“Poderemos ainda, a não negar a
evidência, recusar o milagre dos católicos, aos quais Hunerico, rei dos Hunos,
fez arrancar em Typaso, na África, a língua até a raiz, e que
viveram ainda muitos anos, falando com a mesma facilidade, como antes disso, e
deixar de confessar que é um prodígio, cujo autor só Deus pode ser? Se, com
efeito, é verdade que se apontam alguns casos excepcionalmente raros, em que a
perda mais ou menos importante, mas sempre parcial da língua, não impede o uso
da palavra, há entre esses fatos e o Typaso, diferenças que excluem todo o
confronto, e cujo conjunto é verdadeiramente decisivo.
1º Esses fatos raros não
são verificados, como foi o de Typaso, cuja certeza histórica assenta no
testemunho de seis autores contemporâneos, que escreveram em lugares diferentes
e em anos diversos, os quais todos viram esses homens, que tinham o cunho do
milagre: São Víctor de Vite, o Imperador Justiniano, Enéas de Gare, Procópio, o
Conde Marcellino e Víctor de Tunone.
Que testemunho mais formal e
oferecido oficialmente à verdade deste fato pelo Imperador Justiniano no Código
das suas Leis?
'Nós mesmos vimos, diz ele, esses
homens venerandos, que havendo sofrido a amputação da língua até a raiz,
narravam a história tocante dos males que haviam padecido'. E que
depoimento mais concludente do que o de Enéas de Gare, filósofo platônico
convertido? 'Vi com os meus olhos esses homens e os ouvi falar; e não dando
crédito aos meus ouvidos, quis apreciar pelos meus olhos. Fazendo-lhes abrir a
boca, vi que a língua tinha sido completamente amputada até a raiz; e na minha
surpresa achei inconcebível, não que pudessem falar, mas que tivessem podido
resistir a essa cruel operação'.
O próprio Gibbon confessa que
esse milagre das línguas arrancadas se realizou no teatro mais vasto e
esclarecido do mundo, e foi submetido durante muitos anos ao exame dos
incrédulos. 'Todos esses homens, acrescenta ele, atestaram o prodígio, quer
como testemunhas oculares, quer como sendo assunto de notoriedade pública'.
2º Esses fatos são
individuais, isolados, ao passo que o de Typaso, é fato coletivo e simultâneo
em um número considerável de vítimas da crueldade de Hunerico, de modo que o
que não é senão exceção raríssima em diversos lugares e tempos, se produziu em
grande número de indivíduos simultaneamente na mesma cidade.
3º Nestes fatos só se
trata de uma articulação mais ou menos imperfeita da palavra depois de longo
lapso de tempo, e por esforços repetidos; nos Mártires de Typaso, é outra
coisa: eles continuaram a falar tão fácil e distintamente como antes da
amputação, e tudo isso três dias depois do suplício, como atesta Enéas de Gare,
que os havia examinado.
4º Em nenhum desses fatos
a falta completa da língua se acha provada, e o uso da palavra, mais ou menos
imperfeito, pode explicar-se naturalmente pela porção de língua, que restava
aos indivíduos de que se trata, a qual conservava uma parte do seu jogo
mecânico.
Todos os autores contemporâneos,
que referem o fato de Typaso, afirmam unanimemente que a língua dos supliciados
havia sido cortada até a raiz. E esta circunstância é de tal modo
demonstrativa, que eles continuaram a falar de modo tão claro e distinto como
antes, enquanto todos sabem que basta um leve tumor na língua para impedir o
livre e expressivo exercício da palavra.
5º Nesses fatos nada há
que tenha referência ao sobrenatural; enquanto que no sucesso de Typaso,
Procópio, historiador distinto, companheiro de Belisário nas guerras, que este
general fez na Pérsia, na Itália e na África, senador e governador de
Constantinopla, honrado com o epiteto de Ilustre, relata que dois dos
que receberam o milagre perderam o uso da palavra em castigo de um pecado de
impureza em que caíram.
Deste modo, não só o grande
sucesso de Typaso, revestido da mais elevada certeza histórica, repele toda a
explicação natural, mas é derrogação manifesta à lei constante da natureza a
respeito do uso da palavra; verdadeiro milagre, cujo autor só Deus podia ser,
que o operou em prova da verdade da Religião Católica, porque os
supliciados de Typaso padeceram a amputação da língua por haverem confessado
altamente a Fé Católica, a Divindade de Jesus Cristo, sendo o primeiro
uso que fizeram do dom miraculoso, que lhes fora concedido, o dar graças e
glória a Deus; milagre tanto mais saliente e demonstrativo, que ele foi
permanente e cosmopolita, tendo os agraciados abandonado a África para
escaparem aos furores dos vândalos arianos, e tendo-se disseminado em
vários países onde sabiam que podiam estar ao abrigo da raiva dos seus
inimigos.
Por isso, o sábio Barônio, chamou
este prodígio 'estrondo de trovão do Espírito Santo, ouvido em todo o universo,
equivalente ao do Pentecostes; porque, acrescenta ele, não se trata aqui nem de
uma só testemunha, nem de muitas, mas de uma província inteira, ou antes, não
se trata de uma província, nem da África, mas de todos os países; nem de um
dia, nem de um mês, mas de um século inteiro, isto é, até à morte do último
desses Mártires dispersos no mundo inteiro. E, finalmente, Deus quis que todos
os historiadores contemporâneos, mais autorizados, e de todas as opiniões, o
atestassem, usando dos mesmos termos'.”