I
PARTE
O
Sacrifício de Abel
Parte
I
Segundo
a linguagem de São Paulo, toda
a Lei Antiga era uma sombra, figura ou pintura da Lei da Graça;
daqui a semelhança entre o justo Abel, pastor de ovelhas, que
ofereceu em sacrifício ao Senhor os melhores cordeiros do seu
rebanho, e Jesus Cristo, o Cordeiro Imaculado, o
Bom Pastor, Sacerdote e Vítima, que para nosso resgate Se ofereceu
uma vez a Seu Eterno Pai, em sacrifício cruento no Calvário, e
todos os dias continua a imolar-se misticamente sobre os nossos
altares. À semelhança do Homem-Deus, também Abel foi Sacerdote e
Vítima: como sacerdote:
como Sacerdote, fez ao
Senhor uma oblação de suave odor, e, como vítima, deixou-se
sacrificar à inveja de seu irmão Caim.
Na Missa, depois da Consagração da Hóstia, e do Cálice, com as
mãos estendidas e elevadas, faz o Sacerdote esta súplica:
“Dignai-Vos,
Senhor, lançar sobre eles olhares propícios, e
recebê-los, como recebestes as ofertas do justo Abel, vosso servo, e
o sacrifício do nosso Patriarca Abraão, e o sacrifício santo, a
hóstia imaculada do vosso Sumo Sacerdote Melquisedeque”.
Assim a Santa Igreja, como boa Mestra, me aponta a Sagrada Eucaristia
em relação com as figuras que A precederam, figuras sucessivas,
múltiplas e variadas: porque não podia num só traço ou em poucos
ser delineado o memorial das maravilhas do Senhor. Aos sacrifícios
da Lei Natural, acresceram os da Lei mosaica, até que todas as
sombras desapareceram diante da realidade do Santíssimo Sacramento.
Sendo o homem naturalmente religioso e sendo o Sacrifício o centro
da Religião, é claro que todos nós necessitamos de ser associados
ao Sacrifício por excelência: por isso, na oblação do Cálice a
Igreja põe nos lábios do Sacerdote estas palavras: “Nós
Vos oferecemos, Senhor, este cálice e imploramos a vossa clemência,
para que à maneira de um perfume suavíssimo o façais subir até ao
trono da vossa Majestade, para salvação nossa e de todo o mundo.
Amém”.
Depois,
inclinado no meio do altar prossegue: “Em
humilhação de espírito e com o coração contrito, nos
apresentamos, Senhor, diante de Vós; fazei que este nosso
Sacrifício, realizado na vossa presença, Vos seja aceito, ó Senhor
Deus”.
É
pois em união com os fiéis que o Sacerdote oferece o Sacrifício. E
que outra coisa deve ser a vida dos discípulos de Jesus Cristo senão
uma imolação contínua? Diz-me, porém, a Sagrada Escritura, que o
Senhor olhara complacente para Abel e para as suas oferendas, e não
volvera os olhos nem para Caim, nem para os seus presentes.
Grande
lição se nos depara nesta passagem! Não
aproveitam os sacrifícios de cada dia, se falta o espírito de
sacrifício, porque primeiro olha Deus para o oferente que para as
ofertas, primeiro para a intenção que para a ação.
Se
ofereço a Deus o que é meu e não me ofereço eu próprio com todos
os afetos do meu coração, reconhecendo que d’Ele hei recebido
tudo quanto sou e possuo, – como poderá ser aceita a minha oferta?
É o engano de tantas pessoas, que nas suas doenças e aflições,
fazem promessas e votos aos Santos, e não cuidam de fazer uma
Confissão bem feita, para ajustarem as suas contas com o Santo dos
Santos! Quem há que não veja que o primeiro de todos os Preceitos é
o do amor de Deus? Intendamos bem, que nenhuma oferenda nossa Lhe
pode ser agradável, desde que não seja acompanhada do nosso
coração. Foi-lhe aceito o sacrifício de Abel e não o de Caim,
porque Abel, ao contrário de seu irmão, oferecera-se ao Senhor com
o que tinha de melhor, com as primícias do seu rebanho; a oferenda
externa era a menor, a mais valiosa era a da sua bela alma.
Concedei-me,
ó Deus de misericórdia, que todos os sacrifícios da minha vida
mereçam a vossa bênção e sejam coroados com a vossa glória.
Amém.
Parte
II
Quando
bem se observam as obras de Deus, reconhece-se que nenhuma delas se
acham isoladas do conjunto, antes todas obedecem a uma harmonia
universal. Obra Deus na ordem da natureza como na da graça,
guardadas as devidas proporções; na ordem da natureza, os alvores
da aurora
precedem os raios do sol; na ordem sobrenatural, as grandes verdades
e os Mistérios da Fé começam a revelar-se em penumbra desde o
berço da humanidade, e vão clareando mais e mais, até se
apresentarem a toda a luz na Nova Lei.
Conforme
a linguagem do discípulo do amor, Jesus Cristo é a luz verdadeira
que ilumina todos os homens (que desejam verdadeiramente
ser iluminados). Mas
dir-se-á talvez: se temos a luz, que importam as sombras que a
precederam?
Se temos o Novo Testamento, que é a realidade plena, para que
havemos de volver os olhos para a Lei Antiga, que era de figuras, de
profecias e de promessas? São incalculáveis as vantagens que
podemos auferir do confronto dos dois Testamentos. Se as belezas do
sol nos encantam, nem por isso as da aurora nos serão indiferentes.
Sobre
as extremidades da tampa da Arca da Aliança estavam assentes dois
Querubins, voltados
um para o outro, e com as asas estendidas sobre o propiciatório:
eram a figura dos dois Testamentos, também olhando um para o outro,
confirmando-se, completando-se. Bendito seja Deus que dispôs todas
as Suas obras tanto de harmonia com a franqueza do nosso espírito!
Como a alma se enleva e a fé se avigora, quando de um ponto elevado
fitamos a história da humanidade, e volvemos alternadamente os olhos
para as profecias e para a sua fiel realização, para o desenho da
Providência e para as Suas obras prodigiosas!
É
Jesus Cristo quem enche a história de todos os tempos: o
velho mundo entrevia-O no futuro, o novo mundo adora-O presente no
seio da Igreja; vê reunidas n’Ele todas as feições augustas, com
que O prefiguraram as mais altas personagens do Antigo Testamento;
professa a Sua doutrina e ouve atento os acentos da Sua doce voz.
Desgraçados os olhos que O não pressentem! Pressentiu-O de longe o
inspirado Davi e mais de longe ainda o inocente Abel, que
na sua pessoa e na sua oferenda preludiara o Pontífice
santo, inocente, impoluto, segregado dos pecadores.
No
seu ofício de pastor anunciava ele já o Bom Pastor, que havia de
dar a vida pelas Suas ovelhas, deixando-se imolar no Calvário.
Oferecendo a Deus em sacrifício os melhores cordeiros do seu
rebanho, apontava lá muito de longe, através de 40 séculos, para
Aquele mesmo Cordeiro Imaculado que o Batista havia de apontar de
perto, dizendo: Eis
ali o Cordeiro de Deus, eis O que tira o pecado do mundo.
O
homem por via de regra, é precipitado no exercício da sua
atividade, apenas concebe um plano, quer executá-lo de pronto; por
isso, a queda dos nossos primeiros pais no Éden, foi obra de um
instante. As obras de Deus revelam um caráter bem diferente: não há
nelas saltos nem violências,
tudo se opera gradualmente e o que muitas vezes aos homens parece
desordem é condição de ordem.
É
o que se nos deixa ver até na ordem natural, onde os seres vegetais
e animais nascem, crescem e se desenvolvem lentamente, segundo as
leis próprias de sua natureza; para que um fruto chegue ao estado de
maturação, para que uma árvore ou animal atinjam o seu maior
desenvolvimento, é necessário longo tempo. Como não exclamaremos
pois com o Salmista: Quanto
são impenetráveis os vossos pensamentos! Nem o insensato logrará
conhecê-los, nem o louco ter a compreensão deles.
O
Sacrifício de Noé
Parte
I
Antes
de considerarmos o sacrifício de Noé, ouçamos o grande Bossuet, no
admirável resumo da primeira época da sua História
Universal.
“Começa
a primeira época por apresentar-vos um grande espetáculo: Deus pela
Sua palavra criou o Céu e a terra, e fez o homem à Sua Imagem. Eis
por onde começa Moisés, o mais antigo dos historiadores, o mais
sublime dos filósofos, o mais sábio dos legisladores.
Sobre
este fundamento assenta ele tanto a sua história, como a sua
doutrina e as suas leis. Depois, mostra-nos todos os homens
encerrados num só homem, e até a sua mulher tirada dele,
a concórdia dos esposos, e a sociedade do gênero humano
estabelecida sobre este fundamento; a perfeição e poder do homem
enquanto conserva íntegra a Imagem de Deus em si; o seu império
sobre os animais, a inocência unida à sua felicidade no Paraíso,
cuja memória se conservou na idade de ouro dos poetas; o Preceito
divino dado a nossos primeiros pais; a malícia do Espírito tentador
e a sua aparição, sob a forma da Serpente; a queda de Adão e Eva,
funesta a toda a posteridade; o primeiro homem justamente punido em
todos os seus filhos e o gênero humano amaldiçoado de Deus; a
primeira Promessa da Redenção e a futura vitória dos homens sobre
o Demônio que os perdera.
Começa
a terra a povoar-se, e os crimes multiplicam-se. Caim, primeiro filho
de Adão e Eva, apresenta
no berço do mundo a primeira cena trágica;
e começa então a virtude a ser perseguida pelo vício. Aparecem os
costumes contrários dos dois irmãos: a inocência de Abel, a sua
vida pastoril e as suas oferendas aceitas; as de Caim rejeitadas, a
sua avareza, impiedade, fratricídio, e a inveja, mãe dos
homicídios; o castigo do seu crime; a consciência do fratricida
atormentada de remorsos contínuos; a primeira cidade edificada por
este malvado, que procurava um asilo contra o ódio e horror do
gênero humano, a invenção de algumas artes pelos seus filhos; a
tirania das paixões e a prodigiosa maldade do coração humano,
sempre inclinado à prática do mal; a posteridade de Set, fiel a
Deus, apesar desta depravação; o piedoso Henoc, miraculosamente
tirado do mundo, que não era digno de o possuir; a distinção entre
filhos de Deus e filhos dos homens determinada por um justo juízo de
Deus;
a Sua cólera revelada aos pecadores pelo bom servo Noé; a
impenitência dos culpados, e o seu endurecimento castigado, enfim,
pelo Dilúvio; Noé e sua família reservados para a reparação do
gênero humano. Eis o que se passou em 1656 anos.
Tal
é o começo de todas as histórias, em que se descobre a
Onipotência, Sabedoria e Bondade de Deus; a inocência ditosa, sob a
Sua proteção; a Sua justiça a vingar os crimes, e ao mesmo tempo a
Sua paciência em esperar a conversão dos pecadores; a grandeza e
dignidade do homem no seu estado primitivo; a índole do gênero
humano, após a sua corrupção; o caráter da inveja, e as causas
secretas das violências e das guerras, quer dizer todos os
fundamentos da Religião e da Moral”.
