AS
BODAS DE CANÁ,
NA
GALILEIA.
1Três
dias depois, celebravam-se umas bodas em Caná da Galileia, e
encontrava-se lá a Mãe de Jesus. 2Foi também convidado
Jesus com Seus discípulos para as bodas. 3E, faltando o
vinho, a Mãe de Jesus disse-Lhe: Não têm vinho. 4E Jesus
disse-lhe: Mulher, que nos importa a mim e a ti isso? Ainda não
chegou a minha hora. 5Disse sua Mãe aos que serviam: Fazei
tudo o que Ele vos disser. 6Ora, estavam ali seis talhas de
pedra, preparadas para a purificação judaica, que levavam cada uma,
duas ou três medidas. 7Disse-lhes Jesus: Enchei as talhas de
água. E encheram-nas até em cima. 8Então disse-lhes Jesus:
Tirai agora, e levai ao arquitriclino. E eles levaram. 9E o
arquitriclino, logo que provou a água, convertida em vinho, como não
sabia donde lhe viera (este vinho),
ainda que o soubessem os serventes, porque tinham tirado a água, o
arquitriclino chamou o esposo, 10e
disse-lhe: Todo o homem põe primeiro o bom vinho, e quando já (os
convidados) têm bebido bem,
então lhes apresenta o inferior; tu, ao contrário, tiveste o bom
vinho guardado até agora. 11Por
este modo deu Jesus princípio aos (Seus)
milagres em Caná da Galileia, e os Seus discípulos creram n’Ele.
Omnipotentia supplicans
"Não receia S. Bernadino de Sena concordar de que,
'ao império de Maria todos estão sujeitos, até o próprio Deus'.
Isto é, Deus lhe atende aos rogos como se fossem ordens".
(S. Afonso M. de Ligório, "Glórias de Maria Santíssima", Part. I, Cap. VI, § I)
1ª
Parte
RUMINANDO
O TEXTO EVANGÉLICO
1.
“Três dias depois…”.
“Ao
terceiro dia”,
depois da partida da Judeia, chegaram a Caná, que era uma aldeia,
situada à distância de uma hora e meia a nordeste de Nazaré. As
núpcias celebravam-se, evidentemente, em casa de um amigo ou parente
da família de Jesus.
Três dias depois do encontro com Filipe e Natanael, o Evangelho
abre-se, desse modo, com uma semana completa, contada quase dia por
dia, e conclui-se com a manifestação da glória de Jesus.
No
es claro desde cuándo se ha de contar este tercer día, si desde la
partida para Galilea (1, 43) o desde el último discurso.
Caná
ficava perto de Nazaré. Diz-se Caná da Galileia, para distingui-la
de Caná de Sidônia. – Acredita-se que os esposos eram parentes da
Santíssima Virgem.
“…
encontrava-se
lá a Mãe de Jesus…”.
Maria
está presente ao primeiro milagre, que revela a glória de Jesus e,
novamente na Cruz (19, 25-27). Por uma intenção manifesta, vários
dados se correspondem nas duas cenas.
A
Santíssima Virgem já estava ali; chegando o Senhor da Judeia, foi
também convidado com os seus discípulos. Talvez este mesmo
acréscimo de convivas causasse a falta de vinho antes de terminarem
os festins nupciais, que duravam, regularmente, 7 dias.
As
bodas das pessoas ricas celebravam-se durante sete dias. A Mãe de
Jesus devia ser parenta de um dos esposos, pois vemos no versículo
12, que os filhos de sua irmã (a mulher de Cléofas), Tiago, José,
Simão e Judas a quem o Evangelista chama os irmãos de Jesus, foram
também convidados. Não fala o Evangelista da presença de São
José, o que leva Santo Epifânio a pensar que
já tinha morrido.
Tal
como aqui, em Caná, a intercessão de Maria se faz presente também
no Cenáculo: Eles
rezavam com Maria, a Mãe de Jesus”
(At. 1, 14).
2.
“… Foi também convidado Jesus com Seus discípulos…”.
Assistindo
a estas núpcias, quis Jesus não só confirmar os Seus discípulos
na fé, operando um grande milagre, como também santificar o
Matrimônio que, mais tarde, seria elevado à dignidade de
Sacramento.
Quantos
cristãos, ou que se dizem tais, repelem a presença de Jesus,
recusam a intervenção de Maria Santíssima, no ato aliás tão
solene do Casamento, que tantas graças requer para completa
felicidade da família! Todo Casamento contraído fora da presença
de Jesus, sem a intervenção da sua Igreja, é não somente
escandaloso e infeliz, mas ainda fonte perene de inúmeros pecados.
Quando
vem Jesus à mesa, não é para comer, senão para dar sustento
(Sedúlio).
Jesus
aceitou o convite dos noivos, para com Sua presença santificar o
Casamento. A mudança do vinho no Sangue de Cristo no Santo
Sacrifício da Missa é ainda mais de admirar, que a mudança da água
em vinho nas Bodas de Caná.
3.
“E, faltando o vinho, a Mãe de Jesus…”.
A
palavra da Mãe patenteia tanto a delicadeza de sentimentos para com
os esposos embaraçados, como a fé na bondade e poder de seu Filho.
O que Ela pede é um milagre.
“…
Não
têm vinho…”.
Es
de advertir la discreta manera de pedir
el remedio de aquella necesidad en tan solemne
momento.
