NOTRE
CHARGE APOSTOLIQUE
Sobre
os erros do Sillon
Carta
Apostólica do Papa S. Pio X
promulgada
em 25 de Agosto de 1910
Introdução
Ao
"Sillon" não faltavam relevantes qualidades
Mas
era ainda maior a gravidade de seus defeito
Que
forçaram o Papa a condená-lo
I.
Erros do "Sillon"
O
"Sillon" procura furtar-se à Autoridade da Igreja
As
tendências igualitárias do "Sillon"
As
doutrinas subversivas e revolucionárias do "Sillon"
II.
Refutação dos Erros
Sobre
a autoridade, a liberdade e a obediência
Sobre
a justiça e a igualdade
Sobre
a fraternidade
Sobre
a dignidade humana
III.
Conduta Prática do "Sillon"e sua ação social
A
estrutura igualitária da organização do "Sillon"
O
espírito anárquico que incute
O
"Sillon" é de uma intolerância odiosa
Exceto
quando se trata dos princípios da Igreja
Um
dos graves erros do "Sillon" é o interconfessionalismo
E
por isto o "Sillon" deixou de ser católico
O
"Sillon" e as tramas dos inimigos da Igreja
O
"Sillon" dá uma idéia desfigurada do divino Redentor
Conclusão
Exortação
ao Episcopado
Os
membros do "Sillon" devem submeter-se
CARTA
APOSTÓLICA
A
nossos amados filhos Pedro-Heitor Coullié, Cardeal Presbítero da
Santa Igreja Romana, Arcebispo de Lyon; Luís-Henrique Luçon,
Cardeal Presbítero da Santa Igreja Romana, Arcebispo de Reims;
Paulino-Pedro Andrieu, Cardeal Presbítero da Santa Igreja Romana,
Arcebispo de Bordéus, e a todos os outros nossos Veneráveis Irmãos
Arcebispos e Bispos da França: Sobre o Sillon.
PIO
X, Papa.
Veneráveis
Irmãos, Saudação e Benção Apostólica.
Introdução
1.
Nosso encargo apostólico Nos impõe o dever de vigiar sobre a pureza
da fé e a integridade da disciplina católica, de preservar os fiéis
dos perigos do erro e do mal, sobretudo quando o erro e o mal lhes
são apresentados numa linguagem atraente, que, encobrindo o vago das ideias e o equívoco das expressões sob o ardor do sentimento e a
sonoridade das palavras, pode inflamar os corações por causas
sedutoras mas funestas. Tais foram, outrora, as doutrinas dos
pretensos filósofos do século XVIII, as da Revolução e as do
Liberalismo, tantas vezes condenadas; tais são ainda hoje as teorias
do Sillon, que, sob aparências brilhantes e generosas, muitas vezes
carecem de clareza, de lógica e de verdade, e, por este aspecto, não
exprimem o gênio católico e francês.
Ao
"Sillon" não faltavam relevantes qualidades.
2.
Durante muito tempo hesitamos, Veneráveis Irmãos, em dizer pública
e solenemente Nosso pensamento sobre o Sillon. Foi necessário que
vossas preocupações se viessem somar às Nossas para que Nos
decidíssemos a fazê-lo. Porque amamos a valente juventude alistada
sob a bandeira do Sillon, e a julgamos digna, por muitos aspectos, de
elogio e de admiração. Amamos seus chefes, em que Nos é grato
reconhecer almas elevadas, superiores às paixões vulgares e
animadas do mais nobre entusiasmo pelo bem. Vós os vistes,
Veneráveis Irmãos, penetrados de um sentimento muito vivo de
fraternidade humana, ir ao encontro daqueles que trabalham e sofrem
para os levantar, animados no seu devotamento pelo amor a Jesus
Cristo e pela prática exemplar da religião.
3.
Foi nos dias seguintes à memorável Encíclica de Nosso predecessor,
de feliz memória, Leão XIII, sobre a condição dos operários. A
Igreja, pela boca de seu Chefe supremo, havia derramado sobre os
humildes e os pequenos todas as ternuras do seu coração materno, e
parecia convocar, por seus anelos, campeões sempre mais numerosos da
restauração da ordem e da justiça em nossa sociedade perturbada.
Os fundadores do Sillon não vinham, no momento oportuno, colocar a
seu serviço esquadrões jovens e crentes para a realização de seus
desejos e de suas esperanças? E, de fato, o Sillon levantou, entre
as classes operárias, o estandarte de Jesus Cristo, o sinal da
salvação para os indivíduos e as nações, alimentando sua
atividade social nas fontes da graça, impondo o respeito da religião
nos ambientes menos favoráveis, habituando os ignorantes e os ímpios
a ouvir falar de Deus, e, muitas vezes, em conferências
contraditórias, em face de um auditório hostil, levantando-se, estimulados por uma questão ou por um sarcasmo, para proclamar alta
e briosamente a sua fé. Eram os bons tempos do Sillon; era o seu
lado bom, que explica os encorajamentos e as aprovações que não
lhe regatearam o episcopado e a Santa Sé, enquanto este fervor
religioso pode encobrir o verdadeiro caráter do movimento
sillonista.
Mas
era ainda maior a gravidade de seus defeitos.
4.
Porque, é necessário dizê-lo, Veneráveis Irmãos, nossas
esperanças, em grande parte, foram ludibriadas. Houve um dia em que
o Sillon começou a manifestar, para olhares clarividentes,
tendências inquietantes. O Sillon se desorientava. Podia ser de
outra forma? Seus fundadores, jovens, entusiastas e cheios de
confiança em si mesmos, não estavam suficientemente armados de
ciência histórica, de sã filosofia e de forte teologia para
afrontar, sem perigo, os difíceis problemas sociais, para os quais
tinham sido arrastados por sua atividade e por seu coração, e para
se premunir, no terreno da doutrina e da obediência, contra as
infiltrações liberais e protestantes.
Que
forçaram o Papa a condená-lo.
5.
Os conselhos não lhes faltaram, e, após os conselhos, vieram as
admoestações. Mas tivemos a dor de ver que tanto uns como outras
deslizavam sobre suas almas fugitivas, e ficavam sem resultado. As
coisas vieram assim a tal ponto que Nós trairíamos Nosso dever, se,
por mais tempo, guardássemos silêncio. Devemos a verdade a nossos
caros filhos do Sillon, que um ardor generoso arrebatou para um
caminho tão falso quanto perigoso. Devemo-la a um grande número de
seminaristas e de padres que o Sillon subtraiu, senão à autoridade,
pelo menos à direção e à influência de seus Bispos. Devemo-la,
enfim, à Igreja, onde o Sillon semeia a divisão, e cujos interesses
compromete.
I.
