É
hoje o dia do Nascimento da Santíssima Virgem Maria, canta a Igreja:
Nativitas est hodie Sanctae Mariae Virgines.
Celebremos este dia, acrescenta Ela, com toda a solenidade possível:
Nativitatem hodiernam solemniter celebramus,
celebremo-lo com alegria: cum jucunditate.
O vosso Nascimento, ó Virgem, Mãe de Deus, encheu de alegria todo o
Universo: Nativitas tua, Dei Genitrix Virgo, gaudium
anuntiavit universo mundo. O Céu
fez-nos hoje um presente magnífico e de um valor inestimável, diz
São Bernardo: Pretiosum hodie munus coelum nobis largitus
est. É propriamente neste dia
que as espessas trevas, em que o mundo estava sepultado havia mais de
cinco mil anos, começavam a desaparecer pelo Nascimento desta
brilhante Aurora, esperada desde muito, e
desde muito o objeto do desejo dos mais Santos Patriarcas e Profetas.
“Celebremos
todos o Nascimento da Mãe de Deus,
exclama São João Damasceno, pelo qual o gênero humano
foi restaurado, e trocou em alegria a tristeza que Eva, nossa
primeira mãe, nos causou”.
Assim como a aurora é o fim da noite, diz o Abade Ruperto, assim
este dia natalício foi o fim de nossos males, e o começo de uma
felicidade bem consoladora: Sicut aurora finis praeteritae
noctis est, sic nativitas Virgínis finis dolorum et consolationis
fuit initium. Que alegria mais
pura, mais santa e mais plena, que aquela que este dia feliz inspira
à Igreja, pelo Nascimento d’Aquela que os oráculos dos Profetas
tinham anunciado, diz São Jerônimo: Viticinium
Prophetarum. Nascimento que é o
penhor das divinas Promessas, diz São João Damasceno: Pignus
promissionis; e como que a
segurança e o voto do futuro nascimento de um Deus.
Todos
os séculos desde a criação do mundo pareciam disputar entre si,
diz São João Damasceno, qual deles teria a glória de ver o feliz
Nascimento da Santíssima Virgem: Certabant saecula quodnam
ortu Virginis gloriaretur. Era
tempo, enfim, determinado desde toda a eternidade nos segredos da
sabedoria divina; esse tempo tão desejado e por tanto tempo
esperado, chegou.
Segundo
a opinião mais provável, a Santíssima Virgem nasceu em Jerusalém.
Nunca
houve nascimento mais ilustre quer pela nobreza do sangue de seus
pais, quer pela santidade e mérito desta Menina, que ao nascer, se
tornou o objeto da consolação de todo o Universo e a admiração de
toda a corte celestial. Seu
pai, São Joaquim, era de sangue real, descendente de Davi. Este ramo
de família real era originário da Judeia, mas pobre de bens de
fortuna, por singular providência de Deus, que não queria que os
próximos parentes do Salvador fossem de condição diversa da Sua.
Santa
Ana, sua mãe, era filha de um sacerdote de Belém, da tribo de Levi,
e da família de Aarão, a qual entre os judeus era a família
sacerdotal. De sorte que a
família real e a sacerdotal se achavam reunidas em Maria,
sua filha. Jamais, diz São João Damasceno, se tinham visto dois
esposos mais unidos: gênio, sentimentos, inclinações, tudo
indicava que tal casamento fora obra de Deus. Como Deus era o único
objeto de todos os seus anelos, e como o seu coração suspirava
ardentemente pela vinda do Messias, passavam os dias no retiro e na
oração. Eram dois astros brilhantes, diz Santa Brígida, que muito
embora ocultos em uma vida obscura, não deixavam de ofuscar os
mesmos Anjos por seu esplendor, e de encantar o Céu por sua piedade
e pureza, fora do comum.
