céu!… Que exemplo…, que lição para nós!… Faz aplicações práticas a tua vida…, compara-te com a Virgem Santíssima nalguns desses casos que tu perfeitamente conheces da tua vida, e verás claramente, deste modo, a tua soberba…, o teu amor-próprio…, o teu orgulho refinado…, a tua falta de humildade…, e, por isso mesmo, a tua falta de conhecimento sincero de ti mesmo.

5. A Verdadeira Grandeza. Medita agora na grandeza que brota da humildade…; esta é a única que merece este nome… Todas as outras grandezas são mentiras. – O homem nunca é tão grande como quando está de joelhos…, isto é, quando se humilha e se confunde com o pó da sua miséria… Assim se confundiu o publicano do Evangelho e se fez santo… Assim se confundiu São Pedro e no seu humilde arrependimento mereceu ser exaltado até à honra de primeiro Papa… Assim, mais que todos os Santos e mais que todas as criaturas, se confundiu a Santíssima Virgem ao confessar-se publicamente “escrava do Senhor”, e, por isso, foi elevada à dignidade de Mãe de Deus!… Que verdadeira grandeza a da humildade diante de Deus e até diante dos homens!…

Recorda a Lusbel78 no Céu…, a Adão no Paraíso… e convencer-te-ás que a soberba, não só não conduz a espécie alguma de grandeza, senão que leva à mais terrível e espantosa queda. – Uma vez, quiseram os homens levantar uma torre que chegasse até ao Céu, para desafiar o poder de Deus e tornar impossíveis os castigos da Sua justiça…, mas a única coisa que fizeram foi tornarem-se ridículos…, dignos de desprezo e de zombaria de todas as gerações.

Compara agora com esta a conduta de Maria, que não quer passar da condição de serva e escrava, e não só de palavra mas a valer; quer ser tida como tal… e viver sempre assim… Deus porém, exalta-A tanto, que também Ela excitará a atenção de todas as gerações…, mas para A admirar e bendizer sempre. Como Deus cumpre bem a Sua palavra!… “O que se humilha será exaltado”…

Do nada criou o mundo e tirou todas as coisas, e não parece senão que agora também quer tirar do nosso nada toda a nossa grandeza… Por isso, exige como condição indispensável, para fazer-nos grandes e santos, que tenhamos diante dos nossos olhos o nosso nada…, o puro nada que somos e que podemos. – Somente a humildade é a que levanta a altíssima torre…, firme… e segura que ultrapassa as nuvens e chega até aos Céus…, até ao trono do próprio Deus.

6. A Verdadeira Fortaleza. Finalmente, é na humildade que se encontra o ponto de partida para as grandes façanhas, para os grandes heroísmos – O humilde descansa em Deus…, conta com o poder Onipotente de Deus, e não há nada que se lhe oponha…, nem dificuldades que não vença. – A humildade não é pusilanimidade nem retraimento, que nos faz covardes… medrosos; pelo contrário, é a virtude dos fortes… a que dá e gera a verdadeira fortaleza. – Toda a sua coragem varonil e a sua grande energia e decisão em operar, dissemos que a tirou a Santíssima Virgem da sua fortaleza…, mas esta fortaleza foi fruto precioso da sua profunda humildade.

Na sua Purificação, passa Maria por uma das maiores humilhações da sua vida…; seria necessário para apreciá-la em toda a sua extensão, conhecer o amor da Santíssima Virgem à sua pureza imaculada. – À dignidade de Mãe de Deus teria anteposto ou preferido a sua virgindade… e agora, tem que passar aos olhos das criaturas como uma mulher igual as outras. – A açucena puríssima, aparece como murcha perante os homens… Só Deus conhece o seu candor e inocência… – O amor-próprio facilmente teria procurado pretextos neste caso para proceder de outra maneira: o zelo da glória de Deus…, a edificação do próximo…, a alegria daquele povo ao saber que já estava entre eles o Messias, etc. Maria não admite tais sugestões…, obedece à lei com tanto maior gosto quanto é para Ela mais humilhante… Deus neste dia aprecia mais a sua oferenda que todas as outras, porque nenhuma se Lhe ofereceu com mais humildade… – Ah, repara com que fortaleza e virilidade Maria, nesta cerimônia, oferece a Deus o Seu Filho… e se entrega Ela mesma à imolação… ao sacrifício…

Tu também necessitas de generosidade… virilidade…, fortaleza para oferecer a Deus o teu sacrifício…, o que mais te custa e o mais necessário…, o do teu amor-próprio… Fá-lo com generosidade e fortaleza…; na humildade a encontrarás… – Pede à Santíssima Virgem um conhecimento de ti mesmo e dos teus afetos…, o conhecimento do teu proceder. – Que reverência tens na oração…, com os Anjos e Santos…, com os teus superiores…, como pensas deles… e como te portas com eles?… És respeitoso…, deferente…, submisso a todos os que têm autoridade sobre ti?… Como correspondes às graças de Deus?… A humildade te ensinará tudo isto… Pede-a assim à Santíssima Virgem…, insta e roga-Lha encarecidamente para que não te negue esta graça.

Que são Reservadas para os Humildes,

as Graças de Deus.79

Maria – Meu filho, quero te ensinar um segredo para obteres de Deus imensas graças: é sempre te julgares indigno de as receber. Deus “dá suas graças aos humildes”.80 Em um coração cheio de si mesmo, não encontra lugar para os Seus favores.

Servo – Ó Rainha dos Santos, exemplos nos destes disso, exemplos que nos valem como fecunda fonte de ensinamentos.

Basta considerar o modo como Vos comportastes durante a visita do Anjo, vindo por ordem do Senhor, para que vejamos os sentimentos de humildade de vossa parte.

O Anjo Vos anunciou que próxima estava a hora de serdes Mãe de Deus; e todavia, não podíeis entender como Deus se dignara Vos escolher para tão eminente dignidade.

A ideia de tão culminante elevação sobre a natureza humana, de algum modo, Vos tornou suspeitosa a visita daquele Anjo. E no momento mesmo, em que o Ser Supremo se resolvera encerrar-Se em vosso seio, só pensastes em Vos abismar no vosso “nada”.

De quantos títulos relacionados com a dignidade de Mãe de Deus, só bem quisestes imprimir no espírito o de “Serva do Senhor”. Nova Eva, bem diferente da primeira Eva quisestes ser. O orgulho daquela foi a causa da perda dos privilégios divinos. Mas a vossa humildade foi a fonte mesma dos vossos privilégios.

Para “operar” em Vós “grandes maravilhas”, não levou em conta o Todo-Poderoso vantagens naturais ou nobrezas de origem, senão ante a vossa condição modesta. Fora natural que um Deus, humilhando-Se até à natureza humana de que Se revestiu, tivesse infinitas complacências para com a humildade. Convinha que para Sua Mãe escolhesse Aquela que, por uma profunda humildade, mereceria sem dúvida a mais alta de todas as dignidades. A Deus agradastes pela virgindade. E pela humildade, Senhora, foi que a Deus concebestes!

Maria – Aos olhos de Deus, filho meu, bem mais ainda que aos dos homens, o que mais méritos têm é o que menos julga ter, ainda quando muitos méritos possua. Na verdade, o que Deus, com complacência, “olha no Céu e na terra? As almas humildes”.81 “Sobre quem porei as minhas vistas”, di-lo Ele próprio, senão sobre o pobre, o que tem o espírito humilhado?”.82 Causa é o orgulho da pobreza, de tantos cristãos vazios dos bens da graça. Se estudassem a si mesmos, o conhecimento próprio dar-lhes-ia a humildade, e esta, por atrair novas graças, remediaria a indigência deles. Esvazia-te de ti mesmo, filho, para que de seus dons te farte Deus. Faze-te rico, confessando em teu íntimo, que não és mais que miséria. Se te mostrares humilde, de ti se servirá Deus para Sua glória aos que não pretendem usurpá-la nem dela partilhar.

Quando de Deus alguma graça receberes, pensa com humildade e reconhecimento quanto necessário é que seja Deus um “bom Mestre”, para gratificar assim ao último dos Seus servos. Nada atribuas a ti mesmo, daquilo que faças de bom ou de bom possuas. Ainda quando correspondas com fidelidade à graça que recebeste, lembra-te que fiel não poderias ser se acaso te faltasse o socorro da mesma graça.

Se Deus recompensa a tua fidelidade, são os Seus próprios dons que Ele coroa.

Traze sempre contigo estes três sentimentos: Deus é tudo, eu sou nada; Deus possui tudo, eu só miséria possuo; Deus pode tudo, eu nada posso sem o Seu auxílio.

Então, em nada seres, nem possuíres, nem poderes, algo serás todavia aos olhos de Deus. Verás assim, como te concederá o Senhor, de bom grado os Seus favores, e como forças te dará, para que saias vitorioso contra todos os inimigos que te embargarem os passos na senda da perfeição cristã!

Que a Verdadeira Glória está Oculta,

sob a Humildade Cristã.83

Os termos usados pelo Anjo no seu falar com Maria, não combinavam no espírito da Virgem, com as ideias que de Si mesma fazia. Santo temor assaltou-Lhe a alma.

Maria perturbou-Se com o seu dizer”. Dir-se-ia cogitar ante o que via em ilusão dos sentidos ou perfídia do espírito tentador. Afirmava-Lhe o Anjo, que Ela era “bendita entre todas as mulheres”. Ora, crendo-Se a derradeira entre todas, não podia perceber como semelhante elogio Lhe era feito. O mesmo Anjo anunciava que de tal modo achara graça diante de Deus que, caso consentisse, d’Ela faria a Sua própria Mãe. Mas, visto o grau elevado em que é colocada, Maria humilha-Se e muito feliz se julga com o atributo de serva.

Cada cristão deve assim refletir, acerca dos que são do mundo:

Ó vós, que só a glória respirais, Maria, Vos ensina onde a achareis certamente. A sólida e verdadeira glória consiste em se fazer pequeno”.

Assim, o próprio Deus o julga. Está escrito: “O que for menor entre vós, este será o maior”.84

Não somente é sólida essa grandeza, se não que vos dará segurança absoluta. Ninguém vo-la disputará, nem de vossas mãos a arrebatará jamais.

Se vos fazeis os mais pequeninos, nos maiores vos tornareis, pois que, convencidos de que nada sois e nada podeis, essa convicção tanto mais vos humilha, quanto mais vos eleva para Deus, a quem reconhecereis como o único Autor Soberano de todos os bens.

