Do
Verdadeiro e do Falso Rosário
O
homem que mais cortesmente soube falar com Deus, foi Abraão:
“Falarei ao meu Senhor, ainda que eu seja pó e cinza”:
e vede como falava, e como
ouvia. A primeira vez que Deus apareceu a Abraão, foi em Haran, e
diz o Texto: “Ora o Senhor disse a Abraão”:
disse o Senhor a Abraão. A segunda vez apareceu-lhe em Sichem, e diz
o Texto: “O Senhor apareceu a Abraão e
disse-lhe”.
A terceira vez apareceu-lhe em Canaan, e diz o Texto: “O
Senhor disse a Abraão”.
A quarta vez apareceu-lhe na mesma terra, e diz o Texto: “Disse
Deus a Abraão, e Abraão disse a Deus”.
Não sei se reparais nestas quatro aparições, e se achais nelas
alguma diferença? Eu confesso que tenho lido estes Textos algumas
vezes, e nunca adverti o que advertiu Caetano, e pede a todos que
advirtam: “Considere o prudente leitor, diz
Caetano, que Abraão nas primeiras três aparições de
Deus, ouviu e não falou palavra, e só nesta quarta ouviu, e falou”.
Pois se falou nesta, porque não falou também nas outras? Porque
falava com Deus. Quem fala com Deus, há
de ouvir muito, e falar pouco: para falar uma vez, há de ouvir
quatro. E quem tanto ouve, e tão pouco fala, merece que Deus lhe
apareça muitas vezes. Ide agora, e falai o Rosário inteiro sem
pausa, sem aguardar compasso, sem dar lugar a Deus, a que também Ele
vos diga alguma coisa: e se vós falai tudo, e Deus não fala, como O
haveis de ouvir?
Vai
por diante Sophar: “Aut vir verbosus justificabitur?”
Porventura cuidais que esta verbosidade, e esse muito falar vos há
de fazer justo? Não. O justo, não o faz o muito que fala, senão o
falar o muito que medita: “os justi meditabiur sapientiam
et língua ejus loquetor judicium –
A boca dos justos anunciam a sabedoria, a sua língua proclama o
direito”.
Encontrada coisa parece
atribuir a meditação à boca, e o juízo à língua: o juízo é o
que medita, a boca, e a língua a que fala. Mas o justo de tal
maneira ajunta a meditação com a oração, e o mental do juízo com
o vocal das palavras, que ainda com a boca e com a língua medita; e
não porque fala muito, senão porque medita muito, é justo. Não
justo, porque fala muito: “Nunquid vir verbosus
justificatibur”; mas
justo porque medita muito: “Os justi meditabitur
sapientiam”. Mas para que é
ir buscar a prova nas Escrituras, se a temos mais perto na
experiência? Contai os que rezam o Rosário, e contai os justos. São
tantos os justos como os que
rezam o Rosário? É certo (ainda mal) que por cada cento que rezam o
Rosário não me dareis um justo. E donde vem esta de desigualdade
tão grande, tão enorme, e tão indigna? É porque “Vir
verbosus non justificabitur”. Rezam
e não meditam, e o rezar sem meditar, não é orar, é falar; em vez
de ser oração, é verbosidade.
O que se reza sem
meditação sai da boca: o que primeiro se medita sai do coração: e
ainda que seja uma só palavra, é oferta que se pode dedicar a Deus:
Erucatavit cor meum verbum bonum, dico opera mea regi”.
Então cuidam os que isto fazem, que a devoção do Rosário está em
o rezar ou falar todo inteiro. Os que assim o rezam sem meditar,
falsamente se arrogam o nome de devotos da Senhora e do seu Rosário.
O Rosário que a Senhora instituiu não é esse: logo não são
devotos do Rosário. Pois que são? Quanto muito são rezadores: e
por isso, ou cegos, ou merceeiros; mas justos não. Lembrem-se
daquela sentença: “Cum oratis, nolite multum loqui”:
Quando orais não faleis muito. E de quem é esta sentença? É do
mesmo Cristo, que diz: “Oportet semper orare”:
Importa orar sempre; e o
mesmo Senhor, que nos manda orar sempre, manda que quando oramos não
falemos muito, porque o falar não é orar. Por isso, nem Ele nos
ouve, nem nós o ouvimos.
