Blog Católico, para os Católicos

BLOG CATÓLICO, PARA OS CATÓLICOS.

"Uma vez que, como todos os fiéis, são encarregados por Deus do apostolado em virtude do Batismo e da Confirmação, os leigos têm a OBRIGAÇÃO e o DIREITO, individualmente ou agrupados em associações, de trabalhar para que a mensagem divina da salvação seja conhecida e recebida por todos os homens e por toda a terra; esta obrigação é ainda mais presente se levarmos em conta que é somente através deles que os homens podem ouvir o Evangelho e conhecer a Cristo. Nas comunidades eclesiais, a ação deles é tão necessária que, sem ela, o apostolado dos pastores não pode, o mais das vezes, obter seu pleno efeito" (S.S. o Papa Pio XII, Discurso de 20 de fevereiro de 1946: citado por João Paulo II, CL 9; cfr. Catecismo da Igreja Católica, n. 900).

quarta-feira, 2 de março de 2022

QUARTA-FEIRA DE CINZAS.


Irmãos meus, diz São Bernardo, começamos hoje, o santo tempo da Quaresma, este tempo de combates, e de vitórias para o cristão, por meio das armas do jejum e da penitência. Com ânimo, com que fervor, com que confiança devemos começar esta carreira, mas com que religião, e com que exatidão devemos observar este jejum! Esta lei é comum a todos os cristãos. Tendo Jesus jejuado quarenta dias e quarenta noites, ousaria um cristão dispensar-se no jejum da Quaresma? Santo Agostinho diz que o jejum de quarenta dias, estabelecido na Igreja está autorizado pelo Antigo e pelo Novo Testamento: pelo Antigo, porque Moisés e Elias jejuaram igual número de dias; pelo Novo, pois que o Evangelho nos mostra Jesus jejuando igual número de dias; por onde vemos a conformidade do Evangelho com a Lei figurada por Moisés e os Profetas, representados por Elias. Sem dúvida por isto, acrescenta o Santo Doutor, apareceu Jesus Cristo entre Moisés e Elias em sua Transfiguração, para significar mais autenticamente o que o Apóstolo diz do Salvador, a saber: que a Lei e os Profetas dão testemunho d'Ele.

Pode dizer-se afoitamente que o jejum da Quaresma é tão antigo como o Evangelho, pois, que o Filho de Deus não começou a pregar o seu Evangelho senão depois de jejuar quarenta dias e quarenta noites; mas ainda que possa afirmar-se ter sido esta a primeira instituição da Quaresma, pois que São Jerônimo diz que Jesus Cristo santificou então o jejum dos cristãos, não se pode dizer que o exemplo do Salvador fizesse desde logo uma lei inviolável, à qual hajam estado sujeitos todos os seus Discípulos.

Até mesmo pela resposta que o Salvador deu aos fariseus transparece que não havia querido obrigar seus Discípulos ao jejum, deixando esta obrigação para depois de estarem privados da presença do Esposo Celestial. De fato, apenas o Salvador tinha subido ao Céu, quando os jejuns se tornaram muito frequentes entre os Apóstolos e entre os primeiros fiéis.

Assim pois, o jejum é de Preceito Divino, mas o estabelecimento da Quaresma, isto é, a forma do jejum, ou a maneira de jejuar certo número de dias antes da Páscoa é de Constituição Apostólica. O Salvador, diz São Jerônimo, santificou por seu jejum de quarenta dias o jejum solene dos cristãos, e seu exemplo foi a primeira instituição da Quaresma; mas não fez dele um Preceito expresso: é provável que desde a sua Ressurreição até a sua Ascensão fosse que, ensinando seus Apóstolos acerca da organização da Igreja, e das observâncias religiosas que queria que se estabelecessem nela, lhes indicou o tempo e a forma do jejum da Quaresma. O exemplo do Salvador do mundo fixou o número de dias; o tempo imediatamente anterior à Pascoa pareceu-lhes o mais próprio para servir de preparação a esta grande festividade. De fato, diz Santo Agostinho, não era possível escolher em todo o ano tempo mais conveniente para o jejum da Quaresma, do que aquele que termina pela Paixão de Jesus Cristo: este é o que o Espírito Santo fixou pontualmente na Igreja.