E contareis, então, com o poder de Deus, tanto mais firmemente, quanto é certo que a Deus sobremodo apraz aos fracos fortalecer. A humildade, de resto, vos salvará das baixezas a que reduzem o homem a ambição e o orgulho. Haverá, de fato, alma mais vil que a do homem dominado pela paixão de crescer para o mundo, ou por este ser aplaudido?

Ela vos tornará independente do respeito humano, e das vãs ideias dos homens, em referência aos quais tereis as palavras do Apóstolo: “Para mim, pouco importa que o acrediteis. Só um juiz tenho e esse Juiz é Deus”.85

Pela humildade, olhareis indiferentes às honras deste mundo, porquanto através do seu fulgor facilmente descobrireis a ilusão e a vaidade. Por ela não vos medireis com o próximo, mas honrá-los-eis, vendo-o acima de vós, por ordem ou por estima.

Ao homem, algo de baixeza parece a humildade. Explica-se isso, porque o homem tudo julga pelos sentidos e só pelos bens sensíveis pode ser impressionado.

Na verdade, porém, ela é uma das virtudes mais próprias para formar corações grandes e nobres.

Entre todas as virtudes, a humildade é a que mais imprime solidez no espírito e mais firmeza na alma. Sobretudo a humildade imprimirá no homem os mais belos traços de semelhanças com Jesus-Homem-Deus, princípio da verdadeira grandeza, e da glória verdadeira.

Homem nenhum será maior e mais glorioso que qualquer que consiga imitar este divino modelo, e nunca poderemos dele nos aproximar se “pequeninos não nos tornarmos”. Mais perto ainda se, uma vez humilhados, mostramos amor à humilhação. Jesus, por ser humilde, amava a humilhação, pois sabia quanto por esse meio glorificava a Seu Pai. Foi ao tempo das humilhações de Jesus, que o Pai celeste declarou ser o Filho o “objeto de Suas complacências”, enquanto entoavam os Anjos o “Gloria in excelsis Deo!”

Se te mostrares humilde, Deus será por ti glorificado. E haverá maior glória que procurar uma pequenina criatura a glória imensa do Seu Criador?

Ó Rainha do Céu, em quem evidentemente se realizou este oráculo: “quem se humilha, será exaltado”,86 Vós que fostes quanto mais exaltada tanto mais humilde, consegui para mim as necessárias graças por destruir este fundo de soberba que me domina.

Ai, só tive até hoje aparências de humildade, e só o fiz para ganhar as estimas do mundo, o qual por muito pervertido, sói todavia desprezar os soberbos.

Obtende-me para mim, terna Mãe, uma humildade sincera que, junto à convicção de minha fraqueza, me faça, a exemplo vosso, tudo a Deus referir, tudo de Deus esperar, em tudo depender de Deus, para que assim digno me torneis da estima de Deus, Fonte única de distinção e grandeza.

Que a Alma Humilde está Sempre Zelosa,

por Ocultar aos Olhos dos Homens,

o que Vale para os Olhos de Deus.87

O Anjo enviado pelo Senhor tecera a Maria os maiores elogios, anunciando que se tornaria a Mãe do Filho de Deus. Mas ninguém soube dos lábios de Maria o que o Anjo falara. Ninguém a viu exibir-Se por demonstrar em público, deste ou daquele modo, a Sua qualidade de Mãe do Messias. Continuou a comportar-Se como se fosse uma criatura vulgar.

Ainda que tenha a Sua afeição para José, Seu Esposo, e muito íntima que fosse a caridade de ambos os Corações, a José nunca falou Maria sobre as palavras do Anjo. Quando da visita a Isabel, já esta se encontrava ciente do Mistério. Maria, porém, não se aproveitou dessa favorável circunstância para ainda mais instruir a prima, senão que a Deus deixava o cuidado de manifestar, quando julgasse oportuno, os segredos que tão gloriosos Lhe eram.

Toda a aplicação do Seu espírito estava no constantemente se ater à Sua própria humildade. Assim, aos olhos dos homens, oculto havemos de ter o que formos aos olhos de Deus, bem como o que de Sua liberalidade recebermos. Uma virtude escondida sempre se acha em maior segurança.

Só a Deus compete “tirar a luz debaixo do alqueire e pô-la sobre o candelabro”.

Quem quer que exponha aos olhos de todos o seu tesouro, arriscar-se-á a perdê-lo. Até as cores mais firmes não resistem por muito tempo ao ar livre, senão que cedo esmaecem. Marta diz à sua irmã: “aí está o Mestre, e Ele te chama”,88 mas é em voz baixa que assim fala. “Os homens”, sempre cegos e “sensuais”, não estimam ou mesmo “não concebem” o que está acima dos sentidos, “o que é do espírito de Deus”.89 A tais homens falar dessas coisas é expor aos seus motejos o que há de mais santo.

Em segredo é que se comunica o Espírito de Deus. Por isso, Ele quer que a alma favorecida conserve em segredo todos os favores recebidos.

Só um homem entre mil homens escolhido”,90 pode e deve mesmo conhecer as tuas riquezas espirituais, a fim de que, te ensine a delas usares com proveito.

O que é neste mundo Ministro de Deus, só este tem o direito de te instruir e conduzir pelos caminhos da salvação e da perfeição. Quanto aos outros, seja diante deles o teu exterior como o das pessoas virtuosas: humilde, modesto, igualmente humorado, porém, fechado conserva sempre o teu interior. Que mesmo te julguem pouco integrado na vida espiritual, bem diferente mesmo do que és, recebe isso como feliz precaução, para te conservar em lugar seguro as graças concedidas por Deus.

Com ardor deseja Deus que palmilhemos os Seus caminhos. Porém, grande vantagem há em caminharmos sem ruidosos sinais de nossa presença.

Não poucas almas, depois que de Deus receberam favores singulares, logo se perderam por muitas reflexões a esse respeito, exercitando-se em vã complacências, tornando-se motivos de admiração para os que não as deveriam conhecer jamais.

Se aquelas almas tivessem a interior disposição da Santa Virgem, esse espírito de humildade, que traz sempre consigo centelhas da luz divina, teriam numa prudente desconfiança o meio infalível de vencer a tentação do espírito da soberba. Nunca será demasiada a precaução que tiveres por não te enganares na vida espiritual, máxime nos casos extraordinários. Se te faltar esta precaução, o mais celestial licor poderá transformar-se em mortalíssimo veneno.



São José vivia na Humildade91


Trabalhava para contentar a Jesus e a Maria: muitas vezes algum deles com um benévolo sorriso lhe agradecia, e então José, todo venturoso, bendizia a Deus pelo prêmio que lhe dava. – A humildade é isto. – Ser humilde, não é dizer em toda a parte que nada se faz de bom, mas é atribuir a Deus as nossas vantagens e elevar sempre a Ele os elogios que nos dirigem… O que podereis fazer de útil, sem o socorro de Deus?… Nada. Vossa inteligência, vossos órgãos, tudo vos é dado por Ele…

Ó, se em algum lugar sois estimado, louvado, recompensado, alegrai-vos, com razão; mas, como José, dizei: Graças ao Bom Deus! Acostumai-vos a tudo referir a Deus… Que manancial de paz, quando somos advertidos ou censurados!… Tem-se pesar, mas não se sente perturbado e diz-se: Procederei melhor daqui em diante, porque escutarei mais a Deus.



3ª Parte


Meditando sobre a Humildade92


Difícil dar dela uma ideia justa e completa.

Esta virtude gosta de ficar escondida; é, por assim dizer, misteriosa. Deixa-se antes adivinhar do que ver. Contudo procuremos conhecê-la e para isso examinaremos o seu contrário, estudemos o orgulho em seus diversos caracteres.

I

O orgulho é o amor injusto, excessivo, da própria elevação; a despeito de tudo, de Deus, de nosso semelhante e de nós mesmos. Seus efeitos, relativamente ao trabalho interior que ele opera em nós são:

1º. De nos iludir sobre os nossos méritos, de os exaltar aos nossos olhos, fazendo-nos sair do nosso nada.

Vede o orgulhoso: ele se julga o melhor de todos, se julga superior na ordem de coisas que especialmente o preocupam. Quem se julga o primeiro pelo nascimento, quem pelos bens de fortuna; este pela virtude, aquele pela ciência. Ele – o orgulhoso – olha a multidão por cima dos ombros e sua fantasia lhe erige um trono do qual ele domina o mundo. Que horror! Que cegueira! Assim o orgulho nos impede de ver o que somos. Ele nos oculta o nosso nada, nossa miséria e nos torna semelhantes àquele Prelado do Apocalipse que, sendo pobre, se reputou rico.

2º. Mas ainda que tivéssemos a visão clara e precisa de nosso valor, ainda que conhecêssemos nossa pobreza, e entendêssemos o nosso nada, ainda assim não escaparíamos ao orgulho. Outro efeito desse vício detestável é fazer-nos desejar o que não temos e pensar em sairmos de nós mesmos para nos exaltar. Todo homem tem esta tendência – é uma inclinação universal. Cada qual aspira a subir, não até o segundo posto, mas até o primeiro, até o summum. Quer para ele o primeiro posto na ordem do espírito, o primeiro na ordem do poder, o primeiro na ordem da fortuna, sempre a dizer com César: “Eu prefiro ser o primeiro neste lugarejo a ser o segundo em Roma”. Não cessa o orgulhoso de aspirar a subir: é sua tendência visceral. Não há coisa nem pessoa que o desvie: nem sua deficiência bem conhecida, nem a superioridade manifesta dos outros, nem a consciência de sua inferioridade, que ela não reconhece diante de ninguém… Vede Satã. Ele não quer o segundo lugar no Céu; é o primeiro que ele ambiciona; aspira à divindade e por ela ao supremo poder. Também o Arcanjo São Miguel o combate com esta única palavra: Quis ut Deus?93

Quem como Deus?” Palavra de humildade, porque reconhece em Deus a superioridade única, exclusiva, e a inferioridade da criatura.

Tais são os caracteres do orgulho ou, se quisermos, os efeitos de sua ação interior sobre o próprio homem.

