DIÁLOGO
III
Diálogo
do homem que, depois do uso da razão,
declina
das virtudes para os vícios; e antes de chegar
aos
15 anos de idade, pouco mais ou menos,
sem
decair da graça batismal,
tendo
muitos pecados veniais, morre;
e
é levada sua alma ao Purgatório e,
depois
de purgada, é conduzida pelo seu Anjo
a
gozar da vista de Deus por toda a eternidade.
–
Aos
sete anos de idade, pouco mais ou menos, o homem, nascido ao mundo,
entra no uso da razão; e como está no tempo de fazer escolha, ou de
seguir o caminho da salvação ou de tomar pela estrada da perdição:
fala a alma ao corpo e o persuade que ame a Deus e aborreça ao
mundo, e que siga o caminho do Céu e não o do Inferno.
Chegado
é, irmão corpo, o tempo de me fazeres, como a espírito, uma cruel
e continuada guerra. Lembrado estás, quando te informei com alentos
de vida, que te insinuei, que era espírito nobilíssimo, e tu uma
porção de terra vil; eu senhora, e tu escravo. Não obstante isso,
pela estreita união que temos, me houve contigo até agora como
irmã; e como vivíamos na graça de Deus, que recebemos no Batismo,
tudo em nós tem sido harmonia, paz, sinceridade e sossego. Agora
conheço que já fazemos distinção entre o Bem e o Mal; que já
temos cabal conhecimento, em que há um Deus, Criador e Remunerador,
Autor da graça e da natureza; que há Céu e que há Inferno; e que
para o Céu se vai pelo estreito, mas suave caminho da observância
dos Divinos Preceitos; e que para o Inferno se vai pela larga estrada
do vício e da maldade. Rogo-te que tomemos nesta tão importante
empresa o melhor expediente, e que não sejamos rebeldes em executar
estes santos ditames. Tratemos de amar a Deus sobre todas as coisas,
por Ele ser quem é, e ao próximo como a nós mesmos; e obremos em
todas as nossas ações de sorte que, mostremos ao mundo que somos do
número dos sábios, e não dos insipientes; que somos do número dos
Predestinados, e não dos Precitos. Fujamos da face do pecado, como
quem se retira da presença da cobra; e cuidemos em nos conservar na
graça batismal, na qual ainda estamos; porque em nós ainda não
teve entrada culpa grave própria. Sejam todos os nossos principais
cuidados o grande negócio da salvação. Não sejamos como muitos
que querem salvar-se pelos merecimentos alheios: com as nossas boas
obras, unidas aos infinitos merecimentos de Cristo, é que podemos
nos salvar. Em bom tempo estamos, para executar nossos propósitos;
pois as nossas inclinações ainda não estão viciadas; e as
virtudes, exercitadas na infância, são mui aplaudidas: com
advertência, que principiar a servir a Deus, sem ter cometido
pecados, é meia obra feita, e meio caminho andado. Ânimo: não
temas a aspereza do caminho; porque, suposto na aparência é
escabroso, na realidade é suave.
Assim como sou tua inseparável companheira, também hei de ser fiel
coadjutora. Eu te alentarei com meus conselhos, te obrigarei com meus
preceitos, e te ajudarei com meus esforços. Sobretudo, está certo
que o Anjo da Guarda nos livrará dos inimigos; e o Senhor nos dará
os auxílios da Sua graça, para que cheguemos com ventura às portas
da Bem-aventurança.
–
Ouve
o corpo os ditames da alma; e agradecido a tão bons conselhos,
promete executar sua obediência e de não se apartar da reta razão
e da lei divina.
Senhora
minha e fiel companheira: Agradeço os conselhos que me dais; pois
todos encaminham para o bem e desviam do mal. Desejo ser fiel a Deus
e a vós; a Deus, porque o devo amar e não ofender; e a vós, pois
vos sou obrigado, por me
alentardes com vida e me encaminhardes para Deus. Rogo-vos que me
advirtais em tudo o que devo obrar, para que não peque por
ignorância, e depois me custe caro a minha culpa. Tenho tanto de
bruto, quanto tenho de terra: e se com vossas advertências não
deterdes meus apetites, cairei em horrendos absurdos e ficarei
submergido em um mar de misérias. Sou filho do pecado, e sou filho
da ira, que Adão me deixou por herança, por causa da sua
desobediência.