Vinha
muito a propósito este belo quadro histórico, como introdução ao
sacrifício que Noé oferecera a Deus, depois de sair da Arca com a
sua família: “Edificou
Noé um altar ao Senhor, e sobre ele ofereceu holocaustos de alguns
animais limpos, escolhidos entre todos, assim como de algumas aves”.
Até este ponto ainda a Sagrada Escritura não tinha falado em
Altar.
Das breves palavras de Moisés deduz-se que Noé, segundo pai do
gênero humano, pôs todo o seu zelo em oferecer ao Senhor um
sacrifício agradável.
Parte
II
Ambos
muito aceitos ao Senhor, o sacrifício de Abel e o de Noé apresentam
diferenças consideráveis, tanto em razão dos oferentes como das
vítimas oferecidas e do modo de as oferecer. Apesar destas
diferenças, porém, subsiste a essência do sacrifício, que
consiste numa oblação externa feita só a Deus, por um oferente
legítimo, com o fim de testemunhar o supremo domínio de Deus sobre
todas as coisas.
Por
parte do oferente pois, o sacrifício supõe um ato de adoração
perfeita, de humildade profunda, e de sujeição inteira à vontade
de Deus. Donde se vê quão longe estão de fazer verdadeira ideia
do sacrifício, os que assistem à Santa Missa com modos
irreverentes, muitas vezes com um joelho no chão e o outro
levantado, divagando com os olhos em todas as direções!
Bem
diferente seria o seu procedimento, se considerassem e
reconsiderassem, que o Augustíssimo Sacrifício da Missa foi
prefigurado nos múltiplos sacrifícios de todas as gerações, desde
o sacrifício de Abel até ao do Calvário. Se aos Patriarcas e
Profetas do Antigo Testamento tivesse Deus concedido essa graça
especialíssima, que reservou para nós, quem poderia traduzir em
palavras os seus sentimentos de gratidão, os seus protestos de
fidelidade, as suas expansões de amor e entusiasmo? É da ordem
natural das coisas que as grandes obras sejam precedidas de grande
preparação; as maiores, da maior preparação. Ora, qual é a maior
obra de Deus Pai para conosco? Dar-nos o Seu Filho diletíssimo na
Encarnação. Para essa obra incomparável, que excede imensamente a
da Criação, não lhe pareceu demasiado uma preparação de quarenta
séculos.
E
qual a maior obra de Deus Filho? Dar-se a cada um de nós de um modo
singular, na Sagrada Eucaristia, e deixar-se ficar nos nossos
Altares, para nos fazer companhia neste desterro, não obstante,
serem-lhe manifestas desde o princípio todas as nossas infidelidades
futuras.
Como
Jesus Cristo havia de ser tudo para nós, – Sacerdote, Vítima,
Pastor, Pai, Legislador, Mestre, etc., – era de toda a conveniência
que esses ofícios de misericórdia e salvação fossem anunciados de
longe por personagens diferentes e em diversos graus de esplendor.
Assim
Abel, considerado quanto à sua pessoa, foi uma imagem remota de
Jesus Cristo, como Sacerdote e como Vítima, ao passo que Noé o foi,
não como Vítima, mas como Sacerdote e segundo tronco da Humanidade.
Outros
preludiaram a Jesus Cristo como Vítima, e não como Sacerdote, tais
foram: Isaac, José, Davi e Jeremias.
Consideradas
as oferendas em si mesmas, o sacrifício de Abel constou somente de
cordeiros; o de Noé revestiu maior aparato: foi oferecido holocausto
sobre um altar, abrangeu vítimas escolhidas de todos os rebanhos de
animais puros, e também de todas as aves puras. A ocasião era muito
solene, precisava de ficar assinalada com um sacrifício condigno.
Saída das águas do Dilúvio, como de um Batismo de Regeneração, a
Humanidade entrava numa nova fase, e Noé, seu Chefe, sentiu-se
movido a testemunhar ao Senhor a sua gratidão. A distinção entre
animais puros e imundos, embora só preceituada no tempo de Moisés,
já era praticada antes do Dilúvio. “Mas quem ensinou a Noé esta
distinção”, pergunta São João Crisóstomo? “Lhe a ditou, a
ciência inata da própria razão natural. Nada há de impuro no que
Deus criou. Como chamaríamos impura a uma criatura que recebeu a
aprovação suprema do Criador. A Escritura diz: Olhou Deus para tudo
quanto havia feito, e achou que tudo era muito bom.
Tal distinção foi introduzida mais tarde pela própria criatura, e
o que prova é que em certos lugares uns se abstinham dos animais que
consideravam impuros ou proibidos, outros obedecendo ao hábito
usavam desses mesmos animais. Na questão de que se trata, a própria
luz natural indicava ao justo Noé os animais de que podia usar, e os
que eram olhados como impuros, embora na realidade o não fossem”.
Parte
III
Quando
o Senhor deu ordem a Noé para recolher à Arca com a sua família,
determinou-lhe ao mesmo tempo a quantidade e qualidade de animais que
lá devia encerrar: de todos os animais puros sete casais, de cada
espécie; dos impuros somente dois casais, e das aves, sete. Mas,
quando chegou a ocasião de oferecer o sacrifício, nenhuma instrução
recebeu então Noé: obedeceu apenas aos impulsos do seu coração
generoso, ofereceu do que tinha de melhor, e ofereceu em abundância
sobre um altar. O mesmo Deus, para quem nada há de oculto, provera
de ante mão a esta liberalidade do seu fiel servo, no avultado
número de rezes e aves puras que Lhe mandara recolher.
Por
parte do seu objeto, pois, o sacrifício de Noé, não menos que o de
Abel, havia de atrair os olhares complacentes do Senhor. Mas, por
parte do oferente? Quais as virtudes do filho de Lamec? A própria
Escritura
as expõe em poucas palavras: Noé foi um homem justo e perfeito, no
meio dos homens que então viviam: andou com Deus. Achar graça
diante do Senhor, ser justo, perfeito e andar com Deus! Que mais se
poderá dizer em louvor, aplauso de um descendente de Adão? E, se
tão altos elogios derivassem de origem profana, teriam de sofrer o
desconto que no meio do mundo se lhes costuma dar; mas, estes não
surgiram das paixões dos homens, desceram do alto, por intermédio
do inspirado Moisés; são mais divinos que humanos, mais celestes
que terrenos.
Na
verdade, uma linguagem análoga é empregada 2347 anos mais tarde,
pelo Mensageiro celeste da Encarnação do Verbo. Quando o Arcanjo
São Gabriel visitou a Virgem Imaculada na sua casinha de Nazaré, ao
vê-La perturbada com a saudação que lhe dirigira, tranquilizou-A,
dizendo-lhe: Não temas, Maria, porque encontraste graça diante
de Deus… E, para fazer o elogio do digníssimo esposo de Maria,
o Evangelista São Mateus nada encontrou melhor do que chamar-lhe
Justo.
Considerado
somente em razão do seu objeto, o sacrifício de Noé era de pouco
valor, não obstante o avultado número de vítimas escolhidas; a
excelência dele procedia sobretudo do sacrifício futuro a que se
referia, e das virtudes exímias do oferente: Noé oficiou como
Sacerdote santo e preludiou o Sacrifício Santíssimo do Calvário.
Deste
modo, Jesus Cristo, Sacerdote Eterno e Vítima Augusta, era o termo
para onde convergiam lá de longe as perfeições de Noé, de perto
as de José e acima de tudo as de Maria. Havia de ser a Mãe
Imaculada quem havia de gerar do seu sangue essa Vítima, e
oferecê-La mais tarde, de pé, no altar da Cruz, ao Eterno Pai.
Ó
Maria, Mãe divina, como Vos custou cara a Redenção do Gênero
Humano! Como é cruel e abominável o pecado, que tão duros
sacrifícios exige! Como a nossa fé se aviva ao levantarmos uma
pontinha do véu que encobre os Sagrados Mistérios!
Há
ainda um duplo aspecto a considerar no sacrifício do primeiro
Patriarca pós-diluviano: 1º, a união das suas altas
virtudes com o seu ofício de Sacerdote, incluído nos direitos de
Primogenitura; 2º, as circunstâncias especiais, em que fez
brilhar essas virtudes, por todo o decurso da sua longa vida. Que
união mais encantadora cá na terra do que a da virtude com o
Sacerdócio? Nem a virtude, nem o Sacerdócio são propriamente deste
mundo de misérias; pertencem ao Céu, e só existem cá na terra
como por empréstimo. Quem quer ser depositário do Sacerdócio,
tem que apresentar como sua fiadora a virtude; do contrário,
usurpa o que não lhe pertence e chama sobre si a maldição de Deus.
Parte
IV
Não
pode deixar de ser inefável e sublime a união de duas coisas, ambas
divinas, como são a virtude e o Sacerdócio. Nunca a virtude
resplandece com tanto brilho, como quando está unida ao Sacerdócio,
e nunca o Sacerdócio se revela tão fecundo na sua missão, como
quando se apresenta revestido de todas as virtudes.
Se
o Sacerdócio desaparecesse da terra, prestes a virtude lhe seguiria
os passos na fuga. E, sem virtude, sem Sacerdócio, o que seria a
terra senão um Inferno antecipado? Contudo, a união da virtude
com o Sacerdócio não assenta numa lei necessária; todos são
chamados à virtude e nem todos ao Sacerdócio. O Sacerdócio é mais
raro, e menos comum que a virtude, e até nisso mesmo deixa ver a sua
sublimidade. Mas, quando as mais raras e acrisoladas virtudes se
associam por vocação divina ao Sacerdócio, então eclipsa ele de
um modo assombroso todas as grandezas humanas.
Ora,
em que circunstâncias foi Noé um varão justo e perfeito, que
encontrou graça diante de Deus? Quando a terra se achava inundada de
crimes, quando só ele com a sua família permaneciam fiéis ao
Senhor, apesar dos maus exemplos que por toda a parte se lhes
deparavam. Praticar a virtude em circunstâncias tais, é praticá-la
com heroísmo.
“Já
por si mesma, diz
São João Crisóstomo, a
virtude é admirável, mas apresenta-se ainda mais admirável, quando
se pratica no meio dos que a condenam. Assim a própria
Escritura, falando desse justo que vivia no meio de uma raça votada
à indignação divina, diz com um sentimento de admiração: ‘Noé
encontrou graça diante
do Senhor Deus’. Encontrou graça, mas, diante de deus;
não diz simplesmente encontrou graça, antes acrescenta:
diante de Deus, e nisso nos ensina que Noé só intentava
atrair a complacência daqueles olhos, que não conhecem nem sono nem
distração; que não procurava a glória, nem temia diante dos
homens a ignomínia ou a irrisão. Na verdade, é de crer que,
praticando a virtude contra o costume geral, provocasse os escárnios
e as mofas de todos os maus, habituados a desprezar os virtuosos,
como ainda hoje tantas vezes se observa”.
Igual sentido exprime a Escritura, quando manifesta a aceitação que
Deus fez da oferenda de Abel: lançou o Senhor os olhos para Abel e
para os seus presentes. Isto equivale a dizer, que Abel encontrara
graça diante do Senhor, ao oferecer-Lhe em sacrifício os melhores
cordeiros do seu rebanho. Noé, porém, encontrou essa mesma graça
muito antes de entrar na Arca, com a vítimas do seu futuro
sacrifício. Abel era o símbolo do manso Cordeiro, que por Sua
própria vontade se havia de oferecer ao sacrifício, emudecendo como
a ovelha ao ser levada para o matadouro e como o cordeiro diante do
tosquiador.
