1ª CONSULTA1
Sr. Redator.
Peço-lhe o obséquio de responder à seguinte dúvida: A jovem N. casou religiosamente com Ticio, depois de ter obtido ótimas informações a respeito dele, mas Ticio para poder passar por um cavalheiro correto, afirmou que o seu nome era Dr. J. S. M. O referido Dr. J. S. M. trabalhava como auxiliar de um médico católico. A jovem N. a ele (médico católico) se dirigiu e lhe perguntou que informações dava a respeito do Dr. J. S. M. O médico católico fez as melhores referências, e lhe deu os parabéns por ter encontrado um moço tão correto. Ticio se apresentou sempre como o Dr. J. S. M. Nos papéis paroquiais e outros documentos foi esta a sua assinatura. Ultimamente a jovem N. descobriu que Ticio usurpou o nome do médico Dr. J. S. M. para conseguir o seu intento. Descobriu mais, que se trata de um cavalheiro de industria, um escroc perseguido pela polícia.
Haverá no caso o error substantialis, portanto, base para um processo matrimonial de nulidade matrimonial?
RESPOSTAS
Em regra geral (Capello, De Sacramentis), quer na legislação, quer na jurisprudência do direito civil, a noção do erro em matrimônio se estende muito além dos limites estreitos do direito canônico. E é por laborarem no equívoco de uma suposta identidade de vista nos dois foros, o secular e o eclesiástico, que muitos consulente insistem, às vezes, por um exame mais acurado dos casos do seu interesse.
Tal coincidência, entretanto, não existe, sendo a Igreja muito mais prudente e cautelosa a respeito do que o Estado. E isso em todos os países, a começar pelo nosso, em cujo Código Civil (artigo 218 e 219 do direito de família) o caso em apreço encontrará amparo irrecusável. Não assim no direito canônico.
Na matéria sujeita ao nosso exame, as divergências começam logo quanto ao âmbito da noção de pessoa. Ao contrário da Igreja, que restringe o erro substancial à identidade física da pessoa, o Estado o alarga à personalidade civil, isto é, ao conjunto de atributos ou qualidades essenciais, com que a pessoa aparece na sociedade.
Sobre o erro de qualidade, as mesmas discrepâncias. Enquanto o nosso Código Civil faz, no artigo 219, uma longa enumeração de erros, todos acidentais do ponto de vista canônico, mas, no foro secular, capazes de fundamentar uma ação de nulidade, a Igreja só admite dois casos, em que o erro sobre a qualidade da pessoa vicia o contrato nupcial: o primeiro (cânon 1083, § 2, 1º), quando o erro de qualidade redunda em erro de pessoa; o outro, quando uma pessoa livre contrai casamento com outra escrava, na persuasão de que era livre (cânon 1083, § 2, 2º).
Deixando de parte este último caso, hoje só verificável em colônias onde ainda há escravidão, passemos a encarar as duas hipóteses em que se desdobra o primeiro.
a) Dá-se erro de qualidade redundante em erro de pessoa, quando alguma qualidade é intentada por um dos nubentes como condição sine qua non do seu consenso. Exemplo: Ticio só se casará com Caia, se ela for de família nobre.
b) Verifica-se, outra vez, o mesmo caso, se a qualidade exigida por um dos nubentes no outro, é determinativa da pessoa do mesmo; ou, em outras palavras, a qualidade exigida não só pertence em exclusivo, mas é precisamente em razão dessa qualidade que um dos nubentes quer se casar com o que a possui. Exemplo: Ticio quer se casar com a primogênita de Caia.
Em direito canônico, não há mais outra hipótese de erro de qualidade redundante em erro de pessoa. Fora daí, mesmo que um contraente seja enganado por outro (e de modo atrocíssimo acontece, às vezes), por exemplo, sobre a sua condição de condenado por crime inafiançável ou de portador de moléstia grave e transmissível, o casamento é válido para todos os efeitos.
Voltando, agora, ao caso proposto, não descubro nele nenhum dos erros de qualidade admitidos na legislação eclesiástica, como fundamento de uma ação de nulidade. E muito menos erro de pessoa. Ao meu ver, a única circunstância de peso e capaz de motivar uma causa ex capite erroris, é a usurpação do nome de uma pessoa de fato existente, por sorte do simulador, caso a jovem N. Conseguisse provar que fez depender o seu consenso exclusivamente da qualidade do Dr. J. S. M. Em outros termos: de o pretendente ser o Dr. J. S. M. Porque, assim, o seu consenso, em vez de coincidir com o da pessoa presente ao ato (o simulador), teria caído numa terceira pessoa (o Dr. J. S. M.) de todo alheio ao contrato. “Ad valorem matrimonii, escreve Wernz, essentialiter requiritur mutuus consensus maritalis duarum personarum in indivíduo sufficienter determinataram; sed per errorem substantialem, de persona alterius sponsis in errante sponso, omnino impeditur mutus consensus maritalis, quoniam consensus errantis sponsi fertur in tertiam, personam ab altera parte contrahente omnino diversum”.
