Sexta Meditação
Sexta-feira
O Exemplo de Jesus
Consola na Tribulação
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I – Jesus, padecendo, enobreceu os trabalhos.
Reflete no que era a cruz antes de nela morrer Nosso Senhor, e no que é agora depois que expirou em seus braços. Antes servia de patíbulo aos malfeitores, e quem pendia de uma cruz era maldito; agora não somente se honram com ela as coroas dos príncipes, mas é o trono do divino Redentor, onde ele se ostenta com Majestade infinita, como triunfante dos seus inimigos.
Pois bem; faze tu agora de conta que tudo, com a devida proporção, se verificou também com a Cruz espiritual dos cristãos, que é a tribulação. Todas as penas, antes que martirizassem os membros inocentíssimos de Jesus Cristo e amargurassem o seu divino Coração, eram como uma cicatriz do pecado e traziam consigo necessariamente um caráter de ignomínia.
Mas ao contato das Chagas do nosso amorosíssimo Salvador, como se fossem águas passadas por esta mina do Paraíso, adquiriram um preço imensamente maior do que adquirem as águas desta terra, ao passarem por minas riquíssimas de ouro.1
Quem há que disto possa duvidar, sem renunciar por isso mesmo à sua fé? O Verbo encarnado, tocando as águas do Jordão em seu Batismo, enobreceu-as tanto que, segundo dizem os Santos, imprimiu nelas e em todas as demais águas do mundo virtude divina, para santificarem pelo Sacramento de regeneração as almas dos fiéis. Pois de um modo semelhante, padecendo e morrendo na Cruz, imprimiu em todas as tribulações dos cristãos uma dignidade mais que humana e uma virtude particular, para nos elevar acima das forças da natureza, a um estado como divino.
Por isso, os Apóstolos desde os primeiros tempos da religião cristã, e todos os Santos depois dos Apóstolos, tinham para si que chegavam ao sumo da verdadeira honra, quando sofriam grandes coisas por Deus: Saiam da presença do conselho muito alegres, por terem sido achados dignos de sofrer afrontas pelo Nome de Jesus.2 E na verdade, assim como no Céu, o que está mais perto do trono do divino Redentor glorificado é o que mais participa da sua glória, assim também na terra, quem mais se chega ao trono do mesmo Senhor humilhado, despido e cheio de dores, esse é o mais estimado e honrado; e são tão excelsos em dignidade estes homens, que deles diz o Espírito Santo não ser digno o mundo: Desamparados, angustiados, maltratados, dos quais não era digno o mundo.3
Tanto assim que, estando-nos severamente proibido por outra parte o gloriar-nos de coisa alguma, podemos contudo gloriar-nos, a exemplo de S. Paulo, dos nossos trabalhos; o qual ao mesmo tempo nos ensina que o podemos fazer com segurança: Se algumas coisas existem de que me possa gloriar, gloriar-me-ei daquelas que são próprias da minha fraqueza.4 Que diz o teu coração ao ouvir estas verdades, acostumado a encarar as cruzes com horror e os dons que o Senhor te faz, como se fossem outras tantas feridas? Não acabas de ver que és ainda indigno de vestir a libré de Jesus Cristo e de seguir mais de perto as suas pisadas, imitando-o no sofrimento?
Anima-te a receber daqui em diante com humildade as ocasiões de sofrer, admirando-te de que Jesus te trate nelas como a companheiro. E, se a natureza grita e protesta, se os sentidos se rebelam, triunfa gloriosamente deles, opondo a seus gritos e rebelião as máximas do Evangelho e confessando em face do mundo ignorante esta verdade, tão certa em si como é certa a Palavra de Deus: – Que não há coisa de tão sublime dignidade na terra como o padecer por Cristo e por amor de Cristo: Alegrai-vos de ser participantes da Paixão de Cristo; porque a honra, a glória e a virtude de Deus, e o seu Espírito repousam sobre vós.5
II – Jesus, padecendo, suavizou os trabalhos.
Considera que a Cruz de Jesus Cristo, além de enobrecer em sumo grau, os nossos trabalhos, também os faz suaves e doces. Os animais bravios já não são tidos como tais, quando com o trato do homem foram domesticados.6 Pois é isto exatamente o que passa com as tribulações, as quais noutro tempo, à maneira de feras indômitas, aterravam tanto o nosso coração; e agora, amansadas com o exemplo de Cristo, nem são chamadas já tribulações pelos Santos nem lhes causam horror nenhum, mas até jogam com elas como com inocentes cordeirinhos: Brincou (Davi) com os leões como se fossem cordeiros.7
Desta maneira, os Mártires chamavam rosas aos carvões acesos, refrigério aos maiores tormentos, dia de bodas ao da sua morte; e todas as penas lhes pareciam tanto mais doces, à vista dos padecimentos do Senhor, quanto eram em si mais cruéis e atrozes; à semelhança do que acontece com as frutas verdes e azedas, as quais, postas em calda, são muito mais saborosas do que as maduras.
