Afonso tinha 54 anos. Até lá, missionário e chefe de missionários, esforçara-se por conduzir os homens ao caminho que leva a Deus; restava-lhe desembaraçar esse caminho dos obstáculos, isto é, dos erros amontoados em todo o percurso pelo Demônio e seus satélites. Para esse fim, Afonso aliará o apostolado da pena ao da palavra; e se constituirá, contra os falsos doutores, o verdadeiro doutor da salvação. Antes de narrar as suas lutas em prol da verdade, é necessário lançar um olhar para as posições que o inimigo ocupava no século XVIII.
Desde que Lutero e Calvino haviam arrancado à Igreja a metade da Europa, tramou-se uma vasta conjuração para lhe tirar, pedaço por pedaço, as nações que lhe permaneceram fiéis. Na primeira metade do século XVII, o abade Saint Cyran preparou, durante vinte anos, a obra nefasta de Jansênio pregando, a seu modo, a penitência e a volta à Igreja primitiva. “Todos estavam enganados, dizia ele, a respeito do Mistério da Redenção; Jesus Cristo não tinha derramado o seu Sangue para todos os homens, mas só para os eleitos, que são os únicos a obter a graça eficaz para fazer o bem”. Nesse tempo Jansênio compunha o seu “Agostinho”, o evangelho da Seita, contendo as famosas cinco proposições que conduzem as almas ao temor e ao desespero. Pouco depois, o terceiro patriarca do jansenismo, Antônio Arnauld, publicou seu livro sobre A Comunhão Frequente, no qual pretendia provar pela disciplina antiga da Igreja, pelos cânones penitenciais, pela doutrina dos Padres, que era preciso voltar à penitência pública e à dilação da absolvição até à completa satisfação dos pecados cometidos e à purificação perfeita da alma; ensinava que a abstenção da Santa Comunhão era a mais salutar das penitências. Em sua opinião, era o Demônio que excitava as almas a essa “luxúria espiritual que se chama Comunhão Frequente”. Seu livro aprovado por onze Bispos, devastou as almas à semelhança de um furacão que abate as árvores e arruína as messes. Não se comungava mais na Páscoa; deixava-se morrer os doentes sem Sacramentos. Os que se queriam opor a esses deploráveis abusos passavam por ignorantes ou partidários da moral relaxada.
Entretanto, para separar de sua Mãe as nações católicas que resistiram ao Protestantismo, era necessário proceder com jeito e, por assim dizer, à surdina. Os jansenistas planejaram destruir a Igreja sem sair do seu seio. “O jansenismo, diz com razão um magistrado francês, é a heresia mais sutil que o Demônio jamais teceu. Viram que os protestantes, separando-se da Igreja, se condenaram a si mesmos; tomaram pois por máxima fundamental de seu procedimento, não se separar d’Ela exteriormente e protestar sempre submissão às suas decisões, prontos a excogitar sempre novas sutilezas para as explicar, parecendo assim submissos sem mudar de sentimentos”.
Depois de tirar ao homem a Redenção, os Sacramentos, a Igreja, que tábua de salvação restava-lhe ainda nesse naufrágio universal? Restava-lhe Maria, seu derradeiro refúgio contra as empresas de Satanás. Os conjurados não o ignoravam: trabalharam, pois, com todas as forças para extirpar dos corações dos fiéis a devoção à Santíssima Virgem. Todos os criminosos que conspiraram contra a obra do Salvador, desposaram “as inimizades que Deus criou entre Satã e a Mulher, entre a raça de Satã e a raça da Mulher”. Sentiram instintivamente que para triunfar deviam destronar “Aquela que extermina as heresias no mundo inteiro”. Lutero e Calvino proscreveram o culto da Virgem como uma idolatria. Fiéis a seus hábitos de dissimulação, os jansenistas não derrubaram os altares da Mãe de Deus, mas inventaram todas as artes possíveis para deles afastar os fiéis.
Desfecho do drama satânico era inevitável. Depois de haverem, por mais de um século, transformado Deus em execrável tirano, escarnecido a Santa Igreja, rebaixado a Santíssima Virgem, ridicularizado as vidas dos Santos, aniquilado a piedade cristã, os jansenistas viram levantar-se diante deles o espectro do deísmo. Os Saint-Cyran, Jansênio, Arnauld, Quesnel, tinham preparado Voltaire. O cínico blasfemador entoou o hino infernal: “Esmagai o Infame”. O Infame era o Cristianismo, a Igreja, Jesus Cristo! Se Voltaire conseguiu difundir a incredulidade na França e no mundo inteiro, coroar-se em Paris, e levar a Igreja ao cadafalso: é a Jansênio que deve tudo isso.