Erros do "Sillon"
O
"Sillon" procura furtar-se à Autoridade da Igreja.
6.
Em primeiro lugar, convém censurar severamente a pretensão do
Sillon de escapar à direção da Autoridade Eclesiástica. Os chefes
do Sillon, com efeito, alegam que se movem num terreno que não é o
da Igreja; que só têm em vista interesses de ordem temporal e não
de ordem espiritual; que o sillonista é simplesmente um católico
dedicado à causa das classes trabalhadoras, às obras democráticas,
e que haure nas práticas de sua fé a energia de seu devotamento;
que nem mais nem menos que os artífices, os trabalhadores, os
economistas e os políticos católicos, ele se acha submetido às
regras de moral comuns a todos, sem estar subordinado, nem mais nem
menos do que aqueles, de uma forma especial à autoridade
eclesiástica.
7.
A resposta a estes subterfúgios não é senão demasiado fácil. A
quem se fará crer, com efeito, que os sillonistas católico, que os
padres e os seminaristas alistados em suas fileiras só têm em
vista, em sua atividade social, o interesse temporal das classes
trabalhadoras? Sustentar tal coisa, pensamos, seria fazer-lhes
injúria. A verdade é que os chefes do Sillon se proclamam
idealistas irredutíveis, que pretendem reerguer as classes
operárias, reerguendo, antes de mais nada, a consciência humana;
que têm uma doutrina social e princípios filosóficos e religiosos
para reconstruir a sociedade sobre um novo plano; que têm uma
concepção especial sobre a dignidade humana, a liberdade, a justiça
e a fraternidade, e que, para justificar seus sonhos sociais, apelam
para o Evangelho, interpretando à sua maneira, e, o que é ainda
mais grave, para um Cristo desfigurado e diminuído. Além disso,
estas ideias eles as ensinam em seus círculos de estudo, eles as
inculcam a seus companheiros, eles as fazem penetrar em suas obras.
São, pois, verdadeiramente, professores de moral social, cívica e
religiosa, e, quaisquer que sejam as modificações que possam
introduzir na organização do movimento sillonista, temos o direito
de dizer que a finalidade do Sillon, seu caráter, sua ação
pertencem ao domínio moral, que é o domínio próprio da Igreja, e
que, em consequência, os sillonistas se iludem quando creem mover-se num terreno em cujos confins expiram os direitos do poder
doutrinário e diretivo da Autoridade Eclesiástica.
8.
Se suas doutrinas fossem isentas de erro, já teria sido uma falta
muito grave à disciplina católica o subtrair-se obstinadamente à
direção daqueles que receberam do céu a missão de guiar os
indivíduos e as sociedades no reto caminho da verdade e do bem. Mas
o mal é mais profundo, já o dissemos: o Sillon, arrastado por um
mal compreendido amor dos fracos, descambou para o erro.
As
tendências igualitárias do "Sillon".
9.
Com efeito, o Sillon se propõe o reerguimento e a regeneração das
classes operárias. Ora, sobre esta matéria os princípios da
doutrina católica são fixos, e a história da civilização cristã
aí está para atestar sua fecundidade benfazeja. Nosso Predecessor,
de feliz memória, recordou-os em páginas magistrais, que os
católicos ocupados em questões sociais devem estudar e ter sempre
sob os olhos. Ensinou, de modo especial, que a democracia cristã
deve "manter a diversidade das classes, que é seguramente o
próprio da cidade bem constituída, e querer para a sociedade humana
a forma e o caráter de Deus, seu autor, lhe imprimiu". Censurou
"uma certa democracia que vai até aquele grau de perversidade
de atribuir, na sociedade, a soberania ao povo e de pretender a
supressão e o nivelamento das classes". Ao mesmo tempo, Leão
XIII impunha aos católicos um programa de ação, o único programa
capaz de recolocar e de manter a sociedade sobre suas bases cristãs
seculares. Ora, que fizeram os chefes do Sillon? Não somente
adotaram um programa e um ensinamento diferentes dos de Leão XIII (o
que já seria singularmente audacioso da parte de leigos, que se
colocam, assim, em concorrência com o Soberano Pontífice, como
diretores da atividade social da Igreja); mas rejeitaram abertamente
o programa traçado por Leão XIII, e adotaram um outro, que lhe é
diametralmente oposto; além disso, rejeitam a doutrina relembrada
por Leão XIII sobre os princípios essenciais da sociedade, colocam
a autoridade no povo ou quase a suprimem, e toma, como ideal por
realizar, o nivelamento das classes. Caminham, pois, ao revés da
doutrina católica, para um ideal condenado.
10.
Bem sabemos que se gabam de reerguer a dignidade humana e a condição
demasiado desprezada das classes trabalhadoras, de tornar justas e
perfeitas as leis do trabalho e as relações entre capital e os
assalariados, enfim, de fazer reinar sobre a terra uma justiça
melhor, e mais caridade, e de, por movimentos sociais profundos e
fecundos, promover na humanidade um progresso inesperado. E,
certamente, não condenamos estes esforços, que seriam excelentes,
sob todos os aspectos, se os sillonistas não esquecessem que o
progresso de um ser consiste em fortificar suas faculdades naturais
por novas energias e facilitar o jogo de sua atividade no quadro e de
acordo com as leis de sua constituição; e que, pelo contrário,
ferindo seus órgãos essenciais, quebrando o quadro de suas
atividades, impele-se o ser não para o progresso, mas para a morte.
Entretanto, é isto que eles querem fazer com a sociedade humana; seu
sonho consiste em trocar-lhe as bases naturais e tradicionais e
prometer uma cidade futura edificada sobre outros princípios, que
ousam declarar mais fecundos, mais benfazejos do que os princípios
sobre os quais repousa a atual cidade cristã.
11.
Não, Veneráveis Irmãos – e é preciso lembrá-lo energicamente
nestes tempos de anarquia social e intelectual, - a cidade não será
construída de outra forma senão aquela pela qual Deus a construiu; a
sociedade não será edificada se a Igreja não lhe lançar as bases
e não dirigir os trabalhos; não, a civilização não mais está
para ser inventada nem a cidade nova para ser construída nas nuvens.
Ela existiu, ela existe; é a civilização cristã, é a cidade
católica. Trata-se apenas de instaurá-la e restaurá-la sem cessar
sobre seus fundamentos naturais e divinos contra os ataques sempre
renascentes da utopia malsã, da revolta e da impiedade: omnia
instaurare in Christo. E para que não Nos acusem de julgar muito
sumariamente e com rigor não justificado as teorias sociais do
Sillon, queremos rememorar-lhe os pontos essenciais.
As
doutrinas subversivas e revolucionárias do "Sillon".
12.