Tal, porém, ao menos pela exposição da consulta, não me pareceu ter ocorrido. Tanto quanto pude depreender do compedium facti, as investigações da jovem N. versaram só sobre os predicados do pretendente. Tanto que o médico católico, a quem pedira informações, “lhe deu parabéns por ter encontrado um moço tão correto”. As circunstâncias de nome e de família (Dr. J. S. M.) entraram no contrato como de ordinário acontece: de modo todo acidental, uma vez suposta a idoneidade do pretendente. E é ainda o respeitável Wernz: “Sufficiens determinatio personae non deest, si solummodo intercedat error de ementito nomine vel cognomine vel titulo personae aliunde notae”.
Folheando a propósito a revista – Acta Apostolicae Sedis, encontrei na jurisprudência da Sagrada Congregação do Concílio, um caso idêntico ao nosso, ocorrido em 1862. Um voluntário da guerra da Crimeia conseguiu – insinuar-se na convivência de um casal católico, cuja filha única de 15 anos pediu em casamento. O pretendente também usurpara um nome alheio, e se apresentava como rico e de descendência aristocrática. Dizia-se mesmo filho de um nobre de nome conhecido na região. E a família da noiva, entrando em indagações, obteve confirmação de tudo.
Mas, logo após o casamento, foi tudo o contrário do que alegava o falsário: “tunc eiusdem ignobilitas, pauperies,vitae immorigeratae genus in lucem prodierunt”.
Instruiu-se o processo, mas sem resultado, porque a autora não conseguiu provar que só casara na persuasão de o seu noivo ser SeiusI (o nome usurpado) e filho do nobre Boiaris. É que apenas se interessara pelas qualidades morais e pela situação econômica do pretendente. Mero erro acidental, como no nosso caso. E a Sagrada Congregação do Concílio, interrogada se constava a nulidade do casamento, respondeu: negative.
Penso que no caso em apreciação, não opinará de outro modo. Salvo melhor juízo.
Padre Bezerril.
Rio, 10/01/1938.
2ª CONSULTA2
ÀQUELA CATÓLICA QUE QUER SE CASAR
COM UM INCRÉDULO.
Senhorinha.
Bem difícil a tarefa que Sra. me impõe!… Mesmo porque a Sra. não me diz exatamente o que quer de mim. Ou antes vejo que não pergunta coisa alguma: quer tão somente que eu lhe tire essa “angústia”, que lhe causa a incredulidade do escolhido do seu coração.
Se eu lhe dissesse: “Pode casar-se sem receios; apesar da sua incredulidade, ou seu priminho será um perfeito marido e pai de família”, a Sra. ficaria radiante de alegria com a minha resposta… Mas eu não posso lhe falar assim.
Note bem que acredito piamente em tudo o que a Sra. me diz das qualidades humanas e do seu… príncipe encantado. Creio que incrédulos assim realmente existem. E creio igualmente que a Sra. esteja, como diz, correspondida em seus nobres sentimentos. Portanto, não encaro o seu caso com preconceitos de qualquer espécie, nem tão pouco com os óculos cor de rosa de Cupido, que a Sra. me parece estar usando.
Raciocino friamente, como vai ver.
A Sra. é católica praticante, talvez fervorosa. “Ele” é descrente; não nega a possibilidade de se converter no futuro: mas, por ora, não tem fé, nem parece desejá-la.
Vão casar-se, suponhamos, ele e a Sra. Está na horinha… Primeira dificuldade! Casar-se, é receber um Sacramento. Um Sacramento é um canal da graça de Deus. Ora, “ele” não acredita, nem em Sacramentos, nem na graça de Deus, nem no próprio Deus, talvez. Portanto, para ele, o casamento será apenas um gesto protocolar, ou quando mais, um contrato meramente humano, pelo qual entrará na posse e gozo legítimo da gentilíssima pessoa que me faz a honra de consultar-me. Não verá nisso, caráter algum sagrado.
A Sra. sabe que para um cristão casar-se dignamente, é necessário estar na graça de Deus, e para tal, confessar-se; de outro modo o Sacramento é profanado, torna-se sacrilégio; ao nubente em estado de pecado não é comunicada a graça sacramental, que ajuda os cônjuges a cumprirem os seus deveres de esposos e pais. “Ele”, pois, é provável, não receberá a graça sacramental…
Ao ato do casamento seguem-se os atos conjugais (sobre esse assunto é necessário que a Sra. antes de se casar, se faça instruir completamente, de preferência por sua mãe, que é a pessoa mais qualificada para ministrar este ensino). Ora, não é lá tão certo que seu “futuro” saiba respeitar, na prática desses atos, a santidade do Matrimônio com todo o rigor da castidade cristã… E a Sra. terá com isso os maiores desgostos e as mais terríveis angústias de consciência, talvez.
A Sra. provavelmente terá filhos, e é possível que a natureza dê para terem muitos. Ora, é lógico que um homem alheio aos princípios morais da Religião, achando num belo dia que “já chega de herdeiros”, não sinta escrúpulos em recorrer à prática do malthusianismo. Mas a Sra. sendo cristã, deverá repudiar absolutamente tais práticas criminosas. E aí tem em perspectiva, contínuas e graves dissensões com o marido… Ou então será a animalização de sua vida conjugal, a abolição de sua consciência cristã, a morte de sua vida espiritual.