Afonso, o vassalo do Santíssimo Redentor, o amigo apaixonado de Jesus, e das almas por Ele resgatadas, vai lançar-se ao campo de batalha e combater, um a um, todos os erros do seu tempo. Quarenta anos, ve-lo-emos ocupado em compor duas espécies de obras: livros de piedade para reavivar o amor divino nos corações enregelados pelo jansenismo, e livros dogmáticos e morais contra os pregadores da impiedade e da moral errônea, a fim de despertar a fé, nas almas e de guiá-las no caminho da salvação.
O amor divino centuplicara as suas forças, e ele achará um segredo maravilhoso de alongar suas horas de trabalho e realizar assim obras, que pareciam impossíveis. Esse segredo, que o processo da canonização apelida “novo, característico do servo de Deus, e digno de todo elogio”, consistia no voto heroico de não perder uma parcela do tempo que a Providência divina concede aos homens, e de empregar todos os momentos no serviço de Deus e das almas, na oração, meditação, pregação, audição de confissões, elaboração de obras, sem tirar a Deus um segundo sequer para uma fantasia ou prazer pessoal. Não sabemos bem quando é que Afonso contraiu essa terrível obrigação, mas foi certamente antes desta época a que chegamos. Para cumprir seu voto concedia-se apenas uma breve recreação ao meio-dia e à tarde, fazendo ainda nesses minutos deslizar a conversa para assuntos edificantes e úteis. Aos que iam visitá-lo ou pedir conselhos, concedia os instantes reclamados pelas conveniências ou negócios, levantando em seguida a sessão. Ninguém foi mais inimigo do que ele, dos entretenimentos inúteis ou prolongados. Os que o conheceram mais intimamente por viverem muito tempo em sua companhia, depuseram nunca tê-lo visto ocioso. – E não só trabalhava e rezava o dia inteiro; consagrava muitas vezes a metade das noites à oração ou à composição de suas obras.
Foi nesse ano de 1750 que Afonso inaugurou sua luta anti-jansenista e anti-voltairiana pela publicação de seu primeiro trabalho de fôlego As Glórias de Maria, é porque não compreendem bastantemente a nefasta influência exercida sobre as diversas classes da sociedade por aqueles doutores, Bispos, pregadores, que no espaço de um século, se esforçaram por rebaixar a Santíssima Virgem, por diminuir, para não dizer aniquilar, o seu papel providencial na economia da salvação, e por rejeitar, por supersticiosas, todas as crenças e práticas da Tradição. A obra do célebre Muratori sobre a Devoção bem regrada, mostra como o espírito jansenista tinha penetrado nos melhores espíritos, mesmo na Itália.
Muratori era um homem de inteligência, ciência e vasta erudição. São dele obras de grande valor sobre a história do seu tempo. Passou sua vida em Modena, no centro da Itália, país clássico da Madonna. Ora, em sua Devoção bem regrada publicada em 1747, Muratori escreveu: “Os hereges insultam-nos, por encontrarem em certos livros proposições ousadas relativamente ao culto de Maria. Todas essas devoções imprudentes e indiscretas desacreditam a Igreja Católica”. E quais são essas proposições audaciosas e essas devoções imprudentes que chocam os hereges? Muratori no-lo vai explicar. “É sem dúvida útil e louvável orar a Maria, mas é preciso lembrar-se sempre, diz ele, que Maria não é Deus. É nossa advogada, mas não se deve dar a crer que Ela possa perdoar-nos os pecados ou salvar-nos. Chegam a dizer que Ela manda no Céu. Essas expressões, caídas dos lábios de alguns Santos na ênfase do discurso, não são nada teológicas… Encontrareis escritores bastante ousados para afirmar que Deus não nos concede graça alguma a não ser pelas mãos de Maria. Se por isso se entende somente que Maria nos deus Jesus, fonte de toda a graça, a expressão é justa; mas pretender que todos os benefícios de Deus, em geral, nos vêm por Maria, não passa de uma piedosa exageração. Quem jamais imaginou que os Santos deveriam recorrer a Maria para nos obterem de Deus alguma graça?”