O Sillon tem a nobre preocupação da dignidade humana. Mas esta
dignidade é compreendida ao modo de certos filósofos, que a Igreja
está longe de poder aprovar. O primeiro elemento desta dignidade é
a liberdade, entendida neste sentido que, salvo em matéria de
religião, cada homem é autônomo. Deste princípio fundamental tira
as seguintes conclusões: Hoje em dia, o povo está sob tutela,
debaixo de uma autoridade que é distinta dele, e da qual se deve
libertar: emancipação política. Está sob a dependência de
patrões que, detendo seus instrumentos de trabalho, o exploram, o
oprimem e o rebaixam; deve sacudir seu jugo: emancipação econômica.
Enfim, é dominado por uma casta chamada dirigente, à qual o
desenvolvimento intelectual assegura uma preponderância indevida na
direção dos negócios; deve subtrair-se à sua dominação:
emancipação intelectual. O nivelamento das condições, deste
tríplice ponto de vista, estabelecerá entre os homens a igualdade,
e esta igualdade é a verdadeira justiça humana. Uma organização
política e social fundada sobre esta dupla base, liberdade e
igualdade (às quais logo virá acrescentar-se a fraternidade), eis o
que eles chamam Democracia.
13.
No entanto, a liberdade e a igualdade não constituem senão o lado,
por assim dizer, negativo. O que faz, própria e positivamente, a
Democracia é a participação maior possível de cada um no governo
da coisa pública. E isto compreende um tríplice elemento, político,
econômico e moral.
14.
Em primeiro lugar, em política, o Sillon não abole a autoridade;
pelo contrário, considera-a necessária; mas a quer partilhar, ou
para melhor dizer, a quer multiplicar de tal modo que cada cidadão
se tornará uma espécie de rei. A autoridade, é certo, emana de
Deus, mas reside primordialmente no povo e daí deriva por via de
eleição ou, melhor, ainda, de seleção, sem por isto deixar o povo
e se tornar independente dele; ela será exterior, mas somente na
aparência; na realidade, ela será interior, porque será uma
autoridade consentida.
15.
Guardadas as proporções, acontecerá o mesmo na ordem econômica.
Subtraído a uma classe particular, o patronato será multiplicado de
tal modo que cada operário se tornará uma espécie de patrão. A
forma invocada para realizar este ideal econômico não é,
afirma-se, a do socialismo, é um sistema de cooperativa
suficientemente multiplicadas para provocar uma concorrência fecunda
e para salvaguardar a independência dos operários, que não
ficariam adstritos a nenhuma delas.
16.
Eis agora o elemento capital, o elemento moral. Como a autoridade, já
se viu, é muito reduzida, é necessária uma outra força para
completá-la e opor uma reação permanente ao egoísmo individual.
Este novo princípio, esta força, é o amor do interesse
profissional e do interesse público, quer dizer, da finalidade mesma
da profissão e da sociedade. Imaginai uma sociedade onde, na alma de
cada um, com o amor inato do bem individual e do bem familiar,
reinasse o amor do bem profissional e do bem público, onde, na
consciência de cada um, estes amores, se subordinassem de tal modo,
que o bem superior dominasse sempre o bem inferior; uma sociedade não
poderia quase dispensar a autoridade e não ofereceria o ideal da
dignidade humana, cada cidadão tendo uma alma de rei, cada operário
uma alma de patrão? Arrancado à estreiteza de seus interesses
privados e elevado até os interesses de sua profissão e, mais alto,
até os da nação inteira e, mais alto, até os da humanidade
(porque o horizonte do Sillon não se detém nas fronteiras da
pátria, mas se estende a todos os homens até os confins do mundo),
o coração humano, alargado pelo amor do bem comum, abraçaria todos
os companheiros da mesma profissão, todos os compatriotas, todos os
homens. E eis aí a grandeza e a nobreza humana ideal, realizada pela
célebre trilogia: Liberdade, Igualdade, Fraternidade.
17.
Ora, estes três elementos, político, econômico e moral, estão
subordinados um a outro, e é o elemento moral, como dissemos, que é
o principal. Com efeito, nenhuma democracia política é viável se
não tem profundos pontos de contato com a democracia econômica. Por
sua vez, nem uma nem outra são possíveis se não se radicam num
estado de espírito em que a consciência se acha investida de
responsabilidades e de energias morais proporcionadas. Mas, supondo
este estado de espírito, assim feito de responsabilidade consciente
e de forças morais, a democracia econômica daí decorrerá
naturalmente por tradução em atos, desta consciência e destas
energias; e, igualmente, e pela mesma via, do regime corporativo
sairá a democracia política e econômica, esta trazendo aquela, se
acharão fixadas na própria consciência do povo sobre bases
inabaláveis.
18.
Tal é, em resumo, a teoria, poder-se-ia dizer o sonho, do Sillon, e
é para isto que tende seu ensinamento e aquilo que chama a educação
democrática do povo, quer dizer, levar ao máximo a consciência e a
responsabilidade cívicas de cada qual, donde decorrerá a democracia
econômica e política, e o reino da justiça, da liberdade, da
igualdade e da fraternidade.
19.
Esta rápida exposição, Veneráveis Irmãos, já vos mostra
claramente quanto tínhamos razão em dizer que o Sillon opõe
doutrina a doutrina, que edifica sua cidade sobre uma teoria
contrária à verdade católica e que falseia as noções essenciais
e fundamentais que regulam as relações sociais em toda a sociedade
humana. Esta oposição aparecerá com maior clareza ainda nas
seguintes considerações.
II.
Refutação dos Erros
Sobre
a autoridade, a liberdade e a obediência.
20.
O Sillon coloca a autoridade pública primordialmente no povo, do
qual deriva em seguida aos governantes, de tal modo, entretanto, que
continua a residir nele. Ora, Leão XIII condenou formalmente esta
doutrina em sua Encíclica Diuturnum Illud (DP 12) sobre o Principado
Político, onde diz: "Grande número de modernos seguindo as
pegadas daqueles que, no século passado, se deram o nome de
filósofos, declaram que todo o poder vem do povo; que em consequência aqueles que exercem o poder na sociedade não a
exercem como sua própria autoridade, mas como uma autoridade a eles
delegada pelo povo e sob a condição de poder ser revogada pela
vontade do povo, de quem eles a têm. Inteiramente contrário é o
pensamento dos católicos, que fazem derivar de Deus o direito de
mandar, como de seu princípio natural e necessário". Sem
dúvida, o Sillon faz descer de Deus esta autoridade, que coloca em
primeiro lugar no povo, mas de tal forma que "sobe de baixo para
ir ao alto, enquanto na organização da Igreja, o poder desce do
alto para ir até em baixo" (Marc Sangnier, discurso de Rouen,
1907). Mas, além de ser anormal que a delegação suba, pois é
próprio à sua natureza descer, Leão XIII refutou de antemão esta
tentativa de conciliação entre a doutrina católica e o erro do
filosofismo. Pois prossegue: "É necessário observá-lo daqui:
aqueles que presidem ao governo da coisa pública podem bem, em
certos casos, ser eleitos pela vontade e o julgamento da multidão,
sem repugnância nem oposição com a doutrina católica. Mas, se
esta escolha designa o governante, não lhe confere a autoridade de
governar, não lhe delega o poder, apenas designa a pessoa que dele
será investido".
