Suma
Pureza devida a Virgem,
como
a Filha do Eterno Pai.
1.
Considera que o primeiro título, e mui sublime, do Coração de
Maria é ser um espelho sem mácula. Duas espécies de pureza se
podem distinguir quanto ao nosso intuito: uma positiva, que consiste
na caridade e nas outras virtudes; a outra negativa, que consiste na
isenção de todo pecado. Ora, na Mãe de Deus a primeira espécie de
pureza não foi suprema, visto que a santidade criada que n’Ela se
achava, podia sempre ir crescendo; mas suprema, realmente, foi a
pureza negativa, porque sumamente se apartou de todo pecado: Potest
aliquid creatum inveniri, quo nihil purius esse poterit in rebus
creatis, si nulla contagione peccati inquinatum sit.
Por isto, Ela é chamada bela como a lua e eleita como o sol, pulchra
ut luna, electa ut sol, para
significar que a Virgem na santidade positiva se distinguia de seu
Filho como a lua do sol; isto é, que a sua beleza, conquanto
inefável, era n’Ela incomparavelmente menor de que o era em Jesus
Cristo, Sol de Justiça: e, outrossim, que não era uma beleza inata,
mas estranha e que lhe fora comunicada pelo seu Divino Sol, quia
respexit. Mas, ao contrário, na
pureza negativa a Virgem é bela como o sol, electa ut sol,
porque, preservada de toda culpa, imitou exatamente seu Filho na
inocência, possuindo como Ele possuía uma total isenção de
qualquer mácula, posto que de modo diverso, e por diversa razão.
Assim se verifica o oráculo de Isaías, que no Céu da Igreja a luz
da lua será semelhante à luz do sol: Erit lux lunae sicut
lux solis,
porque igualmente não teve parte o pecado nem em Jesus Cristo, nem
em sua Mãe, à imitação d’Ele: não teve parte o Pecado
Original, não o Pecado Atual; nem tampouco neles houve parte nenhum
dos péssimos efeitos ou causas do pecado. Ela preservada da dívida
de contrair culpa, como não compreendida no pacto que de princípio
se fez com o primeiro Pai; Ela livre do poder de pecar, porquanto a
impecabilidade que Cristo houve por natureza, a Virgem a teve por
graça; Ela sem o fermento do pecado, porque jamais experimentou o
menor impulso para o mal, nem jamais lhe entrou no espírito imagem,
figura, pensamento algum de impureza; Ela sem paixões desordenadas,
porque onde não havia a raiz da culpa, também não podiam existir
os ramos; Ela de todo incapaz de intrínsecas sugestões, porquanto o
domínio que tinha sobre as suas faculdades, não estava subordinado
a rebelião; e se o Demônio extrinsecamente ousou tentá-lA, apenas
logrou ser mais fortemente esmagado na venenosa cabeça: Ipsa
conteret caput tuum; Ela mais
pura do que os Anjos, os quais se já não pecaram, contudo podiam
pecar; e, se foram puros, sua limpidez provém da natureza por
necessidade, e não da graça por mérito como em Maria;
Ela, finalmente, não só puríssima em si mesma, mas pura até nos
outros; porque só com a sua presença produzia a pureza nos que a
contemplavam, da mesma sorte que a neve, a qual parece que vista de
perto nos refrigera.
Mas
como diversamente poderá ser, se Maria devia ser digna Filha do Pai
Eterno, como em verdade Ele a chama por Davi: Audi, filia,
et vide, et obliviscere populum tuum; et concupiscet rex decorem
tuum.
É certo que esta filiação ultrapassa os limites da filiação
adotiva; mas como ela se faz em nós pela graça, e a graça da
Virgem foi tão superior à de todos os Santos, e Ela a ninguém foi
mais semelhante do que ao seu Filho divino, disto ainda se segue que
a sua adoção seja superior à de todos os Santos, e semelhante à
filiação natural do Cristo. Posto isto, se a Virgem é Filha do
Eterno Pai, por uma razão mais forte do que aquela pela qual são
filhos todos os eleitos, convém que pela mesma razão, seja Ela mais
semelhante ao Pai do que o possam ser todos os outros justos; e, por
consequência, que mais do que todos seja apartada de qualquer mácula
de pecado. Certamente, se a maternidade de Maria tanto na terra se
devia assemelhar à paternidade divina, por necessidade convinha, diz
S. Anselmo, que Ela fosse tão pura que mais puro do que Ela não
pudesse haver outrem senão Deus: – Decens erat, ut ea
puritate qua major sub Deo nequit intelligi, Virgo illa niteret, cui
Deus Pater unicum filium suum dare disponebat.
