LOUIS-ÉDOUARD-FRANÇOIS-DÉSIRÉ PIE,
CARDEAL.
Bispo
de Poitiers
Sermão
pregado
na
Catedral de Chartres
(excertos);
1841.
Meus
irmãos (...)
Nosso
século clama: “Tolerância,
tolerância”.
Tem-se como certo que um Padre deve ser tolerante, que a Religião
deve ser tolerante. Meus irmãos, não há nada que valha mais que a
fraqueza, e eu aqui estou para vos dizer, sem disfarce, que no
mundo inteiro só existe uma sociedade que possui a verdade e que
esta sociedade deve ser necessariamente intolerante.
Mas antes de entrar no mérito, distinguimos as coisas, convenhamos
sobre o sentido das palavras para bem nos entendermos e assim não
nos confundiremos.
A
tolerância pode ser civil ou teológica. A primeira, não nos diz
respeito e não falarei senão uma pequena palavra sobre ela. Se a
lei é tolerante, quer dizer que a sociedade permite todas as
religiões porque, a seus olhos, elas são todas igualmente boas ou
porque as autoridades se consideram incompetentes para tomar partido
neste assunto, tal lei é ímpia e ateia. Ela exprime não à
tolerância civil como a seguir indicaremos, mas uma tolerância
dogmática que, por uma neutralidade criminosa, justifica nos
indivíduos a mais absoluta indiferença religiosa. Ao contrário,
se, reconhecendo que uma só Religião é boa, a lei suporta e
permite que as demais possam se exercer por amor à tranquilidade
pública, esta lei poderá ser sábia e necessária se assim o
pedirem as circunstâncias como outros observaram antes de mim (...).
Deixo,
porém, este campo cheio de dificuldades e volto-me para a questão
propriamente religiosa e teológica, em que exponho estes dois
princípios:
1º
– A Religião que vem do Céu é verdade e ela
é intolerante com relação às doutrinas errôneas.
2º
– A Religião que vem do Céu é caridade e ela
é cheia de tolerância quanto às pessoas.
Roguemos
à Nossa Senhora vir em nossa ajuda e invocar para nós o Espírito
de verdade e de caridade: “Spiritum
veritatis et pacis”.
Ave Maria.
Faz
parte da essência de toda verdade não
tolerar o princípio que a contradiz.
A afirmação de uma coisa exclui a negação dessa mesma coisa,
assim como a luz exclui as trevas. Onde nada é certo, onde nada é
definido, pode-se partilhar os sentimentos, podem variar as opiniões.
Compreendo e peço a liberdade de opinião nas coisas duvidosas: “in
dubiis, libertas”.
Mas, logo que a verdade se apresenta com as características certas
que a distinguem, por isso mesmo que é verdade, ela é positiva, ela
é necessária e por consequência, ela é una e intolerante: “in
necessariis, unitas”.
Condenar
a verdade à tolerância, é condená-la ao suicídio.
A afirmação se aniquila, se
ela duvida de si mesma, e ela duvida de si mesma, se ela admite com
indiferença que se ponha a seu lado, sua própria negação.
Para a verdade, a
intolerância é o instinto de conservação, é o exercício
legítimo do direito de propriedade.
Quando se possui alguma coisa, é preciso defendê-la sob pena de ser
despojado dela bem cedo.
Assim,
meus irmãos, pela própria necessidade das coisas, a intolerância
está em toda parte, porque em toda parte existe o bem e o mal, o
verdadeiro e o falso, a ordem e a desordem. Que há de mais
intolerante do que esta proposição: “2
e 2 fazem 4”?
Se vierdes me dizer que 2 e 2 fazem 3, ou fazem 5, eu vos respondo
que 2 e 2 fazem 4 (...).
Nada
é tão exclusivo quanto a unidade. Ora, ouvi a palavra de São
Paulo: “Unus
Dominus, una fides, unum baptisma”.
Há,
no Céu, um só Senhor: “Unus
Dominus”.
Esse Deus cuja unidade é seu grande atributo, deu à terra um só
símbolo, uma só doutrina, uma só fé: “una
fides”.
E esta fé, esta doutrina, Ele confiou-as a uma só Sociedade
visível, uma só Igreja cujos filhos são, todos marcados com o
mesmo selo e regenerados pela mesma graça: “Unum
baptisma”.
Assim, a unidade divina que brilha por todos os séculos na glória
de Deus, produziu-se sobre a terra pela unidade do dogma evangélico,
cujo depósito foi confiado por Nosso Senhor Jesus Cristo à unidade
hierárquica do Sacerdócio: Um Deus, uma fé, uma Igreja: “Unus
Dominus, una fides, unum baptisma”.
Um
pastor inglês teve a coragem de escrever um livro sobre a tolerância
de Jesus – Cristo e o filósofo de Genebra disse, falando do
Salvador dos homens: “Não
vejo que meu divino Mestre tenha formulado sutilezas sobre o dogma”.
