Segundo
a sentença de Deuteronômio 22, 5: “A
mulher não se vestirá de homem nem o homem se vestirá de mulher;
porque aquele que tal faz é abominável diante de Deus”.
O
Doutor Angélico o confirma: “... em si mesmo, é pecaminoso
uma mulher trazer trajes viris, ou inversamente…”.
Mas,
“o Mestre do bem pensar”
em seguida, também
ensinou: “Pode-se, porém, proceder desse modo e sem pecado,
se o exigir a necessidade: quer para ocultar-se dos inimigos, quer
por falta de outras roupagens, quer por outro motivo semelhante”.
Seguindo
os ensinamentos do “Doctor communis Ecclesiae”,
houveram variados exemplos na História da Igreja, dos
quais, publico os seguintes:
3º
Exemplo
Santa
Pelágia, a Penitente.
“Por
meado do V século, deu o Senhor à sua Igreja um dos mais insignes
exemplos de sua infinita misericórdia com os pecadores, na pessoa de
Pelágia, uma das mais notáveis pecadoras que se viram no mundo.
Tendo
convocado em Antioquia o Patriarca Maximiano um Concílio Provincial
de todos os Bispos seus sufragâneos, a ele concorreu Nono um dos
Prelados mais santos do seu século. Foi monge do célebre mosteiro
de Tabenas na Tebaida, donde o tiraram pela fama de sua iminente
virtude para o fazerem Bispo de Edessa na Mesopotâmia, e daqui o
transferiram para a Sé de Heliópolis, na Síria, próximo do monte
Líbano, onde converteu à Fé inumeráveis nações idólatras. Em
toda a parte frutificavam maravilhosamente os seus sermões, porque
nele tudo pregava: a sua compostura, modéstia, semblante extenuado
por suas contínuas penitências, a sua humildade e até os seus
modos lhanos e sinceros, mas sempre respeitáveis.
Um
dia, em que estavam sentados à porta da igreja do Mártir São
Julião, o Patriarca, o Bispo Nono e outros oito Prelados dos que
haviam concorrido ao Concílio, rogou o Patriarca a São Nono que
fizesse ao povo uma prática espiritual. Fê-lo assim o Santo; falou
com tanta eloquência e unção que a todos tinha suspenso. A este
tempo passava perto deles uma célebre cortesã chamada Pelágia.
Era
a primeira comediante de Alexandria, famosa por sua extraordinária
formosura; mas muito mais pelas desordens de sua desgraçada vida.
Chamavam-lhe a Margarida, o que na língua do país quer dizer
Perola, ou fosse por sua rara beleza, ou porque sempre se apresentava
coberta de pedrarias. Aquele dia havia-se adornado com todo o esmero
e arte, que lhe pode inspirar o desejo de parecer bem. Vinha
soberbamente vestida, mas com tanta imodéstia, como ostentação: o
cabelo artificiosamente frisado, levantada a coifa com estudado
desalinho, um véu pela cabeça, e tudo o mais com desprezo que lhe
sugeria a falta de pudor. Seguia acompanhada de comitiva numerosa,
composta de donzelas e de pajens. Escandalizaram-se com isto os
Prelados, afastando os olhos de um espetáculo tão perigoso como
profano. Só o Santo Bispo nono, contra o seu costume, a esteve
olhando fixamente todo o tempo, em que a pôde a vista alcançar, e
logo que se lhe ocultou, exclamou desfeito em lágrimas: ‘Ah!
Irmãos meus, quanto temo que esta mulher, que tanto cuidado põe em
agradar aos homens, haja de ser algum dia nossa condenação pelo
pouco cuidado, que nós empregamos em agradar a Deus!’
Retirou-se
depois à pousada com seu Diácono, que escreveu toda esta história,
prostrou-se, e chorando, e gemendo, e ferindo o peito, dizia:
‘Senhor, tende misericórdia deste pobre pecador. Eis ali uma
miserável criatura que gasta os dias inteiros a compor-se, que
emprega o que a arte tem de mais sedutor, brilhante e especioso para
se tornar agradável aos olhos dos homens, para se fazer amar deles;
e eu Sacerdote, e Bispo, que cuidado ponho em adornar a minha alma
com a gala das virtudes? Que tempo gasto em purificar o meu coração
para vo-lo apresentar, e para que mereça o vosso agrado? Será
possível que aquela infeliz mulher tenha mais indústria para se
tornar amada dos homens, que eu para merecer ser amado de Deus?’