Um
espelho, que esteja ainda que de leve, embaciando, já não pode
fielmente reproduzir a imagem: Imaginem maculosa non
reddunt; pelo que, quem não
recusa à Virgem o privilégio de ser a primogênita do Eterno Pai na
ordem da graça, tampouco lhe pode recusar o privilégio de ser em
tudo semelhante ao Pai na isenção de toda espécie de culpa, visto
que de um lado a semelhança é a primeira razão da dita filiação,
e, por outro lado, não há maior dissemelhança de Deus do que o
pecado.
Como a Mãe de Deus Filho
2.
Considerai que esta suma pureza é também devida a Maria como à Mãe
do Deus Filho. O ser Mãe do Santo dos Santos e não ser de todo
Santa é uma proposição monstruosa, diz S. Anselmo, e, para disto
bem nos persuadirmos, discorremos assim: – Ou Jesus Cristo queria
atender à sua própria honra, ou queria atender, a de sua Mãe; e
quer num quer noutro caso convinha que desse à Virgem uma pureza sem
igual.
Se
queria atender à Santa Mãe, como à sua
Mãe lhe devia três coisas: honra, obediência e amor. Mas que amor
teria havido para com Ela, se podendo isentá-lA de qualquer culpa,
não a tivera isentado, ao passo que Ela mais abominava todo pecado
que qualquer pena, e de boa vontade antes quisera não existir do que
ser pecadora? Como poderá com isto conciliar-se que Jesus Cristo
contempla sua Mãe com mais amorosos olhares que os que dispensa a
toda a corte celestial? Sim, porque destarte lá o diz S. Bernadino:
Christi filialis
aspectus ad Matrem transcendentissimus esse debet, ita ut totam
curiam coelestem simul sumptam non debet aspicere sub tali ordine
amoris.
Se assim não fosse, não teria Jesus concedido a sua Mãe aquele
privilégio que concedeu aos seus servos, que são os Anjos, em cuja
formação concordes reuniu a natureza e a graça: Erat
Deus condens simul naturam, et infundens gratiam.
A primeira pecadora, que foi Eva, teria tido esse privilégio de sair
perfeitamente pura das mãos do Criador, e não o houvesse tido
Maria, que é a mulher escolhida para restaurar a desobediência e os
danos da primeira. Em verdade à rainha não convém os mesmos
tratamentos dos servos: Non
debet eodem modo gubernari servus, et regina; nec ae qualiter
tractari.
E,
se assim é, onde estaria a honra devida por Cristo à sua Mãe, se
tivesse permitido que Ela fosse, um só instante, manchada de
qualquer pecado, mesmo na sua primeira origem? Em tal estado seria a
Virgem digna de despreso, ou talvez de maldição, por ser culpada;
e, por outra parte, como jamais podia ser amaldiçoada por Deus
Aquela criatura que um dia lhe devia ser Mãe? Qui
maledixerit Patri, vel Matri, morte moriatur.
Finalmente, se devia Cristo obediência à Mãe divina, como podia
suceder que essa Mãe alguma vez tivesse sido escrava de Lúcifer?
Abimelech, rei de Gesara, restituindo a liberdade a Sara, lhe disse
no fim: Memento te
deprehensam.
Recorda-te que já estiveste em meu poder. Ora, com quanto maior
razão se teria podido gloriar Lúcifer, se debaixo do seu poderio
tivesse tido Maria? Certo é que das mãos de Abimelech saiu
Sara intacta, sem receber ultraje algum; mas a Virgem teria recebido
afronta e mácula; e por isto, quando das mãos do Demônio saísse a
Virgem, teria ele podido dizer-lhe: Estás livre, mas lembra-te que
já te prendi nos meus laços; hás de esmagar-me a cabeça, mas não
te esqueças que meu foi o princípio da tua vida; tenha Deus os
restos, minhas foram as primícias: Memento
te deprehensam.
E a uma tal Mãe acaso convinha que tão longamente se subordinasse o
Verbo Encarnado? Se as leis não toleram que uma mãe se possa tornar
escrava de um filho, terá consentido a divina Sabedoria que a sua
Mãe se tornasse escrava do Demônio, podendo tão facilmente
isentá-lA dessa escravidão? Se não a tivesse preservado, não
poderia disto dar outra razão que não fosse a de não ter querido
preservá-lA; mas o não ter querido fazer-lhe esse grande benefício
como poderia escusar-se em quem tudo podia, como Deus, e, como Homem,
tudo devia a sua Mãe, causa segunda de todo o seu bem? Nem vale o
dizer-se que Ele depois a santificou: o perdão cura a chaga, mas não
tira a cicatriz: Ildulgentia,
quos liberat, notat.