Como as seis semanas da Quaresma não compreendem mais do que trinta e seis dias de jejum, a Igreja, sempre conduzida pelo Espírito Santo, acrescentou-lhe os quatro dias precedentes, fixando o princípio desta santa quarentena na quarta-feira de cinzas. É bem sabido que se chama assim este primeiro dia do jejum da Quaresma, por causa da Cerimônia de polvilhar as cabeças dos fiéis com cinza neste dia. Não só na Nova Lei, mas também na Antiga, a cinza tem sido o significado da penitência, e o sinal sensível da dor e da aflição. Querendo Thamar dar a conhecer seu pesar e sua dor, pôs cinza sobre a cabeça1. Eu me acuso a mim mesmo, diz Jó2, falando com o Senhor, e e faço penitência no pó e na cinza. Assustados os israelitas com a aproximação de Holofernes, e querendo os sacerdotes aplacar a cólera de Deus, oferecem-lhe sacrifícios com a cabeça coberta de cinza3. Mardoqueu, consternado com a notícia da desgraça que ameaçava toda a sua nação, reveste-se de saco, e cobre a cabeça de cinza4. Todo o povo fez o mesmo nas Províncias. Os anciãos da cidade de Sião, diz Jeremias em suas Lamentações, cobriam a cabeça com cinza em espírito de penitência5. Daniel, juntou ao jejum e à oração a cinza, para apaziguar o Senhor, irritado contra o seu povo6. Desejando o rei de Nínive abonançar o Senhor, desceu de seu trono, cobriu-se de saco, e assentou-se sobre cinza7. Os Macabeus, acompanharam seu jejum solene da cerimônia da cinza, que puseram sobre a sua cabeça8.

Não se tem usado menos na Nova Lei, que na Antiga, a cerimônia da cinza. Repreendendo Jesus Cristo aos de Corazim e de Betsaida seu endurecimento e indocilidade, diz, que se os milagres que se fizeram entre eles houvessem sido feitos em Tyro e em Sidônia, haveria já muito tempo que teriam feito penitência no cilício e na cinza9. Coisa alguma foi mais comum entre os penitentes desde os primeiros dias da Igreja. Os Padres e os Concílios hão sempre acrescentado a cinza à penitência.

Optato repreendia os Donatistas por haverem posto em penitência as virgens consagradas a Deus, lançando-lhe cinza na cabeça. Santo Ambrósio diz que a cinza devia distinguir o penitente. E Santo Isidório, Arcebispo de Sevilha, diz que, os que entram em penitência põem cinza na cabeça, em reconhecimento de que pelo pecado não são mais do que pó e cinza, e que justamente pronunciou Deus contra eles a sentença de morte.

Reginon tomou dos Concílios antigos o modo, porque lançava a cinza sobre a cabeça dos grandes pecadores, e a cerimônia do dia de cinza. Todos os penitentes, diz, se apresentavam à porta da Igreja, cobertos de saco, pés descalços, e com todos os sinais de um coração contrito e humilhado. O Bispo ou o Penitenciário impunha-lhes uma penitência proporcionada a seus pecados. Depois, diz, tendo recitado os Salmos Penitenciais impunha-lhes as mãos, aspergiam-nos com água benta, e cobriam-lhes a cabeça com cinza.

Tal era a cerimônia do dia de cinza, ou dos primeiros dias de jejum da quaresma, para os pecadores públicos, cujos enormes pecados haviam feito muito ruído e causado grande escândalo. Mas, como todos os homens são pecadores, diz Santo Agostinho, todos devem ser penitentes: isto é o que moveu os fiéis, ainda os mais inocentes a darem neste dia um sinal público de penitência, recebendo a cinza na cabeça. Nenhum dos fiéis a excetuava: os príncipes e os vassalos; os Sacerdotes e os Bispos deram ao público desde os primeiros tempos este exemplo tão edificante de penitência.

E o que no começo fora peculiar aos penitentes públicos, se fez, por fim, comum a todos os filhos da Igreja, pela persuasão, em que todos estão, consoante às palavras de Jesus Cristo, de que não há ninguém por inocente que se creia, que não tenha necessidade de fazer penitência.

Os mesmos Papas se submetem, como os outros, a esta cerimônia humilhante da religião: toda a distinção que em sinal de respeito se faz ao Vigário de Jesus Cristo, consiste em não dizer nada ao impor-lhe a cinza.