Havia
muitos anos que Joaquim e Ana viviam nesta doce paz e união, e em
todos os exercícios pios que tanto edificavam, quando o Senhor quis
fazer brotar este rebento misterioso da vara de Jessé, de que fala
Isaías, e mostrar, enfim, esta Aurora tão esperada, que devia
preceder de perto o divino Sol, que era o Messias. É sentir comum
dos Padres, que São Joaquim e Santa Ana iam já adiantados em anos
sem terem sucessão e sem esperança de a terem.
Esta
esterilidade, que era olhada então como uma maldição de Deus e
como a mais ignominiosa desgraça que podia cair sobre uma família,
porque lhe roubava toda a esperança de parentesco com o Messias
prometido; esta esterilidade desde muito que era uma humilhação
para São Joaquim e Santa
Ana, e como a idade lhes tinha arrebatado toda a esperança de ter
filhos, contentavam-se em derramar o seu coração na presença de
Deus, e submissos à Sua vontade, não pediam senão o que fosse para
sua maior glória. Crê-se que os dois castos esposos tiveram
revelação de Deus que lhes fazia saber que deles nasceria uma
filha, que seria bendita entre todas as do seu sexo e da qual Deus se
queria servir para salvação de Israel.
Tiveram
a Santíssima Virgem, que nasceu miraculosamente, diz São João
Damasceno, de mãe estéril; e que depois de haver livrado por seu
Nascimento a seus pais da ignomínia da esterilidade, os tornou as
duas pessoas do mundo mais venturosas e respeitáveis. Quid
autem est, diz este Santo, cur
Virgo Mater ex esterili orta sit?
mas porque é que esta
Virgem Mãe nasceu de mãe estéril?
É porque era necessário
que, responde ele, o que era tão novo debaixo do sol, só por via
extraordinária acontecesse, e que Aquela que era o mais insigne dos
milagres nascesse miraculosamente: Quoniam scilicet
oportebat ut ad id quod solum sub role novum erat ac miraculorum
omnium caput via per miracula sterneretur.
Era justo que a natureza cedesse à graça e que lhe deixasse toda a
glória do seu fruto. A
Virgem, Mãe de Deus, disse
este Padre, devendo nascer
de Santa Ana, a natureza não ousou por motivo de respeito concorrer
para o que devia ser obra da graça; como que se deteve para deixar à
graça todo o vagar de produzir o seu fruto.
É
fácil de compreender qual não seria a alegria deste pai afortunado,
desta feliz mãe, no momento em que esta ditosa Menina veio ao mundo.
Iluminados por luz sobrenatural, compreenderam que Deus a formara
para Si e que eles apenas eram os depositários. Um nascimento tão
extraordinário foi para eles presságio certo do mérito e da
excelência desta Santa Menina. Ó felizes pais, exclama São João
Damasceno, que tiveste a ventura de dar ao mundo uma Virgem, que será
ao mesmo tempo Mãe de Deus, sem deixar de ser filha vossa: Virginem
enim Dei matrem mundo peperistis:
Feliz o ventre, Virgem Santa, que Vos trouxe, e felizes os peitos que
Vos alimentaram! Que todos os fiéis se apressem, exclama o devoto
Sérgio de Hierápolis, a vir saudar esta Menina que acaba de nascer,
porque antes do seu Nascimento estava já predestinada para ser a Mãe
do seu Deus; e com Ela o mundo renasce e se renova.
“Vinde,
povos, vinde nações de qualquer clima que sejais,
exclama São João Damasceno, vinde vós de qualquer idade
e condição que sejais, vinde celebrar o Nascimento desta Virgem,
com a qual nasceu nossa salvação”.
Houve jamais um tão digno motivo de alegria? E em que dia deve
afirmar-se mais a nossa alegria, pois que se pode dizer com Santo
Ildefonso, que foi na Natividade da Virgem que de alguma sorte
começou o feliz Nascimento de Jesus Cristo? In Nativitate
Virginis felix Christi est inchoata Nativitas.
