De Maria a José a transição
é natural e fácil. Os mistérios de São José procedem da Santa
Infância e elevam-se como uma nuvem de incenso. Ele pertence
inteiramente a esta época. Fora daí não sabemos nada dele. Parece
que foi só para este fim que Deus o criou e ornou de santidade
maravilhosa, a única obra que lhe foi ordenada. Ele nenhuma relação
tem com a Paixão, que, aliás, não projeta sobre ele as sombras que
antecipadamente se estendem sobre a Mãe das Dores. Mais: antes que
Jesus tivesse deixado a casa de Nazaré para ir desempenhar o seu
Santo Ministério, José foi juntar-se a seu pai no túmulo.
Consumido de divino amor, ele morreu em suave êxtase, a cabeça
apoiada no seio de Jesus, tendo Maria ao seu lado, numa palavra, na
presença do que havia de mais belo, de mais santo, de mais celeste
sobre a terra. Nenhum pensamento de violência passou entre as
lembranças dos seus pacíficos deveres, posto que não fossem
isentas de inquietações. O sangue da sua circuncisão foi o seu
Getsêmani e o seu Gólgota. Sua infância perdeu-se na obscuridade e
dela não podemos formar nenhuma ideia, além do que se revelou numa
visão da Irmã Emmerich. Mas quem pode duvidar que tudo não tivesse
sido preparado para o grande ofício de que Deus haveria de
entregá-lo? Quem pode duvidar que tudo estava disposto para formá-lo
e lhe dar a consagração que lhe convinha como pai de criação do
Verbo feito carne?
Pertencendo ele, como
pertence, à Santa Infância, não nos surpreende saber que o
espírito de devoção a ele é o espírito de devoção à Santa
Infância, mas com circunstâncias que o fazem ainda mais tocante.
Primeiro que tudo, ele parece representar-nos no estábulo de Belém,
na estada no Egito e na casa de Nazaré. Toda esta intimidade e
familiaridade, à qual o Infante Salvador se digna de nos dar direito
e título por sua Encarnação; todos os minuciosos serviços que ele
condescende em receber do nosso amor e devoção; toda esta alegria e
esta serenidade que a vista da fraqueza infantil misturada com o
temor que a presença da sua Divindade nos expõem; todas estas
coisas José aí está para as receber ou restituir, sentir ou
mostrar, como em nosso nome. Ele aí está como o representante de
todos os fiéis, e sobretudo daqueles, cujos corações, em razão de
um atrativo especial, são impelidos para estes primeiros Mistérios
de Jesus.
Mas, em segundo lugar, São
José está em Belém, no Egito, no deserto e em Nazaré, como sombra
do Pai Eterno. Aí está o imenso da sua dignidade. A incomensurável
e para sempre bendita paternidade de Deus lhe é comunicada de um
modo figurado; ele é o pai de criação de Jesus; aos olhos do mundo
exterior passa por ser o verdadeiro pai. Ele exerce a autoridade de
pai e dispensa ao Filho de Deus os deveres e solicitude paternais.
Além disso, em sua natureza humana, Nosso Senhor está subordinado a
José, ele que, em sua natureza divina, não poderia jamais ser
subordinado ao Pai Eterno. Os inefáveis tesouros de Deus, Jesus e
Maria, são confiados à guarda de José; ele mesmo é um tesouro e,
ao mesmo tempo, guarda dos tesouros; tem parte nos planos da
Redenção. Como Jesus ou Maria, tem ele os seus tipos, seus
precursores e sua profecia no Antigo Testamento. Assiste a Deus em
manter oculto o Mistério da Encarnação e, como representante do
Pai Eterno, ele, em seu ministério junto ao Santo Infante, está
sempre a nos lembrar a sua Divindade. Pelas funções de que
dispunha, obsta a que nos esqueçamos que Jesus é verdadeiro Deus e
Filho de Deus; e assim, ensinando-nos a maior familiaridade com
Jesus, ensina-nos também a ter-lhe maior respeito. Se ele nos anima
a aproximar-nos e ir beijar os pés de Jesus, ao mesmo tempo nos
ordena que nos ajoelhemos e adoremos profundamente o Eterno
recém-nascido. Assim, no Céu e na terra, se veem reunidas nele as
duplas funções de representante do Pai Eterno e de representante
dos fiéis cristãos. Que há de admirar de que os Teólogos nos
falam das graças sem número e dos dons preciosos dos quais é ele
ornado? Há de que surpreender que os fiéis creiam que por ele foi
antecipada a ressurreição dos justos, que ele foi um dos que
percorreram as ruas de Jerusalém no dia de páscoa com seu corpo
ressuscitado e que ele também subiu aos Céus, no dia da Ascensão,
no séquito de Nosso Senhor?