Noé, segundo repovoador do mundo, simbolizava o Adonai, o chefe da
casa de Israel, o novo Adão, por quem a humanidade havia de ser um
dia regenerada, sob um dilúvio de graças.
Segundo
a interpretação do mesmo São João Crisóstomo, Noé significa
repouso, porque as águas do Dilúvio fizeram que os homens
repousassem do funesto trabalho dos seus desregramentos. Como Deus é
grande em todas as Suas obras! Aos golpes da Sua justiça, vê-se
desabar um mundo impenitente, e logo aos impulsos da Sua misericórdia
começa a surgir outro, tão belo e esperançoso como a virtude em
que assenta!
Parte
V
Escutemos
agora Santo Ambrósio: “Se nos é possível, tentemos explorar a
vida, os costumes, os feitos e a magnanimidade de Noé.
No
dizer do Profeta Jeremias,
nada mais difícil que perscrutar o coração do homem: que
dificuldade então a de conhecer a alma de um varão justo? Visto que
o Senhor Deus o escolheu para renovador do Gênero Humano, e fez dele
o canteiro da justiça, convém que o apontemos como exemplar de
todos e nele repousemos das lidas deste mundo, que todos os dias nos
assaltam. Será pouco honroso para nós, que ele sobreviva a seus
filhos? Receberemos com enfado esta luz do seu exemplo, quando nos
chegam aos ouvidos tantas coisas desagradáveis dos nossos maiores
amigos? Quem haverá tão paciente e corajoso, que afronte impávido
as ondas e as tempestades, hoje desencadeadas contra as igrejas? Eis
por que nos incumbe procurar também este repouso: do mesmo modo que
todo o Gênero Humano repousou dos seus trabalhos e tristezas no
Santo Noé, também nós recobraremos novas forças, à medida que o
contemplarmos. Por isso, em latim a palavra Noé significa
justiça ou repouso. Os seus próprio pais disseram dele: “Este
nos há de fazer descansar dos nossos trabalhos e tristezas nesta
terra que o Senhor cobriu de maldição”.
Depois da linguagem do Espírito Santo, que é a da Sagrada
Escritura, nenhuma mais sublime que a dos grandes Doutores da Igreja,
nenhuma portanto mais adequada às virtudes exímias de Noé, varão
justo e perfeito no meio de uma corrupção universal.
Ao
vermos pois que o sacrifício de Noé se recomendava, ainda muito
mais pelas belas disposições do oferente, que pela excelência da
oferenda, não nos pode causar estranheza que o Senhor o recebesse
com inefável complacência e o coroasse de bênçãos. A
desobediência de Adão, o fratricídio de Caim e a corrupção do
Gênero Humano tinham feito cair sobre a terra a maldição de Deus;
o holocausto de Noé levantou a maldição e atraiu a bênção do
mesmo Deus: “Abençoou Deus Noé e seus filhos”.
Já no Antigo Testamento a bênção e a maldição andavam
associadas ao sacrifício: os que bem exerciam o múnus sacerdotal
eram abençoados, os que abusavam dele eram malditos. A Caim disse o
Senhor, que seria maldito sobre a terra. E como foram terríveis os
efeitos dessa maldição! Caim andou errante e fugitivo, sentiu-se
possuído do terror da morte e perdeu a esperança de obter o perdão.
Assim,
o abuso da liberdade humana revela uma espécie de onipotência
funesta, em transformar os maiores bens nos piores males: converte o
sacrifício em sacrilégio, a bênção em maldição, a luz em
trevas, o caminho da verdadeira glória em abismo de ignomínia
eterna. Mas, se eram tais os efeitos resultantes dos sacrifícios
antigos, que havemos de dizer do Augustíssimo Sacrifício do Altar?
Como deverão temer e tremer os Sacerdotes que o celebram, e os fiéis
que dele participam na Sagrada Comunhão! Também a este sacrifício,
de que os antigos eram apenas sombra e figura, se associa
necessariamente a bênção ou a maldição de Deus; mas uma bênção
mais admirável, ou uma maldição mais terrível. É por uma bênção
sobre si próprio que o Sacerdote dá começo à Santa Missa,
dizendo: em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Amém.
Não é em seu nome que ousa subir ao altar, para oferecer o tremendo
Sacrifício, é em nome da Santíssima Trindade e, ao benzer-se, faz
o Sinal da Cruz. É que na Nova Lei, a bênção e a Cruz andam
unidas: quando se dá uma bênção, traça-se uma cruz. Foi a Cruz,
o altar do Sacrifício do Calvário, prefigurado pela Serpente de
Bronze, que Moisés exaltara no deserto, para remédio de quantos
para ela levantavam os olhos.
O
Sacrifício de Melquisedeque
Parte
I
O
Sacerdócio de Abel e o de Noé, eram figurativos, cada um a seu
modo, do Sacrifício cruento do Calvário; o de Melquisedeque, tendo
por matéria pão e vinho, era destinado evidentemente a anunciar o
Sacrifício da Eucaristia. Escuta o que te digo, os Mistérios dos
Cristãos são mais antigos que os dos Judeus, e os Sacramentos dos
Cristãos, são mais divinos que os dos Judeus. Como assim? Ouve:
quando começaram os Judeus? Com Judá, bisneto de Abraão; ou, se te
apraz e assim o intendes, começaram com a Lei, isto é, quando os
Judeus mereceram receber a Lei. Foram pois chamados os Judeus desde o
bisneto de Abraão, ou desde o tempo do santo Moisés. E, se então
Deus fez chover do Céu o maná para os Judeus que murmuravam, para
ti ao contrário, antecipou a figura destes sacramentos, dando-ta no tempo de Abraão.
Quando
este, com trezentos e dezoito servos que reunira, voltava triunfante
dos inimigos, tendo libertado o seu sobrinho, saiu-lhe ao encontro o
Sacerdote Melquisedeque e ofereceu-lhe pão e vinho. Quem é que
tinha o pão e o vinho? Abraão não o tinha. Mas quem o tinha?
Melquisedeque. Logo, é ele o autor dos Sacramentos. Quem é
Melquisedeque? Esta palavra significa rei da justiça, rei da paz.
Quem é esse rei da justiça? Pode, porventura, algum homem ser rei
da justiça? Quem é, portanto, o rei da justiça senão a justiça
de Deus, que é a paz de Deus e a sabedoria de Deus?
– Aquele
que pôde dizer: Dou-vos a minha paz, deixo-vos a minha paz.
Sabe,
portanto, que estes Sacramentos que recebes são anteriores aos de
Moisés e a quantos os Judeus dizem possuir; nós os Cristãos
começamos primeiro que os Judeus, mas nós na predestinação, eles
no nome. Melquisedeque ofereceu, pois, pão e vinho. Quem é
Melquisedeque, sem pai, sem mãe, sem ordem genealógica, não tendo
começo de dias, nem fim de vida, como se encontra na Epístola aos
Hebreus? É sem pai, diz ela, e sem mãe. Semelhante a quem? Ao Filho
de Deus. Na geração celestial, nasceu o Filho de Deus sem mãe;
porque só nasceu de Deus Pai; e depois, nasceu sem pai, quando
nasceu do Espírito Santo e da Virgem Maria, – do seu seio
virginal, semelhante em tudo ao Filho de Deus.
Também Melquisedeque era Sacerdote, porque é de Cristo Sacerdote
que se diz:
Tu és Sacerdote Eterno segundo a ordem de Melquisedeque.
Moisés havia escrito:
Por ser Sacerdote do Altíssimo, Melquisedeque, rei de Salem, foi ao
encontro de Abraão, ofereceu em ação de graças um sacrifício de
pão e vinho e abençoou-o dizendo: que o Deus excelso, Criador do
Céu e da terra, abençoe Abraão; e seja bendito esse Deus
Altíssimo, que te deu a vitória sobre os inimigos. E Abraão
deu-lhe o dízimo de todos os despojos.
Que
assunto de meditação para mim, o que acabo de expor! O sacrifício
de Noé era sangrento, convidava-me para o Calvário: o de
Melquisedeque é incruento, convida-me para o Cenáculo. O Calvário
e o Cenáculo, eis os dois lugares privilegiados a que a alma cristã,
e sobretudo a alma Sacerdotal, deve transportar-se, sempre que se
sinta carecida de altas inspirações.
Contemplar
somente o Calvário não basta, visitar apenas o Cenáculo também
não basta; é necessário associar o Calvário ao Cenáculo, o
Mistério do sofrimento ao do amor, – que associados e unidos
inseparavelmente o foram eles na Vítima divina. Louvado sejais, Deus
das misericórdias, que Vos acomodastes à fraqueza do meu espírito,
apresentando-me, já na Antiga Lei, e pouco a pouco, o Sacramento do
vosso amor.
Parte
II
Muito
de longe quis Deus, apontar-me a excelência do Sacramento da
Eucaristia, nas particularidades do sacrifício de Melquisedeque.
Revela na verdade este sacrifício uma singular proeminência, pela
pessoa do oferente e pela natureza da oferta. Quem era Melquisedeque?
Responde-me em primeiro lugar o inspirado Moisés, dizendo: “Por
ser Sacerdote do Altíssimo, Melquisedeque rei de Salem foi ao
encontro de Abraão, ofereceu em ação de graças um sacrifício de
pão e vinho e abençoou-o dizendo: que o Deus excelso, Criador do
Céu e da terra, abençoe Abraão e seja bendito esse Deus Altíssimo,
que te deu a vitória sobre os inimigos. Abraão deu-lhe o dízimo de
todos os despojos”.
Responde-me
em segundo lugar o grande São Paulo, não menos inspirado: “Era
Melquisedeque rei de Salem e Sacerdote do Altíssimo; tinha ido ao
encontro de Abraão quando este voltava de destroçar os reis,
e abençoou-o. Abraão deu-lhe o dízimo de todos os seus despojos”.
Segundo a etimologia da palavra, Melquisedeque significa rei da
justiça; além do mais, era ele também rei de Salem, isto é, rei
da paz. Não se faz menção nem de seu pai, nem de sua mãe, nem da
sua genealogia, nem de seu nascimento, nem da sua morte: assemelha-se
ao Filho de Deus, que é Sacerdote Eterno. Admirai agora quão grande
devia ser ele, para que o Patriarca Abraão lhe ofertasse o dízimo
dos seus melhores despojos.
Sim, é justo o apelo que o Apóstolo faz à nossa admiração: devia
ser muito grande esse homem, diante de quem Abraão, o Pai dos
Crentes, se tornava tão pequeno! É que esse homem devia ser o tipo
de Jesus Cristo. – “Como, direis vós, como é possível
um homem sem pai e sem mãe, sem genealogia, homem cuja vida não
tenha começo nem fim? – Já sabeis que Melquisedeque era
uma figura: não fiqueis pois surpreendidos, não exijais que tudo se
encontre no tipo. Se ele possuísse tudo quanto se encerra na
realidade figurada, deixaria de ser tipo. Em que sentido pois hão de
se intender essas palavras? Escutai: diz-se Melquisedeque sem pai e
sem mãe, porque se perdera a lembrança dos seus progenitores, e
diz-se sem genealogia, porque não havia memória da sua estirpe; de
um modo semelhante se diz também com verdade, que Cristo não tem
genealogia, porque não tem mãe no Céu, nem pai na terra.