Maria
Santíssima pediu um milagre, em favor daqueles esposos. Observando
que não era ainda chegada a ocasião de manifestar-se ao mundo, com
todo o Seu poder, Jesus cede todavia à intercessão de sua Mãe.
Assim praticou Jesus o Seu primeiro milagre, por intervenção de
Maria, a quem devemos sempre recorrer em nossas tribulações. Se Ela
não podia, por Si, operar o milagre desejado, conseguiu, no entanto,
com as Suas súplicas.
A Virgem Maria dirige-se a Jesus como Deus, pedindo um milagre para
livrar os esposos de embaraços, e Jesus responde a sua Mãe como
Deus, querendo mostrar aos convivas que vai operar, não como Filho
de Maria, mas como Filho de Deus, na hora marcada pela vontade de
Deus para começar a fazer milagres.
4.
“Mulher…”.
Entre os gregos e os orientais a palavra mulher
era usada na intimidade para designar também as pessoas mais
queridas e mais dignas de respeito.
Esse
tratamento insólito de um filho para com sua mãe repetir-se-á em
19, 26, onde o seu significado se esclarece como reminiscência de
Gênesis 3, 15.20: Maria é a nova Eva, “a
Mãe dos viventes”.
A
primeira parte da resposta de Jesus é uma frase muito comum na
Sagrada Escritura, e era conhecida também entre os gregos e os
romanos: v. II Reg. 16, 10; III Reg. 17, 18; IV Reg. 3, 13; 9, 18;
etc. Não se pode negar que ela implicasse uma recusa ao pedido da
Mãe, recomendando-Lhe que não se metesse nessas coisas. É de
notar, porém, que a locução não tem nada de ofensivo ou
desdenhoso; tão pouco, a denominação de “Mulher” em vez de
Mãe. É conhecido que, nos escritores antigos, com essa palavra são
intituladas também senhoras de alta posição social, como rainhas e
imperatrizes: v. Dio Cass. II. 12, 5. Outrossim, é bem de observar
que, Jesus não se negou propriamente a fazer o milagre, como se vê,
evidentemente, da palavra “ainda não”, bem como do aviso de
Maria aos criados e do fato de socorrer Jesus, pouco depois, os
necessitados. Mas não admite o Salvador o modo pelo qual a Mãe
pediu, apoiando a súplica nas relações naturais que tem com o
Filho. Este não pode agir antes que tenha chegado a hora que o Pai
marcou. Assim como no templo, v. Luc. 2, 49, também agora declara
Jesus que, no Seu ministério messiânico, não pode atender à voz
do sangue, e, sim, unicamente à vontade do Pai, à qual também a
Mãe tem que se sujeitar.
La
trata como en la cruz, lo que no expresa falta alguma de respeto. La
negativa, sin duda, iría suavizada por el tono de la voz con que
Jesús la pronunció y por la razón alegada de no ser llegada la
hora de obrar milagros.
O
título “Mulher” aparece 1º)
aqui; 2º)
debaixo da Cruz (19, 26); 3º)
no Apocalipse, em luta com o Dragão (12, 1 s.), e lembra a Mulher
predita no Protoevangelho (Gên. 3, 15). A resposta segundo outros
paralelos bíblicos significa, divergência de interesses e mesmo
recusa. Agora na vida pública, Jesus não pode mais obedecer à sua
Mãe como em Nazaré (Luc. 2, 51). Também os Evangelhos anteriores
relatam respostas semelhantes que significam o tempo de separação
entre a Mãe e o Filho. A hora
no Evangelho de João é sempre a hora
da Paixão ou da glorificação. Quando chegar esta hora, Maria
poderá novamente mandar. Apesar da primeira recusa, Jesus ouve a sua
Mãe como ouviu a mulher cananeia por causa da sua fé (cfr. Mat. 15,
21-25 e Mac. 7, 24-30). Quanto mais o
Filho ouvirá a sua Mãe depois de chegada a hora da glorificação
(cfr. 12, 23.31-32), em que com o Filho vencerá o Demônio?
Notemos,
finalmente, que a expressão – Mulher – na língua grega e
hebraica, é uma expressão respeitosa e cheia de afeto; equivale em
nossa língua à palavra – Senhora – que, muito respeitosamente e
em tom solene, dão os súditos às suas soberanas, e ainda mesmo os
filhos às suas mães. Nada tem, portanto, de duro e menos afetuoso,
como pretendem alguns hereges, pois dessa expressão usou o Salvador
no angustioso momento de confiar ao discípulo amado a proteção da
que lhe fora Mãe segundo a carne.
No
Oriente era mais solene e honroso chamar a mãe de “mulher”.
Autoriza-se
esta nossa versão: que
temos nós com isso?
Com os nomes do poeta Nonnus, de Eutymio, de Cajetano, etc.
–
Mulher,
em que valia, e hoje ainda vale, entre os Árabes, por Senhora,
de filho respeitoso para a mãe.
–
O
Quid mihi et tibi,
é ainda a fórmula de cortesia, entre os Árabes, significando: “que
desejas de mim?” Ouach
andy fik?
(N. Do Trad.)
“…
que
nos importa a mim e a ti isso?…”.