Nestes poucos anos já me
sinto rebelde para obrar bem e inclinado a executar o mal; e como
tenho a vontade livre para a escolha, oh! Quanto receio que atropele
a razão natural e a Lei Divina, e venha a cair em pecado! Conheço
plenamente que o Inimigo infernal já vai maquinando minha eterna
perdição, encaminhando-me, com sutis indústrias, para a malícia,
sossobrando-me com a ira e inclinando-me para a soltura. Com a luz da
razão que, pouco tempo há, amanheceu em nós, estou vendo um mar de
misérias, que se levantam em empoladas ondas contra mim. Deus me
ajude a prosseguir a vida em Seu serviço. Alma, que és minha
senhora, estou pelos teus ditames: vamos em boa hora pelo caminho,
que leva ao eterno descanso.
–
Ilustrados
com a luz da razão e alentados com os esforços da graça,
prosseguem alma e corpo (isto
é, o homem nascido ao mundo), alguns anos no santo amor e
serviço de Deus; a cujo aproveitamento o seu Anjo da Guarda os
persuade com incessantes inspirações e mui particulares auxílios.
Homem,
que és um composto de corpo e alma, semelhante à imagem de Deus, e
a quem o Senhor se quer dar a Si mesmo em prêmio na Bem-aventurança:
Continua com fervor nos santos intentos de servir ao Altíssimo;
porque conseguirás o que se te inspira,
tão conforme ao teu desejo. Foge de amar as coisas caducas e ama as
felicidades eternas: seja Deus o alvo dos teus desejos, e serás
prosperado nesta vida e na outra. Não percas tempo em coisas
inúteis: emprega-o em atos de virtude; porque aquelas dispõem para
o pecado, e esta encaminha para o Céu. Tem a Deus presente em todas
as tuas ações, e serão santas as tuas obras. Os bens do Céu sejam
o emprego dos teus cuidados, e as misérias do Inferno o incentivo
dos teus temores. Sempre serei em tua guarda e com grande cuidado te
livrarei dos perigos. Não faltarei em te inspirar em tudo que for
conveniente ao teu bem e encaminhar à tua salvação. Ouve-me atento
e não desprezas meus conselhos; porque, com os auxílios da divina
graça, te conduzirei a salvamento pelo mar das misérias do mundo,
até chegares a ver a Deus no Céu. Advirto-te, que se vão armando
contra ti, com muito ardil, os três inimigos da alma: mundo, Diabo e
carne. Qualquer deles é inimigo forte e industrioso;
e se nas batalhas, que te
apresentarem, não recorreres a Deus com humildade, exercitando as
virtudes, temo que te vençam ou, ao menos, que te maltratem. Procura
ser constante nos teus bons propósitos, e conseguirás, com a ajuda
do Senhor, o fim para que foste criado.
–
Esforçado
o menino com as santas inspirações do Anjo da Guarda, continua a
exercitar as virtudes; e nelas faz grandes progressos, com edificação
dos próximos. A estes louváveis empregos procura logo o Demônio
atalhar, valendo-se do mundo e da carne, inimigos confederados; e
persuade ao menino com sugestões que se encaminhe para a ocasião da
culpa, como meio proporcionado para o fazer decair da graça.
Menino,
lhe sugere o Demônio, olha como os outros meninos brincam. Repara
bem, como as brincadeiras são amáveis.
Por que não vais brincar com eles? Põe de parte esse Rosário, por
onde louvas a Maria, e à noite rezarás tuas devoções. Por ora
diverte-te com os meninos nos teus galanteios, e se à noite não
puderes rezar, não importa; que essas tuas devoções, que costumas
fazer, são impertinências, que te ensinaram teus pais; e se eles te
repreenderem das brincadeiras, responde-lhes: que também os outros
meninos brincam, e que dá o tempo o que é seu. Sabe, de certo, que
não tens forças para tantos exercícios santos: e se fores por esse
caminho, sempre viverás triste e serás aborrecido da gente; pois os
homens mais gostam de ver os meninos espertos do que sisudos. Deus de
tudo se serve; e bem sabe que é próprio da primeira idade o
divertir-se com toda a variedade de recreios. Hás de entender que os
meninos que são espertos e travessos, depois saem varões espertos e
famosos. Não procures ser como alguns que, metendo-se a beatos no
princípio da vida, nunca depois fazem uma ação heroica; porque o
mesmo recolhimento os faz encolhidos, e para as empresas inaptos.