Deus não tinha até aqui olhado a terra senão como um país de
lágrimas, destinado para habitação de criminosos; mas desde o
momento que Maria aparece no mundo, Deus vê já um objeto que muito
Lhe agrada para se mostrar sempre irritado.
Alguns
dias depois deste fausto Nascimento, levaram seus pais esta Santa
Menina ao templo, onde depois das orações rituais se Lhe deu o Nome
de Maria. Santo Ambrósio, São Bernardo e muitos outros Santos
Padres asseveram que este Nome Lhe foi dado pelo Céu como o mais
próprio para significar a grandeza, a dignidade e a excelência da
Virgem, e que por isso foi revelado a Santa Ana e a São Joaquim.
Dignitas Virginis annunciatur ex nomine,
diz São Pedro Crisólogo.
Podemos
colocar a tratos a imaginação, e esgotar todos os artifícios e
segredos da eloquência para tecer magníficos elogios ao Nascimento
dos príncipes; que há com efeito que dizer de uma criança que
acaba de nascer? Louvar a sua nobreza é elogiar os seus avós. Não
há assunto mais estéril do que sua pessoa nestes primeiros
momentos. Quanto ao futuro tudo o que decerto pode prever-se é que
terá de estar sujeito a grandes misérias. Não se sabe se será bom
ou mau, engenhoso ou imbecil; ainda não fez coisa alguma, e não se
sabe o que fará; outro tanto não se pode afirmar de Maria. Maria
vem ao mundo cumulada de merecimentos, e sabemos que infalivelmente
há de encher o mundo de bênçãos e de felicidade.
Não
sofre dúvida, que a Alma da Santíssima Virgem, não seja depois de
Jesus Cristo, a mais bela que foi criada; e pode afirmar-se que de
todas as obras do Criador, foi a mais excelente: Opus quod
solus opifex supergreditur, diz
São Pedro Damião. A beleza do corpo era proporcionada à sua Alma.
Sabe-se que, desde o momento em que esta bela Alma foi unida ao
corpo, aquela foi
santificada, e este prestou desde logo os seus órgãos para as
operações da vida racional. Maria concebida sem pecado, recebeu
desde o primeiro momento da Sua vida com a graça santificante o
perfeito uso da razão. Desde então o Seu espírito foi esclarecido
com todas as luzes da sabedoria e enriquecido de todos os
conhecimentos morais e naturais. Mas qual foi a medida desta graça;
e qual o primeiro emprego desta razão tão esclarecida? Esta graça
foi tão abundante, que São Vicente Ferrer assegura que excedeu a de
todos os Santos e de todos os Espíritos Celestiais: Virgo
sanctificata fuit in utero super omnes sanctos et omnes angelos.
Desde
este primeiro momento em que todos os Santos foram aos olhos de Deus
um objeto de horror, Maria o foi de admiração para as celestiais
inteligências, e a Bem-amada de Deus. Eis aí qual foi a Virgem
Santíssima desde o primeiro instante da sua Conceição. Este fundo
de graças e de luzes, de sabedoria e de virtudes, crescendo a cada
instante, calculemos, se é possível, qual seria o tesouro de
merecimentos de que se achou enriquecida no dia do seu Nascimento.
Que assunto mais digno de nossas admirações, respeitos e elogios, e
digamos também e do culto de toda a Igreja, que o Nascimento desta
Santíssima Menina! Não há que surpreender se passados quinze anos,
o Anjo a saúda cheia de graça.
Santo
Epifânio diz, que esta graça foi imensa; Santo Agostinho, que foi
inefável. São João Crisóstomo chama a Maria, Tesouro de toda a
graça. São Jerônimo diz, que a graça fora difundida toda em seu
seio; e São Bernardino de Sena ousa mesmo afirmar, que Ela recebera
toda a que é possível dar-se a uma pura criatura: Tanta
gratia virgini data est, quanta uni et purae creaturas dari possibili
est.