Lembra-te, homem, que és pó, e que te hás de converter em pó”.

Estas as memoráveis palavras que Deus pronunciou contra o primeiro homem no momento de sua desobediência, as mesmas dirige a Igreja em particular a cada um de nós, por boca de seus Ministros, neste dia. Palavras de maldição, no sentido em que Deus as pronunciou, diz o mais célebre dos oradores cristãos; mas palavras de graça e de salvação no intuito, que se propõe a Igreja, quando as diz. Palavras terríveis e fulminantes para o homem pecador; mas palavras doces e consoladoras para o pecador


penitente, diz São João Crisóstomo, porque lhe ensinam o caminho de sua conversão pela penitência.

Toma na mão um punhado de cinza, diz Deus a Moisés e a Aarão, e espalha-a sobre o povo.10 Esta cinza assim espalhada, diz a Escritura, foi como a matéria, de que Deus formou os açoites, com que flagelou a todo o Egito, e lhe causaram uma desolação universal. O efeito da cerimônia deste dia é muito diverso no Cristianismo, porque os Sacerdotes da Lei Nova não espalham hoje a cinza sobre as nossas cabeças, senão para aplacar a cólera do Senhor por esta humilhação, para nos atraírem as graças e os favores de Deus, para nos fazerem credores de sua bondade, e para excitarem em nossos corações os sentimentos de penitência; neste espírito e nesta disposição se deve praticar neste dia a cerimônia da cinza. Esta faz-se dos ramos bentos no ano anterior, e levados em procissão no Domingo de Ramos. Também se benze esta cinza antes de colocá-la na cabeça dos fiéis e basta tomar sentido nas orações que a Igreja emprega nesta bênção, para compreender com que espírito de religião se deve assistir e participar desta santa, quanto saudável cerimônia.

Começa o Sacerdote a bênção destas cinzas pelo verso do Salmo 68: Ouvi, Senhor, meus rogos, já que tanto Vos comprazeis em fazer bem; segui os movimentos de vossa infinita misericórdia, e, ponde em mim vossos olhos. Deus Onipotente e eterno, continua o Sacerdote, sede propício aos que Vos invocam e perdoai aos pecadores penitentes. Dignai-Vos enviar o vosso Santo Anjo do Céu, que abençoe e santifique estas cinzas, a fim de que, sejam um remédio saudável para todos aqueles, que com um coração contrito e humilhado invocam vosso Santo Nome, confessam publicamente que são pecadores, e penetrados de uma viva dor de ter-Vos ofendido, se prostram hoje diante de Vós, implorando vossa infinita misericórdia. Dignai-Vos, Deus de bondade, deixar-Vos inclinar por este ato de religião, e fazei pela invocação de vosso Santo Nome, que todos os que receberam estas cinzas sobre a sua cabeça, além do perdão de seus pecados, recebam também a saúde do corpo e da alma.

Por Nosso Senhor Jesus Cristo…

Ó Deus, que não quereis a morte, mas a conversão dos pecadores, apiedai-Vos da fragilidade humana, continua o Sacerdote, e dignai-Vos por vossa misericórdia abençoar Vós mesmo estas cinzas, que queremos pôr em nossa cabeça em sinal de humildade cristã de que fazemos profissão, e para obter por este ato de penitência o perdão, que esperamos, a fim de que, quando por esta forma reconhecemos de que não somos mais do que pó, obtenhamos de vossa misericórdia o perdão de nossos pecados, e a recompensa que haveis prometido aos que fazem verdadeira penitência.

Por Jesus Cristo, Nosso Senhor. Assim seja.

Ó Deus, que Vos deixais abonançar pela humilhação, e ganhar por uma satisfação sincera, prossegue, dignai-Vos escutar nossos rogos e nossos votos, e enquanto que a cabeça de vossos servos está coberta de cinza, derramai vossa graça em seus corações, enchei-os do espírito de inteligência, concedei-lhes o efeito de sua justa petição, e permiti que jamais percam as graças que lhes houverdes concedido.

Nós Vos suplicamos por Jesus Cristo Nosso Senhor.

Deus Onipotente e Eterno, que Vos dignastes perdoar aos ninivitas, cobertos de cinza e vestidos de saco em sinal de penitência: concedei-nos por vossa misericórdia a graça de que, imitando-os hoje nos sinais da penitência, obtenhamos, como eles, o perdão de nossos pecados.

