Do Exílio de Gaeta
O ato mais memorável de Gaeta é a
Encíclica do dia da Purificação, 2 de fevereiro de 1849, dirigida aos
Patriarcas Primazes, Arcebispos e Bispos do Universo, para aceitarem a Tradição
Universal tocante à crença da Imaculada Conceição da Mãe de Deus.
Nesta Encíclica, Pio IX afirma,
que em toda a Cristandade se operou um movimento espontâneo em favor desta
crença, de maneira que uma completa manifestação parece suficientemente
preparada, não só pela Liturgia e pelas formais instâncias de numerosos
Prelados, como pelos trabalhos dos mais sábios teólogos. E, acrescenta, que
esta disposição geral corresponde perfeitamente às suas próprias ideias, e que
no meio das horríveis calamidades da Igreja, seria grandemente consolador
ajuntar mais um florão à coroa da Virgem poderosa, adquirindo mais um título
para a sua especial proteção.
Nestas disposições, declarou
mais, que instituiria uma Comissão de Cardeais para estudar a questão,
convidando também todos os seus Veneráveis Irmãos no Episcopado, a darem a sua
opinião, juntando suas orações às dele, para chamar as luzes do Divino
Espírito.
Estas preocupações puramente
teológicas, no momento que por assim dizer, lhe fugia a terra debaixo dos pés,
acarretaram sobre o Pontífice os sarcasmos da sabedoria humana. Por algum tempo
custou a compreender que um Papa é teólogo antes de ser rei, e como teólogo tem
a certeza do dia seguinte; sendo, portanto, o solene procedimento de Pio IX uma
triunfante resposta a todos os erros do espírito moderno. Com efeito, o Dogma
da Imaculada Conceição esmaga e pulveriza todos os sistemas racionalistas, que
não querem admitir na Natureza Humana nem Queda nem Redenção sobrenatural. Além
disso, o modo como a promulgação se preparava, tendia a aproximar cada vez mais
do centro comum todas as igrejas particulares. Logo que a impiedade
compreendeu tudo isto, atacou furiosamente o que chamava “o novo dogma”, e
tanto a heresia como a falsa filosofia deram a este respeito assaltos de
inépcias e ignorâncias. Sem fazer caso destes vãos clamores, Pio IX
prosseguiu serenamente na obra inspirada pelo Céu, obstinando-se em depositar
sua confiança numa humilde Virgem, antes que nos sufrágios impersistentes dos
povos, ou na força dos canhões.
“Temos a firme esperança,
escrevia ele, que a Virgem que foi elevada pela grandeza de seu mérito
acima de todos os coros dos Anjos até ao Trono de Deus,
a Virgem Cheia de Graça e suavidade, Aquela que tem sempre arrancado o Povo
Cristão às ciladas do Inimigo..., se dignará com a imensa ternura, que é a
natural efusão de seu Coração Maternal, compadecer-se de nós, conseguindo por
sua altíssima e soberana proteção livrar-nos das cruéis angústias que
sofremos... aplacando a cólera Divina que nos está ferindo, em razão de nossos
pecados, apaziguando as terríveis tempestades que de toda a parte assaltam a
Igreja, e que finalmente, a imensa dor de nossa alma se transformará em júbilo.
Por que, sabeis perfeitamente, Veneráveis Irmãos, que o fundamento da nossa
esperança é a Santíssima Virgem, por que é Nela, diz São Bernardo, que
Deus concentrou a plenitude de todo o bem, de maneira que se temos alguma
esperança, se obtemos algum favor, se há alguma salvação, saibamos que é Dela
que nos vem... tal é a vontade Daquele, que quis, que tivéssemos tudo pela
intercessão de Maria.
Da Definição do Dogma
Devem lembrar-se que por uma
Encíclica, datada de Gaeta, Pio IX tinha interrogado o Episcopado da Igreja
Universal a respeito da crença na Imaculada Conceição. As respostas chegaram em
número de seiscentas e três. Quinhentas e quarenta e seis pediam instantemente
a Definição Doutrinal; e somente algumas, como por exemplo a de Monsenhor
Sibour, Arcebispo de Paris, se mostrava hesitante no sentido da oportunidade;
todavia, os sentimentos do Mundo Católico a tal respeito não eram duvidosos.
Nestas solenes circunstâncias,
Pio IX chamou para seu lado todos os Bispos que pudessem ir à Roma, e ali se
reuniram dois mil e noventa e dois de todos os países, à exceção da Rússia,
onde o desconfiado despotismo do Imperador Nicolau se opôs à sua viagem.
