Prólogo
Se
quisermos seguir ao Senhor, nosso Salvador, obedeçamos à voz do
Profeta, para que, “rompidos os laços da iniquidade,
descarreguemos os fardos que nos oprimem”,
de sorte que, livres das preocupações terrenas, sigamos com passo
desembaraçado o Redentor, porquanto “ninguém que entre
para a milícia de Deus, se envolve em negócios do século”.
Ninguém pode servir perfeitamente a Deus, conforme prova a
experiência, enquanto não procura desapegar-se inteiramente do
mundo.
Jamais
permitamos, pois, que o nosso coração se preocupe com alguma coisa
criada, a menos que sirva de estímulo ao amor de Deus, porquanto a
nímia variedade das coisas efêmeras, apreciada indevidamente, não
só perturba a tranquilidade da alma, distraíndo-a,
como também a desvia e turva, engendrando-lhe fantasias
espalhafatosas. Aligeirados, pelo contrário, do pesado fardo das
afeições terrestres, corramos sem demora Àquele que nos chama e no
qual se encontra a mais perfeita satisfação e “a suma
paz que sobrepuja a todo entendimento”.
“Vinde
a mim todos os que lidais e vos sentis sobrecarregados, e eu vos
confortarei!”.
Ó Senhor, de quem necessitas? Por que nos chamas? Que te importamos
nós? Ó voz de verdadeira piedade! “Vinde a mim, dizes,
e eu vos aliviarei!” Ó
admirável condescendência do nosso Deus, ó inefável caridade!
Pois quem jamais fez coisa semelhante? Quem jamais viu ou teve
notícia de igual bondade e condescendência? Reparai como Ele
convida os inimigos, exorta os réus, chama os ingratos. “Vinde!,
diz Ele. Vinde a mim todos e aprendei de mim! Tomai sobre vós o meu
jugo, e achareis descanso para as vossas almas”.
Ó
palavras dulcíssimas e
deificas, mais penetrantes que uma espada de dois gumes, revelando os
segredos mais íntimos do coração, cheios de excessiva doçura, e
atingindo até a divisão da alma e do espírito!
Desperta, pois, ó alma cristã, ante o amor de tamanha bondade, ante
o gozo de tamanha doçura, ante a fragrância de tamanha suavidade.
Verdadeiramente, está enfermo quem não sente estas coisas, está em
delírio e se avizinha já da morte. Abrasa-te, pois, ó minha alma,
sacia-te, dulcifica-te na misericórdia do teu Deus, na caridade do
teu Esposo. Inflama-te na Paixão do teu Amado, sacia-te com Seu
amor, e dulcifica-te com seu sabor. Ninguém te embarque de entrar,
de possuí-lo e fruí-lo.
Que
mais pedimos? Que mais queremos? Que mais esperamos? Pois n’Ele só
possuímos todos os bens. Mas ai! Que incompreensível desatino o
nosso! Que miserável enfermidade! Ó detestável falta de
entendimento! Eis que somos chamados ao repouso, e andamos atrás do
afã. Somos convidados ao alívio, e procuramos a dor. Promete-se-nos
a alegria, e apetecemos a tristeza. Ó lamentável desacerto nosso,
pois tornamo-nos insensíveis e quase piores que estátuas que têm olhos e não veem, ouvidos e não ouvem, cabeça e não raciocinam,
tomando o amargo pelo doce e o doce pelo amargo.
Ó
Deus, donde nos advirá a emenda de tanta malignidade? Donde
poderemos obter satisfação por tão grave ofensa? Realmente, nada
disso temos a não ser mediante a tua graça. Pois tu só podes
corrigir-nos; tu só podes pagar pelos nossos pecados; porquanto tu
só sabes bem de que pó somos formados.
Tu só és nossa salvação e redenção, pois só por meio de tua
graça é possível aos homens, vendo-se abismados na tua baixeza,
ter esperança de levantar-se unicamente com teu auxílio.