Por Nosso Senhor Jesus Cristo…

A Igreja termina esta bênção da cinza, exortando a todos os fiéis de uma maneira patética e no sentido do Profeta Joel, a que se volva eficaz a cerimônia da cinza. Não nos reformemos só no exterior, pela modéstia dos vestidos, na cinza e no cilício; jejuemos, e acompanhemos nossos jejuns de lágrimas de contrição, que devemos derramar diante do Senhor, porque o nosso Deus é cheio de bondade e de misericórdia, e sempre disposto a perdoar nossos pecados: corrijamos as faltas que houvermos cometido ou por fraqueza, ou por ignorância ou por malícia: e não tardemos em o fazê-lo, não seja caso que surpreendidos pela morte, não tenhamos tempo para convertermo-nos.

A Epístola da Missa deste dia é tirada do Capítulo Segundo do Profeta Joel. Nada podia convir melhor ao espírito da celebridade deste dia. Os açoites, com que Deus castigava os pecados do seu povo, oferecem uma bela ocasião ao Profeta, para o estimular a que procure abonançar a justa ira de Deus, por meio do jejum e da penitência, predizendo-lhe que o Senhor, movido pela humilhação, pela maceração do corpo e pela prece, derramará suas bênçãos sobre os corações contritos e humilhados, e cumulará de luzes as almas verdadeiramente penitentes. O estilo deste Profeta é pomposo, magnífico, veemente, expressivo, figurado, e ao mesmo tempo vivo, interessante e patético.

A alegoria dos gafanhotos, comparados a um exército, está perfeitamente bem sustentada. Suas pinturas correm vivas. Pinta as coisas de modo que parece que se veem. Rasgai vossos corações e não vossos vestidos, e convertei-vos ao Senhor vosso Deus, porque é bom e compassivo, paciente e rico em misericórdia, e ainda mais misericordioso, do que nós perversos. Era então um costume mui comum o rasgarem-se os vestidos no luto e nos transportes da dor.

Inúmeros são os exemplos que a Escritura apresenta. Mas Deus não se contenta com estes sinais equívocos de conversão, de dor e arrependimento; quer uma conversão sincera, uma dor íntima, um coração contrito e despedaçado de dor, quer a conversão do coração.

A reforma dos costumes pede frutos dignos de penitência. Quem sabe se se aplacará, com nossas lágrimas, e se se abrandará, vendo-nos humilhados? O Profeta designa ao mesmo tempo três disposições, com que devemos fazer penitência: a confiança na bondade de Deus, a contrição de nossos pecados, e a desconfiança de nossos próprios merecimentos.

Anunciavam-se as festas e assembleias ao som da trombeta, segundo está ordenado no décimo capítulo dos Números; o Profeta exorta os chefes da nação a que reúnam o povo e nesta reunião geral ordenem um jejum solene, e que estimulem a todos, e em particular aos ministros do Senhor, a apaziguar a cólera do Senhor com suas lágrimas e penitência.

Derramem lágrimas, diz os sacerdotes, prostrados entre o vestíbulo e o altar, e clamem: Perdoai, Senhor, perdoai a vosso povo e não permitais que vossa herança caia em opróbrio, e seja dominada pelas nações. Sofrereis que os estrangeiros digam de nós: onde está o seu Deus?

No estado, em que se achava então o país, nada teria sido mais fácil aos inimigos dos judeus, do que o apoderar-se deles.

O povo consternado, abatido pelo espanto, debilitado por uma fome horrível, não estava em estado de resistir a um exército de Assírios ou de Caldeus.

O Profeta exorta pois os ministros do Senhor a que peçam que não permita que seu povo caia debaixo da dominação estrangeira, e que as nações infiéis não tenham de acusar o Deus de Israel ou de fraqueza, ou de dureza, por haver assim abandonado seu povo ao furor de seus inimigos.

Ainda bem que não tinha acabado o Profeta de exortar todos os seus irmãos à penitência, quando lhes prediz que o Senhor se deixará abrandar de seus clamores. O Senhor comoveu-se, diz, à vista de suas lágrimas, e lhes perdoou; e a este perdão seguiu-se todo o gênero de prosperidades e uma bênção abundante. Tanto é verdade, que a penitência desarma a Deus, por mais irritado que esteja, e traz a prosperidade e a calma.