Que tesouro deu Jesus à
Igreja nesta sublime e terna devoção! Já toda a doutrina tocante a
Nosso Senhor estava estabelecida e fixada. Haurindo nos tesouros da
Tradição Apostólica, a Igreja tinha achado os meios de vencer a
heresia e, em virtude da Infalibilidade da Cátedra de Pedro,
sancionara Ela os atos dos Concílios e definira a verdadeira
doutrina sobre a Pessoa e a realidade da sua Sagrada Humanidade, a
Unidade da sua Pessoa, a separação distinta das suas Naturezas e
dupla vontade, mas tinham-se também exposto sublimes verdades a
respeito de sua Alma, suas Faculdades, o modo de União Hipostática,
sendo dado aos fiéis saciarem-se livremente nas fontes fecundas da
pura teologia. Mas uma verdade sobressaia a todas as outras. As
alturas inacessíveis da sua Divindade elevavam-se acima de toda a
dúvida aos olhos dos homens. O professor em sua cadeira ou o menino
na escola de catecismo não podiam duvidar do dogma sem saber que
havia deixado de ser católico. Mas, ao passo que estas verdades eram
patenteadas, as tradições da Tradição Apostólica eram resolvidas
frequentemente, a respeito da dignidade da Mãe de Deus. Para
assegurar a honra do Filho, consultaram-se as antigas Igrejas; e as
vozes de Pedro, Paulo, Tiago e João emitiram oráculos que envolviam
o Filho na honra de sua Mãe. E, uma vez extinto este tumulto de
conflitos com a heresia, e desaparecida a oposição que tinham
levantado, então, visível a todos os olhos e tal qual João a tinha
enxergado na ilha de Patmos, apareceu a visão magnífica da Mulher,
da Mãe do Menino-Rei, com a cabeça coroada de Doze Estrelas e o
crescente da lua sob os pés. Assim, a adoração de Jesus e a
devoção a Maria tinham tomado os seus lugares irrevogavelmente no
coração dos fiéis e no sistema prático da Igreja, ambos
instruindo, iluminando, nutrindo e santificando o povo cristão.
Mas havia ainda uma pessoa da
“terrestre trindade” que
estava fora destas honras. A devoção a São José existia de algum
modo latente na Igreja. Não era que se esperassem novas revelações
em acréscimo ao que dele já era conhecido: ele pertencia
exclusivamente à Santa Infância e lia-se o seu nome no começo do
Evangelho segundo São Mateus. Dois evangelistas tinham guardado
silêncio absoluto sobre ele e um terceiro apenas mencionou seu nome
na genealogia. A Tradição
conservava algumas fracas lembranças dele, e não havia outra luz
senão a que era tomada do Evangelho de São Mateus. Tudo quanto
sabemos agora de São José existia
então; só o sentimento dos fiéis não ia de par com a plenitude do
saber que os Apóstolos possuíam: longe disso; tal sentimento tinha
de crescer pouco a pouco para ficar ao nível do saber que os
Apóstolos possuíam; era mister que o sobrepujasse, que o enchesse
de devoção, o animasse com instituições e o submetesse a uma
hierarquia perfeitamente administrada. Mas a final foi chegado o
tempo prefixado por Deus para ser instituída tão amável devoção;
e, como todos os dons, veio quando os tempos estavam sombrios e
calamitosos.
Ó
bela Provença! Esta terna devoção elevou-se da Igreja do Ocidente,
do teu solo perfumoso, semelhante a uma ligeira nuvem de flores de
amendoeira, que parecem flutuar entre o Céu e a terra e suspender
suas brancas cores por sobre os teus cantos perfumados, nas primeiras
horas da primavera. A nova devoção nasceu no seio de uma Confraria,
na branca cidade de Avinhão,
e foi embalada pela corrente
do Ródano, esse rio sobre o qual flutua a memória de tantos
martírios; que banha Lion, Orange, Viena e Arles e se lança no mar
que banha as praias da Palestina. A terra que a contemplativa
Madalena consagrou por sua vida solitária, e onde Marta e sua escola
de virgens tinham entoado louvores a Deus; onde Lázaro usou a mitra
em vez da mortalha, foi também aí que surgiu o início da tão
gloriosa devoção, espalhando-se depois por toda a Igreja universal.
Gérson
foi o designado para ser o teólogo e doutor desta devoção e Santa
Teresa para ser a santa; e São Francisco de Sales para ser o mestre
que haveria de a divulgar. As casas do Carmelo foram-lhe como a santa
casa de Nazaré; e os colégios dos Jesuítas o local pacífico de
sua residência no sombrio Egito.
As
almas contemplativas receberam-na e dela se nutriram; as que
preferiam a vida ativa dela se apossaram e foram em seu nome cuidar
dos doentes e dar sustento aos que tinham fome. O povo dos
trabalhadores acorreu a ele, pois o Santo e seu culto pertenciam-lhes
a títulos iguais. Os jovens deixaram-se arrastar pelo seu atrativo
e, por efeito dela, se tornaram puros; os
velhos descansaram nela e nela encontraram paz. São Sulpício
adotou-a. Formou-se ainda o espírito do Clero Secular. E quando a
grande Comunidade dos Jesuítas procurou refúgio no Sagrado Coração,
e seus membros, dispersos, conservaram suas lâmpadas acesas, prontas
para o dia da restauração da Companhia, a devoção a São José
foi seu arrimo e consolo.