Semitismo
bem frequente no Antigo Testamento (Jz. 11, 12; 2 Sm. 16, 10; 19, 23;
1 Rs. 17, 18; etc.)
e no Novo Testamento (Mt. 8, 29; Mc. 1, 24; 5, 7; Lc. 4, 34; 8, 28).
É empregado para rejeitar uma intervenção que se julga inoportuna
ou, então, para demonstrar a alguém que não se deseja
relacionamento algum com ele. Somente o contexto poderá indicar a
nuança exata. Aqui, Jesus objeta a sua Mãe que “sua
hora ainda não chegou”.
Isto
é, que me pedis? Que desejais? Quereis que Eu
faça um milagre? Mas não é ainda chegado o momento de manifestar
aos homens todo o meu poder. Todavia, Eu
adiantarei esse momento, porque é da vontade de meu Pai, que Eu
ceda à vossa intercessão.
Esta
explicação se harmoniza, não somente com outras passagens
semelhantes da Escritura, mas ainda com o espírito do Evangelho de
São João, cujo fim era provar a Divindade de Jesus. Além disso, o
procedimento da Santíssima Virgem mandando aos servos que
obedecessem a Jesus, não obstante a dureza aparente das Suas
palavras, confirma esta explicação que, aliás, só encontra
oposição na má-fé e ignorância de certos hereges.
Esta
frase traduz imperfeitamente a locução hebraica, que significa:
“Deixa-me
fazer”.
“…
a
minha hora…”.
A
“hora”
de Jesus, é a hora de Sua glorificação, de Sua volta à direita do
Pai. O Evangelho anuncia a Sua proximidade 7, 30; 8, 20; 12, 23.27;
13, 1; 17, 1). Fixada pelo Pai, ela não deveria ser antecipada. O
milagre conseguido com a intervenção de Maria será, no entanto,
seu anúncio simbólico.
No
original grego faltava toda a sorte de pontuação, de modo que
alguns modernos intérpretes julgam que a frase devia ser
interrogativa: “Não
chegou ainda, porventura, a minha hora?”
Maria
entendeu destas palavras, que seu Filho estava disposto a fazer em
tempo oportuno o que Ela lhe pedia, por isso, disse aos servidores da
mesa: “Fazei o
que Ele vos disser”.
5.
“… Disse sua Mãe aos que serviam…”.
O aviso aos criados faz ver
que Maria Santíssima compreendeu bem a palavra do Filho. Conquanto,
não sabia como Jesus iria providenciar, a Sua fé, porém,
não duvida de que o há de fazer.
A pesar de la negativa, la
Madre confia que Jesús hallará modo de remediar la necesidad. Más
tarde accederá a los ruegos de la cananea, no obstante decir que no
había venido sino a las ovejas de Israel (Mat. 15, 24).
A Virgem Maria compreendeu
muito bem, pela resposta de Jesus, que o seu pedido ia ser
satisfeito.
Tendo Maria, na sua fé
maternal, chamado os criados, Jesus não pode resistir (São João
Crisóstomo), e assim a Virgem obteve a execução de um milagre,
feito antes da hora marcada pelo Pai Eterno.
6.
“… cada uma, duas ou três medidas…”.
No
original grego, trata-se de metretés,
medida
ática de líquidos, equivalente à medida judaica bath,
que corresponde a cerca de 40 litros. En
estas finajas tenían depositada el agua necesaria para las
frecuentes abluciones prescritas por la costumbre judía (Mac. 7,
3-8)...
Ainda
hoje se mostram na Palestina duas daquelas grandes talhas ou urnas,
grosseiramente trabalhadas, sem nenhuma escultura,
feitas de calcário compacto do país.
As purificações
dos judeus
consistiam na lavagem das mãos antes das refeições, como era de
costume entre eles.
9.
“… E o arquitriclino, logo que provou a água…”.
Por
razón de su oficio, el maestresala (llamémosle así) debía estar
enterado de los elementos de que disponía, y al encontrarse con la
sorpresa de aquel vino no puede menos de manifestarla.
O
presidente da mesa ou do festim – arquitriclínio – era quem
dirigia todo o serviço. Nosso Senhor censurou a vaidade dos judeus
que procuravam este lugar.
10.
“… e quando já (os convidados) têm bebido bem…”.
A
frase parece jocosa na boca do mestre-sala.
Será
isto alusão a algum prolóquio local. De modo contrário faz o
Senhor, que dá primeiro o cálice amargoso da sua Paixão e depois,
o
cálice delicioso da glória (S. Tomás).
11.
“Por este modo deu Jesus princípio aos (Seus)
milagres…”.
Todo
Profeta devia provar a autenticidade de sua missão por meio de
“sinais”,
isto é, prodígios realizados em nome de Deus (Is. 7, 11; cfr. Jo.
3, 2; 6, 29-30;
7, 3.31; 9, 16.33); esperava-se especialmente do Messias, que ele
renovasse os prodígios de Moisés (1, 21 +). Jesus realizou, pois,
“sinais”
para incitar os homens a crerem em Sua missão divina (2, 11.23; 4,
48-54; 11, 15.42; 12, 37; cfr. 3, 11 +), porque essas “obras”
testemunham que Deus O enviou (5, 36; 10, 25.37), que o Pai está
n’Ele (10, 30 +), com o poder de Sua glória (1, 14 +); o Pai é
quem realiza essas obras (10, 38; 14, 10). Muitos, no entanto,
recusam crer (3, 12; 5, 38-47; 6, 36.64; 7, 5; 8, 45; 10, 25; 12,
37). O pecado deles permanece (9, 41; 15, 24; cfr. Mt. 8, 3 +).
