São Jorge, uma dos mais célebres mártires da Igreja, a quem os gregos chamam por excelência o grande Mártir, nasceu na Capadócia, de família ilustre e distinta por sua nobreza e que professava e defendia a verdadeira religião.
A sua qualidade e distinção levaram-no a seguir a carreira das armas. Como era um mancebo dos mais distintos, valentes, e culto de todo o exército, ganhou em pouco tempo as boas graças do imperador Diocleciano, que lhe deu uma companhia e o nomeou mestre de campo. Mostrou o acerto desta eleição o valor e a prudência em idade tão pouco adiantada. Descobrindo o imperador as prendas e o mérito extraordinário do novo oficial, pensava em o elevar aos primeiros cargos, cumulando-o de favores, quando começou a descobrir-se ao longe a tempestade que desde anos se ia aglomerando contra os cristãos, e desde logo se conheceu que inundaria de sangue toda a Igreja de Deus.
Desde então, apesar dos seus vinte anos apenas, começou a reputar-se como vítima destinada ao sacrifício, e para ele se foi dispondo com o exercício das mais heroicas virtudes. Como tinha o posto de oficial general, pertencia ao conselho do imperador; era pois de supor que seria dos primeiros, que teria de declarar-se, dando provas da sua fé e não dissimulando a sua religião. Fez o sacrifício de seus bens, enquanto não chegava a ocasião de fazer o da sua vida. Herdeiro de um rico patrimônio por morte de sua mãe, repartiu-o todo pelos pobres; vendeu móveis preciosos, ricos vestidos, e distribuiu o valor pelos fiéis, que ao primeiro ruído da perseguição se haviam espalhado por aqui e por ali, dando liberdade aos seus escravos.
Despojado já de tudo, entrou na arena do combate; e lá se foi à sala do conselho. Tendo proposto o imperador o ímpio e cruel intento de exterminar os cristãos, foi aplaudido por todo o conselho; todos porém ficaram surpreendidos e admirados, quando viram o ilustre oficial levantar-se e com um nobre desembaraço, mas modesto, atento e respeitoso, impugnar o parecer e em poucas, mas graves palavras censurar a resolução, que se havia tomado, de perseguir os cristãos e de exterminá-los por todo o império.
A sua natural eloquência, o seu fogo e energia, impuseram-se à admiração e ao respeito. Mostrou ao conselho a injustiça e a impiedade daquela resolução; defendeu em discreta apologia os cristãos, e acabou por exortar o imperador a que revogasse os seus editos, que só serviam para violentamente oprimir a inocência. A vivacidade do discurso, o tom religioso com que o pronunciou, e sua rara modéstia, tinham admirado os ouvintes e por algum tempo suspenderam as paixões do conselho. O imperador, ainda mais espantado do que os outros, intimou o cônsul Magnêncio, a que respondesse ao Santo. “Bem se conhece, lhe disse o cônsul, pelo modo como falaste na presença do imperador que és um dos principais chefes desta seita; a tua confissão confirmará tua insolência; mas o nosso augusto príncipe, defensor dos deuses do império, saberá vingá-los de tua impiedade”.
“Se a impiedade há de castigar-se, respondeu Jorge, não sei eu que haja outra mais abominável que a de atribuir às criaturas, e até àquelas que são inanimadas, os soberanos títulos e direitos próprios e peculiares da divindade. Não pode haver mais do que um só Deus verdadeiro, este é Aquele a quem eu sirvo e adoro. Sim, sou cristão, e deste nome me glorio, não aspirando a maior dita nesta vida, do que a de derramar todo o meu sangue por Aquele Senhor, de quem o recebi”.
“Jovem, lhe disse o imperador, pensa no teu futuro”.
“Eu sou cristão, respondeu Jorge, e o Deus que sirvo me dará a vitória sobre Satanás e seus ministros, os teus pedidos não me movem nem as tuas ameaças me aterram. Todos os teus benefícios são vãos e as tuas dádivas semelhantes ao fumo que o vento dissipa. O teu poder é passageiro. Não tenho saudades das honras que me concedeste até hoje, porque aspiro à glória eterna. Oh! Oxalá que conheças dentro em breve o Deus Todo-poderoso que me reserva bens eternos, a mim e a todos os que Lhe são fiéis”.
Enfurecido o imperador ao ouvir este discurso, receando que fizesse impressão nos ânimos dos circunstantes, mandou que fosse imediatamente carregado de cadeias e metido em um cárcere.
Aí encontrou o fervoroso Santo abundante matéria para satisfazer o desejo ardente, que tinha, de padecer por Jesus Cristo. O primeiro requinte da cólera do tirano foi mandá-lo atormentar com um gênero de suplício, nunca até àquele dia havido. Mandou atá-lo a uma roda toda coberta de agudas pontas de aço, a qual, a cada volta que dava, lhe arrancava pedaços de carne e fendia em sangrentos arroios de sangue aquele delicado corpo. Ficaram atônitos os verdugos ao verem a alegria do Mártir durante todo o tempo que durou aquele horrível tormento; mas ainda ficaram mais assombrados, quando, supondo-o já morto, o acharam inteiramente são de todas as suas feridas.