O Evangelho da Missa deste dia é tomado do capítulo 6, do Evangelho de São Mateus, onde Jesus Cristo nos ensina a pureza da instrução que deve haver no jejum. Acabava o Salvador de ensinar aos Seus Apóstolos como deviam orar, prescrevendo-lhes o modelo da oração, a mais excelente; e como deviam perdoar as injúrias, reservando-Se a Si mesmo a ser o Modelo, o mais perfeito de nossa caridade tão relevante. Depois de lhes ter dado os Preceitos sobre a oração, e sobre o perdão das injúrias, lhos dá também a respeito do jejum que deve acompanhar e sustentar a oração. Quereis saber, Lhe diz, quais jejuns são santos e agradáveis a Deus? São aqueles que se praticam em segredo. Não estranheis que Vos proíba o imitardes os hipócritas que jejuam, fazendo ostentação de sua austeridade; sua virtude não está no coração, mas no rosto, e por um semblante penitente, por um ar triste e austero, por jejuns longos e rigorosos, tratam de adquirir reputação de gente mortificada, e com estas exterioridades afetadas e hipócritas enganar todo o mundo. Tende por certo o que Vos disse já, e agora Vos repito, que a recompensa de tudo se reduz à vanglória, com que se incham e envaidecem. Eu espero de vós um porte mui diferente, porque o que Eu quero é que nos dias de jejuns perfumeis a cabeça, laveis o rosto, como costumais fazê-lo nos dias mais solenes, a fim de que, à sombra de um semblante de festa oculteis a austeridade de vosso jejum: de forma que, se possível for, só Deus saiba que jejuais, e se tanto for preciso, aqueles a quem deveis dar o exemplo. Isto é o que Deus quer, isto é o que Deus aprecia; quanto mais ocultardes aos homens vossas penitências, tanto mais pública e gloriosa será algum dia vossa recompensa. Um cristão verdadeiramente penitente oculta com o maior cuidado aos olhos dos homens os rigores a que se condena; como não ofendeu mais do que a seu Deus, a Ele só é a quem quer agradar; parecem-lhe mui pequenas as penas com que se aflige, para não recear que seu mérito diminua, expondo-as à vista dos homens: portanto, só devemos fazer aos homens testemunhas de nossa penitência, se o foram de nossas desordens: o escândalo só se repara pela conversão e pela reforma dos costumes.

No luto e no jejum não se usava de banho nem de perfumes. Quando Jesus Cristo manda que se sirvam deles no exercício da penitência, não nos devemos atear ao sentido material das palavras: quer somente que estejamos tão longe da afetação de jejuadores, que antes pareçamos o contrário, e que em vez do ar triste e austero dos fariseus, usemos de maneiras francas, abertas, de ar festivo e contente; quer que obremos sem afetação, sem vaidade, sem máscara, sem hipocrisia, a fim, diz Santo Ambrósio, de que não pareça, para assim dizer, que vendemos aos homens nosso jejum, e que trabalhamos nossa salvação com tristeza e com pesar, tomando um aspecto sombrio e choroso, que vá dizendo a todos que jejuamos.

Também, prossegue o Salvador, há no mundo outra fraqueza mui comum, que é a grande paixão de adquirir bens. O Salvador acrescenta o desprendimento dos bens terrenos ao jejum, para prevenir o indecente motivo de aqueles, que levados de sórdida avareza, só jejuam para poupar-se. Jejuamos de tal modo, diz Santo Agostinho, que o gasto com os nossos jejuns entre no tesouro de Jesus cristo pelas mãos dos pobres, e não venha a ser o alimento de nossa avareza. Eu não Vos impeço, diz o Salvador a Seus discípulos, que ajunteis grandes tesouros, contanto que não sejam dos da natureza dos que se juntaram na terra, que os consome a ferrugem e o gorgulho, e que podem roubar-vos os ladrões.

Não vos afadigueis por ajuntar outros tesouros que os do Céu, onde não há ferrugem nem gorgulho, nem ladrões que o roubem: no Céu, onde os tesouros que ajuntardes são inalteráveis, inamissíveis e eternos. Por outra parte, segundo o antigo provérbio: onde está o tesouro, aí está o coração, não é mais útil e mais seguro levantar continuamente o nosso coração para o Céu, querida pátria vossa, do que apegá-lo à terra, triste lugar do desterro?