21.
De resto, se o povo continua a ser o detentor do poder, que vem a ser
da autoridade? Uma sombra, um mito; não há mais lei propriamente
dita, não há mais obediência. O Sillon o reconheceu; desde que,
com efeito, reclama, em nome da dignidade humana, a tríplice
emancipação política, econômica e intelectual, a cidade futura,
para a qual trabalha, não mais terá mestres nem servidores; os
cidadãos aí serão todos livres, todos camaradas, todos reis. Uma
ordem, um preceito, seria um atentado à liberdade; a subordinação
a uma qualquer superioridade seria uma diminuição do homem, a
obediência, uma degradação. É assim, Veneráveis Irmãos, que a
doutrina tradicional da Igreja nos representa as relações sociais,
mesmo na cidade mais perfeita possível? Não é verdade que toda
sociedade de criaturas dependentes e desiguais por natureza tem
necessidade de uma autoridade que dirija sua atividade para o bem
comum e imponha sua lei? E se, na sociedade, se encontram seres
perversos (e sempre os haverá), a autoridade não deverá ser tanto
mais forte quanto o egoísmo dos maus for mais ameaçador? Além
disso, pode-se dizer, com uma aparência de razão sequer, que haja
incompatibilidade entre a autoridade e a liberdade, sem que se cometa
um erro grosseiro sobre o conceito da liberdade? Pode-se ensinar que
a obediência é contrária à dignidade humana e o ideal seria
substituí-la pela "autoridade consentida"? Será que o
apóstolo S. Paulo não tinha em vista a sociedade humana, em todas
as suas etapas possíveis, quando prescrevia aos fiéis a submissão
a toda autoridade? Será verdade que a obediência aos homens,
enquanto representantes legítimos de Deus, quer dizer afinal de
contas a obediência a Deus, rebaixa o homem e o avilta abaixo de si
mesmo? Será que o estado religioso, fundado sobre a obediência, é
contrário ao ideal da natureza humana? Será que os santos, que
foram os mais obedientes dos homens, foram escravos e degenerados?
Enfim, poder-se-ia imaginar um estado em que Jesus Cristo, de novo
sobre a terra, não mais desse o exemplo de obediência e não mais
dissesse: Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus?
Sobre
a justiça e a igualdade.
22.
O Sillon, que ensina semelhantes doutrinas e as põe em prática em
sua vida interna, semeia portanto entre a vossa juventude católica
noções erradas e funestas sobre a autoridade, a liberdade e a
obediência. Outra coisa não acontece quanto à justiça e à
igualdade. Trabalha, como afirma, para realizar uma era de melhor
justiça. Assim, para ele, toda desigualdade de condição é uma
injustiça ou, pelo menos, uma justiça menor! Princípio
soberanamente contrário à natureza das coisas, gerador de inveja e
de injustiça, subversivo de toda a ordem social. Assim, só na
democracia inaugurará o reino da perfeita justiça! Não é isto uma
injúria às outras formas de governo que são rebaixadas, por este
modo, à categoria de governos impotentes, apenas toleráveis! De
resto o Sillon, ainda sobre este ponto, vai de encontro ao
ensinamento de Leão XIII. Poderia Ter lido na Encíclica já citada
sobre o Principado Político que, "salvaguardada a justiça, aos
povos não é interdito escolher o governo que melhor responda a seu
caráter ou às instituições e costumes que receberam dos
antepassados", e a Encíclica faz alusão à tríplice forma de
governo bem conhecida. Supõe, portanto, que a justiça é comparável
com cada uma delas. E a Encíclica sobre a condição dos operários
não afirma claramente a possibilidade de restaurar-se a justiça nas
organizações atuais da sociedade, pois que indica os meios para
isso? Ora, sem dúvida alguma, Leão XIII queria falar não de uma
justiça qualquer, mas da justiça perfeita. Ensinando, pois, que a
justiça é compatível com as três formas de governo em questão,
ensinava que, sob este aspecto, a Democracia não goza de um
privilégio especial. Os "sillonistas", que pretendem o
contrário, ou recusam ouvir a Igreja ou têm da justiça e da
igualdade um conceito que não é católico.
Sobre
a fraternidade.
23.
O mesmo acontece com a noção da fraternidade, cuja base colocam no
amor dos interesses comuns, ou, além de todas as filosofias e de
todas as religiões, na simples noção de humanidade, englobando
assim no mesmo amor e numa igual tolerância todos os homens com
todas as suas misérias, tanto as intelectuais e morais como as
físicas e temporais. Ora, a doutrina católica nos ensina que o
primeiro dever da caridade não está na tolerância das convicções
errôneas, por sinceras que sejam , nem da indiferença teórica e
prática pelo erro ou o vício, em que vemos mergulhados nossos
irmãos, mas no zelo pela sua restauração intelectual e moral, não
menos que por seu bem-estar material. Esta mesma doutrina católica
nos ensina também que a fonte do amor do próximo se acha no amor de
Deus, Pai comum e fim comum de toda a família humana, no amor de
Jesus Cristo, do qual somos membros a tal ponto que consolar um
infeliz é fazer o bem ao próprio Jesus Cristo. Qualquer outro amor
é ilusão ou sentimento estéril e passageiro. Certamente, a
experiência humana aí está, nas sociedades pagãs iy leigas de
todos os tempos, para provar que, em certos momentos, a consideração
dos interesses comuns ou da semelhança de natureza pesa muito pouco
diante das paixões e concupiscências do coração. Não, Veneráveis
Irmãos, não existe verdadeira fraternidade fora da caridade cristã,
que, pelo amor de Deus e de seu Filho Jesus Cristo nosso Salvador,
abrange todos os homens, para consolar todos, e para os conduzir
todos à mesma fé e à mesma felicidade do céu. Separando a
fraternidade da caridade cristã assim entendida, a democracia, longe
de ser um progresso, constituiria um desastroso recuo para a
civilização. Porque, se se chegar, e Nós o desejamos de toda a
nossa alma, à maior soma possível de bem-estar para a sociedade e
para cada um de seus membros pela fraternidade, ou, como se diz
ainda, pela solidariedade universal, é necessária a união dos
espíritos na verdade, a união das vontades na moral, a união dos
corações no amor de Deus e de seu filho Jesus Cristo. Ora, esta
união só poderá ser realizada pela caridade católica, que é a
única, por consequência, que pode conduzir os povos no caminho do
progresso, para o ideal da civilização.