Passou o Santo Bispo o resto da noite na dor e na compunção,
mostrando-se inconsolável por sua imaginária indolência, descuido
e frieza.
Na
noite seguinte teve o Santo uma misteriosa visão que referiu a seu
Diácono, a qual teve o cuidado de a transmitir à posteridade:
‘Pareceu-me, lhe disse, que estando a celebrar ao altar se
revoluteava ao redor de mim uma pomba coberta de asquerosa imundície,
despedindo de si cheiro insuportável; e por mais que a afugentasse,
ela sempre voltava a inquietar-me, até que o Diácono disse que
saíssem os catecúmenos, e então saiu também a pomba e depois da
Missa, dadas as graças, dispondo-me para voltar a casa, encontrei a
mesma pomba sobre o umbral da porta; pareceu que a tomei na mão, e
que, mergulhando-a em uma grande taça cheia de água, ficou tão
branca como a neve, sem o mais leve resquício de mancha, e tomando
rapidamente voo para o Céu, desapareceu de meus olhos. Queira o
Senhor, acrescentou o Santo, declarar-nos o que isto significa’.
O
dia seguinte era um Domingo; tendo-se reunido todos os Bispos na
igreja para celebrar os Divinos Mistérios, acabado o Evangelho,
apresentou-se o Patriarca a São Nono, e rogou-lhe que repartisse ao
povo a palavra de Deus, explicando-lhe o Sagrado Texto que acabava de
ler. Era prodigiosa a concorrência, porque à Solenidade do dia e à
celebridade do Concílio, e com a notícia de que pregava São Nono,
haviam concorrido todos os fiéis e todos os catecúmenos da cidade.
Subiu
ao púlpito o Santo Bispo, e pregou com tanta força sobre as grandes
verdades da Religião, sobre o mal sumo do pecado e o infinito
tesouro da misericórdia de Deus, que todo aquele imenso auditório
se desfazia em pranto. Achava-se felizmente entre os ouvintes a
famosa cortesã Pelágia, que em tempos se alistara no número dos
catecúmenos; mas, sufocados nela por uma vida licenciosa todos os
sentimentos de Religião, só havia concorrido à igreja por mera
curiosidade. Mas, quis a Graça fazer aquela ilustre conquista, e
tocou eficazmente o seu coração. Tanto a moveu quanto acabava de
ouvir, que não pôde reprimir as lágrimas; e logo que o pregador se
recolheu a casa escreveu-lhe um bilhete nestes termos:
‘Ao
santo discípulo de Jesus Cristo a pecadora e escrava do Demônio.
Ouvi dizer que o vosso Deus baixou do Céu à terra para salvação
dos homens, e Aquele, a quem os Querubins não se atrevem a fitar
pelo respeito, se dignou conversar com os pecadores e com os
publicanos
sem se dedignar de falar com uma samaritana e com uma insigne
pecadora. Se sois discípulo de tal Mestre, não desprezeis a uma
infame cortesã, como eu sou, e não me negueis o bem e a consolação
de ter convosco uma conferência, para poder achar graça por vosso
intermédio junto de Jesus, Nosso Salvador’.
Ficou pasmado o Santo ao ler
esta carta; temendo algum laço, pelo artifício de mulher tão
perigosa, respondeu-lhe que Jesus Cristo, seu Divino Mestre, não
ignorava o que ele era, e conhecia perfeitamente o interior de seu
coração; que de resto não pretendesse tentá-lo, pois ainda que
fosse servo de Deus, era pecador, e tinha por muito certa a sua
miséria; se a sua intenção era santa, o poderia encontrar quando
quisesse, não a sós, mas em presença de todos os Bispos.
Logo que Pelágia recebeu esta
resposta, voou à igreja de São Julião, e encontrando-o no meio dos
outros Prelados do Concílio, lançou-se a seus pés na presença de
todos, rogou-lhes com lágrimas que derramava a torrentes, e com voz
interrompida de soluços e suspiros, lhe pediu o Batismo.