Falando das grandezas do Messias, diz Davi no Salmo 109: “O
Senhor jurou e não há de voltar atrás na sua palavra: ‘Tu
(Homem-Deus) és Sacerdote Eterno segundo a ordem de
Melquisedeque’
(e não segundo a ordem de Abraão, que oferecia em sacrifício
novilhos e cordeiros)”. Preso à família, ligado à carne e ao
sangue, o Sacerdócio de Abraão era menos próprio que o do cananeu
Melquisedeque, rei da justiça e da paz, para representar o
Sacerdócio de Jesus Cristo, Pontífice Santo, Inocente, Impoluto,
Segregado dos pecadores.
É tal a grandeza e sublimidade do Sacerdócio Católico, que até
para o anunciar, desde o começo do mundo, às futuras gerações,
escolheu Deus tipos e figuras de proporções extraordinárias,
inconfundíveis! No Antigo Testamento, no decurso de 40 séculos, só
queria Ele mostrar-nos como em desenho, pintura e símbolo o
Sacerdócio de Jesus Cristo; e, apesar disso no-lo representa
deslumbrante de grandeza e majestade!
E
ainda haverá jovens que, ousem alistar-se temerariamente na milícia
sagrada? Eclesiásticos e leigos, todos precisamos meditar as
grandezas do Sacerdócio, para não lhes recusarmos as homenagens que
lhe são devidas.
Parte
III
Fica
exposto diante da Sagrada Escritura o sacrifício de Melquisedeque e
explicado conforme a doutrina de dois grandes Doutores da Igreja,
Santo Ambrósio e São João Crisóstomo; mas nem por isso devemos
dar por concluídas as nossas considerações sobre este ponto, em
que todos nós temos muito a aprender. Mais alto nos falam os
exemplos que as palavras, e tão grande é por vezes a nossa
insensibilidade que bem necessitamos de todos esses despertadores:
que os nossos olhos contemplem absortos as virtudes heroicas e os
nossos ouvidos escutem atentos as vozes do Verbo Eterno. E o que nos
dizem elas, a todos e a cada um? – Consulta os séculos idos,
considera o que se tem passado no decurso das gerações, interroga
os teus maiores e eles te dirão.
Farei,
Senhor, de bom grado o que me mandais, porque os vossos Mandamentos
são sempre justos e estão de perfeito acordo com os meus
interesses. Como pobre peregrino deste vale de lágrimas,
interessa-me olhar para o futuro, em que a minha viagem terrena
encontrará o meu termo; mas aproveita-me também volver os olhos
para o passado e alongar a minha vida até ao berço de nossos
primeiros pais. Não podiam ir tão longe as luzes da minha razão,
que pouco alcançam e facilmente se obscurecem. Que fazer pois? O que
convinha fazer, Vós o fizestes para mim e sem mim: deste-me as luzes
da fé com as quais posso caminhar ao longe e ao largo pelo meio de
todas as gerações da família humana. Muito triste deve ser uma
vida sem fé! Até na ordem física as trevas parecem inimigas
naturais da vida: as plantinhas procuram a luz, inclinando-se para o
sol; e quando não conseguem libertar-se das sombras, mostram-se
tristes, nem se vestem de mimosas flores, nem se carregam de
abundantes frutos.
Também
o homem, quando a fé não lhe ilumina a vida, é como a planta
estéril, sumida nas profundezas de um barranco, que os raios do sol
nunca visitam; o seu horizonte visual é demasiado restrito e a sua
vista tão curta, que não lhe deixa ver nem de onde vem, nem para
onde vai. Para o homem de fé, pelo contrário, tudo se ilumina – o
passado, o presente, o futuro, o natural e o sobrenatural, o tempo e
a eternidade, a terra e o Céu. É deste modo, à luz da fé, meu
Deus, que descubro as múltiplas feições do Salvador do mundo, como
outras tantas lições que devo considerar. Assim Melquisedeque,
Sacerdote e rei, apresentado a meus olhos, sem ascendência nem
descendência, faz-me compreender que o Sacerdote não pertence à
sua família, mas sim à Igreja, a cujo serviço se consagrou e para
a qual deve viver. É verdade que ele, como qualquer outro homem, não
pode aparecer no mundo sem pai, sem mãe, sem genealogia, sem
família; mas, na dignidade eminente de Sacerdote, deve morrer à
carne e ao sangue, para ser só homem de Deus, homem da Igreja,
delegado de Jesus Cristo. É quase uma blasfêmia, dizer que os
Padres são homens como os outros; não, o Sacerdócio elevou-os
muito acima da condição humana. Quando rebaixam a sua dignidade,
tornam-se menos que homens, convertem-se em Demônios, como o próprio
Jesus Cristo afirmou de Judas; não é verdade que vos
escolhi em número de doze, e que ainda assim um de vós é Demônio?
Para um Anjo decaído, não há de ficar-se homem; é forçoso que se
torne em Demônio.
Parte
IV
Por
ser imagem de Jesus Cristo-Sacerdote, Melquisedeque no seu tempo é
apresentado como Sacerdote único, Sacerdote do Altíssimo, Sacerdote
e rei de Salem, rei da justiça e da paz, sem começo nem fim.
Porquê,
para quê, de que modo e onde ofereceu Melquisedeque o seu sacrifício
de pão e vinho? É minuciosa a Escritura em nos por diante dos olhos
todas estas circunstâncias. Não é Sacerdote quem o quer ser, mas
somente quem o Senhor Supremo de todas as coisas escolhe para esse
múnus. Melquisedeque pois ofereceu sacrifício, porque era
Sacerdote do Altíssimo, ou antes, do Deus altíssimo.
E, oferecendo um sacrifício, não imitou Abel nem Noé na escolha de
animais; ofereceu pão e vinho, porque o mesmo Senhor, que o
constituíra Sacerdote e rei, lhe inspirara a natureza da oferenda.
O
fim que se propôs foi dar graças a Deus, pela recente vitória de
Abraão, e felicitar este, recebendo ao mesmo tempo as suas
homenagens: que o Deus excelso, Criador do Céu e da terra,
abençoe Abraão, e seja bendito o Deus altíssimo, que te deu a
vitória sobre os inimigos.
Foi
também dando graças que Jesus Cristo na noite da Ceia, consagrou
pão e vinho: tomou Jesus pão e abençoou-o… e tomando o cálice
deu graças.
Assim, de um modo muito claro o sacrifício de Melquisedeque
anunciava de longe a Sagrada Eucaristia, que devia reduzir à unidade
os múltiplos sacrifícios da Lei Natural e Mosaica. Do sacrifício
de Melquisedeque participou Abraão e os seus servos, que voltavam
triunfantes dos seus inimigos; do Sacrifício Eucarístico
participaram logo desde a Instituição os Apóstolos que todos, à
exceção de Judas, estavam puros e, por isso, libertos da escravidão
do pecado, – triunfantes dos inimigos da sua alma. Eis uma figura
da Sagrada Comunhão.
Pela
sua parte, Abraão recebeu agradecido a bênção, de Melquisedeque,
com a participação no sacrifício, e deu-lhe o dízimo dos seus
melhores despojos. Aprendam neste exemplo os comungantes a
darem a Deus, depois da Sagrada Comunhão, as devidas ações de
graças, oferecendo-lhe de preferência os melhores despojos
alcançados na guerra contra os inimigos da sua alma: o perdão das
injúrias recebidas, a prática discreta da mortificação, a dor dos
pecados, a paciência nos sofrimentos, etc.
Como
chefe do povo escolhido, Abraão na sua homenagem representa as dez
tribos de Israel e particularmente a tribo sacerdotal de Levi. Ao dar
testemunho solene da alta superioridade de Melquisedeque, apontava o
Pai dos Crentes às gerações futuras, quanto o Sacerdócio de Aarão
ficaria inferior ao de Jesus Cristo, de quem Davi
tinha profetizado: “Jurou o Senhor, e não se há de arrepender:
Tu és Sacerdote Eterno segundo a ordem de Melquisedeque”. “O
que Melquisedeque foi em figura, diz São João Crisóstomo, o
foi Jesus Cristo em realidade e o nome de Melquisedeque foi como os
nomes de Jesus Cristo, que muito de longe anunciaram e
figuraram a missão do Salvador… Deus não jura na realidade,
prediz simplesmente o que há de acontecer”.
Nem
o sacrifício de Abel, nem o de Noé nos aparecem definidos quando ao
lugar; no de Melquisedeque, porém, deixa-se ver essa circunstância,
que representa um novo traço de semelhança com o Sacrifício
Eucarístico. É de fato, em Salem (Jerusalém) que Melquisedeque
realiza o seu sacrifício de pão e vinho, ali mesmo onde Jesus
Cristo institui a Sagrada Eucaristia.
O
Sacrifício de Abraão
Parte
I
Depois
do sacrifício de Melquisedeque, vem o de Abraão, cujas lições não
são menos dignas de consideração. Quando se fala em exemplos de fé
viva, pode remontar-se até ao berço do gênero humano e recordar as
oblações do justo Abel, que atraíram as complacências de Deus,
porque eram animadas de vivíssima fé; pode evocar-se a memória do
paciente Jó, que nas angústias dos mais duros sofrimentos não
afrouxava na sua fé e causava espanto ao próprio Demônio; pode
relembra-se o nome de Moisés, que no zelo da sua fé se recusou a
passar por neto do Faraó e preferiu sair do Egito, trocando as
delícias da corte pelas asperezas do deserto e sofrendo as
ingratidões do povo de Deus; mas o tipo da nossa fé no Antigo
Testamento é Abraão.
Natural
da Caldeia, filho de Taré e neto de Nacor, Abraão era idólatra
como os seus ascendentes. Afirma-o expressamente São João
Crisóstomo: “Não me podeis dizer que Abraão recebera de seus
pais a verdadeira religião. Primeiro fora idólatra como eles.
Apesar de uma tal origem, tendo até então vivido como bárbaro no
meio de bárbaros, não tendo ninguém que o pudesse formar na
piedade, chega ao conhecimento de Deus, adquire sobre todos os seus
descendentes – que deviam contudo possuir a Lei e os Profetas –
uma alta superioridade em glória e virtude. Por quê? Porque
não se preocupava com as coisas temporais e embebera-se todo nas
espirituais. O que diremos de Melquisedeque? Não vivia ele no mesmo
século e não mereceu pelo esplendor da sua vida ser chamado o
Sacerdote do Senhor? É impossível, com efeito, absolutamente
impossível, que o homem vigilante seja esquecido de Deus”.
A
mesma opinião insinua também Santo Ambrósio. E idólatra pois,
Abraão tornou-se um exemplar prodigioso de obediência e fé. Quando
ao lado do caminho da vida se avista uma estátua, ou um monumento
antigo, levantado à memória de um nome ilustre, naturalmente se
voltam para ele os olhos, com ares de admiração e até por vezes de
contentamento, por se contemplar talvez ali um exemplo de nobre
coragem, um modelo de grandes virtudes, uma inspiração de sublimes
incitamentos.