Sobre
a dignidade humana.
24.
Enfim, na base de todas as falsificações das noções sociais
fundamentais, o Sillon coloca uma falsa ideia da dignidade humana.
Segundo ele, o homem só será verdadeiramente homem, digno desse
nome, no dia em que adquirir uma consciência esclarecida, forte,
independente, autônoma, podendo dispensar os mestres, só obedecendo
a si própria, e capaz de assumir e desempenhar, sem falhas, as mais
graves responsabilidades. Eis algumas destas grandes palavras com as
quais se exalta o sentimento do orgulho humano; tal como um sonho,
que arrasta o homem, sem luz, sem guia e sem auxílio, pelo caminho
da ilusão, em que, esperando o grande dia da plena consciência,
será devorado pelo erro e pelas paixões. E este grande dia, quando
virá? A menos que se mude a natureza humana (o que não está no
poder do Sillon), virá ele alguma vez? Será que os santos, que
levaram ao apogeu a dignidade humana, tiveram esta dignidade? E os
humildes da terra, que não podem subir tão alto e se contentam com
traçar modestamente seu sulco (tracer modestement son sillon) na
classe social que lhes designou a Providência, cumprindo
energicamente seus deveres na humildade, na obediência e na
paciência cristãs, não seriam eles dignos do nome de homens, aos
quais o Senhor há de tirar um dia de sua condição obscura para
colocar no céu, entre os príncipes de seu povo?
Suspendemos
aqui nossas reflexões sobre os erros do Sillon. Não pretendemos
esgotar o assunto, pois que ainda poderíamos chamar vossa atenção
sobre outros pontos igualmente falsos e perigosos, por exemplo, sobre
a maneira de compreender o poder coercitivo da Igreja. Importa,
contudo, examinar agora a influência destes erros sobre a conduta
prática do Sillon e sobre a sua ação social.
III.
Conduta Prática do "Sillon" e sua ação social
A
estrutura igualitária da organização do "Sillon".
25.
As doutrinas do Sillon não ficam apenas nos domínios da abstração
filosófica. Elas são ensinadas à juventude católica, e, bem mais
do que isso, procurasse vivê-las. O Sillon se considera como o
núcleo da cidade futura; reflete-a, pois, tão fielmente quanto
possível. Com efeito, não existe hierarquia no Sillon. A elite que
o dirige separa-se da massa por seleção, quer dizer, impondo-se por
sua autoridade moral e por suas virtudes. Nele se entra livremente,
como livremente dele se sai. Os estudos aí se fazem sem mestre,
quando muito com um conselheiro. Os círculos de estudos são
verdadeiras cooperativas intelectuais, onde cada um é ao mesmo tempo
aluno e mestre. A camaradagem mais absoluta reina entre os membros, e
põe em total contato suas almas: daí a alma comum do Sillon.
Definiram-na "uma amizade". Mesmo o padre, quando nele
ingressa, abaixa a eminente dignidade de seu sacerdócio e, pela mais
estranha inversão de papéis, se faz aluno, se põe no nível de
seus jovens amigos e não é mais do que um camarada.
O
espírito anárquico que incute.
26.
Nestes hábitos democráticos, e nas doutrinas sobre a cidade ideal
que os inspiram, reconhecereis, Veneráveis Irmãos, a causa secreta
das faltas disciplinares que, tantas vezes, tiverdes de recriminar ao
Sillon. Não é de espantar que não tenhais encontrado nos chefes e
nos seus companheiros assim formados, fossem seminaristas ou padres,
o respeito, a docilidade e a obediência que são devidos às vossas
pessoas e à vossa autoridade; que tenhais experimentado da parte
deles uma surda oposição, e que tenhais tido o pesar de os ver
subtrair-se totalmente, ou, quando a isto forçados pela obediência,
entregar-se com desgosto às obras não sillonistas. Vós sois o
passado, eles são os pioneiros da civilização futura. Vós
representais a hierarquia, as desigualdades sociais, a autoridade e a
obediência: instituições envelhecidas, ante as quais suas almas,
embevecidas por um outro ideal, não mais se podem dobrar. Temos
sobre este estado de espírito o testemunho de fatos dolorosos,
capazes de arrancar lágrimas, e não podemos, apesar de nossa
longanimidade, reprimir um justo sentimento de indignação. Pois há
quem inspire à vossa juventude católica a desconfiança para com a
Igreja sua mãe; ensina-se-lhe que, decorridos 19 séculos, ela ainda
não conseguiu no mundo constituir a sociedade sobre suas verdadeiras
bases; que ela não compreendeu as noções sociais da autoridade, da
liberdade, da igualdade, da fraternidade e da dignidade humana; que
os grandes bispos e os grandes monarcas, que criaram e tão
gloriosamente governaram a França, não souberam dar ao seu povo nem
a verdadeira justiça, nem a verdadeira felicidade, porque eles não
tinham o ideal do Sillon!
O
sopro da Revolução passou por aí, e podemos concluir que, se
as doutrinas sociais do Sillon são erradas, seu espírito é
perigoso e sua educação funesta.
O
"Sillon" é de uma intolerância odiosa.
27.
Mas então, que devemos pensar de sua ação na Igreja, se seu
catolicismo é tão melindroso que, por mais um pouco, quem não
abraçasse a sua causa seria a seus olhos um inimigo interior do
catolicismo, e nada teria compreendido do Evangelho e de Jesus
Cristo? Julgamos conveniente insistir sobre esta questão, porque foi
precisamente seu ardor católico que valeu ao Sillon, até estes
últimos tempos, preciosos encorajamentos e ilustres sufrágios. Pois
bem! Perante as palavras e os fatos, somos obrigados a dizer que, em
sua ação como em sua doutrina, o Sillon não dá satisfação à
Igreja.
28.
Em primeiro lugar, seu catolicismo só se acomoda com a forma
democrática de governo, que julga ser a mais favorável à Igreja, e
como que se confundindo com ela; portanto, entenda sua religião a um
partido político, Não precisamos demonstrar que o advento da
democracia universal não tem importância para a ação da Igreja no
mundo; já temos lembrado que a Igreja sempre deixou às nações o
cuidado de se dar o governo que consideram mais vantajoso para seus
interesses. O que Nós queremos afirmar ainda uma vez após nosso
predecessor, é que há erro e perigo em enfeudar, por princípio, o
catolicismo a uma forma de governo; erro e perigo que são tanto
maiores quando se sintetiza a religião com um gênero de democracia
cujas doutrinas são erradas. Ora, é o caso do Sillon, o qual, de
fato, e em favor de uma forma política especial, comprometendo a
Igreja, divide os católicos, arranca a juventude e mesmo padres e
seminaristas à ação simplesmente católica, e esbanja, em pura
perda, as forças vivas de uma parte da nação.