Representou-lhe o Santo Prelado que os Cânones Eclesiásticos
proibiam que se administrasse este Sacramento aos pecadores públicos,
e especialmente a uma famosa cortesã, como ela era, enquanto não
renunciassem a sua vida licenciosa, e não dessem provas suficientes
de não voltarem a mergulhar-se em suas antigas desordens. Pelágia,
que se conservava sempre prostrada aos pés do Santo Bispo,
respondeu-lhe: ‘Padre, minhas lágrimas são as melhores fiadoras
da sinceridade da minha conversão; e, pois, que Deus me conduziu a
vossos pés, querendo servir-se de vós para me purificar de meus
pecados, olhai que não vos peça conta de dilatardes por mais tempo
o admitir-me no número de suas servas’.
Conheceu
o Santo por suas instâncias a sinceridade da sua mudança; sendo de
parecer todos os Bispos que não devia negar-se-lhe o que pedia com
tais mostras de contrição e com tão exemplar perseverança, não
pode fazer mais resistência a conceder-lhe. No entrementes se deu
parte ao Patriarca do que se tinha passado, e se lhe pediu a
autorização para lhe administrar os Sacramentos, rogando-se-lhe ao
mesmo tempo que escolhesse alguma virtuosa matrona para que cuidasse
de tão ilustre neófita. Admirado o Patriarca de tão inesperada
conversão, deu mil graças ao Senhor, e rogou a uma virtuosa dama,
chamada Romana, muito conhecida de toda a cidade por um continuado de
boas obras, que tomasse a seu cargo aquela nova ovelhinha que ia
entrar no aprisco, querendo ser sua madrinha. A virtuosa senhora,
fora de si pelo contentamento que lhe causava a ocasião de poder
concorrer para uma obra tão meritória, correu à igreja de São
Julião e abraçou ternamente a ditosa pecadora.
Depois de São Nono lhe haver
explicado os principais Mistérios da nossa Religião, nos quais já
se achava suficientemente instruída, perguntou-lhe como se chamava:
‘Meus pais, respondeu-lhe, puseram-me o nome de Pelágia; depois, ou
por minha vaidade ou pelas riquezas de minhas galas, deram em me
chamar Margarida; vós, Padre, podereis pôr-me o nome que melhor vos
parecer’.
Fez-lhe São Nono os exorcismos
costumados, e tendo-a Batizado com o nome de Pelágia, a confirmou e
lhe deu a Sagrada Comunhão. Diz o historiador de sua vida que,
quando o Santo Bispo voltou a casa depois de uma festa tão cheia de
consolação, não lhe cabendo no peito a alegria, disse ao seu
Diácono: Irmão caríssimo, este dia é muito solene para nós; não
o tive em toda a vida de mais gosto, e assim é preciso que tudo diga
festa; hoje contra o costumado hás de preparar os legumes com
azeite, e havemos de beber um pouco de vinho’. Logo que se
assentaram à mesa, fez o Demônio um espantoso ruído na pousada;
ouviram-se uivos, gritos formidáveis, e entre eles uma triste e
pavorosa voz que dizia: ‘Oh! Quanto me faz padecer este maldito
velho! Não bastava haver convertido e batizado a trinta mil
sarracenos, e depois a toda a cidade de Heliópolis? Não contente de
todas estas conquistas que fizeste para teu Deus à minha custa,
vens-me agora arrebatar uma cortesã, que ela só à sua parte me
indenizava de todas as minhas perdas; não arrebentares, maldito
velho!’ Conhecendo o Santo o artifício do Demônio, não fez mais
que rir-se e fazer o Sinal da Cruz, com que o calou e o expulsou
dali.
Neste
entrementes, regressando Pelágia a sua casa, como uma nova criatura,
repartiu pelos pobres todas as suas joias
e bens, sem nada reservar para si, e deu a liberdade a todos os seus
escravos. Nas primeiras noites teve muito que padecer do espírito
das trevas; mas, instruída por seu Santo diretor, com o Sinal da
Cruz e com os dulcíssimos Nomes de Jesus e Maria pôs em fuga todo
aquele exército infernal.