Um
grande exemplo é sempre uma escola de salutares influências para os
vindouros. Sujeitos à mesma lei que o vulgo, também os grandes
heróis desaparecem velozes do teatro da vida; mais tarde ou mais
cedo chega a hora em que tem de pagar o seu tributo à morte. Mas
imergem eles de todo nas sombras do túmulo? Emudecem por completo?
Não; continuam a viver e a falar através de todas as gerações;
sendo cada vez maior o número dos seus ouvintes, dos seus discípulos
e admiradores. Ó, como é salutar, fecundo e consolador o bom
exemplo, onde quer que se manifeste. Quando encarna no seio da
família, num pai ou numa mãe, enche de bênçãos os filhos e faz
talvez a felicidade de muitos lares; quando encarna num Sacerdote,
num Pastor de almas, num Sucessor dos Apóstolos, estende ainda mais
longe a sua benéfica influência: que dizer pois ao vê-lo encarnado
naquele, em quem haviam de ser abençoadas todas as gerações da
terra?
E
aqui, antes de passar a novas considerações, devo refletir por um
instante sobre o pouco que tenho adiantado na fé, eu nascido de pais
católicos e sob uma atmosfera de piedade, eu privilegiado com tantas
graças e enriquecido com tantos benefícios! Aonde irei procurar o
termômetro da minha fé? Na fidelidade à minha vocação.
Parte
II
A
fé de Abraão revela caracteres que a tornam modelar, porque foi uma
fé sem precedentes que a inspirassem, uma fé pronta, de obediência
perfeita, de sacrifício completo e nunca desmentida.
É
o patrimônio da fé, o mais rico de todos os patrimônios; mal sabem
apreciá-lo os filhos que o herdam de seus pais; mas Abraão não
teve a fortuna de o herdar. Ao relancear os olhos em volta de si, só
via exemplos de perversão. De mais a mais, quem ignora quanto é
difícil romper com hábitos inveterados? Abraão tinha os seus
hábitos formados e enraizados; contava já 75 anos de idade, quando
Deus se lhe revelou, dizendo: “Deixa a tua terra, os teus
parentes, a casa de teu pai, e vem para a terra que Eu te mostrar”.
Seria exigir pouco de um homem, em idade já tão avançada? Por
certo que não, e todavia, o dócil servo apressa-se a responder
antes com obras que com palavras: “Saiu Abraão conforme Deus
lhe havia preceituado”. Não interpõe delongas, nem pede
esclarecimentos a respeito do clima, da situação ou da fertilidade
da nova terra, que lhe está destinada, porque sabe que a
prudência da carne e do sangue não deve ser escutada, quando a
Providência divina revela os seus desígnios.
Ao
verem-se partir em circunstâncias tais, muitos dos seus conterrâneos
considerá-lo-iam talvez como um louco; contudo, ele prossegue, nada
lhe suspende os passos no caminho da obediência. Quando assim
procedia no primeiro momento da sua vocação, dava mostras de que
estava pronto para todos os sacrifícios. Qualquer que seja o
estado a que Deus nos chame, vale sempre muito começar bem, começar
com grande generosidade de coração e espírito de sacrifício.
Ao
Patriarca do povo eleito, o que lhe serviu de norma não foi nem o
seu próprio gosto, nem a opinião de sua família, mas única e
exclusivamente a vontade de Deus. Segundo a etimologia da palavra
ídolo – idolem ou idolum – significa o que se vê com os olhos
do corpo ou se fantasia com a imaginação, isto é, imagem, figura,
representação. Idolatria grosseira é, pois, dar às criaturas o
coração que só se deve a Deus; idolatria é adorar o bezerro de
ouro dos interesses materiais, em vez de procurar em primeiro lugar e
acima de tudo o Reino de Deus e a Sua justiça; idolatria é buscar o
prazer pelo mesmo prazer, esquecendo os ditames da razão e os
Preceitos do Evangelho.
Pode
dizer-se que Abraão, sem o saber, começou a preparar-se para o
sacrifício de seu filho Isaac, logo desde o primeiro instante da sua
vocação, em que renunciara a todos os ídolos. Que ditoso momento
esse em que a luz da Verdade se lhe deparou, depois de tantos anos de
densas trevas!
Como
poderia o seu coração agradecido ficar-se insensível? Ah! Não
ficou, não, expandiu-se: “Abri a Escritura; a sua história
desenrola-se aí como uma longa cadeia de ouro; ele dá-nos sempre
exemplos de uma filosofia sublime; mas Deus intervém a cada passo
para recompensar os seus esforços e a sua virtude… O seu exemplo
convida-nos por uma lado, a empreender corajosamente os combates da
virtude, cheios de confiança nas recompensas celestes e
seguros da liberalidade misericordiosa de Nosso Senhor; por outro
lado, a receber com submissão, na expectativa dos bens eternos, as
penas e sofrimentos da vida”.
Parte
III
A
fé, a obediência e o sacrifício foram os três degraus por onde
Abraão se levantou à altura da grande missão que o Senhor lhe
confiara.
Desde
a Mesopotâmia, em que Deus se lhe revelara pela primeira vez, até
ao Egito, aonde a fome o conduzira, muito longa e penosa tinha de ser
a sua peregrinação de noviciado. Quando o Diácono Santo Estêvão
discursou diante do concílio da Sinagoga, que rugia de cólera
diante do ardor da sua fé, começou por dizer: “Irmãos e
sacerdotes, escutai: o Deus da glória apareceu a nosso pai Abraão,
quando habitava ainda na Mesopotâmia; antes de ir estacionar em
Charan, e disse-lhe: Sai da tua terra, deixa a tua família, e vem
para a terra que Eu te mostrar”.
Era a fé do Novo Testamento a confirmar e aplaudir a do Antigo; os
grandes apóstolos da verdade avistam-se e compreendem-se sempre,
embora separados por longas distâncias no tempo e no espaço.
Tendo-se
posto a caminho, em cumprimento da ordem que o Senhor lhe impusera,
transpôs Abraão os confins da Caldeia e entrou em Siquém. Parecia
que a sua fidelidade já pedia uma recompensa: Deus não lhe faltou
com ela: apareceu-lhe segunda vez e prometeu dar aquela terra aos
seus descendentes.
De que se havia de lembrar o dócil servo para testemunhar
publicamente ao Senhor a sua gratidão? Lhe erigiu ali um altar.
Prossegue depois na sua viagem e entre Betel e Hai levanta segundo
altar, mais tarde, quando já se havia separado de seu sobrinho Ló,
edifica terceiro altar em Hebron.
Que
inspiração secreta o moveria a traduzir deste modo a sua piedade e
gratidão? É que Abraão, sem o saber, era chamado ao sacerdócio;
tinha de realizar um sacrifício, para o qual devia preparar-se muito
de longe, ainda que esse sacrifício era apenas uma figura do
Sacrifício único do Calvário. Por isso, o vemos primeiro
familiarizado com o altar, depois tomando parte no sacrifício de
Melquisedeque,
em seguida, oferecendo a Deus um sacrifício de cinco vítimas,
firmando a sua aliança com o Senhor, mediante o sinal da
circuncisão,
e finalmente, pronto a imolar o seu único filho.
Um
dia, quando Isaac contava já 25 anos de idade, disse Deus a Abraão:
“Lança mão de Isaac, teu filho unigênito, a quem amas, e vai
à terra de visão, onde hás de o oferecer-me em holocausto sobre o
Monte que Eu te mostrar”.
Antes
de lançarmos os olhos para a prontidão com que Abraão cuida de
cumprir generosamente a vontade do Senhor, consideremos dois pontos:
– 1º. Quanto era doloroso o sacrifício, que Deus lhe
exigia; – 2º. Quanto deveriam ser terríveis as tentações,
que se levantaram no coração desse pai extremoso, que então,
contava já 125 anos de idade. As mesmas palavras, de que Deus se
serve, parecem escolhidas para trespassarem de lado a lado o coração
paterno: lança mão do teu filho único, a quem amas… É
uma ordem terminante, para ser cumprida sem demora. E a vítima
escolhida, não são aves nem quadrúpedes, é o teu filho Isaac,
filho único, a tua consolação e esperança, o amparo da tua
cansada velhice; filho que tu amas, não só porque és pai e
ele é único, mas porque até para os estranhos ele é amável, em
razão das suas belas qualidades. Mas, tu próprio hás de ser o
sacrificador e lá ao longe, num ermo, na cumeada de um Monte, que Eu
te hei de mostrar na ocasião própria.
Ó
meu Deus, que motivo de confusão para mim, servo preguiçoso e
covarde, que desfaleço diante dos mais leves sacrifícios, e até
muitas vezes me deixo vencer por dificuldades imaginárias! Quando
necessito de retemperar a minha fé na contemplação dos grandes
exemplos, que me pondes diante dos olhos!
Parte
IV
Era
o próprio pai, e não um estranho, quem havia de conduzir consigo a
vítima, preparar a lenha, erigir o altar, estender sobre ele o seu
unigênito, descarregar o golpe fatal e consumar o holocausto. Nunca
Deus tinha exigido de nenhum pai um tal sacrifício. É, para que que
não fossemos levados a crer que o peso dos anos tivesse esfriado o
amor paterno, a mesma Escritura emprega uma palavra que significa,
não qualquer modo de amar, mas um amor de eleição. Para obedecer
pois à ordem de Deus, tinha Abraão de fazer violência, e violência
inaudita, aos impulsos do seu coração de pai.
Mas,
ao lado das tentações da carne e do sangue, estavam as que o
espírito das trevas havia de suscitar no espírito do grande
Patriarca, representando-lhe sobretudo a contradição em que parecia
cair o próprio Deus. À primeira mulher, perguntara outrora
audaciosamente a Serpente: “Porque vos mandou Deus que não
comêsseis de todo o fruto do Paraíso?”
Usando da mesma tática com o santo Patriarca, também havia de
instá-lo a refletir no porquê desse mandamento
dolorosíssimo. Desde que Isaac fosse imolado, falharia por certo a
promessa de uma descendência numerosíssima.
Escutemos
São João Crisóstomo:
“Não se viu nele nem incredulidade nem hesitação; era-lhe
garantia suficiente a voz de Quem o tinha chamado. Estava sem filhos
e sem posteridade, assim como Sara sua mulher. Seu filho Isaac foi o
filho da promessa; a impotência da natureza fora suprida pelo
benefício da graça. Assim fora o Patriarca largamente recompensado
da sua obediência, mas sem o saber de ante mão; porque, se o
soubesse, nada de notável se teria dado na sua conduta. Para vos
convencerdes de que tal não tinha sido o motivo do seu procedimento,
vede como ele se submete à ordem que lhe é imposta de imolar o seu
filho, como sufoca a voz da natureza, como obedece por amor do seu
Deus, como calca aos pés o seu próprio coração e não se faz de
surdo a voz que o chama.
Que
lhe diz o Senhor? ‘Abraão, Abraão. E ele responde. Eis-me aqui. E
diz Deus: Toma Isaac, teu filho querido, e me o oferece em sacrifício
no Monte que Eu te indicar”.