Santo Hilário, desenvolvendo estas palavras de Jesus Cristo: não confieis, diz, vosso tesouro da opinião e dos louvores dos homens; não espereis deles vossa recompensa, esperai-a unicamente de Deus. Ah! Que pouco razoáveis são os homens! Quão pouco conhecem seus verdadeiros interesses! Não nos empenhamos com atividade mais do que pelos bens da terra, bens falsos, frívolos, vazios, bens aparentes, que nada tem de duráveis, e que se nos devem tirar tarde ou cedo. Quão cegos somos! Por que não havemos de dirigir todas as nossas vistas e solicitudes para o Céu, para as verdadeiras riquezas, cuja posse deve ser eterna, e que podem para sempre cumular nossos desejos?! O justo não tem afeição à vida, porque reputa por nada os seus bens, de que goza nela. Não tem trabalho, nem trabalha senão para o Céu: ali está seu tesouro, e por conseguinte seu coração. Que sábio e que ditoso é o justo, em não se apegar ao mundo caduco, onde é estrangeiro, e em fazer passar o fruto de todo o seu labutar para o Céu, sua verdadeira, sua eterna pátria! Que diferença na morte entre o pecador e o justo! O coração do pecador está todo na terra, e é forçoso que a deixe: o coração do justo está no Céu, e a morte abre-lhe a entrada nele. A palavra, tesouro, dizem os intérpretes, significa não só o dinheiro, mas também os móveis, os vestidos preciosos, os repositórios de grãos e os celeiros; a ferrugem só come o metal, e o gorgulho ou traça roem os móveis, o pão e os vestidos.



Oração

Senhor, concedei a vossos fiéis a graça de que entrem na solenidade sagrada do Santo Jejum com a piedade correspondente, e de que se sustentem em toda a carreira com uma devoção imperturbável. Por Nosso Senhor Jesus Cristo…



Reflexões sobre

a Epístola do Dia.

(Joel 2, 12-19)


Convertei-vos a mim de todo o vosso coração”. Deus mesmo é o que nos convida, o que nos urge, o que nos manda que nos convertamos a Ele de todo o nosso coração. Depois disto, a que pecador pode faltar a confiança? Mas também, qual poderá adiar a conversão? Se um príncipe oferecesse com tanta franqueza o perdão a um criminoso; se convidasse ele mesmo a um cortesão, caído em desgraça a voltar à corte, oferecendo-lhe sua amizade, seus favores, achar-se-iam muitos que titubeassem em partir? Que adiassem voltar? A quem tem parecido de imenso caro, ou demasiado incômodas quaisquer condições para comprar o favor de um príncipe? Ah! E o que vale o favor de um príncipe da terra, em comparação da amizade do Supremo Senhor do universo, o Deus Onipotente, fonte de todo o bem, e único Árbitro de nosso eterno destino? E não obstante, quem se rende ao Seu chamamento? Quem responde com prontidão ao Seu convite? Que se apressa a entrar em Seu favor, por mais que ofereça a Sua amizade com empenho? Querem converter-se, porque a gente do mundo, os pecadores escandalosos, as mulheres profanas, não gostariam de morrer em sua desgraça, querem converter-se, mas temem que seja demasiado cedo, se o fazem imediatamente. Dilação da conversão, passo seguro, garantia quase certa da impenitência final. O que vive em desejo ineficaz de converter-se, normalmente morre impenitente.