Como os Mártires, pensam também todas as almas puras, para quem uma vida sem Cruz seria a maior cruz; nem saberiam, sem a esperança de sofrer alguma coisa a exemplo de Cristo, levar com paciência o desterro desta vida miserável. Até quando, pois, quererás tu ser menino na virtude, não amando senão o que te agrada? Até quando, à maneira das criancinhas, haveis de amar as criancices?8
O nosso divino Redentor teve em suma honra o padecer por amor de ti mais do que homem nenhum jamais padeceu; e quererás tu continuar a ter medo e horror de padecer tão pouco por Jesus? À vista de um Deus apaixonado de amor para contigo e em presença da sua Cruz, não te envergonharás de correr ainda atrás dos prazeres da terra, quando havias de converter em delícias, por meio de amor a Jesus, as tuas penas e trabalhos? Ah! Senhor! Quão poucos são os amigos do sofrimento, apesar de os terdes amado e suavizado tanto com o vosso exemplo!
Confunde-te de teres sido até agora contado no número destes; pede humildemente perdão da tua ignorância e roga ao Senhor, pois se dignou de descer do Céu à terra para te ensinar, com palavras e exemplos, a felicidade dos padecimentos, que te dê a graça de sentir o sabor desta divina ciência, e de achar a doçura encoberta nas tribulações, para que se verifique também em ti a Palavra divina: O coração que chegou a conhecer o preço das suas amarguras, experimenta um gozo puríssimo e livre de todo o prazer estranho.9
III – Jesus, padecendo, tornou necessários os trabalhos.
Considera que o exemplo de Jesus paciente, se enobrece e suaviza as nossas dores, também as tornou necessárias. Aquele excesso de tormentos e humilhações que, desde o primeiro instante da sua vida mortal até ao último suspiro, tomou sobre Si o Filho de Deus humanado, não teve somente por fim a nossa redenção; para isso, bastava um gemido do seu divino Coração. Quis também ser o nosso verdadeiro guia e modelo, e que nós fossemos imitadores seus: Para isto fostes chamados à dignidade de filhos de Deus, pois Cristo padeceu também por nós, dando-nos exemplo para que sigamos os seus passos.10
E assim, quem despreza a cruz ou foge dela, despreza o excesso dos tormentos, dos exemplos e do amor de Jesus Cristo, e nem é digno do nome que tem – soldado que segue a bandeira do Redentor – segundo altamente o declara o mesmo Senhor, dizendo: Quem não toma a sua cruz e Me segue, não é digno de Mim.11 Para que são, pois, tantos discursos? Para quê tanto deliberar! Para quê tantas réplicas? “Podes (diz-te também a ti Jesus Cristo) podes beber o cálice dos sofrimentos que Eu hei de beber.12 Tens ânimo, pelo menos para provar por meu amor esse cálice amargo, que Eu desejo levar até a última gota por amor de ti? Se o não tens volta atrás, que não és digno de te alistares debaixo da Minha bandeira: O que é medroso e covarde, não passe adiante; torne para trás”.13
Não está bem que tenha honra tão grande quem é para tão pouco que, nem à vista de um Deus abrindo-lhe caminho, se resolve a seguir as suas pisadas. Revertatur: “Para trás”. Sim, torne para trás; mas lembre-se que o juízo da sua vida e ações se há de fazer segundo as aparências que tiver com o seu divino exemplar, Jesus. O nosso adorável Redentor, como Imagem substancial do Seu eterno Pai, quis que os seus escolhidos fossem uma viva imagem da sua vida trabalhosa.
Por conseguinte, que será de ti, se, em vez de achar em tuas ações conformidade de vida, achasse uma total dissemelhança? Se tivesses fugido de tudo o que Ele amou, que são os trabalhos, e amado e abraçado tudo o que Ele fugiu, que são os prazeres e gostos? E ainda hás de continuar a ter por inocente uma delicadeza tal e tão monstruosa?
Confunde-te, pois, de todo o teu coração e faze propósito de não admitir em tuas deliberações, sobre este assunto, o voto do amor-próprio para nada. Jesus é o Anjo do Grande Conselho; e não sabe dar-te outro melhor do que o de seguires ao teu Senhor com a tua cruz às costas. Pede-lhe, pelo preço do Seu Sangue divino, que dê força ao teu coração fraco, e com a memória dos seus merecimentos te faça inexpugnável a todas as acometidas do inimigo. Tendo, pois, Cristo padecido por nós a morte em sua carne, armai-vos também vós desta consideração.14
Oração a Jesus, desamparado na Cruz,
para alcançar a paciência.