Con
este primer milagro comenzó Jesús a manifestar la gloria de su
divinidad, que sus discípulos comenzaron a ver (1, 14).
Foi
este o primeiro milagre que Jesus fez, e assim manifestou o Seu poder
divino, e os Seus discípulos creram mais firmemente.
Isto
prova que Jesus não fez milagres na Sua mocidade (S. João
Crisóstomo).
2ª
Parte
NA
COLMEIA DA MEDITAÇÃO
1ª
MEDITAÇÃO
Natanael
era de Caná, pequena cidade situada sobre a margem de um valinho, a
duas léguas de Nazaré. Jesus
também lá tinha parentes e amigos, entre outros, Simão, filho de
Cléofas, que veio a ser mais tarde um dos Apóstolos. Guiados pela
Providência, pararam os seis viajantes naquela cidadela.
Ora,
nesse dia, celebravam-se bodas numa família amiga, e Maria, Mãe de
Jesus, era do número dos convidados. Posto que habitualmente vivia
oculta no seu retiro de Nazaré, tinha querido honrar os esposos com
a Sua presença. De resto, o Espírito, que A guiava, revelou-lhe que
Deus A desejava em Caná para uma obra da Sua glória.
Pela
tarde, como soubessem que Jesus voltara da Sua longa excursão pela
Judeia, apressaram-se os esposos a convidá-Lo para a festa com os
Seus companheiros. E ainda que pelo comum não apareciam os doutores
pelos banquetes, abria-se uma exceção para as festas dos esponsais
e bodas, por motivo do caráter particularmente religioso que
revestiam estas cerimônias. Aceitou pois Jesus o convite dos
recém-desposados. Deste modo consagrava com a Sua presença a
existência e a santidade do Matrimônio, que se propunha elevar bem
depressa à dignidade de Sacramento. Por outra parte, uma disposição
providencial reunia, na humilde casa dos esposos de Caná, a Virgem
Maria, o seu Filho muito amado e os primeiros discípulos de que
havia feito escolha.
A
família pouco abastada em que se encontrava o Divino Mestre não
tinha preparado para o banquete mais que as provisões necessárias.
Ora, como em consequência da chegada imprevista de Jesus com os Seus
discípulos, era o número dos convivas mais considerável do que se
esperava, notou-se pelo meio da refeição que ia a faltar vinho.
Viria isso a ser de grande vergonha para os jovens esposos, muito
mais nesta festa solene de bodas, em que nada se poupava para
hospedar dignamente os parentes e amigos da família.
Vendo
aos serventes atrapalhados e aflitos, compreendeu logo a Mãe de
Jesus a causa do seu embaraço. Cheia de compaixão para com os seus
hóspedes, sentiu-se movida a auxiliá-los; mas que meio empregar?
Inclinou-se Maria para o seu Filho e segredou-lhe ao ouvido: “Não
têm vinho”. “Senhora, respondeu Jesus, e que
desejais que faça? A minha hora ainda não chegou”.
Maria
desejava, (e bem o dizia o seu olhar suplicante) que Jesus usasse do
Seu poder soberano para tirar os esposos da cruel posição em que se
encontravam; mas não convinha, parecia dizer Jesus, adiar o
exercício do poder divino para o tempo em que o milagre seria
necessário para provar a Sua missão e creditar a Sua doutrinar?
Embora
esta resposta pudesse ser tida por uma recusa, Maria contou com a
intervenção do seu Filho. O ato, que o Seu ministério por enquanto
não reclamava, executá-lo-ia Jesus por amor d’Ela, e movido pelo
Seu pedido. Havia porventura Jesus recusado algum dia o que quer que
fosse a sua Mãe? Aproximando-se dos serventes, disse-lhes Maria:
“Fazei tudo o que Ele vos disser”.
Havia
ali seis grandes ânforas ou vasos de pedra, que serviam para as
abluções, tão frequentes entre os Judeus. Estes vasos podiam levar
de duas a três medidas.
Mandou Jesus aos servos que os enchessem de água até em cima. Em
seguida, uma vez executada a ordem, Jesus, sem dizer uma palavra, sem
fazer um gesto, só com um ato da Sua vontade converteu a água em
vinho. “Tirai agora para essas urnas, disse Ele aos
serventes, e levai ao presidente do festim para que beba”.
Pertencia
ao presidente presidir ao banquete, provar os vinhos e distribuí-los
aos convivas. Mal que provou este vinho cuja proveniência
desconhecia, encontrou-o excelente, e imaginou que o esposo quisesse
fazer uma surpresa aos convidados. Tomou-o à parte e não pôde
deixar de lhe dar os parabéns. “É costume geral, disse,
esperar o fim da refeição, quando já o paladar dos convivas se
vai embotando, para então servir os vinhos de qualidade inferior.
Vós fizestes exatamente o contrário: servis em último lugar o
vinho mais fino e delicioso”.
Protestou
o esposo que nada compreendia deste mistério. Interrogaram-se os
serventes, que haviam enchido de água as seis ânforas, e eles
contaram o grande milagre, que a rogo de Maria, Jesus acabava de
operar.