A vida espiritual!… a Sra. pensa ser coisa fácil a prática religiosa, quando se vive com alguém que reputa inúteis, e mesmo deprimentes da personalidade humana, todos os atos de devoção?… A Sra. quererá ir à igreja, quererá confessar-se, quererá comungar, quererá fazer parte de uma ou várias Associações religiosas, quererá promover festejos, fazer ação católica… São coisas que o seu marido, se continuar descrente e lógico em sua descrença, poderá suportar calado, talvez, por amor da paz doméstica, mas nunca poderá aprovar. Sentir-se-á constantemente contrariado em seus gostos íntimos, em seus projetos. Quando ele quiser ir com a esposa ao cinema ou a uma festa mundana, a Sra. preferirá ir a igreja ou ficar em casa; quando ele tiver visitas, de amigos incrédulos como ele, lá virá desastradamente o Vigário, para combinar com a Sra. algum projeto de procissão ou de catecismos… etc., etc…
E a educação dos filhos?!… Quais são, sobre este assunto, os princípios do seu querido descrente? Se ele tem princípios de educação coerentes com a sua incredulidade, os filhos, por parte dele, hão de receber uma educação de orientação materialista. Entre várias escolas ou colégios, ele há de escolher o mais neutro, o mais leigo. E se ele não tiver princípios de educação, ou se os tiver em desacordo com a sua descrença, ou se consentir, por condescendência, a colocar os filhos em colégios católicos de religiosos, assim mesmo as suas conversas e a sua abstenção de atos religiosos, no tempo das férias, serão a negação viva do ensino recebido no colégio. Ele não terá escrúpulos em por nas mãos dos filhos ou deixar que estes leiam jornais, revistas e livros perfeitamente pagãos que por aí pululam, que são por aí o pão quotidiano de tantos descrentes, a fonte perene de tanta corrupção moral…
Na melhor das hipóteses, ele poderá reconhecer-se inapto a ministrar a educação aos próprios filhos e entregar todo este cuidado à esposa (atitude muito difícil de se sustentar!); mas ainda assim, a educação recebida não deixará de ter suas falhas, e grandes!… Porque a própria natureza exige que o pai e a mãe façam juntos a educação dos filhos. Se não fosse esta exigência, seria inútil o casamento, e inútil a família: bastaria a união livre!…
A Sra. Com um pouco mais de calma, reflexão, poderá completar estas minhas previsões do seu futuro, baseadas, pode crer, sobre fatos do presente e do passado.
Mas, afinal, por que é que o seu quase-noivo não deseja para já a sua conversão, se bem que a julgue possível para o futuro? Ele está praticando o gesto absurdo do ganso, que esconde a cabeça debaixo das asas, para não ver o perigo, e julga estar salvo…
Eu não compreendo que um homem inteligente, culto, de gênio bom, tape os olhos para não ver as mais aberrantes realidades.
Aberrantes realidades são: a existência, durante dois milênios de humanidade, da Igreja Católica sempre combatida e sempre vencedora, e as afirmações enormes dessa Igreja. Existe um Deus. Temos uma alma imortal. Há um Céu e um Inferno. Deus se fez homem e falou aos homens, e fundou uma Igreja e vive no meio Dela, até o fim dos séculos… e “quem for batizado e crer, será salvo: quem não crer, será condenado!…”.
Ou estas afirmações, esta Mensagem da Igreja Católica são verdadeiras, e exprimem o que realmente é; ou a Igreja Católica é a mais vasta tapeação que já se viu na superfície da terra. Não há saída desse dilema.
Se é uma tapeação, o caso é gravíssimo; e é preciso fazer coro com os comunistas a fim de destruir até a raiz tão perniciosa instituição, que impediu a Humanidade, durante 20 séculos, de viver a sua vida.
Se o que Ela ensina é a realidade, então, o caso ainda é gravíssimo; porque os incrédulos renitentes, (inclusive o seu “querido”, minha filha…), estão em mau caminho, estão desperdiçando a existência (onde não há amor de Deus, não há merecimento para a vida eterna), estão correndo o perigo cada dia mais iminente de dar o salto na eternidade, pelo lado do Inferno, só por terem, em vida, feito o gesto absurdo do ganso, que esconde a cabeça debaixo das asas!…
A Sra. não deve ter descanso, enquanto não converter o seu noivo; deve mover Céus e terra para conseguir essa graça, antes de fundar com ele um novo lar. É o que tinha a lhe responder, o seu menor servo em Jesus Cristo.
Frei Justino, O.P.
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1 Revista do Clero, ANNO XIX, Fevereiro de 1938, Nº 2, pp. 58-60.
2 Revista Católica Mensal, “Mensageiro do Santo Rosário”, Dezembro de 1936, pp. 202-204. Redação e Administração do Convento dos Dominicanos – Uberaba/MG.
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