Estes Prelados contribuíram para
terminar o trabalho da Comissão encarregada de preparar a Bula; mas, no momento
de assentar numa redação definitiva, consultaram se os Bispos assistiam como
juízes, para pronunciar a definição simultaneamente com o Sucessor de São
Pedro, devendo mencionar-se sua presença debaixo deste título, ou ser bastante
para o julgamento supremo, a palavra do Soberano Pontífice.
A questão terminou
repentinamente, como por inspiração do Espírito Divino.
Estava-se na última Sessão, conta
Monsenhor Audisio, testemunha presencial, ao toque das badaladas do meio-dia,
toda Assembleia ajoelhou para rezar o Angelus. Neste momento, e depois
de cada um retomar seu lugar, apenas se tinha trocado algumas palavras,
ouviu-se de golpe uma aclamação ao Santo Padre, um brado uníssono de adesão à
primazia da Cadeira de São Pedro reboou no espaço, fechando o debate: Petre,
doce nos; confirma frates tuos! Pedro, guia-Nos, confirma teus Irmãos.
A luz que esses Pastores pediam ao Pastor Supremo, era a definição da Conceição
Imaculada.
O dia 8 de dezembro de 1854 foi o
grande dia, o dia triunfal que, segundo as formosas palavras de Monsenhor
Dupanloup, “coroou as esperanças dos séculos passados, abençoou o século
presente, atraiu para si o reconhecimento do futuro, legando-lhe uma lembrança
imorredoura; o dia finalmente em que foi pronunciada a primeira definição de
Fé, sem contestação, e que nenhuma heresia maculou. Roma inteira exultava. Uma
imensa multidão de todos os países se apertava nas proximidades da ampla
Basílica de São Pedro, demasiado pequena para acolher tanta gente. De repente,
viu-se desfilar processionalmente os Bispos, por ordem de antiguidade e
seguidos dos Cardeais. O Soberano Pontífice, no centro de um brilhante cortejo,
fechava o préstito, enquanto que o canto das litanias dos Santos convidava a
Corte Celestial a ajuntar-se à Igreja Militante, para honrar a Rainha dos Anjos
e dos Homens. Sentado no Trono, Pio IX recebeu a obediência dos Cardeais e dos
Bispos, e em seguida começou a Missa Pontifical.
Quando o Evangelho foi cantado
em grego e em latim, o Cardeal Macchi, Decano do Sagrado Colégio, acompanhado
dos Decanos, dos Arcebispos e Bispos presentes, de um Arcebispo do rito grego e
de um Arcebispo Armênio, apresentou-se ao pé do Trono rogando à Sua Santidade,
em nome de toda a Igreja, para que elevasse sua Voz Apostólica, pronunciando o
Decreto Dogmático da Imaculada Conceição”. O Papa respondeu que alegremente
acolhia este pedido, mas ainda uma vez, queria invocar o auxílio do Espírito
Santo. Todas as vozes se uniram no cântico Veni Creator, e logo que este
terminou, Sua Santidade de pé, e com aquela voz grave, sonora, e majestosa de
que tantos milhares de fiéis conhecem a profunda magia, começou a leitura da
Bula.
Em primeiro lugar estabelecia
as razões teológicas da crença no privilégio de Maria; em seguida, evocava as
Tradições Antigas e Universais, tanto no Oriente como no Ocidente, o testemunho das Ordens Religiosas e dos
Colégios de Teologia, dos Santos Padres e dos Concílios, e finalmente, os Atos
Pontificais, tanto antigos como recentes.
Enquanto que o Papa expendia
esses piedosos e magníficos Documentos, seu rosto denotava uma profunda
comoção. Por muitas vezes teve de interromper-se. “Depois de,
dizia ele, ter oferecido sem descanso, na oração e no jejum, nossas
próprias orações e as orações públicas da Igreja a Deus, o Pai Eterno por seu
Filho, a fim de que se dignasse dirigir e confirmar nossos pensamentos pela
virtude do Espírito Santo; depois de ter invocado o auxílio de toda a Corte
Celestial...; em honra da Santa e Indivisível Trindade, para glória da Virgem
Mãe de Deus, pela exaltação da Fé Católica e aumento da Religião Cristã; por
Autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos Bem-aventurados Apóstolos Pedro e
Paulo, e pela Nossa...”.
Neste ponto faltava-lhe a voz,
parando para limpar as lágrimas.