Exceto
quando se trata dos princípios da Igreja.
29.
E reparai, Veneráveis Irmãos, numa estranha contradição. É
precisamente porque a religião deve dominar todos os partidos, é
invocando este princípio que o Sillon se abstém de defender a
Igreja atacada. Certamente não foi a Igreja que desceu à arena
política; arrastaram-na para aí, e para a mutilar, e para a
despojar. O dever de todo o católico não consiste, então, em usar
das armas políticas, que tem à mão, para defendê-la e também
para forçar a política a ficar em seu domínio e a não se ocupar
da Igreja, a não ser para lhe dar o que é devido? Pois bem! Em face
da Igreja assim violentada, muitas vezes se tem a dor de ver os
sillonistas cruzar os braços, a não ser que eles achem vantajoso
defendê-la; vemo-los ditar ou sustentar um programa que em nenhum
lugar nem no menor grau revela o espírito católico. O que não
impede que estes mesmos homens, em plena luta política, sob o golpe
de uma provocação, façam pública ostentação de sua fé. Isto
que quer dizer senão que há dois homens nos sillonistas: o
indivíduo que é católico; o sillonista, homem de ação, que é
neutro.
Um
dos graves erros do "Sillon" é o interconfessionalismo.
30.
Houve um tempo em que o Sillon, como tal, era formalmente católico.
Em matéria de força moral, só conhecia uma, a força católica, e
ia proclamando que a democracia havia de ser católica, ou não seria
democracia. Em dado momento, entretanto, mudou de parecer. Deixou a
cada um em sua religião ou sua filosofia. Ele próprio deixou de se
qualificar de "católico", e a fórmula "A democracia
há de ser católica" substitui-a por esta "A democracia
não há de ser anticatólica", tanto quanto, aliás,
antijudaica ou antibudista. Foi a época do "maior Sillon".
Todos os operários de todas as religiões e de todas as seitas foram
convocados para a construção da cidade futura. Outra coisa não se
lhes pediu a não ser que abraçassem o mesmo ideal social, que
respeitassem todas as crenças e que trouxessem um saldo das forças
morais. Certamente, proclamava-se, "os chefes do Sillon põem
sua fé religiosa acima de tudo. Mas podem recusar aos outros o
direito de hauri-la na fé católica. Pedem, pois, a todos aqueles
que querem transformar a sociedade presente no sentido da democracia,
que não se repilam mutuamente por causa de convicções filosóficas
ou religiosas que os possam separar mas que marchem de mãos dadas,
não renunciando a suas convicções, mas experimentando fazer, sobre
o terreno das realidades práticas, a prova da excelência de suas
convicções pessoais. Talvez que neste terreno de emulação entre
almas ligadas a diferentes convicções religiosas ou filosóficas a
união se possa realizar" (Marc Sangnier, Discurso de Rouen,
1907). E ao mesmo tempo se declarou (de que modo isto se poderia
realizar?) que o pequeno Sillon católico seria a alma do grande
Sillon cosmopolita.
31.
Recentemente, desapareceu o nome do grande "maior Sillon",
e houve a intervenção de uma nova organização que em nada
modificou, bem pelo contrário, o espírito e o fundo das coisas
"para por ordem no trabalho, e organizar as diversas formas de
atividade. O Sillon continua sempre a ser uma alma, um espírito, que
se misturará aos grupos e inspirará sua atividade". E a todos
os novos agrupamentos, tornados autônomos na aparência: católicos,
protestantes, livres-pensadores, se pede que se ponham a trabalhar.
"Os camaradas católicos se esforçarão entre si próprios,
numa organização especial, por se instruir e se educar. Os
democratas protestantes e livres-pensadores farão o mesmo de seu
lado. Todos, católicos, protestantes e livres-pensadores terão em
mira armar a juventude não para uma luta fratricida, mas para uma
generosa emulação no terreno das virtudes sociais e cívicas"
(Marc Sangnier, Paris, Maio de 1910).
32.
Estas declarações e esta nova organização da ação sillonista
provocam bem graves reflexões. Eis uma associação
interconfessional, fundada por católicos, para trabalhar na reforma
da civilização moral sem a verdadeira religião: é uma verdade
demonstrada, é um fato histórico. E os novos sillonistas não
poderão pretextar que só trabalharão "no terreno das
realidades práticas" onde a diversidade das crenças não
importa. Seu chefe tão bem percebe esta influência das convicções
do espírito sobre o resultado da ação, que os convida, qualquer
que seja a religião a que pertençam, a "fazer no terreno das
realidades práticas a prova da excelência de suas convicções
pessoais". E com razão, porque as realizações práticas
revestem o caráter das convicções religiosas, como os membros de
um corpo, até as últimas extremidades, recebem sua forma do
princípio vital que o anima.
33.
Isto posto, que se deve pensar da promiscuidade em que se acharão
agrupados os jovens católicos com heterodoxos e incrédulos de todas
as espécies, numa obra desta natureza? Esta não será mil vezes
mais perigosa para eles do que uma associação neutra? Que se deve
pensar deste apelo a todos os heterodoxos e a todos os incrédulos
para virem provar a excelência de suas convicções no terreno
social, numa espécie de concurso apologético, como se este concurso
já não durasse há 19 séculos, em condições menos perigosas para
a fé dos fiéis e sempre favorável à Igreja Católica? Que se deve
pensar deste respeito a todos os erros e deste estranho convite,
feito por um católico a todos os dissidentes, fortificarem suas
convicções pelo estudo e delas fazer as fontes sempre mais
abundantes de novas forças? Que se deve pensar de uma associação
em que todas as religiões, e mesmo o livre-pensamento, podem
manifestar-se altamente à vontade? Porque os sillonistas que, nas
conferências públicas e em outras ocasiões proclamam altivamente
sua fé individual, não pretendem certamente fechar a boca aos
outros e impedir que o protestante afirme seu protestantismo e o
cético, seu ceticismo. Que pensar, enfim, de um católico que, ao
entrar em seu círculo de estudos, deixa na porta seu catolicismo,
para não assustar seus camaradas que, "sonhando com uma ação
social desinteressada, têm repugnância de a fazer servir ao triunfo
de interesses, de facções, ou mesmo de convicções, quaisquer que
sejam"? Tal é a profissão de fé na nova Comissão Democrática
de Ação Social, que herdou a maior tarefa da antiga organização,
e que, assim afirma, "desfazendo o equívoco em torno do maior
Sillon, tanto nos meios reacionários como nos meios anticlericais",
está aberta a todos os homens "respeitadores das forças morais
e religiosas e convencidos de que nenhuma emancipação social
verdadeira será possível sem o fermento de um generoso idealismo".