Foi o bastante para manifestar a todos os compatriotas do Salvador o
poder extraordinário em que Deus O tinha investido, e desde aquele
momento os discípulos, que O tinham seguido, fiados na palavra de
João, consagraram-se-lhe com fé plena e inteira.
Viu-se
também nesta ocasião memorável a íntima união que existia entre
a Mãe e o Filho, e como a prece de Maria, prevista nos eternos
decretos de Deus, obtinha de Jesus atos que Ele sem essa poderosa
intercessão não faria. Assim como lhe esperou pelo consentimento
para encarnar no Seu claustro virginal, esperou também o Seu pedido
para mudar a água em vinho; e é ainda em atenção à Sua prece que
no decorrer dos séculos, por um milagre constantemente renovado,
transformará em filhos de Deus aos filhos decaídos do velho Adão.
Nesse
dia, compreendeu Satanás perfeitamente que o Solitário da montanha
se tinha negado a converter as pedras em pão, não por falta de
poder, mas para não lhe revelar os Seus títulos divinos. E além
disso, vendo Maria exercer sobre o seu Filho um ascendente que A
tornava Onipotente, reconheceu n’Ela a criatura misteriosa com que
Deus desde o princípio o ameaçara por esta palavra: “Essa
mulher um dia há de te esmagar a cabeça”.
E votou-lhe a Ela e mais ao seu Filho um ódio eterno.
Com
este milagre, tocaram o seu termo os dias aprazíveis da solidão.
Após trinta anos de vida oculta aos homens, ia Jesus manifestar-se
ao mundo. Como a residência em Nazaré não convinha de ora em
diante aos Seus trabalhos, disse o último adeus a esse doce remanso,
e seguido da sua Mãe, parentes e discípulos, desceu para Cafarnaum,
que se tornou desde então a Sua residência habitual e o centro do
Seu ministério apostólico.
2ª
MEDITAÇÃO
Por
que assistiu Cristo Senhor Nosso aquelas bodas com sua Mãe e Seus
discípulos? Para
manifestar Sua glória e indicar-nos que a Deus agradam as núpcias
dos que O temem, como os esposos a cujo favor fez Jesus o milagre.
Por
que disse Maria: “Falta-lhes o vinho”?
Porque deles tinha pena. Na aflição, no desamparo, n’Ela acham
sempre os servos de Deus, Mãe de misericórdia, protetora terna e
diligente. Compartilhemos os apertos dos pobres vergonhosos, acudamos
aos necessitados com nossa intercessão, se mais não podemos e a
Maria recorramos em todas as nossas precisões, porque
é Mãe tão poderosa como benigna.
Como
se entende este dizer de Cristo a sua Mãe: “Mulher, que tenho eu e
tu com isto? Ainda não chegou a minha hora?”
No modo de falar dos Hebreus, essas palavras significam: Sossegue
minha Mãe, o vinho darei eu, quando chegar a hora marcada por meu
Pai, que ainda não chegou.
Declarou assim o Salvador, sem desrespeito algum à sua Mãe, que
acima d’Ela recebia as ordens de seu Pai, e ensinou-nos, que
devemos em todas as coisas esperar o tempo determinado pela Divina
Providência, e, naquilo mesmo que diz à glória de Deus, devemos
sujeitar nossas humanas vistas e desejos à Sua divina vontade.
Por
que mandou Jesus levar o vinho ao mestre-sala?
Para manter a ordem, para que não abusassem do vinho os convivas,
para que o provasse o mestre-sala e atestasse o milagre, e assim,
todos os presentes acreditassem em Jesus Cristo.
3ª
MEDITAÇÃO
O
Começo da “HORA”. Através
dos Evangelhos, todas as referências que, à maneira de trovões, se
fazem à Cruz, são acompanhadas pelo raio da glória da
Ressurreição; todas as sombras movediças do sofrimento redentor
que se aproxima, são rasgadas pela luz da liberdade espiritual que
virá a seguir. Este contraponto de alegria e dor na vida de Cristo
encontra-se de novo no primeiro milagre realizado na cidade de Caná.
É muito significativo que Aquele que veio pregar a crucifixão da
carne desordenada tivesse começado a sua Vida Pública assistindo a
uma festa de Casamento.
No
Antigo Testamento, as relações entre Deus e Israel eram comparadas
às relações entre o noivo e a noiva. Nosso Senhor quis, pois,
sugerir que a mesma relação continuaria a existir entre Ele e o
novo Israel espiritual que ia fundar: Ele
seria o Esposo e a sua Igreja a esposa. E uma vez que vinha
estabelecer esta espécie de união entre Ele e a humanidade remida,
convinha que principiasse o Seu ministério público assistindo a um
Casamento. São Paulo não tentava introduzir uma ideia nova quando,
mais tarde, escrevesse aos Efésios que a união entre o homem e a
mulher era um símbolo da união entre Cristo e a Igreja.
“Vós,
maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e por Ela
se entregou a Si mesmo”.
Uma
boda é ocasião de grande alegria, e o vinho é servido como um
símbolo dessa alegria. Nas bodas de Caná, que tiveram tanta
importância simbólica, a sombra da Cruz não empanou a alegria,
porque esta veio primeiro que a Cruz. Mas quando a alegria atingiu o
seu termo, então pairou sobre a festa a sombra da Cruz.