E,
mesmo
quando fosse crível que Jesus Cristo houvesse descurado esta honra
de vida à sua Mãe, como poderia descurar a que devia a Si próprio?
Aqui podemos dizer o que em análogo assunto disse Santo Agostinho:
Si Mariae non
congruit, congruit Filio, quem genuit.
Não há privilégio que exceda a dignidade da Mãe de Deus; mas, se
houvesse, não poderia jamais transcender a dignidade daquele divino
Filho que se encarnou no seio virginal. E quem não sabe que a
desonra dos pais reverte em desonra da prole? Dedecus
filii pater sine honore.
Assim como aquelas águas que passam por uma ignóbil mina, tomam
desta as qualidades, assim das qualidades maternas se embebem os
filhos que dela nascem, partus
sequitur ventrem.
Um aluvião, portanto, de tantas desordens, e de tamanhos impossíveis
por vir, impossível nos torna acreditarmos que no Coração de Maria
por um instante sequer se alojasse o pecado, e não só o Atual como
o Original, de sorte que Ela não fosse formada com o mais santo, com
o mais excelente, com o mais admirável de todos os dons celestes por
Aquele Senhor que A formava para ser sua digna Mãe: Usque
adeo desipiendum est, ut homo videat melius aliquid fieri debuisse et
Deum credat facere noluisse?
Como a Esposa do Espírito Santo
3.
Considerai o terceiro título mui sublime pelo qual se deve a Maria
uma suma pureza, e é ser Ela a Esposa do Espírito Santo. Todas as
almas que se acham em graça tem por privilégio este celestial
esponsalício; Sponsabo
te mihi in fide.
Mas o vínculo entre o Espírito Santo e a Virgem é de ordem
incomparavelmente mais excelsa, por isso que Ela lhe pertence com um
título especialíssimo, isto é, pelo consentimento que lhe foi
pedido pelo Arcanjo S. Gabriel, e que por meio deste Ela deu ao
Espírito divino, para que lhe interviesse na alma e no corpo
tornando-A Mãe, e d’Ela se valendo para formar com o seu sangue
virginal os membros do Verbo Encarnado: Ipse
Spiritus Dei, ipse amor Omnipotentis Patris et Filii, corporaliter
venit in eam: et regniam coeli et terrae fecit sponsam suam.
Pela
mesma razão ainda o Arcanjo não apareceu a
Maria em sonho como a S. José, mas em vigília, porque o sono não
teria sido um tempo próprio para impetrar e dar tal consentimento
para as pretendidas núpcias.
E, assentado isto, quem acreditará que o Espírito divino não
quisesse escolher uma esposa inteiramente nobre, e sob todos os
aspectos? Mas por todos os aspectos nobre não seria Ela, se uma vez
tivesse sido pecadora, conquanto depois santificada. Isto seria ter a
nobreza por
graça, e não por nascimento. Muito importa o bom começo, e bem
difícil é obliterar as máculas que se hajam contraído em prejuízo
da honra: Infamia
semel imposita perpetuo durat.
Que homens haverá que, podendo escolher uma esposa à sua vontade, a
escolheria maculada? Como, porém, a teria escolhido quem a podia
fazer desde o seu princípio, conforme lhe aprouvesse? Quando uma
suma pureza não se devesse a Maria por outros motivos, certo que lhe
era devida por esta grandíssima dignidade de ser esposa do
Altíssimo. Augusta
licet legibus non sit soluta, tamen princeps eadem illi privilegia
tribuit, quae habet ipse.
Nem vale dizer-se que na sua Conceição e nos seus primeiros anos
ainda não se achava concluído o divino esponsalício que depois se
concluiu na Encarnação do Verbo Eterno: que importa isto? Basta que
desde o princípio fosse Ela destinada a essas bem-aventuradas
núpcias, para que desde então se lhe devesse, e como dádiva
antecipada, toda espécie de graça, e também por isto a graça
original. Coelestis
sponsa ante nuptialium munerum nomine Spiritum Sanctum accepit,
diz S. Epifânio; e de outro modo não se acharia própria para
concorrer com o Espírito Santo à concepção do Verbo Encarnado,
sem uma pureza tal que por esta houvesse a devida correspondência de
semelhança com a humanidade do Redentor.
Tanto
mais assim houvesse de ser quanto ao sublimíssimo grau de esposa se
aliava a função de Mediadora entre Deus e os pecadores: e como
poderia a Virgem dignamente exercer esse cargo, se alguma vez tivesse
pecado? Não é justo que seja medianeiro de reconciliação quem uma
vez participou do delito, causa única da discórdia. A vara de
Moisés, conquanto fosse tão prodigiosa, todavia não foi escolhida
para florescer e frutificar em mãos de Aarão, porque já uma vez se
transmutara em serpente. Duvida, pois, não padeça que a Virgem foi
sempre toda bela e imaculada: Tota
pulchra es, et macula non est in te: Tota pulchra,
diz S. Boaventura, per
omnis boni praesentiam, sine macula per omnis mali absentiam.