Segundo esses princípios, quer Muratori que, denominemos Maria nossa esperança só no sentido de que Ela nos ajuda com suas preces, mas censura os que A proclamam nossa esperança neste outro sentido, de que os seus devotos servos não se possam condenar. Segundo ele, isso é uma esperança enganadora, própria para fazer os maus dormirem em seus vícios, e é até uma superstição. De resto, essa devoção excessiva à Santíssima Virgem prejudica uma outra devoção superior e necessária, a que devemos ao divino Salvador. “A Igreja já instituiu, continua ele, mais festas em honra de Maria do que para a glória de Jesus, e cada dia inventam-se novas. A festa da Anunciação recorda-nos o grande Mistério da Encarnação, e encontrareis raramente um orador que vos fale do Verbo incarnado nesse grande dia: todos fazem o panegírico de Maria. Diante do Santíssimo exposto, cantam-se as ladainhas da Santíssima Virgem”. Muratori acha não menos excessivo e indiscreto o costume de colocar estátuas da Virgem em todo os cantos da rua, de multiplicar as procissões e romarias em honra desta ou d’Aquela Madonna. Essa supressão do culto da Santíssima Virgem pelos hereges, e esse desconhecimento do seu papel na obra da Redenção, desconhecimento do qual até alguns doutores católicos se faziam os promotores, tornaram-se para as almas uma calamidade pública. Afonso compreendeu-o, e por muitas razões sofria com isso, mais do que qualquer outro. Amigo íntimo de Jesus, sentia o ultraje infligido do Filho com o rebaixamento de sua Mãe. Filho devotado de Maria, sentia-se ferido no mais íntimo do coração ao ver assim sua Mãe descer do pedestal da glória, em que Deus A colocara. Salvador das almas, como conseguiria convertê-las se se diminuísse a sua confiança na Mãe de misericórdia? Suspendera sua espada de gentil-homem no altar de Nossa Senhora das Mercês: de hoje em diante sua pena servir-lhe-á de espada na defesa da Rainha do Céu.
Durante dez anos estudou nos Santos Padres e nos autores eclesiásticos a Tradição da Igreja sobre os privilégios e o culto da Santíssima Virgem, tomando cuidado em extrair desses monumentos seculares os textos mais significativos; em seguida, de todo esse material coordenado e adaptado às necessidades da época, compôs em honra de Maria um livro que pode desafiar todos os ataques dos inimigos. Intitulou-o As Glórias de Maria, naquele tempo em que bons e maus procuravam limitar os seus privilégios. Na frente aparecia uma imagem de Maria com a epígrafe: Spes nostra, salve. “Saudai Nossa Senhora da Esperança, vós todos que dizeis: Deus só é nossa esperança!” O livro era dedicado a Jesus, a esse Jesus a quem diziam cioso das honras prestadas a sua Mãe.
“Meu amantíssimo Redentor e Senhor, dizia Afonso, sou o mais miserável dos vossos servos; mas como Vos comprazeis, eu o sei, em ver-nos trabalhar para a glorificação de vossa Santa Mãe, que amais e quereis ver amada e honrada de todos, julguei fazer bem em publicar este livro, que proclama as suas glórias. A quem poderia eu melhor recomendá-lo do que a Vós, ó meu Jesus, ao vosso Coração tão cheio de zelo pela glória de vossa Mãe? Permiti pois, que eu vô-lo dedique e recomende. Dignai-Vos aceitar esta fraca homenagem de amor, que Vos tenho e a vossa diletíssima Mãe. Oxalá possa ele, abençoado por Vós, difundir a flux em todos os corações a confiança e o amor para com a Virgem Imaculada, que constituístes a esperança e o refúgio de todos os que resgatastes. E para recompensa do meu humilde trabalho, fazei-me amar a Maria tanto quanto desejo vê-la amada de todos os meus leitores”.
Depois dessa suave dedicatória, Afonso anuncia aos leitores que vai tratar da questão da intercessão onipotente da Santíssima Virgem, isto é, do papel confiado por Deus a Maria na economia da salvação: “Deixando a outrem, diz ele, o cuidado de exaltar as diversas prerrogativas da Mãe de Deus, quero falar sobretudo da sua grande misericórdia e da sua poderosa intercessão. Sobre esse assunto, recolhi, durante longos anos, todas as afirmações dos Santos Padres e dos outros mais célebres”. Mas sob que forma irá ele expor todas essas riquezas?