Daí nasce o espírito de afastamento e independência relativamente a Deus. Quanto ao seu ser e às suas faculdades, o orgulhoso se esquece de que as recebeu do Criador; quanto aos seus projetos, não lhe interessam os desígnios de Deus ou o Seu governo e assim, depois de O ter desconhecido como Criador, O desconhece como Providência. Desprezando o cuidado que Ele toma de cada um de nós, esquecendo-se disso, o orgulhoso só pensa no que é dele, nas suas ações, na sua vida e pretende realizar seus planos a despeito de tudo e de todos… E como é árido seu coração diante de Deus!

Nada para estranhar, pois, se ele se precipita pouco a pouco no abismo dos juízos e das paixões, das ideias e do procedimento. O orgulho produz heresiarcas, como o amor humilde e dócil produz os doutores da verdade católica. Nasce, então, a revolta contra Deus, a negação do Seu domínio, dos Seus direitos, a oposição aos Seus planos e aos Seus desígnios: eis as consequências funestas do orgulho. Nada há, em nossas relações com o Criador, que não fique anarquizado e destruído pelo orgulho. No meio dos homens, o orgulho causa o desprezo nos inferiores e o ódio nos superiores. O orgulhoso é todo desdém, aridez de coração, grosseria e aspereza com relação aos que lhe são inferiores pelo engenho, nascimento, fortuna… Como seria possível, com efeito, respeitar e honrar a seu inferior quem só estima e ama a si mesmo?

Todos os que lhe estão em plano inferior não passam de escravos a seus olhos; o orgulho foi realmente a origem da escravidão, que tanto envergonha e degrada a humanidade. E a todos os que fazem sombra ao orgulhoso, ele os odeia e detesta. Isto se compreende sem dificuldade: a paixão da superioridade que o devora só pode ver obstáculos e inimigos no que se lhe opõe à realização dos desejos.

Guerra aos grandes, aos poderosos! Revolta, anarquia, a fim de reduzir ao mesmo nível os que nos fazem sombra!”

É o grito incessante do orgulhoso, que em relação aos seus iguais, entretanto, só nutre sentimentos de desconfiança e inveja, tal o seu receio de ser por eles suplantado. E o orgulhoso está sempre só e suas mãos, como as de Ismael, se erguem contra todos. É desdenhoso, teimoso e desprovido de ternura e compaixão. É o que o torna detestável a todos, posto que todos sejam levados ao mesmo vício. Se alguém viesse dizer-vos: Eu sou o primeiro orador, o primeiro escritor da minha época – que má impressão não vos causaria? Isto é tão verdadeiro que, para disfarçar o vício, os homens criaram o que eles chamam modéstia, virtude que sem o Cristianismo, é toda exterior e encobre apenas aos olhos dos outros o orgulho repugnante que rói o coração.

Este vício, dizemos nós, é muito comum: encontra-se com frequência, mesmo na vida espiritual. Após os primeiros passos na virtude, defrontasse-nos um gênero de orgulho. Muito delicado e requintado.

Sentimos o desgosto do mundo, do pecado, dos velhos hábitos, mas não temos ainda toda a força da virtude; invade-nos o enfado, o vazio, o mau estar; é uma fase transitória. A graça nos eleva acima da ordem natural, mas não caminhamos ainda livremente na estrada sobrenatural que é Jesus Cristo. Assalta-nos o desânimo, aparece a tentação do desespero.

É o orgulho; e ele vai muito adiante ainda: quando nos comprazemos no progresso realizado na perfeição adquirida, quando nos julgamos mais que os outros…

Tivemos, então, bastante razão em dizer, que o orgulho é uma tendência excessiva e injusta a nos elevarmos a despeito de tudo.

II

Estudemos agora a virtude que lhe é oposta. O primeiro efeito da humildade, é varrer qualquer ilusão sobre nós mesmos, sobre nossos merecimentos, sobre nosso valor, e nos revelar o que nós somos em todas as ordens possíveis: ordem da graça, ordem do engenho, ordem da fortuna, ordem do sentimento, ordem do caráter, etc.

É esta virtude uma dinâmica que nos faz conhecer nosso verdadeiro peso e nossa justa medida.

Tem ela seu fundamento na verdade; sem isso nem seria virtude. Não há virtude fora da verdade.

Ela nos descobre o bem como o mal, as boas qualidades e os defeitos. Não consiste em deixar de reconhecer o próprio mérito, capacidade ou valor, pois, se nos quiséssemos enganar sobre nossas próprias qualidades, não o conseguiríamos. Não. Antes de tudo, a humildade é verdade; por isso, ela destrói as ilusões do orgulho.

Jesus Cristo sabia bem que Ele era a plenitude da graça e da sabedoria, entretanto era humilde.

Este caráter da humildade faz que muitos deixem de Lhe compreender a Natureza. Assim não entendem, por exemplo, como pode São Paulo falar de suas revelações, da graça que o enriquecia…

Tal é o primeiro grau desta virtude. E como encontrar aí a humildade? Como não cessar de ser humilde a pessoa que se vê ornada de grandes virtudes como no caso de um São Luís de Gonzaga que, consoante estes princípios, podia reconhecer-se dos mais ilustres pelo nascimento, podia reconhecer a distinção do seu espírito e a excelência da graça que o adornava? É que:

– pode haver, neste primeiro grau, um sentimento profundo de desapropriação, o qual nos faz dizer: Quid habes quod non accepisti? Que tens tu que não hajas recebido? Não é de Deus que vem tudo?

– mesmo com a consciência de um grande gênio pode-se ter um sentimento de profundo aniquilamento. Sim; tem-se consciência de que talento, virtude não falta… Mas que é tudo isso diante de Deus, que é o Princípio e a Fonte de tudo? Que é nascimento ilustre, a fortuna, diante Dele que é Eterno, que existe por Si e de Si, que criou o universo e o sustenta com a ponta do Seu dedo?

Sim, que somos nós diante de Deus, por maiores que nos pareçamos a nós mesmos?… E depois, que somos nós em confronto com os Anjos e os Santos? Que fizemos em comparação com eles? Nossas virtudes, que são elas diante das deles?

E que somos nós em face do ideal da virtude?

Quão longe estamos do ideal que não sofre limites? Em todas as ordens, este ideal arrebata, exalta, suscita entusiasmo nas grandes almas, mas também as esmaga, as aniquila; pois ninguém se humilha, reconhece o seu nada, confessa a sua fraqueza com mais sinceridade do que a pessoa que dele se aproxima.

Racine, esse poeta rico de harmonia, tão elevado, confrontando-se com o ideal que ele havia formado da poesia, exclamava: Eu não sou poeta. Assim, um grande santo, diante do ideal da virtude, haveria sempre de exclamar: Eu não sou santo. Os maiores Santos são os mais humildes. Que somos nós, diante da virtude prática? Tomemos a penitência. Não fraquejamos com frequência diante de uma ligeira mortificação? É verdade que fazemos mais neste terreno que muitos outros; mas sucede às vezes, que somos vencidos por uma fruta, uma simples fruta, como nossos primeiros pais.

Depois, por muito elevados que estejamos, há abismos ao nosso lado e à vista disso cumpre que nos humilhemos e nos aniquilemos. Jesus Cristo, o Primogênito de todos os homens, o maior, o mais puro, o mais elevado na Hierarquia Celeste, Jesus Cristo não se comprazeu em Si, entretanto, Ele era a própria santidade: Christus non sibi placuit. Tudo em nós é mistura de fraqueza e imperfeição; e se, no que possuímos, há uma face luminosa, esplêndida, há também um lado escuro que nos aproxima da miséria e do nada. O que temos de bom, de belo, nada é em comparação com o que possuem os Santos, os Anjos, Deus. Por outra parte, o que temos não é de nós mesmos que o temos, mas tudo é recebido; não é nosso trabalho, nem nossa propriedade e tudo podemos perder, já que somos dependentes da Vontade Superior e Soberana que nos conserva e dirige depois de nos ter criado e que, retirando apenas a Sua ação, nos deixaria perecer e cair de novo no nada donde saímos.

Meios para a Alma Destruir

a Ilusão de Si mesma

e a Complacência em Si mesma.

Para conhecermos a humildade, estudamos o orgulho, vício que lhe é oposto, e determinamos os principais caracteres deste. E, sendo o primeiro o da ilusão sobre nós mesmos e da secreta complacência nas nossas qualidades, segue-se que o primeiro grau de humildade é desiludir-nos quanto a nós mesmos e destruir a vã complacência que subsiste ainda mesmo depois que aprendemos a conhecer-nos e que a ilusão se dissipou. Também o primeiro passo nesta virtude é ver-se, conhecer-se na medida do próprio valor; depois, reconhecida essa medida, seja qual for o conceito dos outros, não se comprazer, em si, não atribuir a si as graças, as qualidades, o poder que se tiver…

E, como o que realmente nos interessa é a prática, vejamos então qual o meio de chegarmos a destruir a ilusão e a complacência.

I Para destruirmos a ilusão, devemos conhecer-nos, ver-nos em nosso valor exato, preciso, com os nossos defeitos e qualidades. A ilusão é que nos engana, nos desnorteia, nos faz vítimas de equívocos. Referimo-nos aos equívocos de ordem física. Quando, portanto, a distância, a perspectiva, o artifício de luzes, me enganam com relação a algum objeto, eu sofro uma ilusão.

O erro, ao contrário, se aplica mais particularmente às coisas intelectuais, aos extravios do pensamento, do juízo. Aliás, a ilusão representa também algo de imaginativo com referência à ideia do homem que erra o caminho, que se transvia, que se engana quanto à visão interna do seu espírito. Um e outro são opostos ao conhecimento, à visão exata e precisa das coisas. É dizer que cessaremos de ser iludidos a respeito de nós mesmos quando nos conhecermos perfeitamente, que portanto o remédio, o segredo está em chegarmos a esse conhecimento. Mas como chegar a esse ponto? Nenhum homem o conseguirá com as forças naturais.