Tudo tem o seu tempo; e isto
é tão certo que até o mesmo sábio diz: que há tempo de se rir e
tempo de chorar, tempo de alegria e tempo de tristeza.
–
Por
ser o menino, ou a menina, carente de experiência; e não conhecer o
engano das sugestões do Inimigo
(pelos nove anos, pouco mais ou menos), facilmente se rende
aos seus enganos e, principiando a lançar de mão às devoções com
que seus pais o instruíram no caminho do Céu, se entrega aos
divertimentos, com tanta adesão, que estes lhe parecem mais
deliciosos ao corpo, do que suas devoções lhe eram antes suaves ao
espírito. Perduram-lhe os divertimentos, v. g. desde os dez anos até
os quinze; e quando está mais descuidado da eternidade, o acolhe a
morte, já muito adiantado de pecados veniais, inda que, pela
misericórdia de Deus, livre de pecados mortais. Nestes termos fala
outra vez o Anjo da Guarda ao mancebo e, com grande empenho, o
interroga da perigosa vida, em que existe, e que se aproveite da
misericórdia do Senhor, enquanto tem tempo.
Homem,
pois já não és menino: É possível que, sendo tão perfeitamente
educado por teus pais no santo temor de Deus, e a quem assisti com
santas inspirações: depois de teres seguido as virtudes com bom
aproveitamento, assim lanças de mão a estas e te entregas, por
sugestão do Inimigo, aos divertimentos do mundo! Onde vais dar
contigo? O que é que tens feito? Repara nos termos em que estás.
Digo-te que, segundo os sintomas da doença, em que labutas, estás
para dar contas ao universal Juiz de vivos e mortos. Neste aperto
deves entender que só quem se confessa bem segura a salvação;
tendo perfeita dor de ter ofendido a Deus, por Ele ser quem é, e um
propósito firme de perder a vida, antes que tornar a ofendê-Lo.
Segura a tua conduta com a recepção dos Santos Sacramentos e tem
confiança nos infinitos merecimentos de Cristo: porque suposto seja
provável que não perdeste a graça do Batismo com culpa mortal,
contudo, como te entregaste aos passatempos do mundo, tem isso grande
dúvida; pois os teus pecados veniais são sem número, e alguns têm
probabilidade de mortais. E se o forem, e não te confessares bem
deles, como te hás de haver no tribunal divino? Aonde vais dar
contigo, se não mudas de parecer para a vida futura, se Deus te
estender os dias? De tão pouco peso é o negócio da salvação?
Resolve-te, homem, a fazer penitência, volta-te com presteza a Deus
e deixa de todo a lembrança do mundo; pois é mais certa a tua morte
do que a tua vida.
–
Apertado
o mancebo, ou donzela, das inspirações do seu Anjo da Guarda,
confessa com pesar suas culpas, recebe os Santos Sacramentos;
entregando-se com resignação nas mãos do Senhor; e desenganado de
que morre, deixa o mundo com desprezo, e lhe diz por despedida:
Mundo,
que tão enganador és, tão falso e traidor: Fica-te embora, como
quem és; que eu, com total aborrecimento das tuas delícias, me
afasto para a casa da minha eternidade. Quase estava engolfado nos
teus passatempos, com evidente perigo da salvação; porém,
acudiu-me Deus com esta doença, para conhecer teus enganos e tomar
outros desígnios. Onde ia dar comigo, se não na condenação
eterna; pois à rédea solta caminhava pela sua estrada tão larga?
Deixo-te com os teus amadores, e me volto para Deus com esperança
firme de que, pelos merecimentos de meu Senhor Jesus Cristo, me há
de salvar. Meu Deus, meu infinito Bem e meu tudo: Quero amar-Vos, e
não ao mundo, meu inimigo declarado. Oh! Quanto me pesa de Vos ter
agravado com minhas culpas e de não observar vossas santas
inspirações! Quão doce sois a um coração que Vos ama,
e quão terrível a um espírito que Vos ofende! Quando Vos servia
nos primeiros anos, muitas eram as doçuras que penetravam o íntimo
da minha alma: todo me enchia de delícias, e parece que gozava uma
porção da glória. Desviei-me para o mundo, instigado do inimigo e
enganado do amor-próprio; e no desassossego, em que labutava,
participava dos efeitos do Inferno. Lembraste-Vos de mim, Senhor, no
meio de minhas misérias e me chamais para Vós, usando comigo do
imenso mar de vossas piedades. Eu me entrego nas vossas mãos do
mesmo modo que um tenro filho se entrega nos braços de seu pai; e
espero que, não faltando à vossa justiça, useis com este pecador
de misericórdia. Enfim, entre temores e amores, entrego nas vossas
mãos o meu espírito.
