De
São João Evangelista,
o
Discípulo Amado de Cristo.
Residindo
na cidade de Éfeso o glorioso São João Evangelista, como já, por
sua extrema velhice, apenas pudesse ser levado à Igreja entre os
braços de seus discípulos, quanto mais fazer aos fiéis longas
práticas e exortações, dizia somente estas palavras:
“Filhinhos,
amemos uns aos outros”.
Pelo
que, enfastiados com a repetição, lhe perguntaram: Mestre,
porque nos dizeis sempre o mesmo?
Respondeu o Apóstolo uma sentença digna de quem ele era:
“Porque
é Preceito do Senhor; e, se o cumprirmos, basta”.
ILUSTRAÇÃO
E PROBLEMA
§
I
Duas
razões da sua repetição, assinou o amado de Cristo: ambas eficazes
e vivas, porque ambas verdadeiras e certas.
Primeira:
Amemos uns aos outros, PORQUE É PRECEITO DO SENHOR.
As últimas palavras com que nossos pais nos admoestam à hora da sua
morte, entre saudosas despedidas e doces abraços, ficam altamente
gravadas na memória dos filhos e são um como testamento, não
escrito em papel, mas aberto nas tábuas do coração. Naquela última
noite em que Cristo, nosso Bem, havendo de passar deste mundo para
Seu Eterno pai, se despediu de Seus amados Discípulos, lhes disse
assim: Mandatum novum do vobis: Ut
diligatis invicem, sicut dilexi vos, ut et vos diligatis invicem. In
hoc cognoscent omnes quia discipuli mei estis, si dilectionem
habueritis ad invicem:
“Dou-Vos um Preceito Novo, que vos ameis uns aos outros,
como Eu Vos amei, para este mesmo fim, de vos amardes reciprocamente.
Nisto conhecerão todos que sois Meus discípulos, se tiverdes amor
uns aos outros”. Eis aqui a
sabedoria do Eterno Pai em poucas palavras, e em uma só ocasião
repetiu três vezes a mesma dileção mútua dos próximos. Que muito
era, logo, que, ouvindo esta doutrina o Discípulo Amado, lhe ficasse
impresso não só o Mandamento, mas também o modo e forma de o
recomendar? As primeiras folhas que vão ao prelo depois de composta
a página ficam melhor assinadas e com as letras mais vivas. São
João achou-se no Cenáculo, ao estampar-se o Divino Preceito da
Caridade, mui perto da forma dele, que era Cristo, tão
perto que teve a cabeça sobre o peito onde o original deste Preceito
estava, que era o Coração do mesmo Cristo. Que muito que a letra
ficasse nele tão clara e viva que nunca lhe caísse da memória nem
da língua: Filioli, diligite ad invicem?
Se
o manjar é doce e bem sazonado, não o rejeita a língua, ainda que
repetido. Não rejeite, logo, também as Palavras de deus, que são
mais doces que o favo: Quam dulcia faucibus meis eloquia tua!
super mel ori meo.
Não há coisa mais suave e gostosa que o amor; com uma só gotinha
deste mel se adoçam todas as amarguras do espírito e se temperam e
levam bem todas as desconsolações e acerbidades do mundo. No Salmo
CXVIII, que é uma árvore formosíssima de 22 braços, e consta de
176 ramos, ou versos, apenas deixa alguns de oferecer-nos diverso
louvor e recomendação da Lei Divina, à qual umas vezes chama
Testamento, Testemunho, Juízo, e Justiça; outras, Equidade,
Justificação e Verdade; outras, Ordenação, Preceito, Mandato,
Palavra de Deus, Sermão e Caminho. Certo é que não consiste a Lei
Divina mais que em Caridade; Plenitudo legis est dilectio;
porém, como a Caridade é coisa tão gostosa, não causa a repetição
fastio, senão a variedade de deleite.
Das
suas palavras conversando com os próximos, disse o Santo Jó, que
eram esperadas com tanto desejo e recebidas com tal estimação como
a chuva serôdia em terras sequiosas; e que tanto folgavam todos que
se lhes mostrasse alegre e benigno, que a luz do seu rosto não caia
sobre a terra, isto é, porque se chegavam a gozar mais de perto este
favor, como procedido enfim de um varão tão ilustre, tão sábio e
tão santo. Oh quanto mais ilustre (ponderemos nós agora), quanto
mais sábio e mais santo é Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus Filho de
Deus, Sabedoria eterna, Santidade infinita! Dignou-se este Senhor de
baixar ao mundo para conversar com os homens; quanta estimação
devemos todos fazer de Suas Palavras! Qual é a luz de Seu rosto que
nos comunicou, senão a Sua Lei que nos deu? Signatum est super
nos lumen vultus tui, Domine.