É
assim que a bela devoção a São José atraiu a si as Ordens
Religiosas e as Congregações, os grandes e os pequenos, os
eclesiásticos e os leigos, as escolas e as confrarias, os hospitais,
as salas de asilo e as penitenciárias; é assim que o vemos muitas
vezes voltando-se para Jesus, caminhando junto de Maria e projetando
por toda parte a doce imagem do Pai Eterno. E, depois de encher de
seus suaves perfumes toda a Europa, atravessou o Atlântico,
embrenhou-se nas florestas virgens, abraçou todo o Canadá,
tornou-se para os Missionários auxiliar poderoso e milhares de
selvagens entoaram, ao por do sol, nos bosques e prados do Novo
Mundo, hinos em honra de São José ou louvores ao pai de criação
de Nosso Senhor.
Mas
que relação tem tudo isto com o Santíssimo Sacramento? Muito e
muito mais do que se pensa; porquanto este sentimento dos fiéis, de
acordo com a voz da autoridade, designou esta devoção como especial
aos Padres, e isto simplesmente por causa das suas funções para com
o Santíssimo Sacramento. No pequeno número das orações a São
José, indulgenciadas pela Santa Sé, há duas que são reservadas
exclusivamente aos Padres. Uma deve ser dita antes da Missa e fala do
Ministério e dos privilégios de São José, que consistiam não só
em ver e ouvir a Jesus, mas em levá-Lo, beijá-Lo, vesti-Lo e cuidar
d'Ele; e prossegue nestes termos: “Ó Deus, Vós que nos
tendes revestido de um Sacerdócio real, concedei-nos que, como o
Bem-aventurado José mereceu tocar respeitosamente e levar em seus
braços vosso Filho único, nascido da Virgem Maria, possamos também
servir aos vossos altares”. E
também numa Coleta chamada a Oração eficaz, também indulgenciada
por Pio VII, exclusivamente para os Padres, São José é chamado o
Guarda dos Virgens Jesus e Maria e modelo de nosso Ministério para
com ambos. Mas notai o paralelo existente entre São José e o
Sacerdócio Católico. Ele era o intendente da casa de Deus; as
mesmas funções são atribuídas aos Padres. Ele era o dispensador
dos dons de Deus; os Padres o são também. Ele tocava, levava,
elevava e baixava o Corpo de Jesus Cristo; não fazem o mesmo os
Padres? Se Jesus foi submetido a São José, Jesus o é ainda, e de
um modo mais amável ainda, aos seus Padres. Se foi dado a São José
beijar a Jesus, a mesma honra não será dada, sem dúvida, aos
Padres, mas beijarão a patena, sobre a qual não tardará muito Ele
irá repousar. Se São José lavou e vestiu a Jesus, os Padres hão
de, sob esta relação, se contentar com lavar os vasos e corporais
sacros, envolver o cibório, velar o tabernáculo e ornar o seu trono
coroado de flores. Que é a exposição, a procissão, a bênção, a
comunhão, a ação de abrir e fechar o tabernáculo e levar o
Santíssimo aos enfermos, senão outras tantas repetições do que
São José prestava ao Menino Jesus? Ocorre só esta diferença: o
que era prerrogativa dele só, cabe agora a uma multidão de Padres.
E o Mistério da Consagração é um imenso e maravilhoso império
que se estende infinitamente além do alcance da nossa inteligência,
onde a sombra de São José poderia chegar e onde Maria, o Espírito
Santo e a grande obra primitiva da criação se apresentam com traços
de semelhança. Mas o gênio inventivo da arte cristã, em uma das
mais engenhosas e felizes das suas inspirações, não encontrou,
para representar o nosso Ministério junto ao Santíssimo Sacramento
de modo mais exato, imagem mais expressiva do que os Mistérios de
São José. Assim, a devoção ao Santíssimo Sacramento compreende e
abrange as grandes devoções, cujo objeto são Maria e José, em
suas relações com a Santa Infância, à qual ambos pertenciam. Era
de esperar que, pela natureza das coisas, o Santíssimo Sacramento se
tornasse a devoção universal da Igreja; e, pois, não há por onde
admirar que nela sejam encontrados traços das relações entre a
mesma e as diversas devoções. Estas relações evidenciam quanto as
devoções especiais estão longe de ser simples ornamentos ao
sistema católico e quanto é, ao mesmo tempo, pouco reverente e
contrário à teologia tentar estabelecer contraste entre elas e
outras formas de piedade, como se aquelas fossem os únicos sólidos
e fecundos de seus frutos. No Catolicismo tudo é ligado, coeso. A
doutrina ortodoxa está em estreita correspondência com estas
devoções: a honra de Jesus está envolta nelas; e quanto à
mortificação, para que esteja superior à austeridade de um estoico
ou de um faquir, cumpre proceda de uma instituição cheia de amor de
Jesus e só deste amor.
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Fonte:
Rev.
Pe. Frederick William Faber, Oratoriano, “O
Santíssimo Sacramento ou As Obras e Vias de Deus”,
Livro Segundo, Secção V, pp. 149-156. 2ª Edição, Editora Vozes
Ltda., Petrópolis/RJ, 1939.