34.
Ah, sim! O equívoco está desfeito; a ação social do Sillon não é
mais católica; o sillonista, como tal não trabalha para uma facção,
e "a Igreja, ele o diz, não deveriam por nenhum título, ser a
beneficiária das simpatias que sua ação possa suscitar".
Insinuação estranha, em verdade! Teme-se que a Igreja se aproveite,
com objetivo egoísta e interesseiro, da ação social do Sillon,
como se tudo o que aproveita à Igreja não aproveitasse à
humanidade! Estranha inversão de ideias: a Igreja é que seria
beneficiária da ação social, como se os maiores economistas já
não houvessem reconhecido e demonstrado que a ação social é que,
para ser real e fecunda, deve beneficiar-se da Igreja. Porém, mais
estranhas ainda, ao mesmo tempo inquietantes e acabrunhadoras, são a
audácia e a ligeireza de espírito de homens que se dizem católicos,
e que sonham refundir a sociedade em tais condições, e estabelecer
sobre a terra, por cima da Igreja Católica, "o reino da justiça
e do amor", com operários vindos de toda parte, de todas as
religiões ou sem religião, com ou sem crenças, contando que se
esqueçam do que os divide: suas convicções religiosas e
filosóficas, e ponham em comum aquilo que os une: um generoso
idealismo e forças morais adquiridas "onde possam", Quando
se pensa em tudo que foi preciso de forças, de ciência, de virtudes
sobrenaturais para estabelecer a cidade cristã, e nos sofrimentos de
milhões de mártires, e nas luzes dos Padres e Doutores da Igreja, e
no devotamento de todos os heróis da caridade, e numa poderosa
Hierarquia nascida no céu, e nas torrentes da graça divina, e tudo
isto edificado, travado, compenetrado pela Vida e pelo Espírito de
Jesus Cristo, a Sabedoria de Deus, o Verbo feito homem; quando se
pensa, dizíamos, em tudo isto edificado, fica-se atemorizado ao ver
novos apóstolos se encarniçarem por fazer melhor, através da
atuação dum vago idealismo e de virtudes cívicas. Que é que sairá
desta colaboração? Uma construção puramente verbal e quimérica,
em que se verão coruscar promiscuamente, e numa confusão sedutora,
as palavras liberdade, justiça, fraternidade e amor, igualdade e
exaltação humana, e tudo baseado numa dignidade humana mal
compreendida. Será uma agitação tumultuosa, estéril para o fim
proposto, e que aproveitará aos agitadores de massas, menos
utopistas. Sim, na realidade, pode-se dizer que o Sillon escolta o
socialismo, o olhar fixo numa quimera.
35.
Tememos que ainda haja pior. O resultado desta promiscuidade em
trabalho, o beneficiário desta ação social cosmopolita só poderá
ser uma democracia, que não será nem católica, nem protestante,
nem judaica; uma religião (porque o sillonismo, os chefes o
afirmaram, é uma religião) mais universal do que a Igreja Católica,
reunindo todos os homens tornados enfim irmãos e camaradas "no
reino de Deus". – "Não se trabalha pela Igreja,
trabalha-se pela humanidade".
E
por isto o "Sillon" deixou de ser católico.
36.
E agora, penetrado da mais viva tristeza, perguntamo-Nos, Veneráveis
Irmãos, aonde foi parar o catolicismo do Sillon. Ah! Ele, que dava
outrora tão belas esperanças esta torrente límpida e impetuosa foi
captada em sua marcha pelos inimigos modernos da Igreja, e agora já
não é mais do que um miserável afluente do grande movimento de
apostasia organizada, em todos os países, para o estabelecimento de
uma Igreja universal que não terá nem dogmas, nem hierarquia, nem
regra para o espírito, nem freio para as paixões, e que sob o
pretexto de liberdade e de dignidade humana, restauraria no mundo, se
pudesse triunfar, o reino legal da fraude e da violência, e a
opressão dos fracos, daqueles que sofrem e que trabalham.
O
"Sillon" e as tramas dos inimigos da Igreja.
37.
Conhecemos demasiado bem os sombrios laboratórios, em que se
elaboram estas doutrinas deletérias, que não deveriam seduzir
espíritos clarividentes. Os chefes do Sillon não souberam
evitá-las: a exaltação de seus sentimentos, a cega bondade de seu
coração, seu misticismo filosófico misturado com um tanto de
iluminismo os impeliram para um novo Evangelho do Salvador, a tal
ponto que ousam tratar Nosso Senhor Jesus Cristo com uma
familiaridade soberanamente desrespeitosa, e que, sendo o seu ideal
aparentado com o da Revolução, não temem fazer entre o Evangelho e
a Revolução aproximações blasfematórias, que não têm a escusa
de haverem escapado a alguma improvisação tumultuosa.
O
"Sillon" dá uma ideia desfigurada do divino Redentor.
38.
Queremos chamar vossa atenção, Veneráveis Irmãos, sobre esta
deformação do Evangelho e do caráter sagrado de Nosso Senhor Jesus
Cristo, Deus e Homem, praticada no Sillon e algures. Desde que se
aborda a questão social, está na moda, em certos meios, afastar
primeiro a divindade de Jesus Cristo, e depois só falar de sua
soberana mansidão, de sua compaixão por todas as misérias humanas,
de suas instantes exortações ao amor do próximo e fraternidade.
Certamente, Jesus nos amou com um amor imenso, infinito, e veio à
terra sofrer e morrer, a fim de que, reunidos em redor dele na
justiça e no amor, animados dos mesmos sentimentos de mútua
caridade, todos os homens vivam na paz e na felicidade. Mas para a
realização desta felicidade temporal e eterna, Ele impôs, com
autoridade soberana, a condição de se fazer parte de seu rebanho,
de se aceitar sua doutrina, de se praticar a virtude e de se deixar
ensinar e guiar por Pedro e seus sucessores. Ademais se Jesus foi bom
para os transviados e os pecadores, não respeitou suas convicções
errôneas por sinceras que parecessem; amou-os a todos para os
instruir, converter e salvar. Se chamou junto de si, para os
consolar, os aflitos e os sofredores, não foi para lhes pregar o
anseio de uma igualdade quimérica. Se levantou os humildes, não foi
para lhes inspirar o sentimento de uma dignidade independente e
rebelde à obediência. Se seu coração transbordava de mansidão
pelas almas de boa vontade, soube igualmente armar-se de uma santa
indignação contra os miseráveis que escandalizam os pequenos,
contra as autoridades que acabrunham o povo sob a carga de pesados
fardos, sem aliviá-la sequer com o dedo. Foi tão forte quão doce;
repreendeu, ameaçou, castigou, sabendo e nos ensinando que, muitas
vezes, o temor é o começo da sabedoria, e que, às vezes, convém
cortar um membro para salvar o corpo. Enfim, não anunciou para a
sociedade futura o reinado de uma felicidade ideal, de onde o
sofrimento fosse banido; mas, por lições e exemplos, traçou o
caminho da felicidade possível na terra e da felicidade perfeita no
céu: a estrada real da cruz. Estes são ensinamentos eminentemente
sociais, e nos mostram em Nosso Senhor Jesus Cristo outra coisa que
não um humanitarismo sem consciência e sem autoridade.
