Com quanta reverência
se deve receber Cristo,
Senhor nosso.
“Vinde a Mim todos os que trabalhais e estais sobrecarregados e Eu vos aliviarei”.1
“O pão que Eu vos darei é minha Carne, que hei de dar para a vida do mundo”.2
“Tomai e comei; este é meu Corpo, que por vós será entregue; fazei isto em lembrança minha”.3
“Quem come a minha Carne e bebe o meu Sangue, fica em Mim e Eu nele”.4
“As palavras que vos disse são espírito e vida”.5
1. Alma Fiel.6 Vossas são estas palavras, Jesus, Verdade eterna! Ainda que não proferidas na mesma ocasião, nem escritas no mesmo lugar.
E porque são vossas e verdadeiras devo recebê-las todas com gratidão e fé.
Vossas são e por Vós, foram pronunciadas; minhas são também, porque para a minha salvação as dissestes.
De vossos lábios recebo-as com alegria para que mais profundamente se gravem no meu coração.
Animam-me palavras de tanta bondade, tão cheias de doçura e amor; aterrorizam-me, porém, os pecados próprios, e de tão altos Mistérios me retrai a consciência impura.
Atrai-me a doçura de vossas palavras, mas retém-me a multidão de meus delitos.
2. Ordenais que a Vós me chegue confiadamente, se quero ter parte conVosco; e que me alimente com o pão da imortalidade, se desejo a vida e a glória eterna.
“Vinde a Mim, dizeis, todos os que trabalhais e estais sobrecarregados e Eu vos aliviarei”.7
Oh! Doces e amorosas palavras aos ouvidos do pecador! Vós, Senhor meu Deus, convidais o pobre e mendigo à Comunhão do vosso Santíssimo Corpo.
Mas quem sou eu, Senhor, para ousar chegar-me a Vós!
“Não vos podem conter os Céus dos céus”8 e Vós dizeis “vinde a Mim todos!”
3. Que quer dizer tão misericordiosa condescendência e por que me convidais com tanto amor?
Como ousarei me aproximar de Vós, eu que não sinto em mim nenhum bem que possa me dar alguma confiança?
Como vos introduzirei em minha casa, eu que tantas vezes pequei diante da vossa Face adorável?
Adoram-Vos com reverência os Anjos e Arcanjos; tremem diante Vós os Santos e os Justos e dizeis: “Vinde a Mim, todos?”
Se Vós, Senhor, não o dissésseis, quem acreditaria? E quem teria audácia de se aproximar, se Vós o não ordenásseis.
4. Noé, varão justo, trabalhou cem anos na construção da Arca em que havia de se salvar com poucas pessoas; e como poderei eu, numa hora, preparar-me para receber com reverência o Criador do mundo?
Moisés, vosso grande servo e particular amigo, fez uma Arca de madeira incorruptível e revestiu-a de ouro puríssimo para nela depositar as Tábuas da Lei; e eu, criatura corrompida, atrever-me-ei a receber-Vos com tanta facilidade, a Vós, Autor da Lei e Dispensador da vida!
Salomão, o mais sábio dos reis de Israel, levou sete anos para levantar um Templo magnífico à glória do vosso Nome; durante oito dias celebrou a festa de sua dedicação; ofereceu mil hóstias pacíficas; e ao som das trombetas e entre aclamações de alegria colocou solenemente a Arca da Aliança no lugar que lhe havia sido preparado.
E, infeliz de mim! Como irei eu, o mais miserável dos homens, introduzir-Vos em minha casa, quando mal chego a empregar devotamente meia hora? E aprouvesse a Deus, que ao menos uma vez houvesse empregado dignamente quinze minutos!
5. Oh, meu Deus! Quanto fizeram para agradar-Vos estes vossos servos! E eu, ó tristeza! Quão pouco é o que faço! Quão curto é o tempo que consagro a preparar-me para a Comunhão!
Raras vezes bem recolhido; raríssimas, livre de toda a distração.
Certamente, na vossa salutar e divina Presença, nenhum pensamento profano deveria ocorrer-me ao espírito, nenhuma criatura ocupá-lo; porque não vou hospedar a um Anjo, mas ao Senhor dos Anjos.