–
Afastada
a alma do corpo, com o golpe da morte, se despede do corpo a alma; e
em parte lhe agradece sua boa companhia, em parte lhe estranha sua
pouca lealdade.
Doze
anos, pouco mais ou menos, vivemos, irmão corpo, no mundo de
sociedade, com o intento de merecermos mutuamente a salvação.
Entramos nesta empresa no mesmo instante que entrou em nós o uso da
razão, seria aos sete anos de idade. Iluminados da luz da fé e
favorecidos dos auxílios da graça, nos ajustamos em prosseguir este
negócio a todo o custo. Eu prometi de te ser fiel conselheira, e tu
protestaste de me seres obediente, para que, em todas as nossas
operações, fosse Deus glorificado, e o negócio de nossa salvação
bem-sucedido. Nos primeiros anos, depois do uso da razão, em tudo
procedemos bem ajustados com a Lei divina e fizemos muitas obras,
dignas do agrado da Majestade Suprema. Foram mui crescidos os nossos
merecimentos, e dávamos exemplo aos próximos: com as nossas
virtudes motivávamos grande alegria aos Anjos e causávamos notável
confusão aos Demônios. Porém, (oh dor!) quando íamos prosseguindo
o caminho dos santos com passos apressados e o nosso Anjo da Guarda,
com o maior cuidado, nos alentava para as virtudes, o Demônio,
capital Inimigo, com cavilosas sugestões nos persuadiu que nos
voltássemos ao mundo e nos inclinássemos aos vícios. Recusei,
quanto pude, conhecendo o engano; porém tu, inclinado aos apetites,
foste fazendo pouco caso das inspirações do Santo Anjo; e, sem
atenderes ao nosso ajuste, forcejaste para a largueza dos costumes,
deixando a vida virtuosa. Ao princípio, nos teus divertimentos, só
cometias imperfeições, porque estavas assistido do santo temor de
Deus; porém, com o tempo, foste te alargando no mau uso das tuas
operações, tanto que já sem rebuço cometias pecados veniais. Sim,
não deixaste algumas devoções e a recepção dos Santos
Sacramentos, em que fomos educados; que essa foi a causa de te
conservares envergonhado para com o mundo e foi o motivo de não
cairmos em maiores culpas. Deus, pelos Seus inescrutáveis juízos,
nos chamou a Si, antes de cometermos culpa mortal; porque, se
vivêssemos mais tempo no mundo, seria infalível prosseguirmos a
nossa viagem pelo caminho do Inferno; pois as disposições que
tínhamos não eram de irmos pelo caminho do Céu. Vejo-me já livre
de tua prisão e precisada a dar conta no tribunal divino: fica em
boa hora, esperando a Ressurreição Geral, em que outra vez seremos
companheiros; que eu vou, entre temores e confiança, ouvir a
sentença, ou de salvação ou de condenação eterna.
–
Parte
a alma para o tribunal divino, acompanhada ao lado direito do Anjo da
Guarda e, ao lado esquerdo, junta do Demônio; seguindo-a com a mesma
ordem de uma parte suas boas obras e, da outra, suas más obras. Logo
que é apresentada nele, se prostra diante do Supremo Juiz, que se
lhe faz presente, e se confessa miserável pecadora, dizendo com
humildade profunda:
Meu
Senhor, que sois o Redentor do mundo, e Juiz Universal do gênero
humano: Prostrada diante do vosso divino acatamento aparece esta
alma, a quem criastes à vossa semelhança e por quem destes a vida
em uma Cruz afrontosa. Sou indigna, pela fealdade de minhas culpas,
que empregueis em mim vossos olhos: estou temendo e tremendo; porque,
olhando para mim, não vejo senão fealdades e me considero
imerecedora de vossas misericórdias. Porém, confio que, pelas
vossas Chagas, hei de ser favorecida no vosso juízo, e me hão de
ser perdoados os meus grandes pecados. Aqui estou prostrada a vossos
pés: cumpra-se em mim vossa santíssima vontade.