Se ele o conseguisse, seria por ele mesmo. Ora, disso ele é incapaz: 1º, porque é demasiadamente interessado na causa, demasiadamente levado a julgar em seu favor; 2º, porque ele não pode julgar senão por si mesmo, por suas próprias faculdades, que lhe são tão íntimas, que são ele próprio, a expansão de sua natureza, de sua essência, portanto, de acordo com o seu gosto. Elas são, ao mesmo tempo, juiz e coisa julgada e, por conseguinte, o julgamento há de ser mais ou menos errado. Para exercer esse ato com justiça e segurança, seria necessário que o homem se deslocasse para fora de si mesmo, o que é impossível, que se desdobrasse em certo modo, que se olhasse em um espelho: o que nem sempre lhe é dado. E, ainda quando ele tivesse diante de si a própria imagem, total ou parcial, ainda assim ele não se entenderia, pelas razões acima. De modo que, por si só, o homem não se conhecerá e não se iludirá. Ele não conhecerá nunca os defeitos de sua voz, da sua palavra, do seu estilo, porque seus defeitos estão identificados com ele. Ao menos poderia o homem conhecer-se por meio dos seus parentes, dos seus amigos ou de outros? Poderia, mas tal não se dará. Poderia, porque ordinariamente somos conhecidos pelos outros; eles nos veem e nos julgam tais quais somos. Em primeiro lugar, eles são desinteressados na coisa e nenhuma vantagem têm no diminuir os defeitos que observam. Depois, eles nos olham de fora de nós, isto é, com sentidos e faculdades diversas das nossas e, por isso, mais próprias para nos julgar com acerto, uma vez que nos observam. Também, por via de regra, somos melhores conhecedores do próximo do que de nós mesmos. Os que nos veem, acompanham, observam, poderiam revelar-nos a nós mesmos. Mas eles o fazem? Não.

Não fazem, pois para isso seria necessária uma plenitude, um heroísmo de franqueza que não se encontra em parte alguma.

No mundo, mesmo nas relações da mais sincera amizade, há uma coisa que nunca falta – é não se dizer tudo, não se usar muita franqueza. Ter-se-á muito cuidado, por exemplo, em não dizer que procedeste como um atordoado, como um tolo; que foste ridículo, absurdo, pretensioso quando falavas. Que queres? Se não se atenuasse, se não se disfarçasse, a amizade não subsistiria muito tempo. Seria necessário muito tato e muita perspicácia para descobrir toda a verdade, sob algumas palavras veladas, sob certas reticências quando se referem a nossos atos; mas isto só podem adivinhar inteligências superiores dotadas de gênio de observação. Somente à criança se diz com franqueza o que ela é, o que ela fez; que ela foi grosseira, impertinente e tantas outras verdades úteis.

Conclusão: é também quase impossível conhecer-se uma pessoa por meio dos outros como o é por si mesma.

Eis porque a humildade é uma virtude sobrenatural ex toto. A natureza é incapaz de nos conduzir ao limiar desta virtude e de nos fazer atingir ao seu primeiro grau.

Como chegarmos, pois, ao conhecimento de nós mesmos?

Chegaremos lá: 1º, pela Confissão: ali se encontra a palavra da verdade, a palavra da franqueza e independência, porque ali está a caridade à qual é dado todo o império sobre o coração, sobre os vícios, à qual é dado o poder de imolar as paixões, de destruir para edificar; 2º, principalmente pela Direção (Espiritual), de modo que é dado o interesse do penitente abrir-se inteiramente, a fim de, se lhe poder dizer e revelar a seus olhos o que ele é. Assim é que a prática da direção é fundamental. O Diretor dirá ao rico, ao grande, ao poderoso, o que ele é, o que ele deve ser para o corrigir sem o ferir ou ultrajar. Não sei mais qual é o santo que recomenda aos superiores de Comunidades que escolham entre seus dependentes alguém que possa e mesmo que fique com o dever de lhe dizer tudo, a fim de que, conheçam os desgostos, os descontentamentos, que por ventura eles provocaram.

II – Mesmo quando nos conhecemos, podemos comprazer-nos em nós mesmos, como já se disse.

Comprazer-nos em nós mesmos é determo-nos sobre nós mesmos, sobre nossas qualidades, com satisfação, como se fôssemos autores e causa delas. Acrescentamos que isso seria possível, mesmo depois de nos termos conhecido, sem exagerar nosso valor. Reconhecemos facilmente, que não somos homens da mais alta distinção, grandes santos ou grandes gênios (sem aspiração a tal, por parecer impossível), mas nos reconhecemos com certo merecimento, certa santidade, certo talento para orador ou escritor, o que será verdadeiro e não impede a humildade; diante disso, deixamo-nos levar a certa complacência. Este sentimento é mau, proibido, porque é de natureza a nos atribuir o que não é nosso, a encher-nos de vanglória – o que desde logo destrói a humildade. Depois, é necessário distinguir esta complacência da paz que provém do conhecimento de si mesmo ou da confiança de se estar na graça de Deus, de se gozar da Sua amizade. Esta paz brota da consciência, diz São Paulo, paz que é verdadeiro bem e ao qual se referiu Nosso Senhor dizendo: Aprendei, instruí-vos em minha escola, porque Eu sou manso e humilde de coração e encontrareis repouso para vossas almas. E que se há de fazer, para destruir a vã complacência?

1º. Comparar-nos a Jesus Cristo, tipo ideal da virtude da qual nos achamos tão afastados; comparar-nos aos Anjos e aos Santos, tão superiores a nós e que melhor do que nós fizeram uso da graça de Deus.

2º. Referir o bem que há em nós ao seu único Autor, que é Deus, o qual no-lo deu gratuitamente, sem mérito da nossa parte. Se Ele o recompensa, é porque Ele costuma recompensar seus próprios dons em quem os conserva. De nós mesmos nada somos, nada temos, nada podemos, e, se a ação divina cessasse de nos sustentar, a cada instante seríamos precipitados no nada.

3º. Considerar que éramos pecadores, que o somos ainda, que o seríamos imensamente se Deus nos abandonasse em nossa perversidade; que pelos nossos pecados mereceríamos absolutamente sofrer os tormentos da Paixão de Jesus Cristo, bofetadas, escarros, o traje de louco, a coluna, a coroa de espinhos, a flagelação, a crucificação, suplício dos escravos: pois a pena deve ser proporcionada à falta, o castigo ao crime. Pois bem – o pecado nos nivelou aos irracionais e nos fez escravos; causou os sofrimentos e a morte cruel e ignominiosa de Cristo, que tomou sobre Si nosso castigo, deixando-nos o crime que Ele não podia receber.

Assim, devemos considerar, de um lado, Deus só, para tudo quanto é bom; de outro lado, nós somente, para o pecado e a malícia e para a aplicação da Paixão de Jesus Cristo. Aí está o verdadeiro remédio à vã complacência e o primeiro fundamento da humildade.

Aquele que cometeu um pecado mortal não é digno mais de que as criaturas o sirvam, se lhe mostrem úteis e dóceis como quisera Deus fossem sempre para com o homem.

Desde então, ele se deve admirar de que o pão o alimente, de que a água lhe mate a sede, de que o fogo o aqueça, de que os seres da natureza lhe comuniquem sua parte de bem e de perfeição. Desde então, ele se deve admirar e perguntar, como não se revolta contra ele a natureza inteira, da mesma maneira que se revoltou ele próprio contra seu Criador; como as pedras e os rochedos não se erguem para esmagá-lo e reduzi-lo a pó.

Desta consideração, que sentimento profundo de humildade lhe brotará na alma para dela extirpar toda a vã complacência! Senhor Deus, dai-nos este sentimento, que é também sentimento de paz, de doçura, de unção, de ternura, que faz o caráter dos Santos.

Pobres de nós, comparados com os Santos, tão ricos em virtudes heroicas de mortificação, penitência, devotamento!…

Renúncia às Próprias Ideias

Outro ponto do orgulho, é o apego às próprias ideias.

É o resultado da ilusão sobre nós mesmos e da vã complacência: como seria possível, na verdade, que uma pessoa vítima dessas duas grandes chagas não se enchesse de estima por suas ideias, seu juízo, seu modo de sentir?

Aí está, pois, outro grau de orgulho e então a abnegação no modo de ver, constitui o terceiro grau de humildade.

O apego às próprias ideias é um vício funesto, odioso.

1º. É a fonte principal da incredulidade.

O homem idólatra do seu pensamento, que julga ter tudo visto, tudo estudado, tudo compreendido, que se tem quase como infalível, nem se inclina de boa vontade diante dos Mistérios, nem aceita facilmente a Revelação – a qual ele exclui e anula, não pela razão esclarecida, mas pelas próprias ideias, individuais, nutridas de preconceitos e orgulho.

A incredulidade nasce de muitas causas, de muitas influências. A sensualidade é uma das causas mais poderosas. Entretanto, não há nessas paixões incompatibilidade radical, imediata com a fé! A prova é, que se encontram homens entregues a grandes vícios passionais (entre os italianos e os espanhóis, por exemplo), que são crentes e fazem, por momentos, prodigiosos atos de fé.

A corrente dos prazeres, a corrupção dos costumes pode deixar subsistir a fé, posto que muitas vezes esta naufrague. Fica o homem mergulhado na matéria em condições tão contrárias à vida sobrenatural e se transforma em um animal grosseiro, em um cadáver ambulante. Mas, entre a fé e o apego às próprias ideias, em certo grau, há hostilidade declarada, completa, radical. Assim nossos incrédulos – homens voluptuosos pela maior parte – foram sobretudo homens orgulhosos, com seus modos de ver exclusivos. Esse homem frio, esse matemático poderá ser incrédulo por essa única razão.

2º. O apego às próprias ideias é gerador de heresia, de heresia preferida, que divide, ataca, rebaixa a Revelação sobrenatural, explicando-a, restringindo-a a seu talante. Todos os hereges foram ébrios deles mesmos. Os dos últimos temos, Jansenistas, homens de talento e de certas virtudes, com suas ideias próprias, propagaram a heresia, juntaram seus erros aos do século XVIII e contribuíram assim para criar a grande Revolução e o Racionalismo contemporâneo. Como admitir que o espírito inflado, saturado de si mesmo, admita um pensamento, uma autoridade superior?

3º. É do apego às próprias ideias que nasce a contenda, a intolerância, a acidez do coração.

A humildade não exige que se renuncie à própria opinião, indistintamente. Quando cremos que nosso modo de ver é justo, se refletirmos bem, se os interesses do momento foram consultados, não devemos abandoná-lo. Se a condescendência é necessária, a firmeza também o é.

Esta firmeza é própria de um caráter superior, ao passo que a fraqueza e inconstância são próprias dos espíritos vulgares. Contudo, a humildade exige que se sustente a própria opinião com moderação; que se saiba tolerar e sofrer a opinião contrária, sem romper com os que pensam de outro modo. Com isto não concorda quem é aferrado às próprias ideias. Ele combate com com audácia e violência; maltrata, insulta, ultraja todos os que não concordam com a sua opinião: verdadeira tirania que o torna insuportável. Ele causa ódios, animosidades, e se faz detestável. O que torna certas autoridades insuportáveis, é não admitirem dúvida sobre a excelência e pretensa infalibilidade de suas ideias e decisões e não condescenderem às vezes com seus subalternos, que tratam com tirania.