6. E, no entanto, que distância imensa entre a Arca da Aliança com as suas relíquias, e o vosso puríssimo Corpo com suas inefáveis virtudes; entre aqueles sacrifícios da Lei Antiga que prefiguravam os futuros e a verdadeira Hóstia de vosso Corpo, complemento de todos os sacrifícios antigos!
7. Por que razão, pois, não me abraso mais em vossa adorável Presença?
Porque não me preparo com maior cuidado para participar de vossos Santos Mistérios quando, antigamente, aqueles Santos Patriarcas e Profetas, reis e príncipes, com todo o povo, deram tantas provas de zelo e devoção pelo culto divino?
8. Diante da Arca de Deus, dançou, cheio de entusiasmo, o piedosíssimo rei Davi, em memória dos benefícios outrora recebidos pelos seus pais; mandou fabricar diversos instrumentos de música; compôs Salmos e ordenou que se cantassem com alegria; inspirado pela graça do Espírito Santo, ele próprio os cantava ao som da harpa; ensinou os filhos de Israel a louvar a Deus de todo coração e a unir todos os dias as suas vozes para bendizê-lO e glorificá-lO.
Se outrora a presença da Arca do Testamento inspirava tanta devoção e despertava a lembrança de louvar a Deus, que respeito e que fervor não deve inspirar a mim e a todo o povo cristão a Presença de Jesus no Sacramento e a recepção do seu Corpo adorável?
9. Correm muitos a diversos lugares para visitar as relíquias dos Santos, admiram-se ao ouvir a narração de seus feitos, contemplam os magníficos templos erigidos em sua honra e beijam seus ossos sagrados envolvidos em ouro e seda.
E eis que Vós, meu Deus, estais aqui presente, diante de mim, no altar, Vós o Santo dos Santos, o Criador dos homens e Senhor dos Anjos.
Muitas vezes é a curiosidade e o desejo de ver coisas novas, que levam os homens a empreender semelhantes romarias e por isso, tiram muito pouco fruto de emenda dos costumes, principalmente quando se fazem estas excursões com leviandade e sem verdadeira contrição.
Aqui, porém, no Sacramento do Altar, Vós estais presente todo inteiro, meu Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem; todas as vezes que Vos recebemos digna e devotamente, colhemos em abundância os frutos de salvação eterna.
A estes Mistérios não nos atrai a leviandade, nem a curiosidade ou a sensualidade; mas a fé robusta, a esperança devota e a caridade sincera.
10. Ó meu Deus, invisível Criador do mundo, como sois admirável no que fazeis por nós! Com que bondade e ternura tratais os vossos eleitos, dando-Vos a Vós mesmo no Sacramento!
Eis o que transcende a nossa inteligência, eis o que, de modo especial, cativa os corações piedosos e os inflama de amor.
Porque os verdadeiros fiéis, que toda a vida trabalham por se corrigir, recebem muitas vezes neste Augusto Sacramento a grande graça da devoção e do zelo pela virtude.
11. Ó, graça admirável e oculta do Sacramento! Só vos conhecem os servos fiéis de Jesus Cristo; não vos podem experimentar os infiéis e escravos do pecado!
Este Sacramento confere graça espiritual; restitui à alma a força perdida e a beleza desfigurada pelo pecado.
Tal é, por vezes, o poder desta graça e a plenitude da devoção por ela inspirada, que não só a alma senão ainda o corpo débil sente aumentar-lhe o vigor.
12. É, entretanto, muito para deplorar e sentir amargamente a tibieza e a negligência que enfraquecem em nós o desejo de receber a Jesus, única esperança dos eleitos e seu único mérito.
Ele é que nos santifica e nos resgata; Ele, a consolação dos viajantes e o gozo eterno dos Santos.
Quanto não é, pois, de lastimar o descaso de muitos para com este salutar Mistério, alegria dos Céus e salvação do mundo!
Ó cegueira e dureza do coração humano, que não aprecia dom tão inefável, e chega até, pelo uso diário que dele faz, a cair na indiferença!
13. Se este Santíssimo Sacramento se celebrasse em um só lugar e fosse consagrado por um só Sacerdote no mundo inteiro, com quanto fervor não acorreriam os homens a esse lugar para ver esse Sacerdote celebrar os divinos Mistérios?