–
Sem
demora acusa o Demônio a alma diante do Supremo Juiz, alegando todas
as suas culpas e requerendo a sua perdição eterna.
Supremo
Senhor e retíssimo Juiz, em cujas mãos estão no fiel as balanças
da justiça: Faço-Vos saber, em forma de acusação, como esta alma,
que está em vossa divina presença, não é digna da vossa
misericórdia; porque com muitas culpas ofendeu vossa tremenda
Majestade. A primeira culpa que tem, é ser ingrata aos vossos
benefícios, o não se aproveitar do vosso precioso Sangue, e de não
ocupar todo o tempo em vosso serviço. Não Vos louvou e atendeu em
todos os seus pensamentos, palavras e obras, como a seu último fim.
Por muitas vezes pronunciou com irreverência o vosso Santíssimo
Nome: e faltou vezes sem conta à verdade. Não santificou os dias,
que Vós determinastes para os vossos louvores; pois ocupou a maior
parte deles em divertimentos. Faltou em algumas ocasiões à
obediência de seus pais, ao respeito dos superiores e à veneração
dos Sacerdotes. Por qualquer motivo se irava e apetecia vingança.
Com algumas ações torpes contaminou sua pureza; e roubou ao próximo
algumas coisas e a Vós o tempo, em que Vos havia de servir. Todas
estas e outras culpas, são em grande número, como sabeis, e da
maior parte delas não se acusou aos pés do Confessor. Deveis ser
infinitamente amado e sois imenso em Majestade; e qualquer culpa, por
ser ofensa vossa, deve ser castigada, com correspondência ao
ofendido. Esta alma ofendeu a vossa infinita Majestade, não só com
um, senão com muitos pecados: Pois, Senhor, requeiro justiça e
pretendo levá-la comigo para os eternos tormentos; pois me compete o
cuidado da perdição das almas.
–
Defende
o Anjo da Guarda a alma e dá resposta à acusação do Demônio:
rogando ao Senhor, sem faltar à justiça, que use com ela de
misericórdia.
Senhor
de infinita Majestade, a quem obedecem, com o devido acatamento,
todas as coisas criadas: Vós me ordenastes que fosse guarda desta
alma e que a patrocinasse, até ser apresentada na vossa real
presença. Com todo o desvelo o tenho feito, com sumo desejo de
cumprir com a vossa santíssima vontade, e de Vos dar glória. A
livrei de continuados perigos, afastei-a, quanto pude, de cometer
culpas, e a conduzi, com muito cuidado, para o vosso santo serviço.
O meu desejo era que fosse grande santa, e em efeito nisso puz todos
os esforços. Atendeu muito nos primeiros anos, depois de ter o uso
da razão, às minhas persuasões; e sem dúvida, com notável
consolação sua, Vos serviu e Vos amou. Valendo-se da oportunidade
do tempo, se intrometeu este maldito adversário; e persuadiu a esta
alma, para que se aproveitasse do tempo da mocidade e que gozasse das
delícias do mundo. Rendeu-se, não em tudo, mas em parte, à
persuasão infernal; e dando em muitas coisas de mão ao vosso santo
serviço, se ocupou, estes últimos anos, em divertimentos e vaidades
do século. Muitos discursos teve, muitas palavras disse e muitas
obras fez, por causa de más companhias, que, em outros sujeitos de
maior idade e de mais claro conhecimento, seriam culpas graves e
merecedoras de eterno castigo: porém, todas as suas culpas não
passaram de veniais; porque em umas lhe faltou o pleno conhecimento
de sua gravidade, em outras não obrou com vontade livre, e na maior
parte delas procedeu com materialidade. Esteve sim, por muitas vezes
em perigo de perder vossa graça; porém, em umas ocasiões, com os
vossos auxílios, e em outras, com as minhas diligências, se
conservou nela, desde que recebeu a batismal. Pelo que, sendo certo
que em toda a sua vida se conservou na vossa graça, não obstante
ter muitos pecados veniais, é digna de que useis com ela de piedade,
executando o mais que for do direito de vossa justiça.
–
Ouvidas
as partes litigantes, dá o Senhor a sentença em favor da alma,
mostrando a razão por onde a favorece; faz-lhe seguro o direito que
tem à sua glória; e manda com confusão o Demônio para o Inferno.