Os assistentes, tão enternecidos
como ele, mas mudos de respeito e admiração, escutavam no mais profundo
silêncio. De repente, Pio IX continuou com voz forte, e elevando-a gradualmente
numa espécie de entusiasmo:
“Nós declaramos,
pronunciamos e definimos, que a doutrina que afirma que a Bem-aventurada Virgem
Maria foi preservada e limpa de toda a mancha do Pecado Original, desde o
primeiro instante de sua conceição, em vista dos merecimentos de Jesus Cristo,
Salvador dos Homens, é uma doutrina revelada por Deus e por essa razão, todos
os fiéis devem crer nela com firmeza e constância. Pelo que, se alguém tiver a
presunção, o que Deus não permita, de admitir uma crença em contrário de Nossa
definição, saiba que deslizou da Fé e se acha separado da Unidade da
Igreja!...” .
O Cardeal Decano, prostrado
segunda vez aos pés do Pontífice, suplicou-lhe então, que publicasse as Cartas
Apostólicas contendo a Definição; e o Promotor da Fé, acompanhado dos
Protonotários Apostólicos, pediu também que se lavrasse um Processo Verbal
desse grande Ato. Ao mesmo tempo, o canhão de Santo Ângelo e todos os sinos da
cidade eterna anunciavam a glorificação da Virgem Imaculada.
À noite, Roma, cheia de
ruidosas e alegres orquestras, embandeirada, iluminada, coroada de inscrições e
de transparentes emblemáticos foi imitada por milhares de vilas e cidades em
toda a superfície do globo.
Se tentássemos contar todas as
piedosas manifestações que então se deram, não só encheríamos volumes, mas
bibliotecas.
As respostas dos Bispos ao Papa
antes da definição foram publicadas em nove volumes; a Bula só por si,
traduzida em todas as línguas e em todos os idiomas do universo, pelos cuidados
de um sábio sulpiciano francês, encheu uma
dezena; as Instruções Pastorais publicando e explicando a Bula, assim como os
artigos religiosos formariam evidentemente muitas sentenças, sobretudo se lhe
ajuntassem as poesias, os raptos de eloquência, e a descrição dos monumentos e
dos festejos. Não esqueceria por certo notar as espontâneas e incomparáveis
iluminações periódicas de Lyão, todas as vezes que o curso do ano tocou a meta
do memorável dia 8 de dezembro.
A Virgem Imaculada recompensou
visivelmente seu servidor,, estendendo sobre ele sua proteção de uma maneira
quase miraculosa.
Passados alguns meses, em uma
festa religiosa na igreja de Santa Inêz, próximo da Via Nomentana, achava-se o
Pontífice sobre um tablado com algumas pessoas da sua corte, quando este
abateu, arrastando na queda, da altura de quinze à vinte pés, todos os que ali
se achavam. Este incidente podia ter sérias consequências; felizmente apenas se
deram algumas contusões sem gravidade. Roma festejou estrepitosamente a
preservação da vida de seu Soberano.
Vinte anos depois, a 12 de abril
de 1875, reuniu-se ainda a Nobreza Romana para celebrar este aniversário, que
era ao mesmo tempo o da chegada triunfal de Gaeta em 1852.
Em resposta aos protestos de
dedicação que lhe foram lidos por tal motivo no Vaticano, Pio IX fez alusão aos
meios empregados misteriosamente pela Providência. Disse ele: “A nossa
queda em Santa Inêz pareceu-nos a princípio um desastre, aterrou-nos a todos
extraordinariamente, mas no fundo, não teve outro resultado senão dar mais
forte impulso aos trabalhos de solidez e aformoseamento da antiga Basílica.
Agora sucederá o mesmo, acrescentou ele. Das ruínas morais que o Inferno
acumula de todas as partes sobre nós e em redor de nós, a Igreja sairá
rejuvenescida, mais vigorosa e mais bela do que nunca”.
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Fonte: J. M. Villefranche,
Pio IX – Sua Vida, Sua História e Seu Século, Cap. VIII, pp. 133-135; Cap. X,
pp. 153-157. Livraria Editora de Mattos Moreira & C.ª, Lisboa, 1877.
Esta Edição Portuguesa Prefaciada
por Camillo Castello Branco, está com data de 1877, e cuja Casa Editora em
tela, principiou a série da sua Biblioteca Religiosa.
Obs.: Esta portentosa obra
foi escrita, quando o Beato Pio IX ainda vivia. Ouçamos o Autor: “Escrever a
história de um homem enquanto vivo, é uma empresa delicadíssima senão
impossível: todavia, neste caso, como se trata de Pio IX, a natural curiosidade
e avidez do público custa-lhe a esperar pela posteridade” (Prefácio).