Agora, porém, são muitos os Sacerdotes e em muitos lugares se oferece Cristo para que tanto mais resplandeça a graça e o amor de Deus aos homens, quanto mais espalhada é pelo mundo a Sagrada Comunhão.
Graças a Vós, bom Jesus e Pastor Eterno, que, da nossa pobreza e no nosso exílio, Vos dignastes alimentar-nos com vosso precioso Corpo e Sangue e convidar-nos, por palavras saídas de vossos lábios, a participar destes Mistérios, dizendo: “Vinde a Mim todos os que trabalhais e estais sobrecarregados e Eu vos aliviarei”.9
1ª Reflexão10
A reverência, é um sentimento de veneração e respeito interior, manifestado em atos exteriores. A reverência pressupõe humildade; quem não é humilde não é reverente. Aquele que presta verdadeira reverência está compenetrado, a um mesmo tempo, do seu próprio nada e da grandeza da pessoa a quem tributa as suas homenagens. Quanto maior é a dignidade dessa pessoa, tanto mais abatido ele se sente, no íntimo do seu coração. Reconhece que a sua reverência deve abaixar-se na medida em que a dignidade alheia se lhe avantaja. Uma dignidade infinita demandaria uma reverência também infinita; mas, o homem não é capaz de tanto e ninguém é obrigado a mais do que pode. Aonde não chega a capacidade, pode chegar a boa vontade. Com que reverência, pois, se deve receber o Sacramento da Comunhão, em que se encerra o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro, real e substancialmente como está no Céu?
Ó, já que não nos é possível a reverência de que Ele é digno, ao menos, empreguemos aquela de que nós somos capazes. Foi confessando-se indigno de receber a Jesus Cristo, que o centurião do Evangelho conseguiu a rápida cura do seu servo: “Senhor, eu não sou digno de que entreis na minha morada, mas dizei somente uma palavra e o meu servo será curado”.11 Primeiro faz uma confissão sincera da sua indignidade, depois deixa transparecer as virtudes de que está animado: a fé, a esperança e a caridade. Por isso, Jesus, tomado de admiração, disse para os que O seguiam: na verdade vos afirmo, que não encontrei em Israel tanta fé.12 Quanto necessitam de meditar o exemplo do centurião muitos cristãos dos nossos dias! Que dirá Jesus Cristo no dia das contas a tantos sacrílegos, que que se atrevem a ultrajá-lO no Sacramento da Eucaristia! Que os incrédulos entrem nos templos de Deus, para cometerem infâmias, é um crime que tem suas atenuantes; mas, que um fiel ouse entrar no Santuário para perpetrar um ultraje nefando, e a sangue frio, de caso pensado, na Pessoa adorável do próprio Deus – isso é o mais abominável de todos os crimes. Outrora, Oza incorreu na ira de Deus e foi publicamente fulminado com uma morte repentina, só porque tocou na Arca Santa (por querer ampará-la, quando ela ameaçava cair ao ser transportada)!
2ª Reflexão13
Todo o culto da Antiga Aliança, não era mais que uma ligeira sombra dos Mistérios do Homem-Deus. Davi celebra com pompa o regresso da Arca a Jerusalém: mas a Arca estava vazia, não encerrava o Salvador do gênero humano. Salomão edifica um templo magnífico; faz, na presença de um povo penetrado de respeito, sua dedicação solene; milhares de vítimas são imoladas, mas, que são estas vítimas? Vis animais cujo sangue não pode aplacar a soberana justiça. O mundo continuava na esperança da salvação anunciada, quando eis que ao momento predito se cumprem “as promessas percebidas e saudadas de longe pelos Patriarcas, durante sua peregrinação na terra. O desejado das Nações, o Dominador do mundo, o Anjo da Aliança, Aquele cujo nome é Javé, vem ao seu templo, e o verdadeiro Sacrifício de propiciação substitui para sempre os sacrifícios figurativos”.14