Bem verdadeiro, meus irmãos. Jesus
Cristo não formulou sutilezas sobre o dogma, mas trouxe aos homens a
verdade e disse: se alguém não for batizado na água e no Espírito
Santo; se alguém, recusa-se a comer a minha carne e a beber o meu
sangue, não terá parte em meu reino. Confesso que nisso não há
sutilezas, há intolerância, a exclusão, a mais positiva, a mais
franca. E mais, Jesus Cristo enviou seus Apóstolos para pregar a
todas as nações, isto é, derrubar todas as religiões existentes,
para estabelecer em toda a terra a única Religião Cristã e
substituir todas as crenças dos diferentes povos pela unidade do
Dogma Católico. E prevendo os movimentos e as divisões que esta
doutrina vai incitar sobre a terra, Ele não se deteve e declarou que
tinha vindo para trazer não a paz, mas a espada e acender a guerra,
não somente entre os povos, mas no seio de uma mesma família e
separar, pelo menos quanto às convicções, a esposa fiel do esposo
incrédulo, o genro cristão do sogro idólatra. A afirmação é
verdadeira e o filósofo tem razão. Jesus Cristo não formulou
sutilezas sobre o dogma (...).
Falam
da tolerância dos primeiros séculos, da tolerância dos Apóstolos.
Mas isso não é assim, meus irmãos. Ao contrário, o
estabelecimento da Religião Cristã foi, por excelência, uma obra
de intolerância religiosa.
No momento da pregação dos Apóstolos, quase todo o universo
praticava essa tolerância dogmática tão louvada. Como todas as
religiões eram igualmente falsas e igualmente desarrazoadas, elas
não se guerreavam; como todos os deuses valiam a mesma coisa uns
para os outros, eram todos Demônios, não eram exclusivos, eles se
toleravam uns aos outros: Satã não está dividido contra si mesmo.
O Império Romano, multiplicando suas conquistas, multiplicava seus
deuses e o estudo de sua mitologia se complica na mesma proporção
que o da sua geografia. O triunfador que subia ao Capitólio, fazia
marchar diante dele os deuses conquistados com mais orgulho ainda do
que arrastava atrás de si os reis vencidos. A mais das vezes, em
virtude de um Senatus-Consulto, os ídolos dos Bárbaros se
confundiam desde então com o domínio da pátria e o Olímpio
nacional crescia como o Império.
Quando
aparece o Cristianismo (prestem atenção a isso, meus irmãos, são
dados históricos de algum valor com relação ao assunto presente),
o Cristianismo quando apareceu pela primeira vez não foi logo
repelido subitamente. O paganismo perguntou-se, se, ao invés de
combater a nova religião, não devia lhe
dar
acesso ao seu seio. A Judeia tinha se tornado uma província romana.
Roma, acostumada a receber e conciliar todas as religiões, recebeu a
princípio, sem maiores dificuldades, o culto saído da Judeia. Um
imperador colocou Jesus Cristo assim como Abraão entre as divindades
de seu oratório, como viu-se mais tarde um César propor prestar-lhe
homenagens solenes. Mas a palavra do Profeta não tardou a se
verificar: as multidões de ídolos que viam, de ordinário sem
ciúmes, deuses novos e estrangeiros ser colocados ao lado deles, com
a chegada do Deus
dos cristãos, lançam um grito de terror, e, sacudindo sua tranquila
poeira, abalam-se sobre seus altares ameaçados: ecce
Dominus ascendit, et commovebuntur simulacra a facie ejus.
Roma estava atenta a esse espetáculo. E logo, quando se percebeu que
esse Deus novo era irreconciliável inimigo dos outros deuses; quando
se viu que os cristãos, cujo culto se havia admitido, não queriam
admitir o culto da nação; em uma palavra, quando se constatou o
espírito intolerante da fé cristã, foi então que começou a
perseguição.
Ouvi
como os historiadores do tempo justificam as torturas dos cristãos.
Eles não falam mal de sua religião, de seu Deus, de seu Cristo, de
suas práticas; só mais tarde é que inventaram calúnias. Eles os
censuram somente por não poderem suportar outra religião senão a
deles. “Eu
não tinha dúvidas”,
diz Plínio, o Jovem, “apesar
de seu dogma, de que não era preciso punir sua teimosia e sua
obstinação inflexível”:
Pervicaciam
et inflexibilem obstinationem.
“Não
são criminosos”,
diz Tácito, “mas
são intolerantes, misantropos, inimigos do gênero humano. Há neles
uma fé teimosa em seus princípios, e uma fé exclusiva que condena
as crenças de todos os povos”:
Apud
ipsos fides obstinata, sed adversus omnes alios hostile odium.