Vós, Senhor, convidais, solicitais ao pecador, para que se converta, mas a ele não lhe agrada. Quando estiverem de humor para isso, isto é, quando estiverem desgostosos de seus prazeres; quando por enfermidade, pela idade, ou por qualquer acidente funesto, não estiverem já em estado de ofender-Vos; quando se virem à beira do abismo, em que vão ser precipitados; quando já desagradam aos mundanos, quando já não forem bons para nada; quando o mundo, a quem serviram, e de quem foram e teem sido escravos, não quiser já seus serviços: então esses mundanos rendidos, esses pecadores cansados, essas mulheres do grande mundo, velhas ou abandonadas, esses libertinos arredados das reuniões profanas, dos partidos, que chegaram a ser odiosos em Babilônia, pensarão verdadeiramente em tomar o caminho de Jerusalém, e em oferecer ao Senhor uns miseráveis restos de vida corrompida. Deus é misericordioso, não há dúvida; mas ainda, Ele é todo misericórdia, mas é também Justo. E julgaremos que estes regressos forçados, que estas pretendidas conversões dilatadas, sejam de grande mérito diante d’Ele? O pecador não deve nunca desesperar de sua salvação, ainda que não lhe restasse mais do um sopro de vida, deve reanimar toda a confiança em um Salvador que tão grandes gastos fez, e que morreu universalmente pelos pecadores; mas um pecador que é insensível às amorosas solicitações da graça, e que voluntariamente se endurece contra toda a impressão do Espírito Santo, não terá nada a temer? “Convertei-vos a mim de todo o vosso coração”. Quem diz de todo o vosso coração, pede uma conversão inteira, perfeita e sem divisão. Não há conversão verdadeira, senão é de todo o coração. Reformar o luxo dos vestidos, cortar pelo jogo, romper com laços criminosos, não assistir mais aos espetáculos, privar-se de todo o divertimento pouco cristão, é uma conversão mui edificante; mas, se fica ainda alguma paixão dominante que abandonar, alguma afeição favorita que vencer, alguma injúria que perdoar, alguma frieza que extinguir, algum laço que romper, a conversão não é inteira; não há conversão de todo o coração, quando há alguma reserva na conversão. Passei à espada, diz Saul ao Profeta, a todos os amalecitas, nada ficou de quanto lhes pertencia, conforme à ordem do Senhor: que significa, retorquiu-lhe Samuel, o balido dessas ovelhas, a voz desse rebanho? Bom Deus! Quantas conversões ambíguas, imperfeitas e defeituosas! Quão poucos se convertem a Deus de todo o coração!



Meditação sobre

o Santo Evangelho.

(Mat. 6, 16-21)


Sobre a Cerimônia da Cinza


Primeiro Ponto. Considera que a cerimônia de pôr cinza sobre a cabeça não é puramente uma cerimônia exterior, vazia, estéril e indiferente; é uma cerimônia religiosa, que recordando-nos a memória do formidável decreto, pronunciado contra nós pelo Soberano Juiz, é também o símbolo da penitência e da nossa mortalidade. Que fazemos pois hoje, quando pomos cinzas em nossas cabeças? Fazemos o que fazia Josué, quando para apaziguar o Deus dos Exércitos e reparar o latrocínio dos despojos de Jericó, ele e os anciãos de Israel cobriam a cabeça de pó; fazemos o que Jeremias recomendava aos príncipes de Judá na desolação da sua pátria, recordando-lhes que morreriam bem depressa; fazemos, enfim, o que na Lei da Graça nos disse Jesus Cristo, que fariam Tiro e Sidônia, se houvesse obrado à sua vista os mesmos prodígios, que obrara em Corazim e Betsaida. Fazemos o que tantos têm feito. As palavras de humilhação que o Sacerdote com a cinza nos dedos, pronuncia hoje sobre o homem prostrado a seus pés, são os mesmos termos do decreto, pronunciado contra o primeiro homem em castigo de seu pecado. O desígnio da Igreja ao pôr-nos cinza na cabeça, é excitar-nos à penitência e ao desprezo de nós mesmos, à vista deste miserável pó, aonde vem parar todos os bens, prazeres, e as honras desta vida, e, a que nós mesmos havemos de ficar reduzidos na morte. As orações que diz a Igreja sobre as cinzas no ato de as benzer, dão uma virtude secreta a esta cerimônia religiosa que não deixa de inspirar a compunção, e de atrair a graça da penitência para todos os que recebem a cinza sobre sua cabeça com disposições santas no coração. Que efeito não deve produzir esta prática de religião! Que desprendimento da vida! Que desgosto dos bens criados! Que diferença pelas dignidades brilhantes! Pode-se acaso ver este punhado de cinza, verdadeira imagem do que viremos a ser um dia; pode-se ouvir este decreto, este oráculo terrível, cujas ameaças devemos experimentar em breve; sem que nosso orgulho fique humilhado, sem que nossa delicadeza se confunda, sem que se entibiem nossos projetos ambiciosos, sem que nos cubramos de rubor, e tenhamos vergonha de haver feito tanto caso das enganosas conveniências deste mundo? Que remédio tão saudável são estas cinzas derramadas sobre a inchação do coração humano! Que próprias para abrir os olhos sobre o falso resplendor de mil objetos sedutores! Que bem podem sazonar os mais acerbos transes desta vida!