O Eterno Pai sempre a quis santa, porque Ela é a sua Filha e o amor
aqui
baixa do alto; o Filho a quis sempre santa, porque Ela é sua Mãe, e
o amor deve aqui subir; o Espírito Santo a quis sempre santa, porque
Ela é sua Esposa, e o amor deve ter aqui perfeitamente o seu efeito,
que é a união dos corações. Nesta Esposa divina, devia o divino
Espírito Santo como que expandir-se a Si mesmo, diz S. Ildefonso,
comunicando-lhe tantas graças, tantas prerrogativas, tantos dons,
tanta dignidade, quantos caber podiam em uma criatura, e quantos
convinha que tivesse Aquela alma felicíssima, que depois do Cristo
devia ser o instrumento primário do mesmo Espírito divino para
santificar todo o gênero humano. Portanto, à Virgem se atribui a
glória do Líbano como Ela o merece: Gloria
Libani data est ei;
porque, assim como no Líbano jamais faltou a neve: nunquid
deficiet nix Libani?,
assim
também na Virgem jamais faleceu a inocência, nem por culpa alguma
atual, posto que mínima, nem muito menos pela culpa original que
imensamente é mais criminosa de que qualquer culpa mínima: Nihil
inquinatum in eam incurrit.
Ela é aquela luz que das mãos do seu Criador saiu completamente
límpida; e tal sempre se manteve. Ela foi aquele bálsamo jamais
adulterado: Quasi
balsamum non mixtum odor meus.
Ao seu imaculado seio serviam de trincheiras os lírios: Venter
tuus vallatus liliis,
porque se impedisse o acesso a tudo o que respirasse impureza. De
outra sorte não fosse Ela assaz pura perante o Senhor. E visto que
não são puros os Anjos perante Deus, Stellae
non sunt mundae in conspectu ejus,
porque podiam pecar, quando não hajam pecado, deduzi vós agora como
digno tálamo do Altíssimo seria aquele coração que só se poderá
manchar, mas também já se houvesse maculado?
Oração
à Santíssima Virgem
em
Obséquio do seu Sagrado Coração
Ó
grande Rainha do Céu e da terra, suma e perpetuamente imaculada, eu
me inclino profundissimamente em obséquio do vosso ditosíssimo
Coração, espelho sem mácula, e que jamais foi conspurcado nem
mesmo por sombra de qualquer espécie de pecado, quer Original, quer
Atual. Por isto, convosco me regozijo por ser o mérito que sobre
todos estimais: quisera concentrar no meu peito todo o jubilo que por
este motivo tem experimentado os vossos verdadeiros devotos; e se tal
mérito Vos pudesse faltar, preferiria eu ser aniquilado para vo-lo
manter. Mas, contudo, um pecador, abjeto lodo, qual me reconheço,
com que vergonha deve comparecer em Vossa presença! Bem vedes que
inúmeras são as minhas iniquidades, passadas e presentes, mas acaso
poderão elas sobrepujar a Vossa caridade, para que de mim não se
compadeça e não me queira ajudar? Não: e bem que não o mereça,
ainda assim o espero alcançar, pois que tanto maior será a glória
da Vossa misericórdia, quanto maior é a minha miséria. Baixai,
pois, um dos Vossos olhares para mim, desgraçado, nem o desvieis sem
que me tenhais disposto a transmutar-me em outro. O meu coração, eu
vo-lo apresento todo nodoado para que Vos digneis de o santificar.
Imundo como está, Vós o podeis purificar com a Vossa intercessão
junto de Deus; e, se está cheio de pecados, tantas lágrimas de
contrição me podeis obter que com elas se lavem todas as manchas.
Grandes favores em verdade Vos peço; mas a Vós os peço, que sois
rica e poderosa sobre todas as criaturas, e que para opulentar este
mísero pecador só tendes que despender as Vossas preces. Estas me
asseguram a graça, esperando eu, por Vossa mediação, o perdão de
todos os meus pecados, e o viver para o futuro tão longe de
novamente cometê-los que depois possa, morrendo, agradecer-Vos para
sempre no Céu. Amém.
________________________
Fonte:
O Sagrado Coração
de Maria Virgem, proposto à Devoção dos Fiéis,
pelo Padre João Pedro Pinamonti, S.J., Consideração I, pp. 21-34.
Duprat & Comp., São Paulo/SP, 1904.
. S.
Thom. Dist. 44, 3, 3.
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