Nosso
Senhor já tinha sido declarado, no rio Jordão, como o Cordeiro de
Deus, e tinha também escolhido cinco discípulos entre os seguidores
de João Batista: João Evangelista, André, Pedro, Filipe e
Natanael. Todos eles O acompanharam à festa nupcial, a qual já
tinha começado e que costumava durar vários dias. Naquele tempo, os
pais da noiva viam-se a braços com maiores encargos do que hoje em
dia, porque os regozijos
podiam prolongar-se por uma semana. Uma
das razões prováveis de se acabar o vinho, foi por Nosso Senhor ter
trazido vários hóspedes sem serem convidados. Depois da grande
comoção, nas margens do Jordão, quando os Céus se abriram para
afirmar que Ele era o Filho de Deus, a Sua presença tinha atraído
centenas de admiradores, os quais também vieram à festa. Ele
apresentou-se no Casamento não como carpinteiro de aldeia, mas como
Cristo, ou Messias. Antes de terminar o festim havia de mostrar que
tinha marcado ali um aprazamento com a Cruz.
Maria,
sua Mãe, estava presente às bodas. Na vida do Senhor é esta a
única vez em que Maria é mencionada junto do Filho. Ela devia ser o
instrumento do primeiro milagre, ou sinal, de que Ele era o que
reclamava ser, o Filho de Deus. Já tinha sido o instrumento da
santificação de João Batista no ventre materno; agora, a Sua
intercessão foi como o toque de trombeta para uma longa procissão
de milagres – intercessão tão poderosa que inspirou as almas de
todos os tempos a invocarem o seu Nome, para outros milagres da
natureza e da graça.
Estava
também presente João Evangelista que já tinha sido escolhido por
discípulo; foi ele a testemunha de vista e ouvido do que Maria fez
em Caná. Também se encontraria com Ela aos pés da Cruz, e recordou
os dois acontecimentos no seu Evangelho. No templo e no Jordão,
Nosso Senhor recebeu a bênção e a sanção do Pai para dar começo
à Obra de Redenção. Em Caná, recebeu o consentimento de sua Mãe.
Um dia, no terrível isolamento do Calvário, viria o negro momento
em que se sentiria aparentemente abandonado de seu Pai e citaria o
salmo que começa:
“Meu
Pai, Meu Pai, por que me abandonaste?”
Viria
também outro momento em que aparentemente abandonaria sua Mãe:
“Mulher,
eis aí o teu filho”.
É
interessante notar que, ao faltar o vinho em Caná, Maria ficou mais
preocupada com os hóspedes do que o próprio despenseiro; porque foi
Ela e não ele quem notou a falta de vinho. Voltou-se pois para seu
Divino Filho, em perfeito espírito de oração. Confiando plenamente
n’Ele e segura da Sua compaixão, disse-lhe:
“Não
têm vinho”.
Era
mais que um pedido pessoal; era o pedido da Medianeira de todos os
que buscam a plenitude da alegria. Ela nunca se limita a ser mera
espectadora, mas participa plenamente e intervém voluntariamente nas
necessidades dos outros. A Mãe usou do poder especial que tinha como
Mãe sobre o Filho, poder resultante do amor mútuo. Jesus
respondeu-lhe com aparente hesitação:
“Mulher,
que tenho eu e tu com isso? Ainda não chegou a minha Hora”.
Literalmente,
as palavras da resposta de Jesus são difíceis de traduzir. Trata-se
de uma frase idiomática Hebraica, que São João exprimiu
literalmente em Greco e que a Vulgata manteve em Quid
mihi et tibi,
que significa: “Que
a mim e a ti?”
As palavras “com
isso”
não se encontram na frase original; foram adicionadas na tradução,
para tornarem a ideia mais compreensível. Tradutores como Knox dão
uma versão mais livre: “Porque
me incomodas com isso?
Para
melhor aprendermos o seu significado, consideremos as palavras: “A
minha Hora ainda não chegou”.
A
“Hora”
refere-se evidentemente à Cruz. Sempre que no Novo Testamento é
empregada, a palavra “Hora”,
estabelece-se uma relação com sua Paixão, Morte e Glória. Só em
João, existem várias referências a esta palavra. Notemos aqui
algumas.
“Procuraram,
pois, os Judeus prendê-lo, mas ninguém lhe lançou as mãos porque
não era ainda chegada a sua Hora”.
“Estas
palavras disse Jesus ensinando no templo, no lugar do gazofilácio, e
ninguém o prendeu porque não era ainda chegada a sua Hora”.
“E
Jesus lhes respondeu, dizendo: É chegada a Hora em que o Filho do
Homem será glorificado”.
“Agora
está turbada a minha alma. E que direi eu? Pai, livra-me desta Hora.
Mas não, porque eu vim para esta Hora”.
“Eis
que aí vem a hora e já é chegada, de vos dispersardes cada um para
sua casa, e de me deixardes só. Mas eu não estou só, porque
o Pai está comigo”.
“Assim
falou Jesus, e levantando os olhos ao Céu, disse: Pai, é chegada a
Hora. Glorifica a teu Filho, para que teu Filho te glorifique a Ti”.