Tal é o apego às próprias ideias. O desapego delas, por conseguinte, isto é, a humildade atinge seu terceiro grau. É virtude eminente, apanágio das almas verdadeiramente grandes e superiores. Todo o homem tem necessidade dela; mas, particularmente quem é depositário de autoridade é que se deve esforçar primeiramente para conhecer e praticar seu dever, atendendo à utilidade geral, e não às suas ideias individuais. E a quem quer o bem de todos que importa, na verdade, a ideia própria?

A humildade lhe faz logo sentir que ele nada é, e, por consequência, admitirá facilmente que outros pensem como ele; a divergência das opiniões não o irritará. Exporá a própria com modéstia, e de acordo com a opinião de São Paulo, corrigirá com doçura os que fazem resistência à verdade…

A Humildade Posta em Prática94

Todo cristão contraiu no seu Batismo a obrigação de seguir os traços de Jesus Cristo, e neste divino Modelo é que havemos de vasar nossa vida; ora, este Deus Salvador, levou a humildade ao ponto de se tornar o opróbrio e o desprezo dos homens, a fim de curar a inchação da chaga de nosso orgulho, ensinando-nos pelo Seu exemplo o caminho único que nos conduz ao Céu.

Tu, portanto, discípulo desse Divino Mestre, se desejas adquirir essa pérola preciosa, que é o penhor mais garantido da santidade e o sinal mais expressivo de predestinação, recebe com docilidade os conselhos que te dou e pratica-os fielmente.

1. Abre os olhos de tua alma e considera que tu nada tens de que te orgulhares. De teu nada, tens que não seja pecado, mentira e miséria. Quanto aos dons da natureza e da graça que encontras em ti, já que os recebeste de Deus, princípio do nosso ser, a Ele é que pertencem a estima e a glória.

2. Concebe então um sentimento profundo do teu nada e nutre-o sempre em teu coração trazendo em forte confusão o orgulho que te domina. Persuade-te intimamente de que nada há no mundo tão ridículo e vão como querermos ser estimados pelas prerrogativas que não temos, senão por empréstimo, da liberdade toda gratuita ao Criador; porque, como diz o Apóstolo: Si autem accepisti, quid gloriaris quasi non acceperis?95

Se as recebeste, porque te gloriares como se elas proviessem de ti e não tivessem sido recebidas?

3. Pensa muitas vezes em tua fraqueza, em tua cegueira, em tua frouxidão, em tua dureza de coração, em tua insensibilidade para com Deus, em teu apego às criaturas, em tantas outras más qualidades que revestem tua natureza corrupta. Dessas considerações passa a humilhar-te continuamente, desce abaixo do nada, olha-te como muito mesquinho e vil.

4. A lembrança dos teus pecados passados nunca te abandone. Convence-te, sobretudo, de que o pecado de orgulho é tão abominável, que não há mal na terra, nem no Inferno, que se lhe possa comparar. Foi ele a perdição dos Anjos no Céu com a consequente queda no abismo; foi ele que corrompeu todo o gênero humano e que atraiu para a terra esse número infinito de males que durarão até o fim do mundo ou, para melhor dizer, durante toda a eternidade. Enfim, uma alma manchada de pecado, só é digna de ódio, de desprezo e de suplícios. Conclui daí que, estima alguma hás de ter de ti mesmo, após tantas ofensas de que te tornaste culpado.

5. Além disso, pensa que não há crime, por enorme e detestável que seja, do qual não sejas capaz e para o qual teu temperamento corrupto não tenha inclinação. Pensa que é apenas pela misericórdia de Deus e pelos recursos da Sua graça, que até o presente não caíste nesses grandes crimes, consoante esta célebre sentença de Santo Agostinho: Nullum est paccatum quod fecit homo, quod non possit facere alter homo, nisi juvetur a Deo, a quo factus est homo.96

Não há pecado que, tendo sido cometido por um homem, outro homem o não possa cometer, se a mão que criou os homens deixar de o sustentar. Gemei interiormente sobre essa miséria tão deplorável e tirai daí firme resolução de nunca tomar lugar que não seja o dos mais indignos pecadores.

6. Pensai muitas vezes na morte inevitável, no tribunal terrível de Jesus Cristo, perante o qual cumpre necessariamente comparecer; nas penas do Inferno preparadas para os maus, especialmente, para os orgulhosos, imitadores de Lúcifer; considera seriamente que, sendo os juízos de Deus secretos e impenetráveis, nenhuma segurança tens do que não serás, um dia, do número dos condenados, que sofrerão eternamente com os Demônios no lugar dos tormentos. Só esta incerteza te deve manter numa estranha humilhação e cobrir-te sem cessar de confusão e de vergonha.

7. Não esperes nunca adquirir humildade a não ser por exercícios proporcionados: atos de doçura, de paciência, de obediência, de mortificação, de ódio de ti mesmo, de renúncia aos teus sentidos e às tuas luzes, de confissão e confusão de tuas faltas e outros atos semelhantes. Isso é que há de destruir em ti o reino do amor-próprio, fundo infeliz donde saem todos os males e onde têm as raízes, especialmente, teu orgulho e presunção.

8. Conserva-te quanto possível, no silêncio e recolhimento sem seres, entretanto, de incômodo a ninguém; e, quando for o caso de falares, fala sempre com moderação, modéstia e quase com receio, pensando sinceramente que não és digno de seres ouvido, que quase nada de bom sabes dizer para ocupares a atenção de quem te escuta. E, se sucedesse com efeito, que não te dessem atenção por desprezo ou por outro motivo, não te aflijas por isso; antes alegra-te interiormente por essa humilhação. Persuade-te de que têm razão os que não te atendem e dize a ti mesmo: Quem sou eu para querer ocupar a atenção dos outros com os meus pensamentos e com os frutos da minha imaginação?

9. Evita com o maior cuidado toda palavra altiva e soberba, todos os que demonstram autoridade, as frases estudadas, as expressões afetadas e as facécias (piadas); nada digas que te faça parecer pessoa espirituosa, ou honrada, estimada, altamente colocada ou dotada de qualquer outra prerrogativa; em uma palavra – não fales nunca de ti mesmo e evita falar no que redundaria em teu proveito.

10. Escolhe sempre, segundo a máxima do Evangelho, o último e o menor dos lugares; acredita sinceramente que esse é o que te compete. Em todas as necessidades da vida, toma para ti as coisas mais incômodas, reputando-te o menos considerável de todos; persuade-te de que, em todas as coisas, cada qual deve ter o que for melhor, e tu o que for pior em razão da tua extrema indignidade; enfim, deseja de todo teu coração, que assim suceda em todas as ocasiões.

11. Não cesses de te acusar, de te repreender, de te condenar. Censura com rigor todas as tuas ações, manchadas que são de mil imperfeições, sempre eivadas de amor-próprio. Entra frequentemente em um justo desprezo de teu procedimento, em razão da falta de prudência, de simplicidade, de pureza de coração. Sê, enfim, censor perpétuo de ti mesmo e não perdoes nada a ti. Essa má opinião de si com a condenação perpétua do próprio proceder, são as verdadeiras fontes da humildade e da perfeição cristã.

12. Abstém-te de julgar os outros de qualquer forma – seria isso um grande mal; cuida, pelo contrário, de interpretar favoravelmente tudo quanto dizem e quanto fazem; procura em ti, com industriosa caridade, imagina mesmo razões para desculpar e defender o próximo, e torna-te como o advogado dele. Mas, se isso não for possível, por ser o mal muito evidente, desculpa-o ainda assim, quanto possível, atribuindo a falta a alguma inadvertência, ou a uma surpresa, ou à força da tentação e malícia do Demônio ou, enfim, a alguma outra coisa semelhante; evita ao menos pensar nessas faltas se tuas responsabilidades não te obrigam a remediar o mal. Este exercício é outra fonte muito abundante de verdadeira humildade.

13. Acostuma-te a não contradizer a ninguém na conversação; quando se trata de coisas duvidosas que têm razões pró e contra, não discutas com calor, mas cede modestamente quando tua opinião não for aceita e fica então em humilde silêncio; procede do mesmo modo quando se trata de coisas sem consequência, ainda quando saibas certamente que estás com a verdade. Nos outros casos, quando importe defender a verdade, então evita o ímpeto e a aspereza: conseguirás melhor persuadir com a doçura do que com a violência e a ira.

14. Tem cuidado, sobretudo, de não contristar nunca teu próximo, ainda que te seja bem inferior, quer nas maneiras de tratar, quer com simples palavras; não lhe dês nunca ocasião de se contristar, a não ser que o dever ou a caridade te obrigue a isso, porque, amargurando teu irmão, amarguras de alguma forma a Jesus Cristo, O qual tem como feito a Ele o que se faz ao mais pequenino dos seus membros.

15. Se há alguém que tenha a peito desgostar-te, que tenha prazer em te mortificar sempre que pode, com injúrias, ultrajes, calúnias, etc., considera essa pessoa como instrumento de Deus, da qual se quer servir a Misericórdia infinita, para curar tua alma da chaga inveterada de teu orgulho; ama-o como teu insigne benfeitor.

16. Humilhai-vos geralmente em todas as ocasiões, mas sobretudo na presença daqueles com os quais antipatizas e contra os quais sentes aversão; não digas como alguns: Eu não tenho ressentimento algum contra tal pessoa, mas não posso sofrer sua presença e nada quero ter com ela. Esse sentimento vem do orgulho; tais almas não sobrepujaram pela graça a natureza soberba que têm; se elas se abandonassem ao influxo da graça, esta extinguiria nelas, por uma verdadeira humildade, as repugnâncias que sentem, e lhes faria suportar com alegria os temperamentos mais duros e esquivos; ela lhes faria até procurar muitas vezes essas pessoas antipáticas por causa do proveito e dos merecimentos que lucrariam.

17. Em teu coração permite que todos te façam as injúrias que quiserem e da tua parte não creias que devas retribuir senão com provas de amizade, de respeito: numa palavra: toda sorte de benefícios pelos males recebidos. É o que São Paulo diz: vincere in bono malum.