No fundo do Tabernáculo, debaixo do véu do Santuário repousa a Hóstia sempre viva, o “Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo”. O mesmo ‘que está sentado à direita do Pai”, está ali presente, e sua voz nos chama: “Tomai e comei, isto é meu Corpo: bebei, isto é o meu Sangue, o Sangue da Nova Aliança, derramado pela remissão dos pecados. Vinde pois: Eu sou o pão da vida; o que vier a Mim nunca mais terá fome, e o que crê em Mim nunca mais terá sede. Quem come a minha Carne e bebe o meu Sangue tem a vida eterna e Eu o ressuscitarei no último dia”.15
Senhor, creio e adoro: minha alma, ansiosa de desejo, lança-se para Vós, e logo um grande temor a embarga: porque, quem sou eu para ousar aproximar-me de meu Deus? Quando considero minhas fraquezas, minha baixeza e profunda miséria, não tenho senão um sentimento, senão uma palavra: “Afastai-Vos de mim, porque sou homem pecador. Contudo, ó Jesus, aos pecadores viestes chamar e não os justos”.16
Por isso, batendo nos peitos e implorando vossa misericórdia, “levantar-me-ei e irei”: irei com fé viva, com ardente desejo, ao “Filho, ao Verbo, resplendor da glória de Deus, e figura de sua substância”, ao Salvador divino, que nos purifica de nossos pecados, “que se incorpora à sua criatura, para a elevar até a Si”; irei, e direi: “Senhor, não sou digno que entrei em minha morada, mas dizei somente uma palavra, e minha alma será salva”.17
Comunhão de São José de Calazans |
3ª Reflexão18
Quem recebe a Sagrada Comunhão, recebe a Jesus Cristo vivo.
Seu Corpo, pois, sua Alma e sua Divindade, estão neste divino Sacramento. E, como seja a mesma a sua Divindade, que a do Pai e do Espírito Santo, que são um só e mesmo Deus com Ele, no Sacramento da Santa Eucaristia, recebemos o Corpo do Filho de Deus, e portanto, seu Sangue e sua Alma, com a Santíssima Trindade.
Ainda assim, foi instituído este divino Sacramento, principalmente para dar-nos o Corpo e Sangue de nosso Salvador, com sua vida vivificadora, assim como cobrem as roupas principalmente o corpo do homem; mas sendo a alma unida ao corpo, cobrem as roupas a alma, e seu entendimento, memória e vontade.
Andai mui simplesmente com este dogma, saudai com frequência o Coração do divino Salvador que, para manifestar-nos seu amor, dignou cobrir-Se com as aparências do pão, conservando-se assim familiarmente em nós, mui próximo e chegado ao nosso coração.
Contemplemos em espírito os Santos Anjos, que rodeiam o Santíssimo Sacramento e O adoram; nesta oitava derramam mais profusas as santas inspirações sobre os que se aproximam com humildade, reverência e amor.19
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1. Mat. XI, 28.
2. Joan. VI, 52.
3. Mat. XXVI, 26.
4. Joan. VI, 57.
5. Joan. VI, 54.
6. Imitação de Cristo, nova tradução portuguesa pelo Pe. Leonel Franca, S. J., Livro IV, Cap. I, pp. 209-214. 4ª Edição, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro/São Paulo, 1948.
7. Mat. XI, 28.
8. III Reg. VIII, 27.
9. Mat. XI, 28.
10. Imitação de Cristo, novíssima edição, confrontada com o texto latino e anotada por Monsenhor Manuel Marinho, Livro IV, Cap. I, pp. 320-321. Editora Viúva de José Frutuoso da Fonseça, Porto, 1925.
11. Mat. VIII, 8.
12. Mat. VIII, 10.
13. Imitação de Cristo, Presbítero J. I. Roquette, Livro IV, Cap. I, pp. 407-409. Editora Aillaud & Cia., Paris/Lisboa.
14. Heb. XI, 3; Ag. II, 8; Mal. III, 1; Jo. XXIII, 6; Mal. III, 1.3.
15. Jo. I, 29; Is. IX, 1; Heb. I, 3; Mat. XXVI, 27-28; Jo. V, 35.55.
16. Luc. V, 8; Mat. IX, 13.
17. Luc. XV, 18; Heb. I, 3; Mat. VIII, 8.
18. Imitação de Cristo, versão portuguesa por um Padre da Missão, Livro IV, Cap. I, pp. 332-333. Imprenta Desclée, Lefebvre y Cia., Tornai/Bélgica, 1904.
19. São Francisco de Sales, 131 c. Lettre spirit. XII, 222.