Oito
dias depois deixou a túnica branca, trocando-a por um cilício;
coberta com um manto que lhe deu o Santo Prelado, saiu secretamente
da cidade de Antioquia, tomou o caminho de Jerusalém, e foi-se
sepultar em uma gruta do Monte das
Oliveiras,
onde todos a tiveram por um mancebo solitário, chamado Pelágio, e
debaixo deste pseudônimo fez vida muito penitente, entregue às
maiores austeridades, passando-a em contínua oração.
Concluído o Concílio de Antioquia, retirou-se São Nono a
Heliópolis, sem descobrir a ninguém o paradeiro da sua penitente,
posto
sabê-lo muito bem por meio de Revelação Divina.
Seu Diácono Tiago, que o acompanhou ao Concílio, e nos deixou
escrita toda esta história, desejou ir em peregrinação a
Jerusalém, para o que pediu autorização ao Santo Bispo.
Deu-lhe
São Nono; mas encarregou-o de, logo que chegasse à Santa Cidade,
perguntar
por um solitário, chamado Pelágio, que habitava no Monte das
Oliveiras, e que não voltasse sem lhe trazer notícias dele.
Não se esqueceu Tiago do recado, e por isso, logo que chegou a
Jerusalém, perguntou pelo solitário Pelágio. Disseram-lhe
que era um anjo em carne mortal, assombro de todo o país por sua
eminente santidade, e reputação por um prodígio de penitência;
que havia quatro anos que se havia encerrado em uma espécie de
sepultura, só se alimentava de raízes insípidas que brotavam
espontâneas.
Partiu Tiago a ver o santo
solitário, encontrou-o em uma celazinha aberta no mesmo penhasco,
sem outra abertura que uma janelinha, a qual estava quase sempre
fechada.
Como ia com o pensamento de
achar um homem, não lhe passou pela mente que pudesse ser Pelágia.
Por outro lado estava a santa tão desfigurada, os olhos tão
encovados e tão apagados pelas muitas lágrimas, o semblante tão
descarnado pelo rigor das penitências, a tez e a figura tão mudada,
que lhe seria impossível conhecê-la, ainda quando a não tivesse
ido ver com a preocupação de que era um homem. Disse-lhe Tiago que
vinha da parte do Bispo Nono, do qual ele era Diácono: ‘Nono é um
Santo, respondeu ela, diz-lhe que me encomende a Deus’. Com o que
fechou logo a janela, e Tiago ouviu que começou a rezar a Tércia.
Regressou
a Jerusalém, cheio de regozijo e admiração por ter visto aquele
prodígio. Depois de ter visitado os Santos Lugares, e muitos
mosteiros, onde não havia outra coisa a louvar do que a santidade do
solitário Pelágio, não quis voltar à Síria, sem o ter visitado
uma segunda vez. Chegou à cela, fez ruído para que ouvisse, e vendo
que ninguém aparecia, exclamou: ‘Servo
de Deus, faze-me a caridade de te deixar ver’.
Como ninguém respondesse,
voltou ao outro dia, no qual, repetindo-se o mesmo silêncio, teve a
curiosidade de meter a cabeça pela janelinha que estava entreaberta,
e então viu que estava sem vida o suposto solitário.
Correu prontamente a dar
parte do sucedido aos ermitões dos contornos, vindo todos para
prestar ao sagrado corpo os últimos deveres. Arrombaram a porta, e
de lá tiraram o cadáver para o embalsamarem, mas todos ficaram
estranhamente surpreendidos, quando notaram que era mulher a que
criam ser homem, e logo se ouviu de todas as partes exclamar: ‘Sede
eternamente louvado, meu Deus, que tendes tantos tesouros escondidos
na terra não só entre os homens, mas também no sexo mais débil e
mais delicado’.
Divulgada a notícia daquela
maravilha por toda a comarca, correu de tropel gente de Jerusalém,
bem como inumeráveis religiosas que estavam nos mosteiros das
planícies de Jericó e às margens do Jordão, todas com velas
acesas, cantando hinos, e assistindo às suas Exéquias, as quais
correram com a maior solenidade; e desde aquele tempo ficou muito
célebre em toda a Igreja o nome de Santa Pelágia.
Sucedeu
esta morte tão preciosa aos olhos do Senhor no mês de Outubro do
ano de 460”.
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