18. Não reveles aos outros, quanto possível, os pequenos incômodos que tiveres ocasião de suportar como a fome, a sede, o calor, o frio, a dor de cabeça e outros pequenos males, a não ser que estejas obrigado a dá-los a conhecer, para a conservação da tua vida ou saúde.

19. Não desprezes nunca, nas tuas refeições, alimentos ordinários ou mal preparados que te oferecessem: faze como os pobres, os mendigos que comem, de bom grado, à porta de uma casa, os restos desprezados que lhes dão e ainda se julgam muito felizes por encontrar esse alimento.

20. Quando ouvires repreensões injustas, ainda que a pessoa que censura teu proceder seja muito inferior e mais merecedora de censura do que tu, não rejeites por isso as advertências nem te exaltes contra ela. Em vez de te justificares, põe-te contra ti mesmo e ajuda ao teu censor a conhecer melhor quanto mereces as injúrias e o desprezo, fora o caso em que teu próximo se tenha escandalizado com a falta de que foste injustamente acusado com evidente prejuízo dele. Confirma em teu coração a repreensão que te dirigiram, como se tivesse sido justa e razoável, convence-te de que sempre tens defeitos, de que eles são conhecidos em número bem maior do que te dizem, que em atenção à tua fraqueza escondem-te mais da metade. Por esse caminho progredirás consideravelmente na virtude da humildade e evitarás grandes escolhos, pois é sempre um fundo de orgulho e de presunção, desculpar-se a si mesmo e condenar o juízo dos outros.

21. É ainda um grande meio para se adquirir a santa humildade, não procurar ser singularmente amado de ninguém. Como a alma não pode amar senão o que ela julga bom, é evidente que ser amado e ser apreciado são inseparáveis; quem quer ser amado, portanto, quer ser julgado bom. Se, por conseguinte, pelo desejo sincero de crescer em humildade, não queres que façam bom conceito de ti, tampouco hás de querer ter um lugar no coração de ninguém. Tirarás daí grandes vantagens: tua alma, evitando o amor das criaturas, irá refugiar-se nas Chagas Sagradas do Salvador; ela encontrará indizível satisfação no seu Coração adorável, porque, tendo renunciado por Ele ao coração de todos os homens, estará em condições de receber abundantemente a doçura das consolações divinas, das quais seria privada se conservasse apego às consolações humanas; as consolações divinas são tão puras e delicadas, que não se misturam quase com as outras e não nos são concedidas senão à medida que o coração se separa das doçuras da vida presente. A alma assim liberta está em condições muito melhores para se recolher em Deus, unindo-se a Ele pelo pensamento da Sua presença e das Suas perfeições infinitas. Enfim, como nada há tão doce como o ser amado, fazendo tu o sacrifício desse prazer, a fim de que, nada possa dividir, no teu coração, o amor que tens a Deus, a oferta que lhe fazes lhe é extremamente grata e para ti será de grande merecimento. E não temas que este exercício arrefeça em ti a caridade para com teu próximo; pelo contrário, teu amor para com ele será mais puro e mais perfeito, já que não te inspira o interesse do amor de ti mesmo, mas o interesse de agradar a Deus, pois fazes o que Lhe sabes ser mais agradável.

22. Quando se apresente a ocasião de fazeres pelo próximo algum serviço baixo e humilhante, colhe essa ocasião depressa com alegria e com tanta humildade, como se fosse o criado e os outros teus senhores e patrões; mesmo com relação àqueles acima dos quais estarias pela posição social, não deixes fugir a ocasião favorável de prestar serviços, ainda os mais abjetos. Desta prática tirarás imensos tesouros de virtudes e de graça, e é por isso que te deves empenhar nesse exercício tanto como os homens do século se empenham por conservar suas prerrogativas e direitos. Que direi, afinal? O mundo inteiro não vale o menor grau de humildade, que por esse processo poderias adquirir.

23. Meio poderoso para vos levar a essa admirável virtude da humildade, é fazeres contigo esta reflexão.

Se eu não tomar o cuidado de me humilhar a mim mesmo, Deus certamente me humilhará; Ele retirará Sua graça de minha alma e permitirá talvez que eu caia em defeitos enormes, que me desonrarão aos olhos do mundo, sem nenhum proveito para a minha salvação. Não é preferível que eu faça justiça a mim mesmo, por um abaixamento voluntário, atraindo sobre mim nova cópia de graças, a me expor a terríveis humilhações que, mesmo nesta terra, muitas vezes provam os soberbos e às outras humilhações mais terríveis ainda que a eternidade lhes reserva? Reflexão tão judiciosa fará sem dúvida funda impressão no teu espírito e te induzirá a nada desprezares para adquirires a santa humildade, que te pode preservar de grande desgraça.

24. Uma consideração bem eficaz também para te fazer amar essa virtude, é o exemplo de nosso divino Salvador, que deves ter sempre diante dos olhos. Ele próprio nos disse no Evangelho: Discite a me quia mitis sun et humilis corde.97 “Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração”. Com efeito, diz São Bernardo, qual o orgulho que a humildade desse Mestre Divino não seria capaz de curar? Pode dizer-se, em um sentido bem verdadeiro, que foi só Ele que propriamente se abateu e humilhou. Quando parece que nos abatemos, não nos humilhamos propriamente, mas apenas tomamos o lugar que nos compete e vamos para o plano em que deveríamos estar, pois, sendo ignóbeis criaturas, oneradas talvez de mil crimes, não temos direito senão ao nada e às penas eternas; mas Jesus Cristo, nosso Salvador, desceu infinitamente abaixo do lugar que Lhe pertence. Ele é o Deus Todo-poderoso, o Ser infinito e imortal, o Soberano e Árbitro de todas as coisas e Ele se fez homem fraco, passível, mortal e obediente até à morte. Reduziu-Se à extrema indigência e à mais austera pobreza; Aquele que no Céu constitui a alegria e a Bem-aventurança dos Anjos e dos Santos, permitiu à dor exercer seu império sobre Ele e submeteu-Se neste mundo a todas as debilidades da humanidade. Aquele que é a Sabedoria Incriada e o Princípio de toda a sabedoria, não se eximiu de passar por insensato. Aquele que é o Santo dos Santos e a Santidade por essência, quis ser considerado pecador e malfeitor. Aquele que é adorado no Céu pela falange inumerável dos Espíritos Bem-aventurados, quis morrer no opróbrio e pregado na Cruz. Enfim, Aquele que é o Bem Supremo se expôs a toda sorte de misérias. Com tal exemplo de humildade, nós, cinza e pó, que devemos fazer? E, se refletirmos que, além disso, somos vis pecadores, haverá alguma espécie de humilhação que nos deva parecer penosa?

25. Considera também os exemplos que nos deixaram os Santos. São Domingos, prodígio de inocência e de santidade, era tão cheio de desprezo de si mesmo, que imaginava atrair a maldição do Céu sobre as cidades por onde passava. Por isso, antes de entrar na cidade, prostrava-se por terra, derramando lágrimas e dizia: Eu vos suplico, Senhor, por vossa amabilíssima bondade, não olheis para os meus pecados e não descarregueis vossa cólera sobre esta localidade por eu aqui entrar. São Francisco, que mereceu, pela pureza de sua vida, tornar-se a imagem de Jesus Crucificado, acreditava firmemente e afirmava que era ele o maior pecador do mundo, e esse pensamento era tão profundamente gravado em seu espírito, que ninguém lh’o pôde eliminar. E a razão que dava era – que, se Deus tivesse feito ao último dos homens as graças feitas a ele, esse homem teria aproveitado muito melhor os favores e não teria sido ingrato como ele.

Ele se comprazia em estar entre os pobres e mendigos, em passar por insensato e em se ver tratado como o mais perverso dos homens. Outros Santos se julgavam indignos do alimento que tomavam, do ar que respiravam e do traje que vestiam. Outros consideravam como um dos milagres da Misericórdia Divina sofrê-los na terra sem os precipitar no Inferno. Outros se admiravam de que os homens os tolerassem no meio deles e não se reunissem para exterminá-los.

Enfim, todos os Santos tiveram horror às dignidades, aos louvores e às honras e, pelo desprezo em que se tinham, via-se que só anceavam por humilhações e opróbrios. Tens tu mais sabedoria, luzes e santidade do que eles? Nem de longe o crês e não te iludes sobre as muitas imperfeições que te distanciam deles; porque então não lhes segues o exemplo reconhecendo-te bem pequeno aos teus próprios olhos? Porque não fazes, como eles, consistir tuas delícias na santa humildade?

26. Para progredires mais e mais nesta virtude e para se te tornarem as humilhações familiares e agradáveis, ser-te-á muito útil pôr os olhos muitas vezes em determinados opróbrios e afrontas que te hão de sobrevir talvez e esforçar-te então interiormente, não obstante todas as repugnâncias da natureza, por aceitá-las como insignes favores, sinais seguros do amor de Nosso Senhor e verdadeiro meio de santificação para ti. Pode dar-se que para chegares até lá, tenhas de sofrer rudes combates; mas nenhum desalento: persiste generosamente e resiste ao assalto até que teu orgulho seja vencido e te sintas resolvido a tudo suportar com alegria pelo amor de Jesus Cristo. Por este meio tu alcançarás contínuas vitórias e farás logo sensíveis progressos no trabalho do santo aniquilamento de ti mesmo.

27. Não passes dia algum sem te repreenderes a ti mesmo, como teus piores inimigos o fariam, não tanto para abrandares de antemão as repreensões como para te conservares aos teus próprios olhos abatido e desprezado. Sobretudo, se acontecer que, durante a tempestade de uma tentação violenta, sintas movimentos de impaciência e murmurações interiores quanto à maneira pela qual Deus te prova, repreende-te severamente por essa espécie de revolta, indigna-te contra ti mesmo vendo-te tão cheio ainda de orgulho. Dize então: Como pode um vil e miserável pecador queixar-se desta aflição?

Não tenho eu merecido penas infinitamente maiores? A enormidade de meus pecados merece o Inferno e tenho o atrevimento de me queixar de uma adversidade temporal, a qual comparativamente nada é e tão depressa passa?