Conclusão
Exortação
ao Episcopado.
39.
No que se refere a vós, Veneráveis Irmãos, continuai ativamente a
obra do Salvador dos homens pela imitação de sua doçura e de sua
força. Inclinai-vos para todas as misérias; que nenhuma dor escape
à vossa solicitude pastoral; que nenhum gemido vos encontre
indiferentes. Mas, também, pregai ousadamente os deveres aos grandes
e aos pequenos; a vós compete formar a consciência do povo e dos
poderes públicos. A questão social está bem perto de ser resolvida
quando uns e outros, menos exigentes a respeito de seus direitos
recíprocos, cumprirem mais exatamente seus deveres. Além disso,
como no conflito dos interesses, e principalmente na luta com as
forças pouco honestas, a virtude de um homem, e mesmo sua santidade,
não é sempre suficiente para lhe assegurar o pão cotidiano, e como
as engrenagens sociais deveriam estar organizadas de tal forma que,
por seu jogo natural, paralisassem os esforços dos maus e tornassem
acessível a toda boa vontade sua parte legítima de felicidade
temporal, desejamos vivamente que tomeis uma parte ativa na
organização da sociedade, neste sentido. E, para isto, enquanto
vossos padres se entregarem com ardor ao trabalho da santificação
das almas, da defesa da Igreja, e às obras de caridade propriamente
ditas, escolhereis alguns dentre eles, ativos e de espírito
ponderado, munidos dos graus de doutor em filosofia e teologia, e
dominando perfeitamente a história da civilização antiga e
moderna, e os aplicareis aos estudos menos elevados e mais práticos
da ciência social, para, no tempo oportuno, colocá-los à testa de
vossas obras de ação católica. Contudo, que estes padres não se
deixem transviar no dédalo das opiniões contemporâneas, pela
miragem de uma falsa democracia; que não emprestem à retórica dos
piores inimigos da Igreja e do povo uma linguagem enfática, cheia de
promessas tão sonoras quanto irrealizáveis. Estejam eles
persuadidos de que a questão social e a ciência social não
nasceram ontem; que, de todos os tempos, a Igreja e o Estado, em
feliz acordo, suscitaram para isto organizações fecundas; que a
Igreja, que jamais traiu a felicidade do povo em alianças
comprometedoras, não precisa livrar-se do passado, bastando-lhe
retomar, com o auxílio de verdadeiros operários da restauração
social, os organismos quebrados pela Revolução, adaptando-os, com o
mesmo espírito cristão que os inspirou, ao novo ambiente criado
pela evolução material da sociedade contemporânea; porque os
verdadeiros amigos do povo não são revolucionários, nem
inovadores, mas tradicionalistas.
Os
membros do "Sillon" devem submeter-se.
40.
A esta obra, eminentemente digna de vosso zelo pastoral, desejamos
que, longe de a embaraçar, a juventude do Sillon, purificada de seus
erros, traga, na ordem e na submissão convenientes, um concurso leal
e eficaz.
41.
Voltando-nos, pois, para os chefes do Sillon, com a confiança de um
pai que fala a seus filhos, pedimo-lhes para o seu bem, para o bem da
Igreja e da França, vos cedam o lugar. Medimos, certamente, a
extensão do sacrifício que lhes solicitamos, mas os sabemos assaz
generosos para o realizar, e, antecipadamente, em nome de Nosso
Senhor Jesus Cristo, de quem somos o indigno representante, os
abençoamos . Quanto aos membros do Sillon, queremos que se agrupem
por dioceses para trabalhar, sob a direção de seus bispos
respectivos, pela regeneração cristã e católica do povo, ao mesmo
tempo pela melhoria de sua sorte. Estes grupos diocesanos serão, por
ora, independentes uns dos outros; e, a fim de tornar bem claro que
romperam com os erros do passado, tomarão o nome de Sillons
Católicos, e cada um de seus membros acrescentará a seu título de
sillonista o mesmo qualificativo de católico. Não será preciso
dizer que todo sillonista católico ficará livre, aliás, de guardar
suas preferências políticas, depuradas de tudo o que não esteja
inteiramente conforme, nesta matéria, com a doutrina da Igreja. E
assim, Veneráveis Irmãos, se houver grupos que se recusem a
submeter-se a estas condições, devereis considerá-los por isso
mesmo como se recusassem a submeter-se à vossa direção; e, então,
dever-se-á examinar se eles se confinam na política ou na economia
pura, ou se perseveram nos antigos erros. No primeiro caso, está
claro que já não vos devereis ocupar mais deles do que do comum dos
fiéis; no segundo, devereis agir em consequência, com prudência
mas com firmeza. Os padres deverão manter-se totalmente alheios aos
grupos dissidentes e se contentarão com prestar o socorro do santo
ministério individualmente a seus membros, aplicando-lhes, no
tribunal da Penitência, as regras comuns de moral relativamente à
doutrina e à conduta. Quanto aos grupos católicos, os padres e os
seminaristas, sempre favorecendo-os e os secundando, abster-se-ão de
se inscreverem como membros, porque é conveniente que a milícia
sacerdotal fique acima das associações leigas, mesmo as mais úteis
e animadas do melhor espírito.
42.
Tais são as medidas práticas pelas quais julgamos necessário
sancionar esta carta sobre o Sillon e os sillonistas. Que o Senhor
haja por bem, nós o rogamos no fundo da alma, fazer com que estes
homens e estes jovens compreendam as graves razões que a ditaram, e
lhes dê a docilidade de coração, com a coragem de provar, em face
da Igreja, a sinceridade de seu fervor católico; e a vós,
Veneráveis Irmãos, que vos inspire para com eles, pois que eles são
doravante vossos, os sentimentos de uma afeição toda paternal.
É
com esta esperança, e para obter estes resultados tão desejáveis,
que vos concedemos, de todo o coração, assim como a vosso clero e a
vosso povo, a Benção Apostólica.
Dado
em Roma, junto a S. Pedro, em 25 de Agosto de 1910, oitavo ano de
Nosso Pontificado.
PIO
X, PAPA