A
Virgem Santa Lutgarda era de entranhas tão compassivas com os
enfermos, aleijados e achacosos, que muito maior aflição custava ao
seu espírito, do que a eles mesmos o seu trabalho. Deu-lhe pois o
Senhor, a graça de sarar qualquer membro leso com o toque da sua
mão, ou saliva. Mas, era por esta causa tão contínua e molesta a
multidão da gente, que a toda hora a rodeava; que não lhe ficava
lugar para tratar com Deus familiarmente. E assim disse ao Senhor: De
que me serve a mim esta graça, se me impede de estar Contigo? Dá-me
outra coisa melhor por ela. Disse o Senhor: Pois, que queres que te
dê? Quero, respondeu a Santa, que para maior devoção da minha
alma, me dês inteligência sobre o Saltério. Eu a concedo-Vos,
disse o Senhor. E daquele tempo em diante se experimentava a
maravilhosa luz com que penetrava os Mistérios escondidos no
Saltério. Porém, como andando o tempo, não achasse nesta graça
tanto proveito espiritual como ela esperava, tornou
a dizer ao Senhor com sua costumada singeleza: De que me serve a mim,
que sou uma mulher rústica e idiota, entender as profundezas da
Escritura? Disse-lhe o Senhor: Pois, que queres que te dê?
Respondeu: Quero o teu Coração. Bem está, replicou o Senhor; mas,
muito mais quero Eu o teu: e assim há de ser por troca. Disse a
Santa: Embora: mas, hás de temperar o amor do Teu Coração ao meu
coração, de sorte que possua eu o meu coração em Ti, e mo
defendas em todo o tempo. Conchavadas as partes, celebrou-se a
permutação por uma admirável união do Espírito Incriado com o
criado: dali por diante, nunca a Lutgarda lhe veio pensamento mau,
nem por um instante. Esta
mesma Santa, quando estando com o Senhor, se lhe oferecia negócio,
ou ocupação precisa, dizia: Espera aqui Senhor Jesus; que em
podendo-me livrar, venho depressa aos Teus pés. Quando tornava,
achava ao Senhor esperando.
Pondere-se
1.
A maravilhosa confiança que o amor de Deus dá a uma pobre
criaturinha, de sorte, que possa dizer a seu Deus: Quero
isto, não quero este outro: Mas há de ser assim, e não assim:
Espera que eu torno,
e outras frases a estas semelhantes. As majestades da terra, se
admitissem este tratamento, logo se murchariam e envileciam; mas, a
Majestade Divina, deste modo resplandece e é sublimada mais
gloriosamente.
2.
Como esta confiança procede de que as vontades de Deus e da criatura
estão já unidas; de sorte que quando a criatura quer alguma coisa,
não a quer tanto com a vontade própria, quanto com a de Deus, que
em Si sente, e quer o mesmo. Procede também de que como os Santos
negam a sua vontade em muitas coisas lícitas, por se mortificar, e
fazer o gosto de Deus; este Senhor por outra parte, se dá por
obrigado a fazer-lhes o gosto em muitas coisas que pedem e desejam:
Si manseritis in
me, et verba mea in vobis manserint, quodcumque volueritis poteritis,
et fiet vobis.
Temos
exemplos no Seráfico P. S. Francisco, que desejando ouvir um
instrumento musical, mandou Deus um Anjo que lhe o tocasse. E em meu
P. S. Filipe Nery, que sendo necessário um pouco de açúcar para um
seu medicamento, mandou Deus por outro Anjo um pão dele: E no Beato
Fr. Juan de la Cruz, que desejando uns espargos, de repente viu um
molho deles atado com a sua junca, e posto sobre um penedo: e no V.
P. Pedro Canísio da Companhia de Jesus, que perguntando que desejava
comer, em uma grande inapetência que padecia, nomeou certo pássaro
esquisito; e logo este entrou pela janela, e se
foi por nas mãos do enfermeiro. Que há que dizer aqui, senão que
se cumpre o que está escrito; que Deus fará a vontade dos que O
temem, e amam:
Voluntatem
timentium se faciet:
e louvar sua benignidade suma; e desejar ardentemente honrá-lO, e
servi-lO em todas as coisas; só porque ele é infinitamente bom?
3.
Como esta Santa não achou no dom do entendimento das Escrituras, o
proveito para sua alma, que esperava: e assim melhorou a petição,
pedindo o Coração de Cristo; isto é, a sua Caridade, que lhe
conformasse o seu com Ele. Donde se mostra, que bem podemos amar
muito, sem entender muito: e que por esta via fará o idiota, maiores
progressos na vida espiritual, do que o letrado, e iluminado: porque
todos os demais dons e graças, sem a caridade são nada: Et
si habuero prophetiam, et noverim mysteria omnia, et omnem scientiam:
et si habuero omnem fidem, itat ut montes transferam, charitatem
autem non habuero, nihil sum.
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Fonte:
Ven. Pe. Manoel Bernardez, “Luz e Calor – Obra Espiritual para os
que Tratam do Exercício e Caminho de Perfeição”, Segunda Parte,
Opúsculo II, Exemplo XXVIII, pp. 319-321; Nova
Edição, Lisboa, 1871.