Segundo Ponto. Considera quantos bons efeitos pode produzir esta cinza, recebida em nossas cabeças com um espírito de religião, com o coração contrito e humilhado, e com as disposições, que pede esta santa cerimônia. O pensamento da morte, que é dela inseparável, é o primeiro efeito que produz. Ainda que fosses o maior monarca do universo, ainda que fosses o homem mais feliz do mundo, hás de morrer; e toda a pompa, toda essa grandeza e majestosa reputação, essa ventura que desafia a tantos invejosos, tudo isso se extingue no sepulcro. Esquadrinha esses soberbos mausoléus, orgulhosos monumentos da vaidade humana, não encontrarás neles mais do que um punhado de cinzas, menos preciosas do que a urna que as contém.

Eis aí o que fica no fim de tudo desses grandes príncipes, terror ou admiração do seu século, de todos esses heróis dos séculos passados, de todos esses favoritos da fortuna, para falar ao sabor da gente do mundo; alguns restos de ossos calcinados, um punhado de cinzas fétidas, a isto se reduz tudo. Não teremos outra sorte, ainda quando fôssemos mais poderosos, ricos e cheios de satisfação, do que o foram todos esses; algum dia se dirá também de nós, o que hoje se diz dessas vítimas da ambição humana, e cada um é por sua vez uma prova sensível desta verdade.

A estima e o amor da virtude é outro efeito da cerimônia das cinzas. Meu Deus! Que própria que é esta cerimônia misteriosa para nos desenganar de tantas falsas grandezas, de tantas opiniões vulgares, que encantam e seduzem, mas ao mesmo tempo que eficaz para descobrir-nos o mérito sólido e o preço inestimável da verdadeira virtude? Os Santos, dir-se-á, morrem também como os pecadores; mas que diferença de cinzas para cinzas! Umas são objeto de horror; as outras objeto de veneração: tanto poder e atrativo tem a santidade. Aquelas arrojam-se aos pés, diante destas prostram-se com veneração. A própria terra que cobre os corpos dos Santos tem virtude de operar milagres. Que deve concluir-se de tudo isto, senão que é uma insigne loucura buscar a felicidade nas honras, nos prazeres, nos bens desta vida, e que é preciso ter perdido o juízo para aplicar-se a outra coisa, do que a fazer-se santo?

Este é também o fruto, ó Senhor, que eu espero tirar desta meditação com o auxílio de vossa graça.


Aspirações Piedosas

Vanitas vanitatum, et omnia vanitas. Quid habet amplius homo de universo labore suo?11

Vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Que tira o homem mundano de todo o seu trabalho, e que vem a ser, por fim, mais do que um punhado de cinzas?

Ipse me reprehendo, et ago proenitentiam in favilla et cinere.12

Senhor, eu detesto toda a minha vida passada, de todo o meu coração, e faço penitência no pó e na cinza.

Propósitos

1. Como a cerimônia da cinza é uma prática de religião, faze-a com todas as disposições e com o espírito que pede uma cerimônia tão santa.

2. Não percas de vista a morte, da qual o símbolo mais natural é a cinza. Este pensamento persuade naturalmente a penitência, e suaviza-lhe o rigor. Começa a Quaresma com espírito de penitência; para quantos será esta a última!…


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Fonte: Pe. Croiset, Ano Cristão – ou Devocionário para Todos os Dias do Ano”, traduzido do Francês, revisto e adaptado às últimas reformas litúrgicas, pelo Pe. Matos Soares, Professor do Seminário do Porto, Vol. XIIIQuarta-feira de Cinza, pp. 129-140. A. Campos – Livraria Católica, São Paulo, 1923.

1.  2 Reis, 13, 19.

2.  Job. 42, 6.

3.  Judite 4, 1-17; 7, 4; 9, 1 ss.

4.  Ester 4, 1-3; 14, 1-2.

5.  Lamentações de Jeremias 2, 10.

6.  Daniel 2 (?). Cfr. 6, 10.

7.  Jonas 3, 1-6.

8.  1 Macabeus 3, 44-54.

9.  Mateus 11, 16-19.

10.  Êx. 9, 8-12.

11.  Eccl. 1, 2.

12.  Job. 42, 6.


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