Por
isso, ergamos diretamente a Deus os olhos da nossa alma e vejamos
onde estamos submergidos, a fim de conhecermos a nossa queda. E,
conhecendo-a, clamemos altamente do mais profundo dos abismos ao
Senhor, para que nos estenda a mão auxiliadora da Sua misericórdia,
“que nunca há de encolher-se para nos salvar”.
“Não percamos a confiança, que tem uma grande
recompensa… Aproximemo-nos confiadamente do trono da Sua graça,
para alcançarmos o fim da nossa fé, a salvação das nossas
almas”.
Não
nos detenha nenhuma tardança, pois que já nos chama a vida,
espera-nos a salvação, e a tribulação nos impele a entrar. Por
que hesitamos, pois? Por que tardamos? Apressemo-nos a entrar no
repouso da eterna Bem-aventurança, onde há coisas grandes,
inapreciáveis e maravilhosas sem número.
Seja Jerusalém o objeto dos
nossos pensamentos, suspiremos pela nossa pátria, ergamos as nossas
almas para o alto, “internemo-nos na consideração das
obras do Senhor”,
contemplemos o nosso Rei reinando gloriosamente, e comovam-se os
nossos corações pelas Suas misericórdias.
Demos-Lhes
graças de todo o coração, pois não levou em conta a nossa
ingratidão, e não nos privou da Sua benigna misericórdia,
inspirando-nos o desejo de “palmilhar a senda dos seus
Mandamentos”,
senda essa que ninguém pode trilhar sem este desejo. Não
desprezemos este benefício, mas reputemo-lo bem grande, pois, que
o mais esclarecido dos Profetas assegura que o ambicionou, dizendo:
“A minha alma desejou ansiosa em todo o tempo as tuas
justas leis”.
É
sabido que este desejo, não raras vezes, se frustra em consequência
da nossa nímia tibieza, do nosso descuido e negligência. Resolvi,
por esse motivo, colecionar alguns documentos que servissem de
estímulo à perfeição. Neles estão indicadas as coisas a evitar,
e as que se hão de seguir, a fim de que, recordando-as
carinhosamente todos os dias, de um modo eficaz, recobremos o
primitivo fervor e cresçamos constante e infatigavelmente nas
virtudes e graças, com o divino amor, até que cheguemos ao perfeito
desejo das colinas eternas.
Exporei,
primeiro, oito memoriais gerais, fazendo seguir alguns especiais.
Memoriais
Gerais
Há
algumas virtudes que são como degraus da escada da perfeição. Quem
nelas fielmente exercita-se, chegará por meio delas à perfeição da
vida e ao cume da glória. Tais são:
– um
santo pudor em todas as palavras e ações;
– tardança
em falar;
– prontidão
em obedecer;
– frequência
na oração;
– fuga
da ociosidade e das inobservâncias;
– confissão
sincera e frequente;
– o
servir prazenteiro;
– e
o evitar as companhias infrutíferas.
Estas
virtudes são comparáveis a pérolas resplandecentes, enchendo a
quem as possui, de graças aos olhos de Deus, dos Anjos e dos homens.
“Mas
quando aprouve Àquele que te destinou desde o seio da tua mãe, e te
chamou por sua graça a fim de revelar-te o seu Filho”,
transladando-te da miserável escravidão do Egito para a “liberdade
gloriosa dos filhos de Deus”
e, posto no caminho do homem novo, começares a palmilhar pela senda
da humildade que fica estabelecida entre o temor e o amor, então,
subindo pelo mesmo caminho da humildade as coisas mais altas, poderás
exercer-te em coisas maiores, acerca das quais seguem imediatamente
alguns memoriais.
Memoriais
Especiais
1.
Da mortificação das paixões.
Querendo seguir os vestígios do Salvador é necessário, antes de
tudo, desconfiares inteiramente de todas as consolações deste
mundo, fixando toda a tua esperança no Senhor.