Atendendo
a que esta alma foi criada à Minha Imagem e redimida com Meu Sangue,
e que, por não perder a Minha graça, não perdeu o direito de ser
Minha filha, declaro que é herdeira da Minha glória; porém, como
ofendeu com muitos pecados veniais a Minha infinita bondade, a
sentencio a penas temporais no Purgatório, onde será purificada em
fogo, correspondente na duração do tempo e na intensidade do ardor
à fealdade das suas culpas. E vós, Anjo da Guarda, Ministro
executor dos decretos da Minha vontade, levai-a ao seu lugar
competente, donde não será tirada, para gozar da Minha vista,
enquanto não pague o seu reato até o último quadrante. E tu,
Demônio maldito, Inimigo declarado das almas, que redimi com Meu
Sangue, retira-te confuso para as trevas infernais, onde é a tua
habitação em tormentos e o será, pela tua malícia, por toda a
eternidade.
–
Depois
de ser dada a sentença pelo Supremo Juiz, com reverência profunda
agradecem o Anjo e a alma ao Senhor os lances da Sua misericórdia.
Logo é conduzida a alma pelo Anjo ao lugar do Purgatório, situado
no centro da terra, para ser purificada em fogo, das máculas das
culpas, com que ofendeu à divina Majestade. Nesta sua chegada àquele
lugar de tormentos, lhe dão as outras almas padecentes os parabéns
da sua dita e a confortam para padecer as penas, conformada com a
vontade do Senhor, em desagravo de Sua divina Justiça. Dizem-lhe as
almas com caridade suma:
Filha
de Deus, a quem amamos com caridade ardente e com intenso afeto:
Parabéns, seja o seres julgada em boa sorte pelo Supremo Juiz. Sois
nossa irmã por graça, e sereis a seu tempo nossa companheira na
glória. Estais agora nestes horrendos calabouços padecendo
tormentos de fogo temporal, para seres purificadas das vossas culpas:
porém, consolai-vos, que é meio necessário, para depois vos
abrasardes na Bem-aventurança no fogo do divino amor. Permita a
divina Majestade que os vossos parentes e pessoas devotas, que ficam
no mundo, apliquem sufrágios, unidos aos merecimentos de Cristo,
para que a vossa purificação seja mais aliviada. Parece-nos que o
vosso tormento não será dilatado; porque como passastes do mundo
para a eternidade, tendo poucos anos de viadora, e, pela misericórdia
de Deus, falecestes sem perder a graça batismal, não vindes muito
carregada de pecados. Louvai, por tão grande benefício, a tremenda
Majestade do Senhor; pois foi servido usar convosco de tanta
misericórdia, não o tendo vós merecido. As que estamos nestes
tormentos também sem cessar louvamos Suas misericórdias; porque,
devendo qualquer de nós estar em penas eternas, pelas nossas
horrendas culpas, usou compassivo do Seu infinito poder, não só em
nos dar auxílios, para nos arrependermos com tempo, senão também
em nos dar a graça final. Aqui estamos, cada uma de nós,
conformadas com a divina vontade, esperando com grande ânsia o ano,
dia ou instante, em que sejamos aliviadas de tantas penas, e
conduzidas à presença do Senhor, para gozarmos de Sua divina Face
na glória. Tende ânimo, nossa irmã, e sabei que, se Deus é de
justiça para castigar almas, com tormentos tão rigorosos, também é
de misericórdia, para as aliviar das penas, pelos infinitos
merecimentos de Seu Unigênito Filho.
–
Ausenta-se
o Anjo do lugar do Purgatório, e fica a alma penando em tormentos
tão rigorosos, que o menor tormento, que ali padece, excede aos
maiores tormentos do mundo. Na tal aflição entra a alma a ponderar
a gravidade de uma culpa venial, cometida contra a suma bondade de
Deus nosso Senhor.
Oh
pecado, como és feio! Oh culpa, como és horrorosa! Oh Serpente,
como és terrível! Pois com o teu veneno tiraste a vida a todo o
gênero humano. Da tua mordedura fui ferida mortalmente, não tendo
ainda visto a luz do dia; porém Deus, pela Sua infinita
misericórdia, me sarou com a água do Batismo, depois que nasci ao
mundo. Porém, aí de mim! Que me voltaste a morder tantas vezes,
quantas foram as culpas veniais que cometi; e fiquei tão maltratada
dos teus golpes, como agora experimento no rigor de tantos cautérios
de fogo, que são necessários, para me purificar de tantas misérias.