Ignoras tu, minha alma, que a abjeção e os sofrimentos são o teu verdadeiro pão, que são uma rica esmola do Senhor para te livrar da miséria e da indigência? E será possível que a não recebas, dando graças a Deus? Ah, recusá-la significaria não ser digno dela e rejeitar um rico tesouro que porventura te seria retirado para passar a outras mãos capazes de fazerem melhor uso dele: Dabitur genti facienti fructus ejus.98 O Senhor desejava elevar-te à categoria dos Seus favoritos, dos verdadeiros discípulos do Calvário, e tu tens a covardia de fugir ao combate! Não se pode receber a palma da vitória sem se ter combatido, nem o salário sem se ter aguentado o peso do dia. Que não fariam os réprobos para chegarem à felicidade que te é oferecida? Se eles tivessem o tempo e a graça que te é dada? Esta repreensão e outras quejandas reanimarão, sem dúvida, teu fervor e te penetrarão ao desejo de uma vida pobre, dolorosa, humilhada, aniquilada consoante a do Salvador.

28. Por maior que seja a calma que sintas, no meio dos desprezos, não cuides que já tenhas segura a humildade, tranquila e vitoriosa, pois muitas vezes o orgulho está apenas adormecido: ele desperta na primeira ocasião e recomeça com pavorosas devastações em tua alma. Muito cuidado hás de ter sempre em se tratando do conhecimento de ti mesmo, da fuga das honras e do amor às humilhações. Com tal cuidado, se recebeste essa riqueza, fica fora do perigo de a perder, pois é preciso humilhar-te sempre para conservares o precioso dom da humildade.

29. Para te auxiliar a merecer esse favor, toma a Santíssima Virgem por tua Advogada e Protetora. São Bernardo diz, que Ela se humilhou mais que nenhuma outra criatura e que a mais elevada de todas foi a que mais se abateu pela profundeza de sua humildade. Foi por essa admirável disposição que Ela atraiu sobre Si a plenitude das graças e se tornou digna de ser a Mãe de Deus. Ela é, ao mesmo tempo, Mãe de misericórdia e de ternura, que nunca se invoca em vão.

Lança-te com confiança em seu regaço materno; pede-Lhe ardentemente que te consiga essa virtude que lhe foi tão preciosa e não duvides do interesse que Ela tomará. Sim, a Santíssima Virgem a pedirá para ti Àquele que eleva os humildes e confunde os soberbos e, como é Ela toda-poderosa junto a Seu Filho, serás certamente favorecido. Recorre a Ela nas tuas penas, necessidades e tentações; seja Ela teu refúgio, teu sustentáculo, tua consolação; mas o principal favor que lhe deves pedir, é a santa humildade. Reitera tuas instâncias até a conseguires e não temas ser importuno: Ela gosta dessa importunação, pois se trata da salvação da tua alma e de te tornares mais agradável a Seu divino Filho.

Enfim, para tornar a Santíssima Virgem mais empenhada em te ser propícia, interessa-A pela mesma humildade que foi a origem de Sua elevação à dignidade de Mãe de Deus e pela divina Maternidade que foi o fruto inefável da Sua humildade.

30. Dirige-te também para o mesmo fim aos Santos, nos quais esta eminente virtude brilhou mais; por exemplo: a São Miguel Arcanjo, que foi o primeiro dos humildes, como Lúcifer foi o primeiro dos soberbos; a São João Batista, o qual, no dizer de São Gregório, foi elevado a tão alta santidade, que pode ser tomado pelo Messias e entretanto teve baixíssimo conceito de si mesmo, como se lê no Evangelho; a São Paulo, esse Apóstolo privilegiado que foi elevado até o terceiro Céu e que, depois de ter penetrado os segredos da Divindade, se tinha na conta do menor dos Apóstolos, indigno até de ser chamado de Apóstolo, e enfim, se julgava um simples nada: Tametsi nihil sum;99 ao Sumo Pontífice São Gregório, o qual fez mais esforços para fugir ao pontificado do que os ambiciosos do século fazem para chegar às primeiras honras; a Santo Aleixo, que em sua própria casa preferiu os desprezos e ultrajes dos seus próprios criados ao respeito e a todas as vantagens que poderia conseguir; a São Luís de Gonzaga, que, sendo príncipe notável, renunciou a tudo com alegria e preferiu ao brilho das grandezas uma vida humilde e mortificada; a tantos outros Santos, enfim, que vemos nos fastos da Igreja, tão notáveis pela humildade.

Crê que esses humildes servidores de Deus empregarão de bom grado seus créditos no Céu, para terem imitadores da virtude deles e para seres tu desse número.

31. Enfim, é no uso da Confissão e Comunhão, que encontrarás socorro mais abundante para te sustentares na prática da humildade.

O primeiro desses Sacramentos, no qual descobrimos a um homem semelhante a nós nossas misérias mais secretas e vergonhosas, é o maior ato de humilhação prescrito por Jesus Cristo à Sua Igreja.

A Santa Comunhão, na qual recebemos substancialmente um Deus feito homem e aniquilado por nosso amor, é maravilhosa escola de humildade e meio poderosíssimo para a adquirirmos. Podes duvidar de que Ele te comunique esta admirável virtude quando seu Coração Sagrado – Coração tão doce e tão amável – fornalha de amor e caridade, repousa em certa maneira no teu e tu Lhe pedes essa graça com ardentes desejos? Acerca-te, pois, quanto possível desse adorável Sacramento; vai com as santas disposições que ele requer e fica certo de que nele encontrarás esse maná oculto, que se não dá senão aos que O buscam com avidez.

32. Toma cuidado, porém, de não desanimares pelas dificuldades que experimentarás a princípio, nos exercícios que te forem indicados, também pela oposição que encontrarás em ti mesmo. Atento em não dizeres como os discípulos pusilânimes: Durus est hic sermo, et quis potest eum audire?100 Esta doutrina é bem dura e quem pode ouvi-la e praticá-la? Pois eu te digo, em verdade, que as amarguras, que no princípio encontrares, se converterão bem depressa em doçuras e consolações indizíveis. Santa perseverança nesses exercícios, te livrará de mil angústias de espírito e te porá nesse estado de calma e tranquilidade, em que a alma começa a fruir da felicidade que lhe está preparada no Céu; se, pelo contrário, tu tiveres a pusilanimidade de não empregares os meios, os esforços necessários para te tornares verdadeiramente humilde, sempre te encontrarás perturbado, acabrunhado de misérias e inquietações, insuportável a ti mesmo e talvez aos outros, e enfim, correrás grande perigo de perderes a alma. Ao menos é bem certo, que a porta da perfeição te estará fechada, pois, não há dúvida, só se pode chegar lá pela humildade. Inflama-te, portanto, em santo ardor e que nada te possa desalentar.

Levanta os olhos para o Céu e considera Jesus Cristo, que, com a Cruz às costas, te mostra o caminho da humildade e da paciência, seguido de tantos Santos que agora reinam com Ele.

Ele te convida e urge contigo, para lhe seguires os passos e dos fiéis imitadores de Suas virtudes. Considera os Santos Anjos que, cheios do desejo da tua salvação, te suplicam que sigas a mesma rota – única garantida, única capaz de te guiar ao Céu, para ocupares os lugares que os Anjos rebeldes perderam por presunção. Considera, enfim, a falange inumerável dos Santos, os quais em altos brados te dizem, que não chegaram à glória imensa que gozam, senão pelas humilhações e sofrimentos; eles já se congratulam contigo pelos teus primeiros desejos de conquistares a humildade e insistem para que não deixes arrefecer em teu coração esses desejos. Reveste-te, pois, de força e coragem para começares sem demora essa grande obra.

Lembra-te dos compromissos sagrados que te ligavam ao Cristianismo e treme ao pensamento de desmentires a santidade das promessas que fizeste a teu Deus. Depois de tudo, o Reino dos Céus sofre violência; é o que expressamente diz o Senhor: Regnum caelorum vim patitur et violenti rapiunt illud.101 Feliz e mil vezes feliz se, entrando nesses sentimentos, concentrares teus principais empenhos na humildade, para mereceres as grandezas da eternidade!

A Humildade de Coração102

Ó Jesus, manso e humilde de Coração, fazei o meu coração semelhante ao vosso.

1. Só uma vez Jesus disse expressamente: aprendei de mim, e disse-o a propósito da humildade: “Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração”.103 Sabendo bem como seria difícil à nossa natureza orgulhosa, a prática da verdadeira humildade, parece ter querido dar-nos assim um particular estímulo. O Seu exemplo, as Suas inauditas humilhações que O tornaram “o opróbrio dos homens e a abjeção da plebe”,104 que por nós O “fizeram pecado105 e que O carregaram com todas as nossas iniquidades até ao ponto de ser “contado entre os maus”,106 são o maior estímulo e o maior convite à prática da humildade.

Jesus fala-nos diretamente da humildade do coração porque toda a virtude, toda a reforma de vida, para serem sinceras devem provir do coração, de onde vêm os pensamentos e as ações. Uma atitude exterior, um modo de falar humilde, são vãos sem a humildade de coração e são muitas vezes a máscara de um orgulho refinado e por isso mais perigoso. “Purificai primeiro o que está dentro – dizia Jesus condenando a hipocrisia dos fariseus – para que também o que está fora fique limpo”.107 E São Tomás ensina que “da disposição interior para a humildade procedem certos sinais nas palavras, nos gestos, nas ações, mediante os quais se manifesta no exterior o que está escondido no interior”.108

Se queres, pois, ser verdadeiramente humilde, exercita-te acima de tudo na humildade do coração, aprofundando cada vez mais o conhecimento sincero do teu nada e da tua pequenez. Aprende a reconhecer sinceramente os teus defeitos, as tuas faltas, sem as quereres atribuir senão à tua miséria, e reconhece o bem que está em ti como puro dom de Deus, nunca o julgando propriedade tua.

2. A humildade do coração, é uma virtude difícil e fácil ao mesmo tempo; difícil, porque contraria o orgulho que nos leva a exaltar-nos; fácil, porque não precisamos de ir longe procurar-lhe as causas, já que as temos – e com abundância! - em nós próprios, na nossa miséria. Para sermos humildes, porém, não basta sermos miseráveis; só é humilde quem reconhece sinceramente a própria miséria e age em consequência.

Como o homem é soberbo por instinto, não pode chegar a este reconhecimento sem a graça de Deus. Mas como Deus não recusa a ninguém as graças necessárias, dirige-te a Ele e, com confiança e constância, pede-Lhe a humildade do coração. Pede-Lhe em nome de Jesus, que tanto Se humilhou para glória do Pai e para tua salvação, “pede em seu nome e receberás”.109 Se apesar do desejo sincero de te tornares humilde, sentes, muitas vezes, agitarem-se em ti movimentos de orgulho, de vanglória, de vã complacência, em vez de desanimares, reconhece-os como fruto da tua má natureza e serve-te deles como de um novo motivo para te humilhares.