Muitos gentios converteram-se à vista desta cura milagrosa; mas o tirano, irritou-se mais. Jorge era a primeira das vítimas que Diocleciano sacrificava à sua natural fereza, era pois necessário que ele experimentasse todo o gênero de suplício. A custo se podem crer as relações dos tormentos que trazem as mais antigas atas do martírio deste Santo. Tudo o que pode inventar a mais bárbara crueldade; tudo o que é capaz de inventar a cólera de um tirano; tudo o que pode sugerir a raiva do Inferno; tudo se pôs em execução para atormentar o invencível Mártir; mas tudo serviu para confundir os pagãos e para manifestar mais a glória e o poder do Deus, que Jorge adorava.
O aço, o fogo, a cal viva, de tudo se valeram para combater a sua resolução e a sua fé, mas a firmeza e alegria que mostrava no meio dos tormentos, um certo resplendor maravilhoso, que lhe circundava o corpo, tão brilhante que dissipou as trevas do escuro calabouço; muitos milagres que operou em benefício mesmo dos que o atormentavam, tudo isso fez triunfar a religião, e converteu à fé muitos infiéis.
Deste número foram Protulo e Antólio. Em vão gritavam alguns que tudo aquilo era feitiçaria, sortilégio, arte mágica, encantamento; a heroica paciência que todos nele observavam no meio dos mais cruéis tormentos, e as maravilhas que operava, fizeram titubear os mais obstinados, e tanto que o imperador chegou a recear uma conversão em massa de toda a cidade. Diocleciano, vendo que os tormentos eram inúteis, recorreu ao artifício; mudando repentinamente de tom e de proceder, mandou que lhe tirassem as prisões e que o conduzissem à sua presença.
Logo que se viu na presença do herói, disse-lhe com afetada brandura: “Jorge, não foi sem mágoa minha, que ordenei que se cumprisse em ti todo o rigor dos editos publicados contra os inimigos de minha imperial religião. Não podes ignorar em quanta estima tive sempre o teu merecimento; e o posto que ocupas no meu exército é uma prova da minha benevolência. O único obstáculo que pode opor-se à tua fortuna, será a tua obstinação; és moço e obténs toda a graça do imperador; o favor acrescentado ao mérito prometem-te os primeiros cargos do império. Em que te deténs para não voltares ao cumprimento do teu dever, e para não aplacar com os teus sacrifícios a cólera dos deuses?”
Rogou Jorge ao imperador que o mandasse conduzir ao templo para ver aqueles deuses, a quem sua majestade imperial queria que oferecesse sacrifício. Diocleciano julgou ter triunfado do Confessor de Jesus Cristo. Foi conduzido ao templo acompanhado de inumerável povo; apenas se descobriu a estátua de Apolo, perguntou o Santo: “Dize-me: és Deus?” – “Não sou Deus”, respondeu a estátua com voz terrível, que fez estremecer os circunstantes: “Espíritos malignos, anjos rebeldes, condenados pelo verdadeiro Deus ao fogo eterno; como tendes o atrevimento de estar em minha presença, que sou servo de Jesus Cristo?” Ao dizer estas palavras acompanhadas do Sinal da Cruz, ouviram-se no templo gritos horríveis, e foram vistas todas as estátuas cair e fazerem-se em pedaços. À vista de um espetáculo tão maravilhoso, todos ficaram fora de si; pouco depois porém, os sacerdotes dos ídolos, com os seus gritos e com as suas lágrimas, excitaram uma sedição tão geral, que a custo se ouviam com distinção as vozes do povo, que clamava que quanto antes se livrasse a terra daquele monstro.
Informado o imperador do que acabava de suceder, mandou-lhe cortar a cabeça; o que se executou no ano de 303.
Em todas as igrejas do Oriente e do Ocidente tem sido sempre muito célebre a memória deste ilustre Mártir; o seu culto é dos mais antigos na Igreja. Assegura-se que desde o quinto século já havia altares dedicados em seu nome, erigidos por Santa Clotilde, mulher de Clodoveu. Muito contribuiu para o culto de São Jorge em França, São Germano, Bispo de Paris, um dos célebres Prelados do século VI, quando por ocasião da sua peregrinação ao Oriente, o imperador de Constantinopla o obsequiou com relíquias deste Santo, e no seu regresso mandou edificar uma Capela em honra de São Jorge na igreja de São Vicente, que é hoje a de São Germano dos Prados.
Comumente representa-se a cavalo, armado com uma lança na mão em atitude de acometer um dragão para defender uma donzela, que teme ser despedaçada pela violência de suas garras.
Mas isto é antes, símbolo, do que história, para denotar que este ilustre Mártir defendeu a sua província, representada na donzela perseguida pelo feroz dragão da idolatria. E como entre os gregos não é difícil degenerarem as coisas em mil extravagâncias, a singular veneração que professavam a este Santo, veio parar com o tempo em superstições ridículas, que são a origem das grosseiras fábulas, que nos vendem os viajantes visionários acerca de São Jorge.
Este glorioso Santo é defensor do reino de Portugal e um dos catorze Santos Auxiliares.
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Fonte: Pe. Croiset, S.J., “Ano Cristão”, Vol. IV, pp. 320-324, 23 de Abril, Festa de São Jorge, Mártir; Tradução do Francês pelo Pe. Matos Soares, Porto, 1923.
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