Os jansenistas detestavam as orações da Igreja à Santíssima Virgem, a ponto de desfigurar ou mesmo de suprimir estrofes da Ave Maris Stella; mas existe uma antífona particularmente dura a seus ouvidos, a Salve Regina. Não a excluíram, só por temerem revoltar o sentimento popular. Lutero apelidava-a “um tecido de erros e de impiedade”, e o herege Pedro Mártir, “um insulto ao único mediador”. “É por um respeito cego e espírito de partido, escreve um terceiro, que se conservam os títulos dados a Maria na Salve Regina". Ora, Afonso conhecendo a aversão dos jansenistas pela Salve Rainha, anuncia que tomará por tema do seu livro “essa magnífica antífona, aprovada pela Igreja, e cuja recitação é imposta, na maior parte do ano, a todo o Clero Secular e Regular. Nela encontram-se maravilhosamente descritas a misericórdia e o poder de Mari, eis porque, diz ele, não farei outra coisa senão comentá-la”. Por aí se vê que o Santo autor formará o plano não de comprazer à Seita dissimulando a verdade, mas de confundi-la expondo a verdade inteira sem sombra de respeito humano.
No capítulo quinto, o Santo Autor desenvolve a célebre tese: “Todas as graças passam pelas mãos de Maria, e por isso, Maria é nossa Medianeira necessária”, tese contra a qual protesta Muratori e que causa horror a todos os jansenistas. Resumamo-la em poucas palavras.
Um só homem perdeu a raça humana, mas uma mulher cooperou para a nossa perdição. Do mesmo modo quis Deus que houvesse um só Redentor, mas quis ao mesmo tempo que uma mulher cooperasse na nossa Redenção. É por isso que, expulsando Adão do Paraíso terrestre, Deus lhe mostrou ao longe a Virgem Imaculada junto com seu divino Filho.
Chegado o tempo de resgatar o mundo, Deus enviou o Redentor prometido, mas por meio da Mulher que se escolhera para cooperar na Redenção. Enviou-lhe um Anjo para lhe propor a Maternidade do Verbo, isto é, que lhe desse seu Sangue, a ser derramado para o resgate da raça humana. Maria consentia na proposta do Anjo, e é em virtude desse consentimento que Ela se achou ao pé da Cruz, imolando seu Filho querido, e sacrificando-se a Si mesma para nos dar a vida. Daí, aquela palavra de Jesus: “Meu Filho, eis aí tua mãe”. Dando-nos o Redentor Maria tornou-se a Co-redentora da humanidade.
Todavia, o ato da Redenção não é a salvação, mas somente o meio de salvação para todos. O Sangue de Jesus, é a fonte de vida, mas é necessário que dessa fonte a vida passe a cada um de nós sob a forma da Graça Santificante, que nos constitui membros vivos de Cristo, e das graças atuais, pelas quais operamos como verdadeiros filhos de Deus. Como é que essa vida de Jesus, essa vida da graça se comunica a cada um de nós? Pelo Redentor e pela Co-redentora, que é o canal pelo qual a vida chega até nós. Assim como Maria é a Mãe de Jesus, Deus quis que Ela fosse a Mãe de todos nós, resgatados por Jesus, distribuindo a cada um as graças merecidas por Jesus. Como Ela levou a Jesus em seu seio, Ela nos leva em seu Coração até que Cristo seja formado em nós.
Depois de estabelecer essa tese, Afonso refuta Muratori e suas objeções. “Essa proposição, diz ele, de que todas as graças nos vêm por Maria, não agrada a certo autor moderno, que depois de haver tratado com ciência e piedade da verdadeira e da falsa devoção, se mostra bem avaro, quando fala da devoção a Maria, recusando-lhe aquele privilégio glorioso que lhe dão, sem a menor hesitação, um São Germano, um Santo Anselmo, um São João Damasceno, um São Boaventura, um Santo Antonino e tantos outros doutores. Esse autor pretende que a proposição: Todas as graças nos vêm por Maria, é uma hipérbole, um exagero produzido pelo fervor de alguns Santos. Seria erro crer, ajunta ele, que Deus não nos pode conceder suas graças sem a intercessão de Maria, porque não conhecemos senão um só Mediador entre Deus e os homens, que é o Senhor Jesus.