E que foi o Sermão da Ceia, onde nos deu o Preceito da Caridade
fraternal, estando já de partida para Seu Eterno Pai, senão uma
chuva da tarde, de que a secura dos corações humanos muito
necessitava? Recebam, pois, esta Lei os homens com sumo afeto e
rendimento; não caia a luz de tal rosto baldadamente onde se pise e
se despreze. E, se houver dele a estimação que merece, logo não
causará tédio por repetida ou inculcada muitas vezes.
Quando
o Grão Mogol
(monarca poderosíssimo nas regiões da Ásia) assiste em seu
imperial trono, publicamente cortejado de vinte reis, seus vassalos,
e de príncipes sem número, que estão em pé em sua presença, tudo
o que fala se toma pontualmente em um memorial de pergaminho, e está
um de seus secretários mais autorizado apontando ali fielmente todas
as suas palavras. Seja-me lícito fazer desta notícia degrau para
subirmos a outra de superior ordem, que vou inculcando. O Rei dos
Reis, e Senhor dos Senhores, Cristo Jesus, estando na sagrada Aula do
Cenáculo, e no altíssimo trono de chamas de Sua abrasada caridade:
Thronus ejus flammae ignis,
assistido dos Principados e Dominações celestes, e dos Sagrados
Apóstolos, que eram os Príncipes da Igreja, congregados com este
Deus de Abraão: Principes populorum congregati sunt cum Deo
Abraham,
proferiu por Sua Sagrada Boca aquela sentença: MANDATUM NOVUM DO
VOBIS, UT DILIGATIS INVICEM.
Achava-se ao Seu lado São João, um de Seus secretários, que a
tomou fielmente na memória e a gravou indelevelmente no coração.
Se deste a procura copiar nos de seus discípulos, deixem-no, que faz
o seu Ofício com amor; e o amor, assim como não se cansa de si
mesmo, não se cansa também de repetições, pois as repetições
são também amor. Porque a Madalena amava a Cristo, olhou muitas
vezes para o sepulcro onde O deixaram: Amanti (disse São
Gregório)
semel aspexisse non sufficit; quia vis amoris intentionem
multiplicat. Digamos nós também: Porque João amava a Cristo e
queria que seus discípulos O amassem mais, amando-se uns aos outros,
por isso repete e recomenda este ponto: Amant semel dixisse non
sufficit.
Aqui
em Lisboa,
no Convento das Brígidas (que chamamos as Inglesinhas), houve uma
Religiosa tão gulosa espiritualmente dos dulcíssimos nomes de JESUS
e MARIA, que lhe acharam depois de morta, escritas resmas e resmas de
papel só com estes nomes. Não lhe tinha aprovado esta devoção a
Prelada; mas o Céu lha aprovou maravilhosamente. Porque um destes
livros, que lhe mandou lançar no fogo, não se queimou, e dizem que
ainda hoje se conserva. Como se não enfastiava esta alma com tal
repetição? Amava as pessoas quando escrevia os nomes; molhava o
coração no amor, quando a pena no tinteiro; e, como os afetos
dentro sempre marejavam, os dedos fora sempre vertiam: Quia vis
amoris intentionem multiplicat. Façamos, pois, conta que os
discípulos do Evangelista eram o seu papel (assim chamou também aos
seus São Paulo: Epistola nostra vos estis)
e o que em todas estas páginas este sagrado escrivão repetia não
era mais que estas duas palavras: DILIGITE ALTERUTRUM:
Amai-vos uns aos outros. Porque, como era Preceito do Senhor a quem
amava e de quem era amado, e a quem queria que todos amando-se
amassem, a força de tanto amor lhe multiplicava a vontade: Vis
amoris intentionem multiplicat.
Lá
Protogenes costumava dar capas de tinta à sua obra, porque se temia
que o tempo a gastasse, e pintava para a eternidade: Aeternitati
pingo. Amar o homem a Deus, e por seu amor amar a todos os
próximos, é o verdadeiro pintar para a eternidade, e tudo o mais
leva o tempo: Omnia praetereunt praeter amare Deum.
Bem
fazia logo este outro melhor Protogenes em dar aos seus quadros (isto
é, aos seus discípulos) muitas mãos desta finíssima tinta do
amor, repetindo-lhes: Filioli, diligite alterutrum.
Cada
dia repetia Galeno os preceitos de Hipocrates, príncipe da medicina.
Cada dia (diz Hierocles) se havia de repetir a lei Pitagória, como
ela mesma dispunha. Cada dia, por espaço dos primeiros dez anos,
aprendiam as vestais os estilos do seu instituto, como lhes deixara
ordenado el-rei Numa.