Se
os povos costumam testemunhar tão grande alegria, quando nascem os
filhos do soberano, porque lhes nascem reis e senhores, haverá
motivo para espanto quando se diz que o Nascimento de Maria encheu de
alegria o Céu e a terra, como canta a Igreja. Ela deve ser a Rainha
dos Anjos e dos homens, a nossa única esperança junto de Jesus
Cristo, como diz Santo Epifânio; nossa Mediadora junto do Mediador,
São Bernardo; o Remédio de todos os nossos males, diz São
Boaventura; a nossa Paz a nossa Alegria, a nossa boa Mãe, diz Santo
Efrém; enfim, a nossa glória, a nossa consolação, a nossa vida.
Maria
é oriunda de Patriarcas e Reis; mas o que a exalta aos olhos de
Deus, não é o esplendor de Suas dignidades, nem o Seu poder, nem as
Suas brilhantes ações; a santidade que fez a dita de Sua Conceição,
faz só também a ventura e a glória do Seu Nascimento. Ela nasce,
não como os grandes do mundo no esplendor, não como os reis da
terra no meio das pompas e do fausto do século; mas sem essas
magnificências, sem esse brilho mundano; e não obstante, por
obscuro que pareça esse Nascimento, é preferível ao dos grandes e
dos reis. Todos estes foram concebidos em pecado, todos nasceram no
ódio de Deus e filhos da ira; Maria, ao nascer, é o objeto das mais
abundantes bênçãos, e enriquecida de todos os dons do Seu
espírito; eis o que faz a Sua verdadeira grandeza, e é assim que o
Rei da glória honra Aquela que Ele quer honrar.
Crescei,
Santa Menina, crescei para glória de Deus, que Vos fez nascer, e
para nós, em favor de quem nascestes. Algum dia dareis Vós
Nascimento ao mesmo Deus, de quem agora o
recebeis. Crescei pois para Lhe preparardes um digno Tabernáculo.
Quando se encerrar em vosso preciosíssimo ventre, conferir-Vos-á o
mais Augusto caráter, elevando-Vos à Maternidade Divina.
Vivei
e crescei para dignidade tão eminente e para o maior e mais glorioso
destino. Por vosso intermédio, quer vir a nós para nos libertar da
escravidão. Vivei e crescei para nossa salvação, e para que,
nascendo de Vós o nosso Salvador, fiqueis constituída Mãe de todos
os fiéis.
Admirar-nos-íamos
justamente de que uma Festa tão santa e que tanto nos interessa não
se celebrasse na Igreja desde os primeiros séculos, se não
soubéssemos a razão que tiveram aqueles primeiros fiéis, sem
dúvida mais devotos de Maria e de Seu culto do que nós, para não
darem aos gentios e às nações grosseiras, educadas na idolatria,
motivo de crer que os cristãos adoravam como deusa a Mãe de Deus.
Este o motivo que naqueles nebulosos tempos impedia os fiéis de
mostrarem o seu zelo pelo culto da Virgem em festas ruidosas e
solenes, contentando-se de Lhe renderem seus respeitos reverentes,
uma terna devoção e culto reservado.
Mas
logo que a Igreja gozou de paz, e que os Pastores puderam instruir
publicamente os rebanhos, floresceu em todo o mundo cristão o culto
público e solene da Santíssima Virgem, celebraram-se com pompa e
solenidade os Seus principais Mistérios; Solenizaram-se as Suas
festas com magnificência; concordaram gregos e latinos neste ponto
da Religião, não obstante o desgraçado cisma; o Nascimento da
Santíssima Virgem foi uma das principais festas entre os cristãos.
Creio
firmemente com toda a Igreja, que, tendo sido santificada no ventre
de sua mãe, é objeto digno do nosso culto desde o primeiro instante
em que nasceu.
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Fonte:
Pe. Croiset, S.J., “Ano Cristão”, Vol. IX,
pp. 92-97,
08
de Setembro;
Tradução do Francês pelo Pe. Matos Soares, Porto, 1923.