Ó verdadeira consolação dos atribulados! Ó esperança da minha alma e meu único bem! Que seria de mim neste momento, se a vossa paciência não tivesse sido infinita? Como teríeis podido sofrer um coração tão vil como o meu, que, por mais que Vos vê caminhar adiante e abrir deste modo a estrada do Céu, não sabe mover um pé para Vos seguir?
Se tivésseis passado a vida entre delícias, teria eu alguma aparente escusa, quando fujo tanto do que me custa. Mas, tendo Vós enobrecido tanto os nossos trabalhos com o Vosso exemplo, tendo-os suavizado e facilitado tanto e, o que é mais, tendo exalado a alma em tão completo desamparo do Céu e da terra, que escusa posso eu alegar em minha defesa para fugir tanto ao sofrimento?
Não acabarei de entender que estou a vilipendiar o excesso do preço dado por meu resgate, quando corro atrás do prazer de que Vós sempre fugistes, e fujo dos padecimentos que Vós sempre abraçastes? Quando me consolais, digo que sou todo Vosso, peço-Vos que me façais semelhante a Vós, faço-Vos grandes oferecimentos e parece-me estar resignado por completo em Vossas divinas mãos.
Porém, se vindes à prova, miserável de mim! Já sou outro muito diferente do que era, já me tenho por deixado de Vós, já tenho por boas as razões do amor-próprio; e já não é pouco, se não me chego a queixar dos meus trabalhos. Que cego sou! Este é o modo de seguir o exemplo de um Deus que morre por mim num patíbulo, desamparado do Seu mesmo Pai? Buscando ao meu Redentor desta maneira, fugindo da Cruz onde O vejo crucificado, pretendo acaso que hei de dar com Ele?
A Vós, Senhor meu e luz da eterna verdade, a Vós toca iluminar esta minha cegueira e inflamar este meu coração em Vosso amor. Se me levais atrás de Vós, com que ligeireza correrei o caminho da virtude! Mas, se me deixais entregue as minhas fraquezas, não serei homem para dar um passo. Esta é a prova que fica ainda por fazer a Vossa divina graça: mudar-me inteiramente noutro homem.
Não Vos peço favores nem consolações; só desejo um coração tão conforme a Vossa divina vontade, que o amargo me seja doce e veja com bons olhos qualquer estado de desamparo e desolação, em que me quiserdes pôr para Vossa maior glória. Que louvores Vos tributarão os Anjos, se me ouvis? Que fruto tão estimado do Vosso preciosíssimo Sangue, que glória do Vosso braço Onipotente será, se de tal sorte fortaleceis este barro do meu ser, que chegue a resistir a todos os ataques dos meus inimigos!
Esta é a graça que espero da Vossa bondade; a qual já desde agora começo a agradecer-Vos com todo o meu coração, confiando que hei de continuar a louvar-Vos por ela para sempre no Céu. Amém.
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1. Poenam vestivit honore, ipsaque sanctificans in se tormenta beavit.
2. Ibant gaudentes a conspectu concilii, quoniam digni habiti sunt pro nomine Jesu contumeliam pati (Act., V, 41).
3. Egentes, angustiati, afflicti, quibus dignus non erat mundus (Heb., XI, 38).
4. Si gloriari oportet, quae infirmitatis meae sunt, gloriabor (II Cor., XI, 30).
5. Communicantes Christi passionibus gaudete; quoniam quod est honoris et gloriae et virtutis Dei, et qui est ejus spiritus, super vos requiescit (I Pet., IV, 13).
6. Ferae non dicuntur ferae, licet ex ferino genere, si sint mansuefactae.
7. Cum leonibus lusit quasi cum agnis (Eccl., XLVII, 3).
8. Parvuli, usquequo diligitis infantiam (Prov., I, 12).
9. Cor quod novit amaritudinem animae suae, in gaudio ejus non miscebitur extraneus (Prov., XIV, 10).
10. In hoc vocati estis, quia Christus passus est pro nobis, vobis relinquens exemplum ut sequamini vestigia ejus (I Pet., II, 21).
11. Qui non accipit crucem suam et sequitur me, non est me dignus (Math., III, 38).
12. Potestis bibere calicem quem ego bibiturus sum? (Marc., X, 38).
13. Qui formidolosus est et timidus revertatur (Jud., VII, 4).
14. Christo igitur passo in carne et vos eadem cogitatione armamini (I Pet., IV, 1).