Quarenta dias a fio, e por muitas vezes em cada um deles, ungiam os
egípcios os corpos defuntos, porque deste modo se defecavam e se
faziam múmia dura e incorrupta. Cento e quatro vezes no dia devem
lembrar-se dos seus deuses os reis do Malabar na Índia; e, para
despertador desta obrigação, trazem ao pescoço, enfiadas em cordão
de seda, outras tantas pérolas mais grossas e netas.
E, finalmente, cada manhã olham os pilotos para o polo ártico,
porque ali gira a Ursa (que isso quer dizer Arctos), que é o
norte, por onde se governam. Vergonha tenho destas comparações
aplicadas ao presente intento, pela imensa desigualdade dela. Mas o
argumento de menor para maior é eficaz. Oh, grande lástima! A Lei
da Caridade, que é universal medicina de nossas enfermidades, e o
preservativo de todas as nossas corrupções, e o norte por onde
devemos dirigir nossos procedimentos; a Lei da Caridade, que é
instituto não só real mas Divino, e por cuja observância nos
fazemos divinos e imortais, e comunicamos com nosso criador, por que
razão não nos há de lembrar cada dia? Ou porque me hei de enfadar,
eu que outrem mo lembre; e mais quando este Preceito me dispõe para
a vida eterna; e para as coisas eternas muito mal pode a alma ser
instruída senão por meio de coisas contínuas, como gravemente
ponderou um douto: Pessime ad aeterna instruimur nisi per
continua?
Porém,
se é coisa indigna cair-nos este Preceito da memória, quanto mais
indigna será contradizê-lo com a vontade? Quanto pior será
quebrantar este instituto com pecados, desviar deste norte celestial
com erros, corromper esta unção divina com imundícies, romper este
cordão das pérolas de todas as mais virtudes com o furor de nossas
paixões rebeladas? Oh, homens: coisa tão santa qual é a Caridade,
tão expressamente mandada no Evangelho, tão fortemente persuadida
na Cruz, tão copiosamente remunerada no Céu, assim a desprezamos!
Não nos merece nosso próximo o perdão da injúria, nem ainda
comprado pelo nosso Deus com o perdão das que nós primeiro Lhe
fizemos? Não nos merece nosso irmão a correspondência do amor, nem
empenhando-se nisso o infinito, que nós a nosso Deus devemos? Onde
temos o juízo? Atendamos que o amar-nos mutuamente uns aos outros
não é só conselho mas Preceito, e Preceito grave, e não de
qualquer superior, mas do Senhor, que o é do Céu e da terra e de
todas as criaturas, que só Ele é Senhor: Praeceptum Domini est.
E, se teve um ímpio Absalão confiança de que seus criados
cometessem um atroz parricídio, só porque ele era quem lhe mandava
fazer:
Percutite eum, et interficite; nolite timere; ego enim sum qui
praecipio vobis, oh, que vergonha será não poder Cristo, Senhor
nosso, confiar-Se de que nós, criaturas Suas, e Seus remidos, nos
amemos uns aos outros, só porque Ele é quem o mandou: Mandatum
novum do vobis ut diligatis invicem! Principalmente, que não só
o mandou com a palavra expressa, senão que o ensinou com o exemplo
vivo, amando-nos primeiro, sendo nós Seus inimigos, e morrendo por
nosso amor em uma Cruz; e obedecendo nisso a Seu Eterno Pai, tão
voluntariamente, que guardou esta Lei no meio do Seu Coração: Deus
meus volui, et legem tuam in medio cordis mei!
Quanto mais devemos, logo, obedecer a Cristo em um Preceito tão
suave e delicioso, e cuja observância é proveitosa, não para Deus,
senão para nós mesmos, pois do Senhor necessitam os servos, e não
dos servos tal Senhor? Nihil Deus jubet (disse Santo
Agostinho) quod sibi prosit, sed illi cui jubet: ideo verus est
Deus, qui servo non indiget, et quo servus indiget.
§
II
A
outra razão do Sagrado Evangelista é: Amemos uns aos outros:
PORQUE SÓ ESTE PRECEITO, SE O CUMPRIRMOS,
BASTA. A causa disto ensinou São Paulo aos romanos, dizendo:
Qui enim diligit proximum, legem implevit. Nam: Non adulterabis;
Non occides; Non furaberis; Non falsum testimonium dices; Non
concupisces; et siquod est aliud mandatum, in hoc verbo instauratur:
Diliges proximum tuum sicut te ipsum: Quem ama o próximo preencheu
toda a Lei. Porque: Não serás adúltero, nem homicida, nem ladrão;
Não levantarás falso testemunho; Não cobiçarás o alheio; e, se
mais algum Mandamento há, nesta única palavra se encerra: Amarás a
teu próximo como a ti mesmo. Por isso, Orígenes chamou à Caridade
epílogo de todos os demais Preceitos, porque, assim como no epílogo
se recapitulam todas as demais partes da história ou da oração,
assim nesta virtude todas as demais virtudes.