A
“Hora”,
portanto, refere-se à Sua glorificação depois da Crucifixão,
Ressurreição e Ascensão. Jesus Cristo em Caná referia-se ao
Calvário e afirmava que o tempo determinado para começar a Obra da
Redenção ainda não tinha chegado. Sua Mãe pedia um milagre; Ele
queria fazer-lhe compreender que o milagre feito como sinal da sua
Divindade seria o princípio da Sua morte. No momento em que se
apresentasse ante os homens como Filho de Deus, desencadearia sobre
Si o ódio do mundo, porque o mal pode tolerar a mediocridade, mas
não a suprema bondade. O milagre pedido por Ela estaria
inconfundivelmente relacionado com a Redenção. Houve duas ocasiões
na vida em que a Sua natureza humana pareceu mostrar repugnância em
aceitar o peso do sofrimento. No Horto, pediu ao Pai que, se fosse
possível, afastasse d’Ele o cálice de amargura. Mas imediatamente
depois aquiesceu à vontade do Pai: “Não
se faça a minha vontade, mas a tua”.
A mesma aparente relutância se manifestou diante do pedido de sua
Mãe. Caná era um ensaio para o Gólgota. Ele não pôs a questão
se era ou não prudente começar a Vida Pública e entregar-se à
morte neste particular momento; tratava-se antes de forçar a
natureza humana relutante a submeter-se à Cruz. Há um paralelo
surpreendente entre o convite de seu Pai para a morte pública e o
convite de sua Mãe para a vida pública. Num e noutro caso triunfou
a obediência; em
Caná, a água foi convertida em vinho; no Calvário, o vinho foi
convertido em Sangue.
As
palavras do Senhor lembravam à sua Mãe, que Ela estava virtualmente
pronunciando a sentença de morte contra Ele. Poucas são as mães
que mandam seus filhos para os campos de batalha; mas aqui estava uma
que, realmente, apressava a hora de morte entre seu Filho e as forças
do mal. Se concordasse com o pedido, Jesus começaria ali
a Sua hora de morte e glorificação. Iria para a Cruz com uma dupla
comissão: uma de seu Pai no Céu, outra de sua Mãe na terra.
Mal
consentiu em começar a sua “Hora”,
imediatamente lhe fez saber que as relações entre eles estariam
dali por diante modificadas. Até então, durante a vida oculta, Ela
era conhecida como a Mãe de Jesus. Mas desde que se lançasse na
Obra da Redenção, Ela já não seria apenas a Mãe d’Ele, mas
também a Mãe de todos os Seus irmãos humanos, por Ele remidos.
Para indicar esta nova espécie de relações, dirige-se agora a Ela
não como “Mãe”,
mas como “Mãe
Universal”
ou “Mulher”.
Como soaria esta palavra aos ouvidos do povo que vivia familiarizado
com o Antigo Testamento. Quando Adão pecou, Deus falou a Satã,
anunciando-lhe que havia de pôr inimizades entre a sua geração e
“a Mulher”,
porque o bem teria uma progênie tal como o mal. Existiria
no mundo não só a Cidade do Homem, que o Demônio reclamava por
sua, mas também a Cidade de Deus. A “Mulher”
teve, de fato, geração, e era essa Geração que se encontrava
agora na festa de Casamento, a Semente que havia de cair no chão e
morrer para depois germinar em nova vida.
No
momento em que a “Hora”
começava, Ela tornava-se “a
Mulher”;
havia de ter também outros filhos, não segundo a carne, mas segundo
o espírito. Se Cristo havia de ser o Novo Adão, Fundador de uma
Humanidade redimida, Ela seria a Nova Eva, a Mãe da Nova Humanidade.
Seria Mãe de Nosso Senhor enquanto homem; enquanto Salvador, seria
também Mãe de todos os que Ele salvasse. João, que esteve presente
às bodas, esteve também presente ao clímax da “Hora”
sobre o Calvário. Ouviu Nosso Senhor chamá-la “Mulher”
desde a Cruz e depois dizer-lhe: “Eis
aí o teu filho”.
João foi constituído, por assim dizer, o símbolo da sua nova
família. Quando Nosso Senhor ressuscitou o filho da viúva de Naim,
disse: “Entregai-o
a sua mãe”.
Na Cruz, a consolação que deu a sua Mãe foi entregar-lhe outro
filho, João, e com ele toda a Humanidade redimida.
Na
Ressurreição, tornou a estar na companhia d’Ela
para mostrar que, apesar de ganhar novos filhos não O perdia a Ele.
Em Caná, confirmou-se a profecia de Simeão a respeito d’Ela; de
futuro, tudo o que envolvesse seu Filho, envolvê-la-ia também a
Ela; tudo o que lhe acontecesse, aconteceria também a Ela. Se Ele
estava destinado a sofrer a Cruz, também o estava Ela; se Ele
começava a Vida Pública, também Ela começaria uma nova vida, não
já como Mãe de Jesus, mas como Mãe de todos os que Jesus Salvador
havia de remir. Chamou-se a Si mesmo “Filho
do Homem”,
título que abraçava toda a Humanidade; Ela, por sua vez, seria a
“Mãe dos
Homens”.
Assim como esteve a seu lado no começo da “Hora”,
estaria também a Seu lado quando a “Hora”
atingisse o seu auge. Quando, Menino de doze anos, O tirou do templo,
foi porque sabia que a sua “Hora”
ainda não tinha chegado; Cristo obedeceu-lhe então e voltou com Ela
para Nazaré. Agora respondeu-lhe que a sua “Hora”
ainda não tinha chegado; Maria, porém, pediu-lhe que a começasse e
Ele obedeceu. Em
Caná, Ela ofereceu-O como Salvador dos pecadores; na Cruz Ele
ofereceu-A como Refúgio dos pecadores.