2.
Da extirpação dos vícios.
Com todas as tuas forças procura purificar-te completamente de todos
os vícios e paixões para que, “purificado
do velho fermento da malícia e da corrupção”,
vivas uma vida nova com Cristo, porquanto, se não romperes,
primeiro, as cadeias da iniquidade, tua alma, obumbrada pelas trevas,
não conseguirá alçar-se às coisas celestes.
3.
Da ruptura dos laços.
Corta e desata de ti todo laço exterior, a fim de que, tua alma
poder unir-se totalmente a Deus.
4.
Da paciência nas tribulações.
Suporta com paciência, por amor ao Altíssimo, todas as perseguições
deste mundo. Ainda mais: acolhendo-as com prazer, folga unicamente
nos padecimentos de Cristo. Desprezando as alegrias temporais,
alegra-te nas mesmas tribulações, lembrando que todas elas revertem
na purificação dos pecados e em méritos da alma.
5.
De nada te queixes.
Desde que reconheces haveres ofendido ao teu Criador e ao de todas as
coisas, não exijas que criatura alguma te respeite.
6.
Da pobreza e do desprezo de ti próprio.
Menosprezando-te a ti mesmo, desejando seres menosprezado pelos teus
semelhantes, e zelando pela santíssima pobreza, guarda quanto
puderes a aspereza, a vileza e a economia em tudo que te concerne.
Todavia, não exijas isto dos demais; pelo contrário, sempre alegre
e prazenteiro por toda consolação dos teus irmãos, assiste-lhes
sempre que necessário, obsequiando-os e servindo-lhes, lembrado de
que são dignos de todo alívio, a menos que (não o permita Deus),
em alguma coisa vires claramente uma ofensa divina que careça de
toda desculpa. Então, compadecido e cheio de temor, doe-te por ela
do íntimo do coração.
7.
Da fuga das honras. Vivendo
sempre cheio de temor, foge com todo o empenho das lisonjas deste
século, de suas honras, glórias, favores e das auras da vanglória,
assim como se foge de pestes mortíferas. Conhecendo-te a ti mesmo,
considera-te indigno de toda honra. Quando, porém, alcançares a
perfeita vitória sobre ti próprio, nenhum inimigo interior ou
exterior conseguirá prejudicar-te.
8.
Da verdadeira humildade.
Por amor d’Aquele que, sendo o Senhor de todas as coisas do Céu,
da terra e dos abismos, tomou por nós a forma de vilíssimo servo,
submetendo-se voluntariamente ao poder dos homens – tu,
humilhando-te a ti mesmo, considera todo homem como senhor teu, e a
ti verdadeiramente como servo de todos, em todas as coisas. Assim
alcançarás tranquilidade, viverás em perpétua paz com todos e
conhecerás em absoluto o escândalo.
9.
Da paz da tua alma e como se a consegue.
Não te intrometas em coisa alguma que não te diga respeito e não
te traga utilidade espiritual; isto é, não te preocupes de modo
nenhum, quer interior quer exteriormente, de coisa alguma que não
sirva de proveito à tua alma; nem tampouco permitas que outrem te
envolva em assuntos desta espécie. Nisto está um segredo admirável,
oculto aos inexperientes.
10.
Da guarda dos sentidos.
“Guarda
solicitamente”
tua vista, tua língua e os demais sentidos corporais, de sorte que
não queiras ver, ouvir ou tocar senão o que for útil à tua alma.
Refreia energicamente a tua língua, de maneira que não fales senão
quando perguntado, ou obrigado por necessidade ou evidente utilidade.
E ainda neste caso, brevemente e em voz baixa, se possível, mas
sempre com respeito e prudência de ânimo, evitando o palavreado e
reduzindo as ocasiões ao mínimo estrito.
11.
Da solidão e das vigílias.