Amontoei pecados sobre pecados; e agora experimento a Justiça de
Deus sobre mim com rigor tão crescido, que antes quisera padecer os
maiores martírios do mundo, do que os menores tormentos, que aqui se
me dão, em castigo das minhas culpas. Assim o mereci, quando era
viadora, e por isso desta sorte o determina a divina Majestade, com
retíssima justiça. Senhor: Aqui estou muito conforma neste
tormento: Cumpra-se em mim vosso beneplácito; e sempre seja louvada
a vossa misericórdia.
–
Depois
de terem passado alguns dias, meses ou anos, que a alma estava
penando, louvando ao Altíssimo, e rogando pelos benfeitores do
mundo, a visita do Santo Anjo da sua Guarda e em sua própria mão
lhe traz uma palma. Alvoroça-se a alma com vista de tanto gosto e,
com extremosa alegria, rompe em amorosos queixumes ao Santo Anjo.
Bem-vindo
sejais, Anjo santo. Por onde tendes andado até agora? Pois há
tantos séculos, que aqui estou encarcerada com prisões de
intensíssimo fogo, sem me visitardes nestas escuridões, nem me
aliviardes em meus tormentos? Têm sido imponderáveis as saudades,
que tenho padecido na vossa ausência. Oh que saudade era a minha,
quando reparava, que outros muitos santos Anjos vinham tirar destas
horrendas fornalhas de fogo a muitas almas, que para elas tinham
vindo depois de mim, e subiam, a estas alturas, mais resplandecentes que o sol! Anjo santo, que novas me trazeis, que me causem alívio?
Chegará cedo a hora ou instante, em que aliviada destes tormentos
tenha a dita de ver a meu Deus, que me criou? Que goze da
formosíssima presença do Verbo Encarnado, que me redimiu? Que veja
a formosura da graça de Maria Santíssima, que tanto me amparou? E a
glória de todos os Anjos e Santos, com quem estou unidade por graça,
e espero ser companheira na Bem-aventurança?
Responde
o Santo Anjo às amorosas queixas da alma padecente, declarando-lhe o
motivo da sua ausência e dando-lhe a alegre nova do fim das suas
penas e da sua subida ao Céu.
Alma,
a quem amo com um intenso afeto, porque estás unida ao nosso
amantíssimo Deus por graça. Chegado é o fim das tuas penas, e em
breve acabarão as tuas saudades. Tão empenhado sou nos teus alívios
e interessado nas tuas glórias, que o tempo, que faltei em te
visitar nestes cárceres, andei pelo mundo inspirando a quem te
socorresse com sufrágios. Muitas pessoas estavam esquecidas de ti;
porém, com as minhas inspirações, os teus parentes, vizinhos e
amigos e algumas pessoas devotas te socorreram com sufrágios; e
assim, havendo de estar mais tempo em tormentos, estás de todo
aliviada. O Altíssimo me manda dar-te esta notícia, para que louves
Suas misericórdias; e que te tire já deste cárcere de tormentos,
para subires ao Céu, a gozar da Sua Essência divina. O tempo, que
tens estado em penas, no teu conceito, foram muitos anos; porém, na
realidade foram poucos dias. As tuas culpas mereciam que estivesses
neles dilatados séculos; mas valeram-te os sufrágios, que te
fizeram no mundo pessoas devotas, unidos aos infinitos merecimentos
de Cristo. Usou Deus contigo do imenso mar de Suas piedades; e não
te pareça que favoreceu mais as outras almas, que viste subir
primeiro ao Céu; porque essas, já por terem menos anos de idade e
já por não terem tantas ocasiões de pecados, passaram à
eternidade com menos culpas, ou quase inocentes. Se bem repararem,
nesses lagos de fogo ficam muitas almas que, estando em penas há
muitos séculos, pelos seus grandes pecados, têm ainda para padecer
muitos anos: e algumas delas não subirão ao Céu, senão para o dia
do juízo. Aqui, filha de Deus, paga-se tudo pelo reato; e para fora
dos tormentos não sai alma alguma com mancha; todas hão de sair,
como diamantes polidas, como ouro purificadas, como estrelas luzidas,
e como o sol resplandecente. Trago-te esta palma em sinal de teus
triunfos; sai já deste lago de tormentos, e vem cantar, para sempre,
ao Senhor as vitórias, e render-lhe as graças.
