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Tomás de Kempis |
Que
não deve ter-se o homem
por
digno de consolação,
mas
só de castigo
1
– Alma:
Senhor, eu não sou digno da vossa consolação, nem de visita alguma
espiritual, e por isso, justamente vos haveis comigo, quando me
deixais pobre e desconsolado.
Porque
se eu pudesse chorar tantas lágrimas, que igualassem o mar, ainda
não seria digno da vossa consolação.
De
maneira que nenhuma outra coisa mereço senão ser açoitado e
castigado; porque gravemente vos ofendi muitas vezes e cometi muitos
delitos, e de muitos modos.
Se
pois bem me examino, não sou digno de consolação alguma por
pequena que seja.
Mas
vós, benigno e misericordioso Senhor, que não quereis que vossas
obras pereçam, para mostrardes as riquezas da vossa bondade nos
vasos da nossa miséria, tendes por bem consolar de modo sobre-humano
o vosso servo, ainda além de todo o merecimento.
Porque
as vossas consolações não são como as humanas.
2
– Senhor,
que tenho eu feito para que me désseis alguma consolação
celestial?
Não
me lembro de ter feito bem algum, mas de ser sempre inclinado a
vícios e preguiçoso em me emendar.
Eis
uma verdade, que eu não posso negar.
Se
dissesse outra coisa, vós estaríeis contra mim e não haveria quem
me defendesse.
Que
tenho eu merecido por meus pecados, senão o Inferno e o Fogo eterno?
Com
toda a verdade confesso, que sou digno de todo o escárnio e desprezo
e que não mereço estar entre os vossos servos.
E,
posto que ouça isto de má vontade, em defesa da verdade lançarei
contra mim os meus pecados, para que mais facilmente mereça alcançar
a vossa misericórdia.
3
– Que
direi eu, réu e cheio de toda a confusão?
Não
tenho boca para dizer senão estas palavras: pequei, Senhor, pequei,
havei misericórdia de mim, perdoai-me.
Esperai-me
“um
pouco para que chore a minha dor, antes que vá para a terra cheia de
trevas e coberta da escuridão da morte”.
Que
quereis vós, Senhor, de tão culpado e miserável pecador senão que
se humilhe e tenha contrição de seus pecados!
Da
verdadeira contrição e interior humildade nasce a esperança do
perdão; com elas reconcilia-se a consciência perturbada,
recupera-se a graça perdida, livra-se o homem da ira futura, e
une-se em santa paz com Deus a alma arrependida.
4
– Senhor, a humilde contrição
dos pecados é para vós sacrifício mui aceito, e mais suave na
vossa presença que o incenso.
Este
é o unguento agradável que quisestes que se derramasse a vossos
pés, porque nunca desprezastes
o coração contrito e humilhado.
Aqui
está o lugar de refúgio para quem foge do furor do Inimigo.
Aqui
se emenda e lava todo o que noutro lugar se transviou ou manchou.
1ª
Reflexão
Um
dia no litoral de Genesaré, quando acabava de falar às turbas de
cima de uma barca, disse Jesus Cristo a Simão Pedro: “torna
ao largo e lança as redes para pescar.
E Simão respondeu-lhe: Mestre,
trabalhamos toda a noite e nada pescamos; em obediência, porém, a
vossa palavra, lançarei as redes. E tendo feito isso pescaram tantos
peixes que as redes se rompiam com o peso. Fizeram sinal aos
companheiros que estavam noutra barca, para que viessem e os
ajudassem. Vieram, com efeito, e encheram ambas as barcas, de tal
modo que elas ameaçavam ir a pique. Vendo isto, Simão Pedro,
lançou-se aos pés de Jesus Cristo, dizendo: afastai-vos de mim,
Senhor, porque sou um homem pecador”.