Ansioso pela santa e pacífica solidão, considera como preciosa a
prática das vigílias, oferecendo nelas a Deus as tuas orações com
atenção nas palavras, com fervorosa devoção e com profunda
humildade.
12.
Do divino Ofício.
Ao rezares o Ofício divino, recolhe-te em ti mesmo de tal sorte que
te esqueças de tudo quanto é terrestre e, concentrado o teu
espírito na contemplação dos Mistérios celestes, o recites com
tamanha devoção, respeito, júbilo e temor como se estivesses no
meio dos coros angélicos e juntamente com eles oferecesses os
louvores à divina Majestade.
13.
Da devoção à gloriosa Virgem Maria.
Com grande afeto e veneração afeiçoa-te sempre à gloriosa Rainha,
Mãe de Nosso Senhor, e a Ela volve, como a um refúgio seguríssimo,
em todos os instantes, tribulações, necessidades, pedindo-Lhe o
apoio do seu patrocínio, tomando-A por Advogada e confiando-Lhe
devota e seguramente a tua defesa, pois que Ela é a Mãe da
misericórdia. Todos os dias procura oferecer-Lhe algum obséquio
particular. E para que tua devoção Lhe seja agradável, e aceita a
tua veneração, empenha-te por imitar-Lhe os exemplos de humildade e
mansidão, conservando solicitamente incontaminada em ti a virtude de
sua castidade na alma e no corpo.
14.
Evita a companhia de mulheres, e procura um Diretor Espiritual.
Em toda parte evita estar com mulheres e com jovenzinhos, exceto em
caso de necessidade ou utilidade manifesta. Onde quer que te
encontres, busca um único Diretor Espiritual que seja um varão
santo, discreto, manso e piedoso, mais douto pela experiência da
virtude que pela sublimidade da doutrina. Que ele te instrua e te
inflame no amor divino com palavras e exemplos eficazes e abrasados.
A ele acode em todas as necessidades para teu consolo espiritual.
15.
Da fuga da indolência e da tristeza.
Repelindo com energia toda indolência e tristeza, nas quais se
esconde o caminho da perturbação, “que
conduz à morte”,
vive sempre tranquilo e sereno, interior e exteriormente. A nada
contradigas ou te oponhas, mas concorda com todos, em tudo e por
tudo, desde que não seja contra a glória de Deus e o bem das almas.
16.
Aceita o bom exemplo dos outros.
Conforma todos os teus afetos e desejos com a vontade divina. Tudo te
edifique e nada neste mundo perturbe a graça da pureza e inocência
que te outorgou a bondade divina. Não te manches com imundícies
alheias, escandalizando-te dos defeitos dos outros, acrescentando
iniquidade a iniquidade. Não suceda que, procurando salvar a outrem,
caias tu mesmo nalgum abismo ainda pior. O melhor é cobrires
caridosamente aquelas faltas que não podes remediar sem dano próprio
e as abandonares às mãos da grande Sabedoria que mesmo do mal sabe
tirar o bem. Assim, com permissão do Senhor, poderás reunir
proveito espiritual não só de todos os bens, mas ainda de todos os
males.
17.
Da Guarda do coração.
Vigiando com solicitude teu coração e dedicando-te exclusivamente a
exercícios espirituais, não consintas que se imprimam nele as
imagens das coisas visíveis, a fim de que, abstraído de todas as
criaturas, possa abandonar-se desembaraçadamente ao Criador de
todas.
18.
Da caridade para com o próximo.
Considerando em todos os homens a imagem e a semelhança da divina
Majestade, ama-os com afeto de uma genuína caridade. Interessa-te
por todos, especialmente pelos enfermos e necessitados, contanto que
daí não te nasça alguma distração prejudicial às coisas
espirituais. Ama-os tanto “como
uma boa mãe ama ao seu muito amado filho único”.
19.
Da oração e da santificação do trabalho.