Lembra-te, além disso, de que podes praticar sempre a humildade do coração, mesmo quando não puderes fazer atos particulares e exteriores de humildade, quando ninguém te humilha, quando até pelo contrário, és alvo da confiança, da estima, do louvor dos outros. Santa Teresa do Menino Jesus dizia em tais circunstâncias: “Isto não poderia inspirar-me vaidade, pois tenho continuamente presente no pensamento, a lembrança do que sou”;110 e tu pensa que “não és mais santo por ser louvado ou mais pecador por ser censurado”.111 Assim quanto mais te exaltarem, mais te deves humilhar em teu coração. Praticada desta maneira, a humildade do coração far-te-á conceber tão baixo conceito de ti mesmo, que jamais serás capaz de preferir-te a alguém, pois todos julgarás melhores do que tu, mais dignos de estima, de respeito, de consideração; assim estarás em paz, nunca sendo perturbado pelo desejo de superar os outros nem pelas humilhações recebidas. A paz interior é fruto da humildade, pois Jesus disse: “Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração e achareis descanso para as vossas almas”.112


____________________________

1.  Auguste Boulenger, Cônego da Catedral de Arras, no norte da França, “Manual de Instrução Religiosa – para uso dos Colégios e Catequistas voluntários”, Vol. II – Segunda Parte, A Moral (Mandamentos), Curso Superior, 14ª Lição – Das Virtudes Cristãs, pp. 177-183. Coleção F.T.D., Livraria Francisco Alves Paulo de Azevedo e Cª, Rio de Janeiro, 1928.

2.  Dobradiça.

3.  Aristóteles definiu a virtude um justo meio”. In medio slat virtus. Será exata a fórmula se considerarmos que as virtudes ocupam o lugar a distância igual de dois extremos e evitam os excessos opostos a elas. A coragem por exemplo, está igualmente afastada da covardia e da temeridade; a economia, da avareza e da prodigalidade.

4.  Mons. Cauly, Curso de Instrução Religiosa”, 2ª Parte, Mandamentos da Igreja – Apêndice à Moral, § IV – Virtudes, p. 244. 3ª Edição, Livraria Francisco Alves & Cia, Rio de Janeiro/RJ, 1920.

5.  Francisco Spirago, “Catecismo Católico Popular”, Tomo II, 2ª Parte, Questão “B”, Cap. 2, pp. 340-341. 4ª Edição, União Gráfica, Lisboa, 1944.

6.  Francisco Spirago, ob. cit., p. 341.

7.  Francisco Spirago, ob. cit., pp. 341-342.

8.  Jo. XV, 4.

9.  Conc. Trid. VI, 16.

10.  Mat. V, 20.

11.  Francisco Spirago, ob. cit., p. 342.

12.  Atributo.

13.  Cassianus, Collat. XVIII, c. XI; S. J. Climacus, Scala, XXV; S. Bernardus, De gradibus humilitatis et superbiae; S. Thomas, II, II, q. 161; Rodriguez, P. II, Tr. III, Da humildade; S. Fr. De Sales, Vie dévote, IIIº P., ch. IV-VII; J.J. Olier, Introduction, ch. V; L. Tronson, Tr. de l’humilité; Scaramelli, Guide ascétique, tr. III, art. XI; S. Liguori, La véritable épouse, ch. XI; Mgr. Gay, Vie et vertus, tr. VI; V. Libermann, Ecrits spirit., De l’humilité; Beaudenom, Formation à l’humilité; Ch. De Smedt, Notre vie surnat., t. II, pp. 305-342; D. Columba Marmion, Le Christ. Idéal du moine, XI, pp. 277-333.

14.  Adolfo Tanquerey, “Compêndio de Teologia Ascética e Mística”, 2ª Parte, Livro II, Cap. II, Art. IV, § II – Da Humildade, pp. 607-626. 5ª Edição, Livraria Apostolado da Imprensa, Porto, 1955.

15.  De gradibus humil., c. I, n. 2.

16.  Sum. Theol., II, II, q. 161, a. 3.

17.  I Tim. I, 17.

18.  Apoc. VII, 12.

19.  Confess., lib. II, c. 7; P.L., LXXXII, 681.

20.  Catéch., chrétien, Ire Part., leç. XVIII.

21.  “Curso de Instrução Religiosa – para uso do Catecismo de Perseverança das Casas de Educação e Pessoas do Mundo”, por Mons. Cauly, Vigário Geral de Reims, Tomo I, 2ª Parte – Apêndice Moral - § IV, nº 112, p. 246. 3ª Edição, Livraria Francisco Alves & Cª, Rio de Janeiro, 1920.

22.  “Escola da Perfeição Cristã para Seculares e Religiosos”, pelo Pe. Saint-Omer, C.SS.R., II Parte, Cap. XIII, q. 8, pp. 312-313. IV Edição, Editora Vozes Ltda, Petrópolis/RJ, 1955.

23.  Ad. Tanquerey, ob. cit. nn. 1130-1135.

24.  D. Columba Marmion, “Le Christ, idéal du moine”, 1922, p. 299.

25.  Ps. XVIII, 10.

26.  Segundo o Código de Direito Canônico, cân. 530, os Superiores religiosos não podem hoje forçar, de modo algum, os seus inferiores a manifestar-lhes a consciência; mas, acrescenta o Código que, “é proveitoso para os súditos, ir ter com os Superiores com filial confiança e expor-lhes também, se os Superiores são Sacerdotes, as dúvidas e ansiedades da sua consciência”.

27.  Ad. Tanquerey, ob. cit. nn. 1136-1139.

28.  II, II, q. 161, a. 4.

29.  I Petr. V, 5.

30.  I Petr. V, 5.

31.  II Cor. X, 5.

32.  “Super Missus est”, IV, 9.

33.  Mat. XI, 25.

34.  II Cor. X, 5.

35.  Enarrat. In Ps. 141, c. 7.

36.  Sermo 10 de Verbis Domini.

37.  Ad. Tanquerey, ob. cit. nn. 1140-1153.

38.  Phil. II, 5-7.

39.  Luc. II, 1.

40.  Luc. II, 7.

41.  Io. I, 11.

42.  Luc. I, 12.

43.  Luc. II, 51.

44.  Elévations, XXº Semaine, 8º Elév.

45.  Jo. VI, 61.

46.  Jo. VIII, 15.

47.  Jo. XIV, 10.

48.  Jo. VII, 16.

49.  Jo. V, 30; XIV, 10.

50.  Jo. VIII, 50.

51.  Jo. XVII, 14.

52.  Mat. XX, 28.

53.  II Cor. V, 21.

54.  Marc. XIV, 33-34.

55.  Mat. XXVI, 50.

56.  Ps. XXI, 7.

57.  I Petr. II, 23.

58.  Hino Adoro, Te, de São Tomás.

59.  Mat. XXVI, 40.

60.  Mat. XI, 28.

61.  Gloria in excélsis Deo.

62.  Luc. I, 46-49.

63.  Phil. I, 18.

64.  Hebr. X, 24.

65.  Phil. II, 3.

66.  Meynard, Vertus et doctrine, spirit. De S. Vincent, p. 207.

67.  Eccli. III, 22.

68.  Rom. XII, 3.

69.  Luc. XIV, 10.

70.  Meynard, Vertus et doctrine, p. 218.

71.  É o que explica excelentemente Mgr. Gay, Vie et vertus, t. I, de l’humilité, p. 357-358.

72.  Phil. IV, 5.

73.  S. Fr. De Sales, Vie dévote, IIIº P., ch. V.

74.  Vaidade, orgulho, arrogância.

75.  Vie dévote, 1, c. ch. V.

76.  Dr. D. Ildefonso Rodriguez Villar, “Pontos de Meditação sobre as Virtudes de Nossa Senhora”, 22ª e 23ª Meditação, pp. 139-150. Tradução da 5ª edição, revista pelo Pe. Manuel Versos Figueiredo, S.J., Livraria Figueirinhas, Porto, 1948.

77.  Mat. 18, 1-6.10.14.

78.  Lúcifer.

79.  “Imitação de Maria”, Obra modelada pela Imitação de Cristo, por um Religioso Anônimo, Livro I, Cap. XII, pp. 39-42. IV Edição, Editora Vozes Ltda., Petrópolis/RJ. 1956.

80.  Tiag. 4, 6.

81.  Salm. 112, 6.

82.  Is. 66, 2.

83.  “Imitação de Maria”, ob. cit., Livro I, Cap. XIII, pp. 42-45.

84.  Luc. 9, 48.

85.  I Cor. 4, 3-4.

86.  Luc. 18, 14.

87.  “Imitação de Maria”, ob. cit., Livro I, Cap. XIV, pp. 46-48.

88.  Jo. 11, 28.

89.  I Cor. 2, 14.

90.  Esd. 7, 29.

91.  Mês de São José, 25º Dia, pp. 55-56.

92.  Jean-Baptiste-Henri Dominique Lacordaire, O.P., “Da Humildade”; Cfr. D. Antônio de Almeida Lustosa, Arcebispo do Pará, “Meu Livro Inseparável”, pp. 94-112. Rio de Janeiro, 1940.

93.  “Quem como Deus?”

94.  Por D. Sans de Santa Catarina, A Humildade Posta em Prática”; Cfr. D. Antônio de Almeida Lustosa, Arcebispo do Pará, “Meu Livro Inseparável”, pp. 113-132. Rio de Janeiro, 1940.

95.  I Cor., 4, 7.

96.  S. Aug. Serm. 99.

97.  Matth., 11, 29.

98.  Matth., 21, 43.

99.  II Cor. 12, 11.

100.  Joan., 6, 71.

101.  Luc. 17, 10.

102.  Opúsculo “Vivendo a Quaresma”, Meditação do Sábado que antecede o III Domingo da Quaresma, pp. 175-176. Edições Apostólica, da Administração Apostólica Pessoal São João Maria Vianney, Campos dos Goytacazes/RJ, 2010.

103.  Mat. 11, 29.

104.  Sal. 21, 7.

105.  II Cor. 5, 21.

106.  Mc. 15, 28.

107.  Mat. 23, 26.

108.  IIa Iae, q. 161, a. 6.

109.  Cfr. Jo. 16, 24.

110.  M.C. pg. 297.

111.  Imit. II, 6, 3.

112.  Mat. 11, 29.


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