... São Bruno, o modelo e a admiração
de todo o clero, edificava pela pureza de seus costumes toda a cidade, quando
Manassés intrometendo-se simoniacamente na Sé Arquiepiscopal de Reims, procurou
manter-se nela por toda sorte de violências e de dissoluções. Julgou o Santo
que não podia, nem devia ocultar a dor que lhe causava semelhante escândalo. A
sua conduta já por si era uma censura aos desregramentos deste Pastor mercenário
para passar desapercebida; maltratou pois a Bruno, e nada esqueceu para o
perder.
Mas, tendo sido expulso Manassés,
deliberou-se dar-lhe como sucessor o nosso Santo. Este, logo que o soube, ficou
alarmado do projeto; fugiu secretamente, e tão bem se escondeu, que foi preciso
escolher outro. O novo eleito foi Reinaldo de Bellay, tesoureiro da igreja de
Tours. Alguns biógrafos modernos opinam que estas perturbações da
igreja de Reims, juntas ao desgosto que inspirava ao nosso Santo tudo aquilo
que no mundo mais lisonjeia, foram o principal móbil do seu retiro a
qualquer afastado deserto, para se ocupar somente do negócio importante da sua
salvação. Mas é pouco verossímil que uma causa tão leve tenha tido um
efeito tão surpreendente. Uma vida tão regular e tão inocente não teria sido
seguida de uma penitência espantosa; uma tal resolução pois deveu ter outra
coisa.
Com efeito a tradição,
nascida com a própria Ordem dos Cartuxos, e autorizada pelo testemunho do
famoso João Gerson, Chanceler da Universidade de Paris, de Santo Antonino e de
todos os grandes homens desta Ordem é que a verdadeira causa da resolução
que tomou subitamente o nosso Santo de se ir sepultar no resto de seus dias em
um horrendo deserto, e de nele passar a vida mais austera, foi um dos mais
assombrosos acontecimentos que podem abalar profundamente a alma. O autor da história da vida do nosso Santo,
que a escreveu no ano de 1150, quarenta e seis anos depois da sua morte, e que
faz uma relação muito circunstanciada e muito exata dos princípios dos
Cartuxos; um santo religioso da Cartuxa de Merya, que vivia em 1270; Guilherme
de Erbura que escrevia em 1313; o autor da Crônica dos Priores da Cartuxa que
florescia em 1383; enfim, o célebre Dionísio, o Cartuxo, que morreu em 1471;
todos estes grandes homens que certamente nem eram simples, nem crédulos, e
muito menos visionários, emitem sobre este fato opinião muito diversa e mais
provável que a dos críticos do século décimo sétimo, que foram os primeiros
que deram como apócrifa esta venerável tradição. Eis como todos estes
historiadores contam o acontecimento, de que se serviu Deus para levar São
Bruno a sepultar-se no deserto e a lançar os fundamentos da Ordem dos Cartuxos.
Durante a estada do nosso
Santo em Paris, morreu um célebre doutor da Universidade, homem que passava por
ser de reconhecida probidade e honesto, depois de se preparar com a recepção
dos Santos Sacramentos. Tivera o seu corpo depósito na igreja. Quando se estava
cantando o Ofício de corpo presente, ao chegarem à quarta lição que começa: Responde
mihi, o cadáver levantou a cabeça do féretro e com voz lastimosa exclamou: Por
justo juízo de Deus sou acusado: dito isto, tornou a repousar a cabeça,
como dantes.
Apoderou-se de todos os
assistentes um terror geral, e resolveram deixar para o outro dia os funerais.
Neste dia foi muito maior a concorrência; recomeçou-se o Ofício, e ao chegar às
mesmas palavras, tornou o cadáver a erguer a cabeça e a exclamar com voz
esforçada e mais lastimosa: Por justo juízo de Deus estou julgado.
Subiu de repente o pasmo e o
espanto. Resolveram diferir a inumação para o terceiro dia. Neste foi imenso o
concurso; deu-se princípio ao Ofício; como nos precedentes; quando se cantavam
as mesmas palavras, levantou o defunto a cabeça, e em voz horrível e espantosa
exclamou: Não careço de orações; por justo juízo de Deus estou condenado ao
fogo eterno.
É fácil compreender a impressão
que faria nos ânimos um acontecimento tão extraordinário. Achava-se Bruno
presente a este espetáculo; tão fortemente se emocionou com ele que,
retirando-se todo horrorizado, resolveu deixar quanto tinha e enterrar-se em
algum espantoso deserto para ali passar a vida entregue unicamente aos rigores
da mortificação e da penitência. Parecia necessário um sucesso tão trágico
para uma resolução tão generosa.
Estando nestes pensamentos,
vieram visitá-lo seis amigos seus; logo que chegaram, disse-lhes o Santo com as
lágrimas nos olhos: “Amigos, em que pensamos? Condenou-se um homem que na
opinião de todos viveu cristãmente; quem pois poderá fiar-se seguramente no
testemunho da sua consciência? Oh! Que formidáveis são os juízos de Deus! O
morto não falou para si; a nós se dirigiu o aviso daquele espantoso milagre.