Disse
um rabino,
que na Lei Antiga os Preceitos afirmativos eram 248, porque tantos
era os ossos de que o Supremo Arquiteto edificou o corpo humano, e
com todos estes devemos louvar a Deus: Omnia ossa mea dicent,
Domine, quis similis tibi!
E que os Preceitos negativos eram 365, porque tantos são os dias do
ano, e o guardar-nos de pecado deve ser cuidado e desvelo nosso
quotidiano: Quomodo dilexi legem tuam, Domine; tota die meditatio
mea est!
Porém, na Lei da Graça não é necessária esta multidão de
Preceitos, pois um só ou dois, que são os da Caridade com Deus e
com o próximo, bastam para que todos os nossos ossos sirvam e louvem
ao mesmo Deus, e para que todos os dias evitemos o pecado. O ponto
está em que esta Lei seja de nós observada; e, para que seja
observada, convém que todos os dias nos lembre. Nem é coisa pesada
que seja frequente a memória de uma regra da qual a necessidade é
contínua.
Tudo
o que se admira e louva em uma árvore, frondosa em ramos, alegre em
flores, útil em frutos; tudo o que tem de préstimo, ou pela sombra
que oferece, ou pelas madeiras que ministra, ou pelas gomas e
bálsamos que sua, ou pelos ingredientes medicinais que acompanha,
está na semente dela, por maravilhoso artifício de seu Criador:
Admiramur (disse Santo Agostinho)
in uno seminis tam parculo grano, omnia quae laudantur in arbore,
tamquam liciata latuisse. Tal é a Caridade a respeito da grande
ávore das virtudes, cuja proceridade é tanta que toca no Céu, não
em sonhos, como a árvore de Nabuco,
mas realmente: Proceritas ejus contingens caelum. Naquele
grãozinho de amor, invisível, mas generosíssimo e fecundíssimo,
estão delineadas ou urdidas todas as demais virtudes que, a seu
tempo (fomentadas pelo sol da divina graça), vemos brotar em flores
e frutos copiosos e utilíssimos. Isto de amar é uma obra em que vão
resumidas muitas obras, como todos dias e logo na primeira luz do dia
nos ensina a dizer a Igreja, adestrando-nos para tratar, no decurso
dele, com os próximos em espírito de amor e suavidade: Opera
manuum nostrarum dirige super nos, et opera manuum nostrarum dirige.
Há de sofrer o homem muitos encontros e dissabores, que ocorrem
entre dia, há de falar verdade, há de observar cortesia, há de dar
a esmola, há de acautelar-se de murmurações, etc. Eis aqui muitas
obras, nas quais todas necessita de ser dirigidas por Deus: Opera
manuum nostrarum dirige super nos. Mas, se ele tiver Caridade,
tudo isso fará sem trabalho, porque esta é a única obra em que
leva já quase feitas todas as demais obras: Opus manuum nostrarum
dirige.
Em
Alexandria houve antigamente um famoso ídolo de Serapis, que mandou
fazer el-rei Sesostres, pelo célebre estatuário Briaxes;
e se compunha de todos os metais, pedras e madeiras de maior
estimação e preço. A caridade é um admirável simulacro do mesmo
Deus verdadeiro: encerra eminentemente todos os metais e pedras
preciosas das outras virtudes, que descreveu o Apóstolo,
dizendo: A Caridade é paciente, é benigna, não contente, não
malícia, não se incha, não é ambiciosa nem interesseira, nem se
irrita nem imagina mal, tem oposição com todo o pecado e se deleita
com a verdade, tudo crê, tudo espera e tudo sofre. Oh, que admirável
estátua! Se aquela mandou fazer el-rei Sesostres, esta outra
levantou Cristo JESUS, dizendo: Mandatum novum do vobis, ut
diligatis invicem. Se naquela era adorado um deus falso, nesta se
contempla um Deus verdadeiro, pois Deus é a mesma Caridade: Deus
Charitas est.
Se naquela foi destruída pelo imperador Teodósio, esta outra
ninguém a pode destruir: Charitas nunquam excidit.
Oh, estátua (torno a dizer), verdadeiramente admirável, coloca-te
sobre a base do meu coração, para o fazeres firme. A letra, ou
inscrição, já está dada pelo Discípulo amado: DILIGITE
ALTERUTRUM.
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Fonte:
Ven. Pe. Manuel Bernardes, da
Congregação do Oratório de Lisboa, “Nova
Floresta”, Terceiro
Tomo, Letra “C”, Título III – Caridade do Próximo, Cap. XL,
pp. 145-155. Nova Edição; Livraria Lello & Irmão – Editores,
Porto, 1949.