Mantém tua alma constantemente voltada para Deus de tal sorte que
toda obra e exercício, quer mental quer material, seja uma oração.
Desempenha todos os teus ofícios, sobretudo os mais humildes, com
tamanho fervor e caridade, como se os prestasses a Cristo em pessoa.
Podes e deves pensar que efetivamente assim é, porquanto di-lo Ele
mesmo no Evangelho: “Tudo
o que fizestes a algum dos meus irmãos mais pequeninos, a mim é que
o fizeste”.
20.
Da santa obediência.
A todos presta honra e respeito, quer devida quer convenientemente, e
procura guardar sempre ilesa, como a “menina
dos olhos”,
a santíssima obediência, não só nas coisas grandes e nas que
admitem dúvida, mas ainda nas pequenas. Obedece não só aos
Superiores, senão também a todos os inferiores, sujeitando-te a
todos e abnegando-te por amor de Cristo. Nas coisas boas e nas
indiferentes procura fazer sempre a vontade de outrem, não
molestando a ninguém, amando a todos em Cristo e agradando a todos
sem distinção. Evita as afabilidades, amizades e intimidades
particulares. Cuida sobremodo de não seres, de forma alguma, nem por
ti nem por outros, quer por palavras quer por obras ou gestos, causa
ou motivo de rancor, ódio, clamor, injúria, perturbação,
murmuração, crítica, escândalo, adulação e de outras coisas
idênticas.
21.
Conserva ocultas as consolações e as tribulações.
Trata de ocultar a todos, quanto possível, as virtudes e graças
espirituais que a divina misericórdia se dignar de efetuar em ti ou
por ti, como também as tribulações, as lutas, os propósitos de
santificação e outras coisas parecidas, excetuando todavia aquilo
que deves revelar ao Sacerdote na confissão, a menos que, por motivo
de utilidade espiritual, as manifestes a algum amigo teu especial e
perito, cujo conselho e doutrina crês que te possa aproveitar nestes
assuntos. Sê afanoso em economizar o tempo, a fim de poderes
entregar-te à costumada oração e santa meditação, e, assim,
“recolhendo-te
solitário, te eleves”
pelo desejo às coisas celestes.
22.
Da presença de Deus em toda parte.
Desembaraçado inteiramente e não desejando nada de terrestre,
desprezadas todas as criaturas, ocupa-te do teu Criador com tamanho
interesse da alma e energia da vontade que, como esquecido das coisas
inferiores, tudo o que fizeres, onde quer que te encontrares, em
quaisquer assuntos sobre que conversares, de dia e de noite, a todo
instante e a toda hora, tenhas Deus presente à tua memória, crendo
e pensando verdadeiramente que estás em Sua presença e que te vê
em toda parte. Compenetra-te disso com grande respeito e temor, com
grande discrição e ardentíssimo amor, já prostrado aos pés de
Sua imensa Majestade, pedindo-Lhe perdão dos pecados com o coração
dolorido; já ferido pela espada da compaixão da Sacratíssima
Paixão do Filho de Deus, transpondo-te aos pés da Cruz, com
lágrimas e com pesar; já propondo-te o curso de toda a Sua vida,
qual uma linha reta, a fim de retificares a tua anormalidade;
já recordando em tua alma os seus inúmeros e imensos benefícios,
demorando-te na ação de graças; já ferido ardentissimamente
pelos estímulos do seu amor entrevendo o teu Criador em todas as
criaturas; já considerando o Seu poder, a Sua sabedoria, a Sua
bondade, a Sua clemência, glorificando-O em todas as Suas obras; já
atraído pelo desejo da pátria celestial, suspirando por ela
amorosamente; já considerando as entranhas da Sua inestimável
caridade para conosco, desfalecendo n’Ele o teu corpo e a tua alma
com uma alegre e excessiva admiração; já imaginando que, ou
cais, ou foges, ou que Deus te acolhe, te levanta e te atrai, ou que
perseveras ingrato em tudo, embora te sejam manifestas as inefáveis
entranhas da divina misericórdia, acercando-te d’Ele com grande
ardor de caridade, desfazendo-te todo em pranto; já atendendo
solicitamente aos ocultíssimos, profundíssimos, admirabilíssimos,
mui secretos e estupendos juízos da Sua justiça, venerando-O fiel e
constante, discreto, suplicante e humilde em tudo com grande amor e
também com grande temor, guardando sobretudo uma recordação viva e
incessante da Sua Sacratíssima Paixão na tua alma e no teu corpo.