Fatigados
das lutas da vida, também nós, como os pescadores de Genesaré, a
cada passo nos sentimos tristes por não
vermos os frutos dos nossos trabalhos. Mas, de onde é que nasce o
nosso desalento? Da má direção do nosso trabalho: move-nos mais a
vaidade do que a caridade, obramos segundo os nossos caprichos e não
segundo a vontade de Deus; contamos demasiado com as nossas forças e
não procuramos a graça divina. Apesar disso, a misericórdia de
Deus não nos abandona, vem visitar-nos no cárcere de nosso desterro
para nos inspirar alento. Felizes de nós se então soubermos receber
a sua visita, como Simão Pedro, com uma perfeita contrição dos
nossos pecados!
A
miséria de um pecador mede-se pela gravidade de seus crimes: o maior
criminoso é o maior miserável. Quando a graça divina ilumina a
consciência do pecador e lhe desperta o remorso, é então chegado
para ele o momento feliz de cair arrependido aos
pés de Jesus Cristo e confessar os seus pecados. É insondável o
abismo em que se afundou, e ao volver os olhos para as suas
iniquidades encontra mil razões para exclamar: Senhor, afastai-vos
de mim, por que eu sou, não só pecador, mas grande pecador.
Entretanto,
se abrir o seu coração à graça que o chama, sentir-se-á movido a
confiar no Senhor, que está sempre pronto para receber os
arrependidos: “vós,
Senhor, não desprezais um coração contrito e humilhado”.
A contrição purifica dos pecados; a humilhação cura a soberba e
dos grandes pecadores faz grandes penitentes.
Trabalha,
pois, em juntar a contrição com a humilhação. As consolações,
são dádivas da misericórdia divina, e não prêmios devidos aos
teus merecimentos.
2ª
Reflexão
Buscam
alguns com grande ardor as consolações celestiais, e caem no
abatimento desde que elas lhes são retiradas. Porém, estas graças
que Deus concede ou como recompensa às almas abrasadas do amor
divino, ou como estímulo às almas fracas, para ajudá-las a
suportar o trabalho da penitência, não nos são devidas de modo
algum; e sempre é necessário “levar
em nós a mortificação de Jesus, para que a vida de Jesus se
manifeste em nós”.
Onde
estaria a expiação, onde o mérito, se não tivéssemos nada que
sofrer, ou se nossos sofrimentos fossem sempre acompanhados da unção
divina que os tempera, e algumas vezes os torna mais doces do que
nenhuma alegria do mundo? De nós mesmos, pecadores miseráveis, não
temos direito senão ao suplício, e gostaríamos de gozar na terra
da felicidade do Céu? Bendigamos antes a misericórdia divina, que
às penas da eternidade substitui as provas do tempo: Bendigamos a
Deus que não se lembra, durante nossa peregrinação na terra, do
que devemos à sua justiça senão para o por logo em esquecimento
para sempre; e digamos-lhe do fundo de nosso coração contrito,
porém, cheio de reconhecimento e amor: “Lavai-me cada vez mais
de minha iniquidade, Senhor, e purificai-me do meu
pecado; porque bem conheço a minha maldade, e o meu pecado está
sempre diante de mim”.
3ª
Reflexão
Para
bem orarmos, é necessário reconhecermos que somos pobres, e
humilharmo-nos profundamente: e como vemos que um atirador de
balista, quando quer disparar um grande dardo, quanto mais alto quer
atirar, tanto mais puxa a corda do arco para baixo, assim devemos
fazer, quando queremos que nossa oração chegue ao Céu: necessário
é que nos afundemos muito pelo conhecimento de nosso nada.
Davi
nos admoesta a fazê-lo por estas palavras: “Quando
quiseres fazer oração,
diz ele, afunda-te no
abismo de teu nada, de modo que possas depois sem dificuldade
disparar tua oração, como uma flecha até os Céus”.
E
não vemos nós que os
grandes príncipes, quando querem fazer subir uma fonte ao lugar mais
alto de seu castelo, vão tomar a fonte da água em algum lugar muito
alto, depois a conduzem por tubos, fazendo-a descer tanto quanto
querem que ela suba, pois, de outra forma a água nunca subiria;
e se lhes perguntais
como a fizeram subir, responder-vos-ão, que foi fazendo-a descer.
Outro
tanto acontece com a oração; pois, se alguém perguntar como pode
ela subir ao Céu, deve-se responder, que lá sobe, pela descida da
humildade.
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