Pelo que me toca tomei já o meu partido; resolvido estou a abandonar tudo para
sempre: benefícios, empregos, rendas, tudo se acabou já para mim; vou
sepultar-me vivo no deserto mais horroroso que encontrar, e aí passar a vida na
amargura, na solidão e na penitência”. Movidos todos aqueles amigos do
que acabavam de ouvir, protestaram que todos estavam no mesmo pensamento e na
mesma resolução, prontos a segui-lo.
Chamavam-se Lauduíno, que depois
de São Bruno foi o primeiro Prior da Grande Cartuxa; Estêvão de Bourg e Estêvão
de Die, ambos Cônegos de S. Rufo em Valência do Delfinado; um Sacerdote,
chamado Hugo, e dois leigos que se chamavam André e Guerino. Entraram a
discorrer sobre qual deserto lhes conviria: os dois Cônegos de S. Rufo disseram
que em seu país havia um santo Bispo, em cuja Diocese dispunha de muitos
bosques, e sítios inacessíveis e penhascos; que não duvidavam do zelo e muita
bondade que favorecia os seus intentos, caso recorressem a ele. Este santo
Prelado era Hugo, Bispo de Grenoble, célebre por sua santidade, e um dos
maiores Prelados do seu século. Aplaudiram todos este parecer.
Pedida por São Bruno a demissão
da sua prebenda, e feita a renúncia de tudo, tomou o caminho do Delfinado com
seus seis companheiros, lançou-se aos pés do santo Bispo de Grenoble,
pedindo-lhe que se dignasse conceder aos sete um sítio ermo, aonde pudessem
retirar-se. Lembrou-se então S. Hugo de um sonho que tivera na noite
precedente, em que lhe pareceu ver o
próprio Deus fabricando para Si um templo, em um deserto do seu Bispado
chamado a Cartuxa, e que sete estrelas levantadas da terra em forma de círculo
iam adiante do mesmo Bispo como para lhes mostrarem o caminho.
Mandou-os sentar a todos, e
tendo-lhes perguntado qual o motivo de sua viagem, tomou a palavra São
Bruno, e depois de lhe referir o prodigioso acontecimento de Paris, lhe
suplicou fosse servido assinalar-lhes algum deserto, onde passassem a vida na
penitência e retirados do comércio humano. Logo que S. Hugo ouviu a sua
narração, referiu-lhes a visão que tinha tido, certo de que eram eles as sete
estrelas misteriosas. Abraçou-os ternamente, louvou os seus generosos intentos,
ofereceu-lhes o deserto da Cartuxa, descrevendo-o desta maneira: “Se
buscais lugar inacessível aos homens, não achais outro menos pisado por pé
humano; mas notai que é uma silenciosa solidão, cuja vista mete horror; é um
conjunto de penhas escarpadas, cujos cimos sobem até se ir esconder no seio das
nuvens. No inverno está todo coberto de espessos lençóis de neve, obumbrado por
névoas perpétuas, sendo o frio por um lado insuportável, por outro interminável;
numa palavra, é um lugar que até agora só o têm povoado as feras”.
Vendo que esta descrição longe de
lhes esfriar o ardor, mais lhes despertava os brios, acrescentou: “Conheço
claramente que Deus vos destina a esta horrorosa solidão; o mesmo Senhor vos
dará as forças para nela vos manterdes”. Demorou-os alguns dias no
paço, para que se restaurassem das fadigas do caminho; depois disto foi
acompanhá-los até ao lugar de que os deixou de posse. Não contente de
ceder-lhes todo o direito que a ele tinha, ofereceu-se para indenizar o dono de
quaisquer pretensões que pudesse alegar, tudo para que nada os pudesse estorvar
ou inquietar.
A primeira coisa de que trataram
os solitários foi da edificação da capela em honra da Santíssima Virgem,
e de umas celazinhas a pouca distância uma das outras, em um terreno que está
no meio de três grandes penhascos, de cuja base brota uma pequena fonte, que
ainda hoje chamam de S. Bruno, tudo perto da capela, que desde então é
conhecida pelo nome de Santa Maria das Choças. Entraram estes anjos em
carne humana a habitar aquele deserto, e a levar nele a vida mais austera que
se tem visto na Igreja. Era dia de São João Batista, do ano 1084...
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Fonte: Rev. Pe. Croiset, S.J., “Ano
Cristão ou Devocionário para todos os dias do ano”, traduzido do francês,
revisto e adaptado às últimas Reformas Litúrgicas pelo Rev. Pe. Matos Soares,
Professor do Seminário do Porto, Vol. X, Dia 6 de Outubro – Festa de São Bruno,
pp. 71-75; Tip. “Porto Médico”, Ltda, Porto, 1923.
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