23.
Da sacratíssima vigilância sobre si mesmo.
Velando por “tua
guarda”,
fugindo como o pássaro dos laços dos caçadores; defende-te
constantemente e com cautelosa solicitude contra as ilusões do
antigo Inimigo que, “transfigurado
em Anjo da luz”,
frequentemente
espraia laços e redes por todos os caminhos dos homens, a fim de
capturar as almas. Seja tão grande a tua pureza, acompanhada pela
santa humildade, que nem sequer as redes mais sutis possam
amarrar-te.
Delas, com efeito, sairás incólume quando tiveres te tornado
Israel, isto é, ancorado em Deus, fixando continuamente os olhos de
tua alma no Senhor, porque seu custódio “não
dormirá e não dorme”.
24.
Da pura confissão dos pecados.
Observando indefeso o rigor da tua ordem, abrasado nos sagrados
ardores de desejos celestes, conservando ilibada a formosura da
pureza da alma e do corpo, a candura da inocência e a delicadeza da
consciência, acautela-te com diligentíssimo cuidado de não te
tornares insensato, desfalecendo em alguma norma. A fim de observares
isso com maior pureza e solicitude, examina a tua vida sete
vezes ao dia, sempre antes ou imediatamente depois de cada hora
canônica, considerando atentamente de hora em hora se andaste digno
de Deus e imaculado no caminho da justiça. Não havendo quem a tal
ponto guarde a disciplina e a observância que não descuide ou omita
alguma coisa, necessário é que, recorrendo ao lavacro da
penitência, te acuses sincera e frequentemente, com lágrimas e
compunção. Nesta acusação ou confissão manifestarás ao
Sacerdote, como à Deus, íntegra, verdadeira e puramente, sem algum
véu de desculpa, encobrimento ou disfarce, depois de examinadas
todas as faltas, as que cometeste, expondo em primeiro lugar as
omissões com referência a Deus, principalmente as ocorridas na
oração mental e vocal; em seguida, as faltas na observância da
justiça para com o próximo; depois, as ações pecaminosas em que
incorreste devido à guarda negligente dos sentidos, dos afetos e dos
pensamentos que aderem aos sentidos.
Esta
confissão andará acompanhada sempre pela contrição e a
satisfação, isto é, deves doer-te das culpas, não só das
grandes, senão também das pequenas, e, doendo-te, não tornes a
pecar, procurando evitar sempre as causas e as ocasiões de pecado,
enquanto te parecem melindrosas em razão do teu apego. Conforma a
sentença do Senhor: “Há
de arrancar-se o olho que escandaliza”,
quer dizer, hão de evitar-se as ocasiões de pecado que,
efetivamente, se
afiguram-nos atraentes, embora nos desagradem muito as suas
consequências. Daí resulta um combate veementíssimo. Pela mesma
razão é necessário que o servo de Deus seja cego, surdo, mudo e
insensível a todas as coisas que não redundam em bem da sua alma.
Para te apegares com maior solicitude e te inflamares com mais fervor
na observância dos Mandamentos divinos e da santa disciplina nas
coisas sobreditas, como ainda em todas as demais, procura relembrar
afetuosa e detidamente, com consciência sincera, pelo menos uma vez
ao dia, estes cinco pontos de vista: quão breve é a nossa vida;
quão escorregadio o caminho; quão incerta a hora da morte; que
prêmio se destina aos bons; que tormentos, aos maus, a fim de que,
não haja serviço sem temor, nem gozo sem tremor.