Nem sequer lhe designou o Monte, aumentando com esta linguagem a sua
tristeza. Com nada disto se perturbou Abraão. Para melhor dizer,
fê-lo sobressair mais na prova; sofreu como devia sofrer um homem,
mas não conheceu os sofrimentos que o pecado produz; joguete das
ondas como pai, graças à sua piedade, não se submergiu; a dor
feriu-lhe o coração, mas a fé deu-lhe a vitória. Não digais que
Abraão nada teve a sofrer: considerai, a par das angústias que o
crucificavam, a sua alta sabedoria. Nada disse a Sara com receio de
que ela se opusesse ao cumprimento daquela ordem misteriosa. De fato,
se lho tivesse manifestado, é provável que ela tentasse
dissuadi-lo, dizendo-lhe: para onde levais o vosso filho, este filho
que eu tive contra toda a esperança, que devo a uma promessa, que me
foi dado como prêmio da hospitalidade, filho que Deus me concedeu no
fim da vida? Para onde o conduzis, para onde o levais? Vós não
tivestes nenhuma visão. Como é possível que Deus se vos mostrasse
e vos pedisse um filho que me deu, quando eu de nenhum modo o
esperava? Se mo tivesse dado para o retomar, mais valia então não
mo ter dado; porque, se sofre menos não tendo filhos, do que
perdendo-os, depois de os ter”.
Parte
V
O
sacrifício de Melquisedeque diferenciava-se de todos os anteriores,
principalmente, em razão do pão e do vinho, que constituíra a sua
matéria, por escolha do próprio Sacerdote.
No
sacrifício de Abraão, aparecia uma diferença imposta pelo próprio
Deus e que devia causar espanto ao mesmo Abraão: era um sacrifício
de vítima humana, que havia de ser imolada pelo pai e em
circunstâncias de todo o ponto extraordinárias! Tudo se conspirava
para abalar a fé desse servo incomparável, e apesar disso ele
apressou-se a cumprir a ordem de Deus, como se nenhum obstáculo vira
diante de si!
Levantando-se
pois Abraão, ainda de noite, preparou o seu jumento, tomou consigo o
seu filho Isaac e dois servos, cortou a lenha para o holocausto, e
pôs-se a caminho para o lugar que Deus lhe havia ordenado. Ao
terceiro dia, tendo levantado os olhos, avistou ao longe o lugar
marcado.
Então
disse aos seus servos: esperai aqui com o jumento, que eu e meu filho
vamos ali e voltaremos a juntar-nos a vós, depois de termos feito
adoração. Tomou também a lenha do holocausto e pô-la às costas
de seu filho Isaac: Abraão levava nas mãos o fogo e o cutelo. Ao
caminharem ambos, disse Isaac para o seu pai: meu pai! – Que
queres, meu filho? Respondeu ele. – O fogo e a lenha aqui vão:
onde está a vítima do holocausto? – Meu filho, Deus há de
providenciar quanto à vítima do seu holocausto. Chegados ao lugar
que Deus ordenara, levantou Abraão um altar, dispôs a lenha em
cima, depois amarrou o seu filho Isaac e colocou-o sobre a lenha no
altar. Estendeu a mão, e tomou o cutelo, para imolar seu filho.
Então lhe clamou do Céu um Anjo do Senhor, dizendo: Abraão,
Abraão!
– Aqui
estou, Senhor, respondeu ele. – Disse-lhe o Anjo: Não descarregues
a tua mão sobre o menino, nem lhe faças mal algum: agora conheci
(agora provaste), que temes a Deus, pois que nem o teu filho único
poupaste por minha causa. Olhou Abraão e viu atrás de si um
carneiro embaraçado pelas pontas numas sarças, lançou mão dele, e
ofereceu-o em holocausto em vez de seu filho.
Que
presteza a do venerando ancião em satisfazer a vontade de Deus! Numa
idade tão avançada, em que tinha todo o direito a ser objeto dos
cuidados alheios, é ele quem se apressa a cuidar de todos os
preparativos para o sacrifício; nem espera sequer que a luz do dia
venha guiar-lhe os passos, no caminho que tem de trilhar: levanta-se
de manhã cedo, ainda de noite, e chama os servos e o filho, prepara
o jumento e a lenha.
Isto
diz a Escritura, – mas não cuidaria ele de mais nada, mostrando-se
tão providente em tudo? Sem dúvida fez também provisão de
alimento para si e para os seus companheiros, visto que a extensão
da viagem lhe era desconhecida; mas o mais importante era que nada
faltasse com respeito ao sacrifício. Já vejo quanto devo ser
cuidadoso em consagrar a Deus as primícias do dia, e como devo
proceder quando Ele me exigir qualquer sacrifício, por doloroso que
seja: devo obedecer de pronto, nada omitir do que me for preceituado
e afastar todos os raciocínios. Deus não está obrigado a dar-me
razão do que me preceitua; basta-me saber o que Ele manda.
No
que fez e no modo como o fez, mostrou Abraão que a sua grande
preocupação, desde que recebeu ordem para sacrificar o seu filho
único, era cumprir com a maior prontidão e do modo mais perfeito a
vontade de Deus. Se os meus sacrifícios tiverem tempo e lugar
determinados, não poderei antecipá-lo, nem retardá-los, nem
deslocá-los; devo realizá-los em toda a sua integridade.
Parte
VI
Abraão
não discutiu as ordens de Deus; adorou-as e aplicou-se a cumpri-las
com toda a fidelidade. Se raciocinasse como simples homem, podia
dizer a Deus: “Senhor, conquanto este sacrifício de meu filho
seja o mais doloroso que me podíeis exigir, estou pronto a
realizá-lo, mas porque não há de ser aqui perto da minha
habitação? Que mais vale um Monte que outro? Por que me haveis de
arrastar nesta idade lá para um Monte afastado?
É
com raciocínios semelhantes, que as almas de pouca fé costumam
diminuir e até deixar perder os méritos da obediência. Contra cada
ordem dos Superiores, se levantam muitas vezes tantas opiniões
diferentes, quantos são os súditos. Com o chefe do povo escolhido
não se deu o mesmo: a sua conduta amoldou-se escrupulosamente ao
Preceito divino. Nunca são de pouca importância os acessórios dos
sacrifícios que Deus nos impõe. Feitos todos os preparativos,
pôs-se Abraão a caminho do seu Calvário, em companhia de Isaac e
dos dois servos, durante três dias de indizível martírio. Que
espetáculo para os Anjos, que glória para Deus e que motivo de
raiva extrema para os espíritos das trevas! Com ninguém desabafou a
sua dor o santo peregrino: nem a Isaac nem aos servos revelara coisa
alguma. E como pernoitaria ele para refazer as forças do seu corpo
alquebrado? Quantas vezes teria de suspender os passos para tomar uns
instantes de alento? Não o sabemos.
Ao
terceiro dia de viagem, avistou o Moriá ou Moriá, o Monte da Visão,
e mandou fazer alto. Os dois servos com o jumento deviam aguardar ali
o regresso do pai e do filho. “Inspirado pela graça divina,
Abraão profetizava sem o saber. Como assim, ides imolar o vosso
filho e dizeis: nós voltaremos? Torna-se profeta, quando trata de
ocultar aos dois servos o seu desígnio”.
Revelando em tudo uma prudência consumada, Abraão não quer que os
seus servos sejam testemunhas do seu sacrifício, e por isso lhes
ordena que esperem ali. Depois de se separarem dos servos e quando já
iam subindo o Monte, trava-se um diálogo íntimo entre o pai e o
filho. Isaac pergunta pela vítima do sacrifício e Abraão profetiza
pela segunda vez, dizendo, que Deus há de prover.
Feita
em tal ocasião, a pergunta do filho era de molde a dilacerar ainda
mais o coração do pai. Bem podia este com toda a verdade dizer de
si para si: pobre filho, estás longe de imaginar que este sacrifício
tem duas vítimas! A primeira, é teu pai, que já começou a ser
imolado, desde o momento em que o Senhor lhe impôs tão duro
sacrifício. A segunda, és tu próprio, que na flor dos anos vais
deixar a vida. A lenha que levas é que há de reduzir a cinzas o teu
corpo. Agora ainda me podes chamar pai, como eu te posso tratar por
meu filho. Mais um instante e tudo mudará: quando amanhã se
levantar o sol no Oriente, já não iluminará senão uma terra erma
e vazia do que eu nela possuía de mais caro. Além do mais, sou eu,
pai extremoso, que hei de fazer o ofício de algoz, descarregando o
golpe fatal sobre o objeto das minhas afeições e esperanças. Com
que sentimentos de suprema angústia se trocarão os nossos olhares
no lance derradeiro!
Esta
seria uma linguagem inspirada pelos sentimentos naturais, mas Abraão
estava animado de sentimentos sobrenaturais e por isso não tenta
explicar o Mistério; limita-se a confessar, que põe em Deus toda a
sua confiança. Deus há de providenciar, quanto à vítima do
seu holocausto.
Parte
VII
Os
sacrifícios de Abel, Noé e Melquisedeque, cada um deles com os seus
caracteres diferenciais, que deixamos apontados, foram sacrifícios
espontâneos, que Deus aceitou em odor de suavidade,
sem os haver preceituado.
Foi
também espontaneamente que Abraão erigiu ao Senhor três altares;
mas o sacrifício de cinco vítimas, em confirmação da Aliança
feita, e depois o do próprio filho, foram-lhe impostos pela
obediência.
Até
então, nunca Deus tinha preceituado nenhum sacrifício; neste
último, porém, determinou uma vítima humana para lhe ser oferecida
em holocausto, escolheu o oferente e marcou o lugar dessa imolação,
nunca vista nem por certo imaginada.
O
pecado no Paraíso tinha sido de desobediência e revolta, que o
futuro Redentor havia de reparar de um modo superabundante,
fazendo-se obediente até a morte e morte de Cruz.
O
tipo mais perfeito desta obediência do Homem-Deus era Abraão que,
tendo aos 75 anos de idade, voltado as costas à Caldeia idólatra,
vinha fazendo o seu noviciado gradual numa dura peregrinação de
muitas dezenas de léguas. Embora aos olhos dos homens pareçam
tortuosos, são sempre retos os caminhos por onde Deus conduz os seus
servos fiéis. Depois de 50 anos de provada obediência, sobe, enfim,
Abraão com seu filho Isaac ao Moriá. A escolha deste Monte, de
preferência a qualquer outro, encerrava sem dúvida grande Mistério.
Conforme o testemunho da Escritura,
era ali que Salomão havia de edificar o Templo: “E
começou Salomão a edificar a Casa do Senhor em Jerusalém no Monte
Moriá que tinha sido mostrado a Davi seu pai, no lugar que este
preparara, na eira do Jebuseu Ornan”. Segundo Josefo, São
Jerônimo e outros, foi neste lugar que Abraão realizou o seu
sacrifício. A colina do Gólgota ou Calvário, situada a
ocidente, foi mais tarde abrangida pelo terceiro muro da cidade.
Subamos
agora em espírito ao Moriá e contemplemos a cena sublime que aí se
nos depara. Apesar de cansado com três dias de viagem, por caminhos
difíceis, e trêmulo a um tempo pela idade e pela angústia, Abraão
põe mãos à obra com a maior intrepidez: ajunta e assenta umas
pedras para o altar, em cima dele estende a lenha, depois amarra o
seu filho Isaac e deita-o sobre a lenha.
Não
se sabe aqui o que mais se há de admirar, se a magnanimidade do pai
em obedecer a Deus, se a docilidade do filho em obedecer ao pai e a
Deus.