Oh,
se ouvíssemos alguma vez a Deus! Isto é o que desejava, e exclamava
Sophar: “Utinam Deus loqueretur tecum et aperiret labia
sua tibi”! Oh, se Deus abrisse
uma vez a boca e falasse
contigo! E qual era a razão deste seu desejo? Porque falava com
os que falam muito e não querem ouvir; e sabia que tanto que
ouvissem a Deus, mais haviam de querer ouvir que falar. Com ser Deus
Autor da natureza, no falar e no ouvir tem mui diferentes efeitos.
Todo o mudo naturalmente é surdo, e todo o que ouve a Deus,
naturalmente emudece. A natureza, aos que privou do falar, tira-lhes
o ouvir; e Deus, aos que
concedeu o ouvir, tira-lhes o falar. Quando Deus apareceu a Moisés
na sarça, e o mandou com a embaixada a Faraó, escusou-se Moisés
com que não sabia falar: “Non sum eloquens ab heri, et
nudius tertius”.
Mas contra isto está o que se refere nos Atos dos Apóstolos, que
Moisés tinha estudado todas as ciências
dos Egípcios, e era nelas e na sua língua poderosamente eloquente:
“Eruditus est Moisés omni sapientia Aegyptiorum, et erat
potens in verbis”.
Pois se Moisés era tão sabiamente eloquente, e tão eloquentemente
sábio, como diz agora que não sabe falar? Ele mesmo deu a razão:
“Ex quo loquutus es ad servum tuum, impeditioris, et
tardioris linguae sum”:
É verdade, Senhor, que eu
antes deste dia falava expeditamente: mas depois que Vós, Vos
dignastes de me falar, e eu Vos ouvi, no mesmo ponto se me tolheu a
fala e atou a língua. E porque Sophar sabia os segredos desta
filosofia, por isso desejava que falasse Deus uma vez aos que só
falam e não ouvem: “Nunquid
qui multa loquitur non audit? Utinam Deus loquentur tecum”!
A Virgem Senhora Nossa não instituiu o seu Rosário, só para
falarmos rezando, senão para ouvirmos meditando: e o Rosário que é
só de boca, e não de ouvidos, é tão diminuto e imperfeito, que
não merece o nome de Rosário, porque não meditando os Mistérios,
falta a parte principal e essencial dele. Antes
quero a terça parte do teu Rosário meditado,
disse a Senhora a um seu devoto, e
ainda menos da terceira parte, que todo ele inteiro sem meditação.
E este conselho não só devem tomar todos, mas é necessário que o
tomem sob pena de o seu Rosário não ser Rosário.
Podem-me
dizer, contudo, alguns dos que rezam, e não meditam, que rezando o
Rosário sem meditar os Mistérios, sentem
contudo grandes afetos e seu espírito, assim de compunção para com
Deus, como de piedade e confiança para com sua Santíssima Mãe. Oh,
como vos enganais convosco mesmos, mas
venturosamente! Pergunto: E esse cuidar em Deus e na Virgem Maria,
não é parte de meditação, posto que breve? Assim o prova e
convence a Santa Madre Teresa contra os mesmos que em seu tempo
rezavam vocalmente, e tinham medo da oração mental. Os afetos de
devoção e piedade que sentem quando assim rezam, também são
efeitos da meditação, posto que imperfeita, e vozes ou sonidos
breves e sutilíssimos com que Deus então lhes fala ou passa pelos
ouvidos. Por isso, no livro de Jó se chamam estas falas de Deus, não
vozes, senão sussurros, e esses que se ouvem furtivamente: “Et
quasi furtivé suscepit auris mea venas susurri ejus”.
Assim que, quando sentis esses afetos, já, sem o entender, começais
a rezar pelos ouvidos: que por isso diz: “Suscepit auris
mea”: e são uns como furtos,
que faz a oração vocal à mental, saindo-se da sua esfera: que por
isso diz: “Quasi furtivé”:
e são as veias do sonido que ainda não
chegam a ser voz de articulada: que por isso diz: “Venas
susurri ejus”. Mas daí mesmo
se colhe que se tão doce é o que se chupa nas veias, que será o
beber na fonte? E se tanto obram na alma só os sussurros, as vozes
declaradas que farão? Necessário é logo à essência do Rosário,
que perfeita e inteiramente se reze pelos ouvidos, para ser
verdadeiro Rosário.