25.
Quais devemos ser em nosso conceito, posto que perfeitos.
Ainda que, com auxílio da divina graça desempenhes bem todos os
teus deveres, reconhece-te como servo inútil e como pecador.
Julga-te indigno de todo benefício de Deus, mas conserva sempre
robustíssima a fé, cheio de amor divino, esperando com máxima
confiança que pelo mesmo misericordiosíssimo Pai ser-te-ão abertas
as entranhas da misericórdia, para que – depois de,
infatigavelmente, haveres lançado com profunda humildade os
alicerces solidíssimos da fé, e depois de haveres levantado os
brilhantíssimos muros de uma caridade contínua e fervorosa,
adornados com as decorações de todas as virtudes, e depois de teres
colocado glorioso teto da desejada esperança felicíssima por fim,
dispostas em ordem todas as coisas, o supremo Morador dos Céus e
doce Hóspede das almas fiéis, cujas “delícias
consistem em viver com os filhos dos homens”,
se
digne habitar longo tempo contigo, por meio da graça, no presente
desterro até que, depois do remate desta vida, mereças ver com
júbilo, em companhia de Todos os Santos, revestido da gloriosa veste
da imortalidade perpétua, a claridade de sua face na pátria da
Bem-aventurança celeste, onde haverá suma felicidade e alegria
sempiterna, fim e complemento de todos os nossos desejos.
Conclusão
Além
do mais, fica sabendo e convence-te disso, irmão caríssimo, que se
não te abnegares totalmente a ti mesmo, não poderás seguir as
pegadas do Salvador, que sem esforços contínuos não conseguirás
obter a Sua graça; que, se não bateres assiduamente à Sua porta,
não ingressarás na paz da alma; e que, se não te mantiveres forte
no temor de Deus, logo desmoronar-se-á tua casa e cairá no abismo.
Ao contrário, se praticares fiel e constantemente as sobreditas
verdades, espero na misericórdia do Salvador, que Ele te fará digno
da Sua graça na presente vida e que com Ele fruirás da Sua glória
na futura. Amém.
Caríssimo, escrevi-te estas coisas não por crer que tu delas
tivesses necessidade, mas porque as colhera para mim mesmo, já que
conheço quão pequena é a minha constância. Pensei em enviá-las a
ti, meu fiel auxiliar, a fim de que aquilo que foi omitido pela
fraqueza e a negligência de minha tibieza, seja completado pela
magnanimidade e a solicitude de teu fervor, principalmente porque sei
que concordando comigo, te alegras em quase todos meus desejos,
mesmos nos mais simples. Por isso, caríssimo, rogo-te que recebas
estas linhas com aquela caridade com a qual sei que as enviei a ti
com afeição e devoção, a fim de que, estas coisas todas – “cuja
observância no presente não parece ser causa de alegria, mas de
temor” – pelo exercício dos
estudos celestes aprendas a obtê-la de tal modo que no futuro
produzam o “suavíssimo fruto da justiça”,
e na doce memória de sua
expectativa a tua alma já no presente seja repleta da abundância e
da plenitude dele em Cristo Jesus, Nosso Senhor, a quem nas orações
de tua devoção recomendarás a mim, árido e falador mais do que
devoto. “À Ele a honra e a glória, o decoro e o
império, pelos infinitos séculos dos séculos. Amém”.
_________________________
Fonte:
“Escritos Espirituais
de São Boaventura” –
Opúsculo “25 Memoriais
sobre a Vida Espiritual”.
Escolhidos e traduzidos por Frei Saturnino Schneider, O.F.M., Editora
Vozes Ltda, Petrópolis/RJ,1937.