Isaac
é um jovem de 25 anos, a quem por certo não são desconhecidas as
promessas feitas por Deus a seu pai; mas agora as suas esperanças
fenecem de repente ao ver-se sobre o altar do holocausto.
A
sua situação é mais aflitiva que a de Abel, porque este tivera a
consolação de ver as suas oferendas aceitas pelo Senhor; não era
filho único e ao ser sacrificado por Caim, não sentia junto de si o
ofegar de um coração de pai extremoso. Isaac reconhecia que o golpe
terrível do sacrifício, antes de lhe cair sobre o corpo,
atravessava a alma e o bom coração do seu pai: era pois duas vezes
mártir, duas vezes vítima. Apesar de tudo, como Jesus Cristo de
quem era figura, deixa-se amarrar e oferecer em sacrifício.
Nunca
se tinham visto, frente a frente, um pai e um filho tão dignos um do
outro, e ambos tão dignos de Deus.
E
tudo isto se passava lá no ermo, em misterioso silêncio, longe das
vistas curiosas do mundo. Neste momento, o Senhor deu o sacrifício
por consumado – que consumado estava ele já no coração do pai e
do filho, Deus providenciara a respeito da vítima, substituindo-a.
Do
Cenáculo ao Calvário
Tenho
fixado com demorada atenção os sacrifícios figurativos desde Abel
até Abraão. Agora, sem me deter a considerar os múltiplos
sacrifícios da Sinagoga, vou concentrar o meu espírito no
Sacrifício Augusto, Real e Único, de que todos os outros eram
somente prenúncio e figura.
“Ó
Deus, que consumastes a variedade das vítimas legais na perfeição
de um só Sacrifício, aceitai o que Vos oferecem os vossos servos, e
dai às suas oferendas a mesma bênção que dispensastes às de
Abel, para que, o que cada um oferecer em honra da vossa Majestade, a
todos aproveite para a salvação”.
Todos
os sacrifícios antigos são reduzidos à unidade por Jesus Cristo e
em Jesus Cristo: em vez de muitos sacrifícios, um só Sacrifício;
em vez de muitas vítimas, uma só Vítima; em vez de muitos
sacerdotes, um só Sacerdote Eterno; que é ao mesmo tempo Vítima
Augusta.
Antes
de Jesus Cristo, nenhuma criatura, nem humana nem angélica, podia
honrar a Deus condignamente, porque é insondável o abismo que
separa a criatura do Criador. Sem dúvida, foi aceito ao Senhor, além
de muitos outros, o sacrifício de Abel, o de Melquisedeque e o de
Abraão, mas nenhum deles se ergueu à dignidade de Sacrifício
perfeito.
Do
Cenáculo ao Calvário, quanto tenho a meditar! Quantas reflexões
podem me suscitar estas duas palavras! Na
ordem das ideias, o Cenáculo me faz lembrar o sacrifício de
Melquisedeque, o Calvário recorda-me o sacrifício de Abraão:
dois sacrifícios, cada um no seu lugar e com o seu caráter próprio.
A circunstância do lugar não pode me passar despercebida, porque
ajusta melhor a figura à realidade. Em
que lugar ofereceu Abraão o seu sacrifício? No Calvário, isto é,
no mesmo lugar em que Jesus Cristo havia de ser crucificado; afirma-o
São Jerônimo, como um fato inteiramente certo.
E
em que lugar ofereceu Melquisedeque o seu sacrifício de pão e
vinho, figura da Sagrada Eucaristia? Em Salem, no lugar da futura
Jerusalém, onde se havia de levantar um dia o Cenáculo, situado
dentro da cidade e mais alto que o templo, no Monte Sião.
Malaquias,
o último dos Profetas menores, antevira
os tempos em que por toda a terra, até entre os gentios, se havia de
oferecer ao Senhor uma oblação absoluta e perfeitamente pura.
Mas,
que oblação era essa, e em que altar, em que santuário, se havia
de oferecer pela primeira vez, para depois se perpetrar no tempo e
dilatar no espaço? Era a Sagrada Eucaristia, instituída por Jesus
Cristo no Cenáculo, na última Ceia com Seus Discípulos, –
conforme a promessa feita antes, em seguida ao milagre da
multiplicação de cinco pães e dois peixes.
Destinado
a tornar-se como que a Casa-Mãe da Igreja Católica, o Cenáculo não
podia ser um albergue ordinário; era uma vasta sala, ricamente
mobilhada. Pertencia a um judeu opulento, que reconhecia em Jesus
Cristo o verdadeiro Messias, embora não O seguisse publicamente. Foi
no Cenáculo que se celebrou a primeira Missa, que se ministrou a
Sagrada Comunhão pela primeira vez, que se ordenaram os primeiros
Sacerdotes da Nova Lei; mas onde também, na mesma ocasião se
cometeu o primeiro sacrilégio eucarístico! Cinquenta e três dias
mais tarde, no dia de Pentecostes, é ainda nesse Santuário, que os
Discípulos recebem de um modo prodigioso o Espírito Santo.
2
PARTE
Os
Preparadores do Cenáculo
Era
na quinta-feira da Semana Santa, primeiro dia dos ázimos. Ao pôr do
sol, deviam os Judeus celebrar a Páscoa, conforme estava preceituado
na Lei.
Para nosso exemplo pois,
Jesus Cristo quis observar até ao fim essa Lei que vinha ab-rogar.
Estando ainda em Betânia,
mandou à frente Pedro e João com esta ordem: ide preparar a Páscoa
que havemos de celebrar. Perguntaram-lhe então eles: onde quereis
que a preparemos? Respondeu-lhes Jesus: ao entrardes na cidade,
encontrareis um homem com uma jarra d’água; segui-o até à casa
em que ele entrar. Chegados lá, dizei ao dono: o Mestre mandou-nos
perguntar qual o aposento que lhe dais para nele comer a Páscoa com
os Seus discípulos? Ele vos mostrará uma grande sala toda adornada;
fazei nela os preparativos. Partiram os dois e tudo lhes aconteceu
como Jesus Cristo havia predito.
O
próprio dono da casa vos há de mostrar uma sala grande e
adornada.
Era espaçoso bastante o Cenáculo e estava
adornado, mas nem por isso deixava de exigir preparativos. Aquele
mesmo Filho de Deus, que para nascer tinha escolhido um presépio,
para este novo templo, escolhe um rico aposento. Mais ainda, dentre
os Seus doze discípulos, escolhe Pedro e João, para cuidarem dos
preparativos.
Pedro
era o homem da fé, quem em
Cesaréa de Filipe havia confessado a Divindade do Filho de Deus, –
a quem ia negar por três vezes, depois dos maiores protestos de
fidelidade; mas era também o grande penitente, que havia de chorar
amargamente os seus pecados. A noite da sua queda estava próxima,
sim, mas com intervalo de três dias chegaria outra noite, em que ali
no Cenáculo seria instituído o Sacramento da Penitência, na mesma
tarde da Ressurreição.
João
era o discípulo do amor – primeiro discípulo, depois Apóstolo do
Amor e Evangelista – ficava-lhe bem o ofício de preparador do
Cenáculo, onde ia ser instituído o Sacramento do Amor.
Naquele
tempo ainda os dois Apóstolos não compreendiam a grandeza da missão
que lhes era confiada; ignoravam os altos Mistérios que em breve
seriam chamados a contemplar de perto. Pela tarde do mesmo dia,
dirige-se Jesus Cristo de Betânia para o templo de Jerusalém e
depois para o Cenáculo,
já preparado, e por certo bem preparado.
Os fatos que acabo de recordar já me oferecem assunto para largas
considerações. Não sou eu um verdadeiro cenáculo, um cenáculo
animado, em que Jesus Cristo entra com frequência, se não todos os
dias? E se Jesus Cristo, além de ter escolhido expressamente lá em
Jerusalém um Cenáculo rico, não se dignou de entrar nele sem
mandar adiante
a dispôr os preparativos,
dois discípulos da Sua predileção, – como poderei eu, miserável
pecador, dispensar-me de trabalhar em enriquecer e ornamentar cada
vez mais este cenáculo da minha alma? Agora me ocorre uma lembrança,
que não quero deixar fugir: quando pouco depois Pedro e João
souberam por Madalena que o Corpo de Jesus Cristo já não estava no
sepulcro, diz o Evangelho,
que ambos estes discípulos
correram a informar-se do acontecido, mas que João se adiantara a
Pedro. Ó, também certamente, a caminho do Cenáculo, ambos iam
solícitos e pressurosos para cumprirem as ordens do Mestre e poderem
observar com os seus próprios olhos a realização da profecia que
lhe fizera, dizendo-lhes, que haviam de encontrar um homem com uma
bilha de água… Mas também aqui o discípulo virgem, o Apóstolo
do Amor, tomaria a dianteira ao Apóstolo, que primeiro tinha
confessado a Divindade de Jesus Cristo.
Não
me diz o Evangelho, nem preciso de o saber. O que não posso ignorar
impunemente é que, por mais que prepare o cenáculo do meu pobre
coração, nunca o poderei considerar bastante preparado, para
receber o Supremo Senhor do Céu e da terra, e que à minha
preparação devem sempre presidir a fé e o amor.
A
Fé e o Amor na Sagrada Comunhão
Não
devo esquecer a lição que Jesus Cristo me deu, escolhendo Pedro e
João para adornarem o Cenáculo, antes que chegasse a hora da Ceia
misteriosa, em que a Páscoa Nova ia substituir a Antiga. Sim, como
dispensar-me de preparação para receber o mais Santo de todos os
Sacramentos, o Santíssimo Sacramento? A linguagem da Santa
Igreja não me deixa dúvidas neste ponto.
“Embora
os Sacramentos da Nova Lei produzam o seu efeito ex opere operato
(por sua própria virtude), todavia, esses efeitos serão tanto
maiores, quanto melhores forem as
disposições dos que os receberem, por isso, deve-se fazer antes da
sagrada Comunhão uma diligente preparação, e juntar depois, uma
conveniente Ação de Graças, segundo as forças, condição e
obrigações de cada um”.
Agora
começo a pensar de mim para mim que, se
esta doutrina não andasse tão esquecida, o fruto das comunhões
havia de ser mais sensível.
Não
existe a preparação diligente,
quando os comungantes distraídos, vão conversando de sua casa para
o templo e chegados ali, logo ou quase logo se abeiram da Sagrada
Mesa, mais por costume que por devoção, e sem pensarem a sério no
que fazem. Sem a preparação devida, não pode uma comunhão ser
fervorosa; não sendo fervorosa, passa em breve a ser cada vez mais
tíbia; e, da tibieza ao sacrilégio, é rápido o caminho. É
próprio da nossa natureza cair por degraus e perder o respeito até
as coisas mais santas, à medida que se familiariza com elas. Assim,
com relação ao Santíssimo Sacramento do altar, se o comungante não
tiver o cuidado de se excitar ao fervor, facilmente pode sucumbir às
enfermidades da sua natureza.
Ai
do comungante, que não tem pela Sagrada Eucaristia uma alta estima!
Creio que esse está em
grande perigo de resvalar em sacrilégios, porque da pouca estima à
indiferença e ao desprezo não vai grande distância. Não será por
esta razão, que se veem a cada passo muitas comunhões e pouca
emenda nos costumes? Pior ainda, veem-se pessoas que, depois de terem
frequentado a comunhão meses e anos, dão grandes escândalos, ou
mudam de vida e por qualquer circunstância voltam as costas aos
Sacramentos.