Mas com sua permissão lhe responderei, que uma coisa é a mediação de justiça pelo mérito, e outra a mediação da graça pela intercessão. Uma coisa igualmente é dizer que Deus não pode, e outra, que Ele não quer conceder-nos suas graças sem a intercessão de Maria. Sem dúvida, também nós confessamos altamente que Deus é a fonte de todo o bem e o Senhor absoluto de toda a graça; mas, não será razoável e conveniente dizer, que para honrar e glorificar a sublime criatura por Ele escolhida para Mãe de seu Filho, nosso comum Redentor, Deus A fez tesoureira e despenseira de todas as graças destinadas às almas resgatadas pelo Sangue de Jesus Cristo? Confessamos que Jesus é o único mediador de justiça, mas dizemos que Maria é medianeira de graça. Ela obtém tudo pelos méritos de Jesus Cristo, mas tudo nos é transmitido por seu intermédio.
Desta doutrina deriva a gravíssima conclusão, de que o recurso à intercessão de Maria não é só útil, mas necessário a nossa salvação, não de necessidade absoluta, mas de necessidade hipotética, e porque essa é a ordem providencial estabelecida por Deus. Sic est voluntas ejus, diz São Bernardo, qui totum non voluit habere per Mariam. Essa é a vontade de Deus, que tenhamos tudo, mas tudo por Maria. Por isso, conclui esse grande Santo, procuremos a graça, mas procuremo-la por Maria, quaeramus gratiam sed per Mariam quaeramus. Ela é pois toda a razão da minha esperança, tota ratio spei meae, como se dissesse: Espero em Deus, fonte da graça, mas de que me serviria a fonte sem o canal que é Maria?” Esse texto de São Bernardo citado em diversos lugares por Santo Afonso, resume admiravelmente toda essa doutrina. Muratori não teve tempo de responder a essa refutação do seu livro: morreu em 1750, no ano da publicação das Glórias de Maria.
Mas o espírito jansenista dessa época era tal, que vinte anos depois, um certo abade Rolli, retomou por conta própria e com um espírito ainda mais acentuado de denigração, as teses de Muratori; atacou sob pretexto de abuso, todas as preces e todas as devoções a Santíssima Virgem. Era em 1775; Santo Afonso tinha então oitenta anos. O Santo ancião não deixou de pegar na pena “para honrar, diz ele, e por amor dessa gloriosa Rainha, à qual consagrei desde a minha infância uma devoção toda particular”. Em uma brochura intitulada: Breve resposta a uma extravagante tentativa do abade Rolli de reformar a devoção a Santíssima Virgem, refutou as asserções absolutamente ímpias do seu adversário.
Esse autor atacou sobretudo as ladainhas, criticando quase todas as suas invocações. Umas invocações como “Torre de Davi, Torre de marfim, Casa de ouro” são qualificações afetadas; outras “Espelho de Justiça, Refúgio dos pecadores, Porta do Céu” são usurpações injuriosas de títulos devidos exclusivamente a Jesus Cristo. Era pois preciso abolir essas ladainhas. Santo Afonso respondeu-lhe que “as invocações, para ele ridículas, exprimem maravilhosamente a força onipotente com que a fez apta para se tornar o Tabernáculo do Verbo incarnado. Os títulos que ele acoima de usurpações, são legitimamente dados a Maria, universal medianeira entre Jesus e os pecadores. Que presunção em um Sacerdote, o querer abolir as ladainhas repetidas há tantos séculos pelos fiéis, Padres, religiosos, e consagradas pelo culto público da Igreja!”
A exemplo de Muratori, o crítico censurava, mais que tudo, o uso de “cantar as ladainhas da Santíssima Virgem diante do Sacramento exposto”. “Quanto a mim, responde Afonso, não vejo nenhum inconveniente em pedir à divina Mãe, queira conceder-nos o socorro das suas preces junto de Jesus exposto sobre os altares. Deus deu-nos Jesus como principal medianeiro; mas, diz São Bernardo, precisamos de um mediador junto do próprio mediador e ninguém para isso é mais capaz do que Maria. A Jesus dizemos: Miserere nobis – tende piedade de nós, mas, a fim de sermos mais facilmente atendidos, dizemos a Maria: Ora pro nobis – rogai por nós”.