Sai
a alma daqueles dilatados e horrendos calabouços infernais,
abrasados em fogo; e penetrando com a sutileza de espírito, na
companhia do Santo Anjo, os rochedos e concavidades, que há na
distância de mil duzentas e cinquenta léguas, desde o centro até a
superfície da terra, aparece no mundo, onde tinha sido viadora.
Aqui, passando, talvez, por onde está seu corpo enterrado, e pelo
lugar em que vivem seus parentes, conhecidos e amigos, se eleva com
voo mais remontado que o da águia e, penetrando em breves instantes
o céu da lua, o do sol e o das estrelas, se avizinha ao Céu empíreo
e chega às eternas portas da glória. Neste tempo, olhando para a
terra, que escassamente divisa, contempla a pequenez do mundo com
suas vaidades e a cegueira dos homens com os seus enganos, e por
último diz ao Santo Anjo seu condutor:
Santo
Anjo, a quem, abaixo de Deus e de Maria Santíssima, devo os maiores
benefícios: Aqui sou chegada às portas da glória, livre das
misérias do mundo, e das penas do Purgatório. Por toda a eternidade
viverei agradecida à vossa caridade suma; pois conheço que, se não
me guardásseis, cairia no
mundo em muitos pecados e iria, pela larga estrada dos vícios, parar
na companhia dos Demônios. Por esta estrada caminham tantos mortais,
cegos do seu amor-próprio, e não se tiram da sua teima, senão
quando Deus com a sua mão poderosa lhes faz força, e com violência
de castigos os traz à Sua graça. Estive em termos de me suceder o
mesmo, se o Senhor Deus de misericórdia não me cortasse os fios da
vida; e se vós, Santo Anjo, não me defendêsseis dos continuados
assaltos dos mais fortes inimigos. Destas alturas, onde estou, pouco
diviso o mundo; pois em respeito a estes céus inferiores parece um
ponto, e sua pequenez nenhuma comparação pode ter com a grandeza do
Céu empíreo. Fiquem-se embora os mortais lidando com os seus
enganos, que eu para sempre agradecerei a meu Deus e a vós, Santo
Anjo, o tirarem-me dos seus perigos. Introduzi-me já nos imensos
espaços da glória, e apresentai-me a meu Deus e Senhor, para me
submergir no profundíssimo pélago do Seu amor, da Sua graça e da
Sua visão beatífica.
Neste
tempo se abrem as eternas portas da glória; e entrando a alma para
dentro, metida entre coros de Anjos, alternando suavíssimos cânticos
de louvores ao Altíssimo, se lhe manifestam as três Pessoas da
Santíssima Trindade em beatífica visão. Prostrada incontinente
diante do trono da Divindade, dá as graças ao Senhor por tão
assinalados benefícios: ora pela salvação do gênero humano e, em
particular, por todos os que concorreram para a sua salvação.
Senhor
de infinita clemência: Prostrada diante de vossa tremenda Majestade,
vos dou as graças pelo sem número de benefícios, que tendes feito
a este meu nada. Glorificado sejais por todas as eternidades, e todas
as criaturas louvem vossas misericórdias. Nos Céus, na terra e nos
Infernos, seja temido e reverenciado vosso Santíssimo Nome, e os
espaços imaginários sejam cheios de vossa glória. Rogo-vos, como
coisa tanto do vosso agrado, pela salvação do gênero humano, e com
empenho particular vos peço pelos pais, que me criaram, pelos que
concorreram para a minha salvação e me socorreram com sufrágios,
estando em penas do Purgatório. Recolhei-me, finalmente, a vossos
braços e agasalhai-me em vosso peito, para que, em companhia de
todos os Anjos e Santos, goze de vossa infinita bondade por todos os
séculos dos séculos. Amém.
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Fonte:
Fr. Antônio do Sacramento, da Sagrada Religião dos Observantes da
Província de Portugal, “Ventura
do Homem Predestinado e Desgraça do Homem Precito”,
Diálogo III,
pp. 41-63,
1ª Edição Brasileira, Ed. Vozes, 1938.