O
que tais fatos revelam, é que a piedade dessas almas era apenas de
aparências e não tinha raízes no coração, isto é, não estava
fundada nem na fé nem no amor.
Cumpre
notar, que quando próximo à festa da Páscoa, Jesus Cristo quis
pelo milagre da multiplicação de cinco pães e dois peixes, dispôr
os discípulos para a promessa da Eucaristia, o Seu maior cuidado foi
despertar neles a fé. “Trabalhai,
lhes disse, não pela comida que perece, mas pela que dura
até a vida eterna, a qual o Filho do Homem vos há de dar; porque
n’Ele imprimiu Deus Pai o seu selo.
Disseram-lhe pois eles: Que faremos para operarmos as obras
de Deus? Respondeu Jesus
dizendo-lhes: a obra de Deus é que acrediteis n’Aquele
que Ele enviou.
Como alguns dos discípulos se retiraram escandalizados com a
linguagem do Mestre, porque lhes dissera que a Sua Carne era
verdadeira comida e o Seu Sangue verdadeira bebida,
o mesmo Mestre perguntou aos doze: “Quereis vós também
retirar-vos? Respondeu, em nome
de todos Simão Pedro: “Senhor, para quem havemos nós
de ir? Tu tens palavras de vida eterna. E nós temos crido e
conhecido que tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”.
Judas
e a Sagrada Eucaristia
Conforme
o testemunho da Escritura, é certo que Judas nos aparece associado
tanto à promessa como à instituição da Sagrada Eucaristia, e este
fato merece ser ponderado.
Quando
Pedro, em seu próprio nome e dos seus companheiros, confessou a
Divindade do Mestre, dizendo – “nós cremos e conhecemos que
tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”, Jesus responde-lhes:
“Não vos escolhi Eu em número de doze, e não há um entre vós
que é Demônio?” E o Evangelista São João
acrescenta: “Referia-se a Judas Iscariotes, que O havia de
entregar”.
Supunha
Pedro que a fé, de que estava animado, era comum aos doze Apóstolos,
e por isso, não hesitou falar em nome de todos; mas Jesus cristo,
que lhes penetrava os corações, apressou-se a dissipar o erro, e
excluiu um, porque já era Demônio. Antes de lhe chamar Demônio, já
o tinha apontado como descrente, quando disse: “Há entre vós
alguns que não creem” (porque Jesus sabia desde o princípio
quais eram os descrentes e quem O havia de entregar). Nesta ocasião
muitos dos discípulos, que não pertenciam aos doze, retiraram-se
escandalizados. Dos doze nenhum se retirou, e foi sem dúvida por
isso, que Jesus os interrogou nestes termos. “Não quereis vós
também retirar-vos”. Não seria este apelo dirigido a Judas?
Não
procuraria deste modo o divino Mestre preparar de longe os que se
haviam de sentar à Sua Mesa e afastar os indignos? Por certo que
sim. Melhor teria sido para Judas retirar-se com os descrentes do que
chegar depois a trair, como traiu, o seu Mestre. Se ele antes de
comungar já não tinha fé e era Demônio, depois de comungar
sacrilegamente, havia de ser pior que Demônio. Era de grande
misericórdia pois o aviso que Jesus Cristo lhe fez, e que ele na sua
cegueira não quis escutar.
Mostra-me
esta passagem do Evangelho que, se devo preparar-me para a Sagrada
Comunhão com a fé de Pedro e com o amor de João, também me
importa considerar a desgraça de Judas, para me preservar dela. Como
é fácil deixar amortecer a fé e esfriar a caridade! Se a minha fé
não se aviva e a minha caridade não se afervora, à medida que as
minhas comunhões se multiplicam, preciso então de me acolher ao
sacrário da minha consciência para refletir no meu estado. Como se
concebe que eu faça uso da mais salutar de todas as medicinas e
nenhuma melhora experimente, quanto aos achaques dos meus defeitos?
Como é possível que me alimente com o Pão divino, descido do Céu,
e as forças da minha alma não recresçam? O primeiro e o mais vivo
sentimento de quem comunga, deve ser o de uma alta estima pela
Sagrada Eucaristia. Dele está dependente a necessária preparação
e a devida ação de graças. Esse sentimento, quando existe bem
vivo, não pode esconder-se no íntimo do coração; apresenta-se aos
olhos de todos, em exemplos edificantes de modéstia, gravidade,
recolhimento e devoção. Nele se manifestam os frutos da Sagrada
Comunhão.
Parecendo
mudos, esses exemplos são contudo, eloquentes e persuadem a piedade
muito melhor que alguns oradores de grande nomeada. Se há lugar em
que a nobreza de sentimentos se deva traduzir em boa compostura
exterior, é à Sagrada Mesa, quando a Majestade divina se abate, a
ponto de se dar em alimento à nossa alma. Se nem mesmo então
procuro concentrar em Deus o meu pensamento e o meu amor, – quando
é que espero fazê-lo com mais oportunidade e proveito?
Ao
Santíssimo Sacramento é devida a mais santa veneração, e devida
por muitos títulos: que os comungantes pensem, pois, no Hóspede que
recebem.
Judas
Comungou das Mãos de
Jesus
Cristo na Noite da Ceia
Parece-nos
bem cabida aqui uma demonstração resumida da Comunhão Sacrílega
de Judas, para dissipar todas as dúvidas a tal respeito.
Podem
reduzir-se a três os argumentos da opinião contrária: – 1º.),
segundo São João,
Judas saiu do Cenáculo depois que Jesus Cristo lhe deu o bocado do
pão, molhado no seu prato; ora, a Comunhão foi no fim da ceia,
portanto, Judas já tinha saído; – 2º.), parece que Jesus
Cristo falava da Comunhão, quando disse: “Não beberei mais
deste suco da videira, até ao dia em que torne a bebê-lo convosco
no reino de meu Pai;
ora, Judas não havia de entrar no reino do Céu, logo, não estava
presente; – 3º.), não se pode acreditar que Jesus Cristo
desse a Comunhão a um indigno, logo não a deu a Judas.
O
texto em que São João diz que Judas saíra depois de ter tomado o
bocado, não prova que Judas não comungara, e deve ser interpretado
de harmonia com as outras passagens. Responde Santo Agostinho e
outras Autoridades.
Deve
dizer-se que aquilo que Santo Hilário escreveu no Comentário a São
Mateus
– que Cristo não dera a Judas nem o seu Corpo nem o seu Sangue –
teria razão de ser, considerada a malícia de Judas; mas, como
Cristo devia ser o nosso exemplar de justiça, não convinha ao seu
Magistério separar da Comunhão dos outros, sem uma acusação e
prova evidente, a Judas que era um pecador oculto. E por isso, deve
afirmar-se que Judas recebeu o Corpo e Sangue de Cristo com os outros
discípulos, como diz São Dionísio no Livro da Hierarquia
Eclesiástica e Santo Agostinho sobre São João… A razão aduzida
por Santo Hilário,
para provar que Judas não comungara o Corpo de Cristo, não colhe,
porque Cristo fala aos Seus discípulos, de cuja Comunidade Judas se
separou. Não foi, porém, Cristo que o excluiu: e por isso Cristo,
quanto de Si dependia, procurou que Judas bebesse com Ele o vinho no
reino de Deus; mas foi o próprio Judas quem repudiou este banquete.
Deve dizer-se, que Cristo conhecia a iniquidade de Judas, como Deus,
e não de modo humano. E por isso, Cristo não afastou Judas da
Comunidade, para dar o exemplo aos Sacerdotes, que não devem afastar
dela os pecadores ocultos. Sem dúvida, Judas, sob o pão molhado não
recebeu o Corpo de Cristo, mas simplesmente pão. Como diz Santo
Agostinho, “pelo pão molhado significa-se talvez o fingimento
de Judas: por vezes se tingem as coisas destinadas a enganar. Se,
porém, alguma coisa boa significa esse ato de molhar (por certo
a doçura da bondade divina, porque o pão se torna pelo molho mais
saboroso), não sem razão a esse mesmo bem, não correspondido,
se seguiu a condenação. E, por causa desta ingratidão, o que é
bom torna-se mau, como acontece com os que comungam indignamente o
Corpo de Cristo: e assim Santo Agostinho nesse mesmo lugar diz: –
deve entender-se que o Senhor já tinha distribuído a todos os Seus
discípulos o Sacramento do Seu Corpo e Sangue, quando o próprio
Judas ainda estava presente, como narra São Lucas; depois disso, é
que se deu o que conta São João, – que o Senhor dera a Judas um
bocado de pão molhado, e assim indicara o Seu traidor”.
Em
mais duas passagens das suas obras afirma Santo Agostinho, que Judas
comungara na Ceia: “O traidor Judas recebeu o Sagrado Corpo de
Cristo e Simão Mago o bom Batismo, mas porque não usaram bem do que
era bom, em razão do seu abuso foram condenados”.
“Acaso
Judas traficante e traidor ímpio do seu Mestre, permaneceu em
Cristo, ou Cristo permaneceu nele, apesar de primeiro ter comungado
com os restantes discípulos o Sacramento da Sua Carne e Sangue, como
São Lucas declara?”.
São
João Crisóstomo não é menos expressivo: “Depois que
Judas comungou na última Ceia, naquela noite memorável, saiu
furtivamente, permanecendo todos os outros Apóstolos com o Divino
Mestre.
Mais:
“Foi depois que Judas recebeu a sua parte na oferenda do
Senhor, que o Demônio tomou posse da sua alma… Pelo que aconteceu
a Judas, ficai sabendo o que acontece aos cristãos, que se aproximam
dos Sagrados Mistérios indignamente: o Demônio se apossa deles
muitas vezes e de preferência toma posse da sua alma”.
Santo
Ambrósio
diz: “Temos o exemplo em Judas que, tendo recebido de
Cristo o Pão Sagrado, entrou-lhe o Demônio no coração, como a
defender a sua posse e reivindicar o direito à sua propriedade,
dizendo: Não é teu este, mas sim meu: com certeza é ministro meu e
traidor teu”.
No
Livro de Tobias,
acrescenta: “Encontrou aquele miserável a morte no mesmo
banquete em que os outros encontram a salvação”.
São
Bernardo,
diz: “Na Ceia do Senhor, à mesma mesa, de um mesmo Pão
Consagrado, participou Pedro e Judas: o bom para a vida, o péssimo
para o castigo”.
A
passagem de São Dionísio, citada por São Tomás é esta:
“A participação comum e pacífica de um só e mesmo Pão
Consagrado, e de um só e mesmo cálice, impõe a todos uma concórdia
mutua, ao mesmo tempo que a todos comunica uma vida idêntica; ela
lhes recorda aquele divino banquete, em que pela primeira vez foram
celebrados estes Mistérios, e onde o próprio Autor deste Sacramento
deixou participar dele o Apóstolo indigno, que tinha celebrado a
Ceia sem pureza, e sem espírito de comunidade com o Senhor”.
_____________________________
Fonte:
Biblioteca de Regeneração – Pe. Marinho, “Diante do
Santíssimo Sacramento”, para os Adoradores Eclesiásticos e
Leigos, Caps. XXXVII - XXXVIII, XL – LX, pp. 134-142, 147-236.
Typographia Fonseca, Porto, 1923.