Os escapulários, terços, cordões e outras devoções não acharam graça diante do abade Rolli. Enraivecia-se com aqueles cristãos que, em estado de pecado, adotam essas piedosas práticas na esperança de obterem assim de Deus graça e misericórdia. Declarou peremptoriamente que, para todos esses devotos está reservada a condenação eterna. “Nesse ponto, responde Santo Afonso, o abade Rolli está de acordo com Muratori”. Mas Rolli e Muratori têm contra si Belarmino, citado por Bento XIV: “Se as práticas piedosas feitas em estado de pecado mortal não justificam, diz Belarmino, ao menos dispõem a receber, pelos méritos da divina Mãe e dos outros Santos, a graça da justificação”. Tem ainda a infelicidade de ter contra si São Tomás. O Príncipe dos Teólogos ensina, com efeito, que “se as práticas piedosas feitas em estado de pecado mortal não servem para se obter a salvação, têm contudo, a vantagem de nos habituar às boas obras, e de nos dispor à graça santificante. Se a oração do pecador, por si mesmo, não é digna de obter a graça, Deus a atende por pura misericórdia”.
Tendo assim estabelecido contra os jansenistas e os católicos mais ou menos infectados de jansenismo, o ofício de Maria na distribuição das graças, o autor esforça-se por reconduzir à tesoureira divina, os corações que a Seita havia dela afastado. As quatro partes do seu livro visam unicamente esse alto fim. Os comentários da Salve Rainha mostram-na compassiva para com todos, mesmo para com os pecadores mais desesperados, proposição essa comprovada por uma infinidade de testemunhos e de exemplos. Na exposição das Festas e das Virtudes de Maria, pinta o mais atraente quadro d’Aquela que a Igreja denomina Santíssima, quadro colocado ante os olhos dos cristãos para os excitar a amar, venerar, suplicar e imitar sua Mãe do Céu. Enfim, a quarta parte enumera as Práticas de piedade do verdadeiro servo de Maria: novenas preparatórias para suas festas, romarias em sua honra, jejum ao sábado, hábito de usar o escapulário, e sobretudo, a recitação cotidiana do terço.
O leitor notará que Santo Afonso é o doutor da salvação, mas da salvação pela Santíssima Virgem. Por isso, quer que, durante as Missões, sempre se pregue um sermão sobre a Virgem, Mãe de misericórdia, e sobre a necessidade que temos de recorrer frequentemente à sua intercessão, se quisermos perseverar e salvar-nos. O missionário terá cuidado de indicar as práticas de piedade mais fáceis para todos.
E não foi somente a seus súditos que Afonso recomendou pregar, muitas vezes, sobre a Santíssima Virgem; recomendou-o também a todos os Ministros de Deus. Eis como ele se exprime em seu prefácio: “Se é verdade que todas as graças passam pelas mãos de Maria e que se não pode salvar sem a intercessão dessa divina Mãe, deve-se afirmar, por uma consequência necessária, que a salvação dos homens depende da pregação sobre a confiança em Maria e sobre a necessidade de recorrer a sua poderosa intercessão. São Boaventura não receia afirmar, que o Céu será a partilha de todos os que se empenham em fazer conhecida e amada a Virgem Santíssima”.
Como todas as obras vivificadas pelo Espírito de Deus, esse livro das Glórias de Maria toca o coração dos sábios e dos ignorantes; eis porque teve numerosas edições em todas as línguas. Foi reimpresso dez vezes em Nápoles em vinte e cinco anos, doze vezes em Bassano em um semi-século, e reeditado não se sabe quantas vezes em Veneza, Milão, Modena, Turim; multiplicaram-se as suas edições na França, a saber, em Paris, Tour, Clermont, Lille; na Bélgica, em Tournai e em Bruxelas; na Holanda, em Utrecht e Bois-le-Duc; na Áustria, em Viena; na Alemanha, em Ratisbona; na Suíça, em Einsiedeln; na Espanha, em Barcelona; na Polônia, em Varsóvia; na Irlanda, em Dublin; na América do Norte, em Filadélfia e Nova Iorque; em Portugal, em Lisboa, em diversas edições. As Glórias de Maria difundidas pelos mundo inteiro, inauguraram o renascimento do culto de Maria, e abriram a era da esperança, mostrando de um lado a Virgem Imaculada, as mãos cheias de graças, e de outro, o Rosário do servo de Maria, como meio de as obter.
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Fonte: Rev. Pe. Berthe, CssR, “Santo Afonso de Ligório – 1696/1787”, traduzida pelo Rev. Pe. Oscar Chagas Azeredo, CssR, Livro Primeiro, Cap. XVI, pp. 246-257. Escolas Profissinais do Liceu Coração de Jesus, São Paulo/SP, 1931.