Os pagãos diziam geralmente dos cristãos o que Celso disse dos
judeus, com os quais foram muito tempo confundidos, porque a doutrina
cristã tinha nascido na Judéia. “Que
esses homens adiram inviolavelmente às suas leis”,
dizia este sofista, “nisto
não os censuro; só censuro aqueles que abandonam a religião de
seus pais para abraçar uma diferente! Mas, se os judeus ou os
cristãos querem só dar ares de uma sabedoria mais sublime que
aquela do resto do mundo, eu diria que não se deve crer que eles
sejam mais agradáveis a Deus que os outros”.
Assim,
meus irmãos, o principal agravo contra os cristãos era a rigidez
absoluta do seu Símbolo,
e, como se dizia, o humor insociável de sua teologia. Se só se
tratasse de um Deus a
mais, não teria havido reclamações; mas era um Deus incompatível,
que expulsava todos os outros: aí está o porquê da perseguição.
Assim,
o estabelecimento da Igreja foi obra de intolerância dogmática.
Toda a história da Igreja não é senão a história dessa
intolerância. Que são os Mártires?
Intolerantes em matéria de fé, que preferem os suplícios a
professar o erro. Que são os Símbolos?
São fórmulas de intolerância, que determinam o que é preciso crer
e que impõem à razão os Mistérios
necessários. Que é o Papado? Uma instituição de intolerância
doutrinal, que pela unidade hierárquica mantém a unidade de fé.
Por que os Concílios?
Para frear os desvios de pensamentos, condenar as falsas
interpretações do dogma, anatematizar as proposições contrárias
à fé.
Nós
somos então intolerantes, exclusivos em matéria de doutrina; disto
fazemos profissão; orgulhamo-nos
da nossa intolerância.
Se não o fôssemos, não estaríamos com a verdade, pois que a
verdade é uma, e consequentemente intolerante. Filha do céu, a
Religião
cristã, descendo à terra, apresentou os títulos de sua origem;
ofereceu ao exame da razão fatos incontestáveis, e que provam
irrefutavelmente sua Divindade.
Ora, se ela vem de Deus, se Jesus Cristo, seu Autor,
pode dizer: Eu sou a verdade: Ego
sum veritas,
é necessário, por uma consequência inevitável, que a Igreja
Cristã conserve incorruptivelmente esta verdade tal qual a recebeu
do céu; é necessário que repila, que exclua tudo o que é
contrário a esta verdade, tudo o que possa destruí-la. Recriminar
à Igreja Católica sua intolerância dogmática, sua afirmação
absoluta em matéria de doutrina, é dirigir-lhe uma recriminação
muito honrosa. É recriminar à sentinela ser muito fiel e muito
vigilante, é recriminar à esposa ser muito delicada e exclusiva.
Nós
ficamos muitas vezes confusos com o que ouvimos dizer sobre todas
estas questões até por pessoas sensatas. Falta-lhes a lógica,
desde que se trate de religião. É a paixão, é o preconceito que
os cega? É um e outro. No fundo, as paixões sabem bem o que querem
quando procuram abalar os fundamentos da fé, pondo a religião entre
as coisas sem consistência. Elas não ignoram que, demolindo o
dogma, preparam para si uma moral fácil. Diz-se com justeza
perfeita: é antes o Decálogo
que o Símbolo
o que as faz incrédulas. Se todas as religiões podem ser postas num
mesmo nível, é que se equivalem todas; se todas são verdadeiras, é
porque todas são falsas;
se todos os deuses se toleram, é
porque não há Deus.
E, se se pode aí chegar, já não sobra nenhuma moral incômoda.
Quantas
consciências estariam tranquilas no dia em que a Igreja Católica
desse o beijo fraternal a todas as seitas suas rivais!
Jean-Jacques
[Rousseau] foi entre nós o apologista e o propagador desse sistema
de tolerância religiosa. A invenção não lhe pertence, se bem que
ele tenha ido mais longe que o paganismo, que nunca chegou a levar a
indiferença a tal ponto. Eis, com um curto comentário, o ponto
principal desse catecismo, tornado infelizmente popular: todas as
religiões são boas. Isto é, de outra forma, todas as religiões
são ruins (…).
A
filosofia do século XIX se espalha por mil canais por toda a
superfície da França. Esta filosofia é chamada eclética,
sincrética, e, com uma pequena modificação, é também chamada
progressiva. Esse
belo sistema consiste em dizer que não existe nada falso; que todas
as opiniões e todas as religiões podem conciliar-se; que o erro não
é possível ao homem, a menos que ele se despoje da humanidade; que
todo o erro dos homens consiste em julgar-se possuidores exclusivos
de toda a verdade, quando cada um deles só tem dela um elo e quando,
da reunião de todos esses elos, se deve formar a corrente inteira da
verdade. Assim, segundo essa inacreditável teoria, não há
religiões falsas, mas são todas incompletas umas sem as outras. A
verdadeira seria a religião do ecletismo sincrético e progressivo,
a qual ajuntaria todas as outras, passadas, presentes e futuras:
todas as outras, isto é, a religião natural que reconhece um Deus;
o ateísmo, que não conhece nenhum; o panteísmo, que o reconhece em
tudo e por tudo; o espiritualismo, que crê na alma, e o
materialismo, que só crê na carne, no sangue e nos humores; as
sociedades evangélicas, que admitem uma revelação, e o deísmo
racionalista, que a rejeita; o Cristianismo, que crê no Messias que
veio, e o judaísmo, que o espera ainda; o Catolicismo, que obedece
ao Papa, o protestantismo, que olha o Papa como o Anticristo. Tudo
isto é conciliável. São diferentes aspectos da verdade. Da união
desses cultos resultará um culto mais largo, mais vasto, o grande
culto verdadeiramente católico, isto é, universal, pois que
abrigará todas as outras no seu seio.
Esta
doutrina que qualificais de absurda não é de minha invenção; ela
enche milhares de volumes e de publicações recentes; e, sem que seu
fundo jamais varie, toma todos os dias novas formas sob a caneta e
sobre os lábios dos homens em cujas mãos repousam os destinos da
França. — A que ponto de loucura chegamos então? — Chegamos ao
ponto a que deve logicamente chegar todo aquele que não admite o
princípio incontestável que estabelecemos, a saber: que
a verdade é uma, e por consequência intolerante, apartada de toda a
doutrina que não é a sua. E, para resumir em poucas palavras toda a
substância deste meu discurso, eu vos direi: Procurais a verdade
sobre a terra? Procurai a Igreja intolerante. Todos os erros podem
fazer-se concessões mútuas; eles são parentes próximos, pois que
têm um pai comum: vos ex patre diabolo estis. A verdade, filha do
céu, é a única que não capitula.
Vós,
pois, que quereis julgar esta grande causa, tomai para isto a
sabedoria de Salomão. Entre essas diferentes sociedades para as
quais a verdade é objeto de litígio, como era aquela criança entre
as duas mães, quereis saber a quem adjudicá-la. Pedi que vos deem
uma espada, fingi cortar, e examinai as caras que farão os
pretendentes. Haverá vários que se resignarão, que se contentarão
da parte que vão ter. Dizei logo: Essas não são as mães! Há uma
cara, ao contrário, que se recusará a toda composição, que dirá:
a verdade me pertence, e devo conservá-la inteira, jamais tolerarei
que seja diminuída, partida. Dizei: Esta aqui é a verdadeira mãe!
Sim,
Santa Igreja Católica, Vós tendes a verdade, porque tendes a
unidade, e porque sois intolerante; não deixais decompor esta
unidade. É este, meus irmãos, nosso primeiro princípio: a religião
que desce do Céu é a verdade, e por consequência, ela é
intolerante quanto às demais doutrinas.
Não
nos pedi pois a tolerância em relação às doutrinas. Encorajai ao
contrário, nossa solicitude em manter a unidade do dogma, que é o
único laço da paz sobre a terra. O orador romano disse: a união
dos espíritos é a primeira condição da união dos corações. E
este grande homem faz entrar na definição mesma da amizade a
unanimidade de pensamento em relação às coisas divinas e humanas:
Eadem
de rebus divinis et humanis cum summa charitate juncta concordia.
Nossa
sociedade é sujeita a mil divisões; nós nos lastimamos disso todos
os dias. De onde vem este enfraquecimento das afeições, este
resfriamento dos corações? Ah! Meus irmãos, como seriam os
corações aproximados onde os espíritos estão tão distantes? É
porque cada um de nós se fecha no amor de si mesmo. Queremos pôr
fim a essas dissidências sem número que ameaçam destruir todo
espírito de família, de cidade e de pátria? Queremos não ser mais
estrangeiros, adversários e quase inimigos uns dos outros? Voltemos
a um Símbolo e nós reencontraremos logo a concórdia e o amor.
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O
Perigo da
Confraternização
Universal
das Religiões.
(Chesterton,
“O Homem Eterno”).
“Dois
mil anos atrás, já se havia empreendido, às margens do
Mediterrâneo, a edificação de uma espécie de Panteon. Os cristãos
foram cordialmente convidados a colocar ali uma estátua de Jesus,
que se acotovelaria com as de Júpiter, Mitra, Osíris, Atis, ou
Ammon. A recusa dos
cristãos é a chave mestra da história…
Ninguém pode compreender o Mistério
da Igreja, ninguém está em sintonia com a fé dos primeiros tempos,
se não avaliar que o mundo esteve então muito perto, de perecer na
confraternização e na compreensão mútua de todas as
religiões...”.