Logo
que deu a entender que o seu primeiro milagre O conduziria
infalivelmente à Cruz e que, consequentemente, Ela começaria a ser
a Mãe das Dores, Maria voltou-se imediatamente para o despenseiro e
disse:
“Fazei
tudo o que Ele mandar”.
Que
magníficas palavras de despedida! Não tornará a falar na
Escritura. Sete vezes nos tinham já os Evangelistas relatado
palavras Suas, mas agora que Cristo se manifestou como o sol no pleno
esplendor da sua Divindade. Nossa Senhora obscureceu-se
voluntariamente como a lua, tal como João, mais tarde, a descreveu.
Encheram-se
as seis talhas de pedra que levavam perto de vinte e dois cântaros
e, na bela linguagem de Richard Chashaw, “as águas
inconscientes viram o seu Deus e coram”. O primeiro milagre
assemelhou-se muito à criação; foi feito pelo poder do “Verbo”.
O vinho por Ele criado era tão bom que o despenseiro censurou o
noivo com as palavras:
“Todo
homem põe primeiro o bom vinho, e quando todos tiverem bebido bem,
então lhes apresenta o mais inferior. Mas tu guardaste o bom vinho
até agora”.
Realmente
o melhor vinho tinha sido guardado. Até àquele momento, no
desenrolar da Revelação, o vinho inferior tinham sido os Profetas,
os Juízes e Reis, Abraão, Isaac, Jacó, Moisés, Josué – todos
eram como água esperando o milagre do Desejado das Nações. O
mundo, geralmente, oferece primeiro os seus melhores prazeres; depois
vêm as fezes e a amargura. Mas cristo inverteu a ordem e deu-nos a
festa depois do jejum, a Ressurreição depois da Crucifixão, a
alegria do Domingo de Páscoa depois do luto de Sexta-Feira Santa.
“Este
primeiro dos Seus sinais fez Jesus em Caná da Galileia, e manifestou
a Sua glória, e acreditaram n’Ele os Seus discípulos”.
A
Cruz está em toda a parte. Quando o homem estende os braços para
relaxar os músculos, inconscientemente forma a imagem do que foi a
causa da vinda do Filho do Homem. Assim também em Caná: a sombra da
Cruz atravessou a “Mulher”, e a primeira pancada da “Hora”
soou como uma sineta de
execução. Em todos os outros incidentes da Vida de Jesus, veio
primeiro a Cruz e depois a alegria. Mas em Caná, veio primeiro a
alegria das núpcias – núpcias entre o Noivo e a Noiva da
Humanidade remida; só depois disso nos vem lembrar que a Cruz é a
condição daquele êxtase.
Assim
fez numas bodas O que se recusou a fazer no deserto; fez à vista dos
homens O que se recusou a fazer diante de Satanás. O Demônio
pediu-lhe que fizesse das pedras pão para tornar-se um Messias
econômico; sua Mãe pediu-lhe que mudasse a água em vinho para
tornar-se Salvador. Satanás tentou-O para O afastar
da morte; Maria “tentou-O”
para O levar à morte
e Ressurreição. Satanás tentou guiá-Lo para longe
da Cruz; Maria encaminhou-O na direção
dela. Mais tarde tomaria nas mãos o pão de que Satanás disse os
homens terem necessidade, e transformaria um e outro no memorial da
sua Paixão e Morte. Pediria, então, aos homens para renovarem esse
memorial “até a consumação do mundo”.
A antífona da Sua vida continua a ser: Todos os outros
vêm ao mundo para viver; Ele veio ao mundo para morrer.
4ª
MEDITAÇÃO
O
Evangelho não é menos instrutivo. Contém a história do primeiro
milagre de Jesus Cristo, realizado nas Bodas de Caná a rogos da
Santíssima virgem. Eis aqui como São João o refere:
Havia
já começado o Salvador a pregar, depois de ter concluído o seu
jejum de quarenta dias no deserto, aonde se retirara depois de João
Batista deu d’Ele testemunho brilhante.
Acabava
de escolher alguns discípulos: São Pedro, Santo André, São Filipe
e Natanael haviam sido já chamados, e se lhe haviam juntado; foi
então convidado a umas bodas celebradas em Caná da Galileia. A
Santíssima Virgem estava ali também; e, ao que parece, um dos
noivos era seu parente. Segundo a opinião de Santo Epifânio estava
já viúva, porque no resto de sua história não se diz nada de São
José.
Alguns
pensam que estas bodas se celebravam em casa de Alfeu ou de Cléofas,
que matrimoniava seu filho Simão, o Cananeu. Outros, pretendem que
era São Bartolomeu, chamado Natanael; mas o Venerável São Beda,
São Tomás e muitos outros creem que
era São João Evangelista, a quem o Salvador chamou do estado de
Matrimônio ao apostolado, permanecendo sempre virgem, por ter
deixado sua esposa no próprio dia das bodas. Seja o que for, o que é
certo é que o Salvador quis fazer ver nesta ocasião, que pode ser
encontrado não só no retiro, mas também nas reuniões, quando os
deveres ou a beneficência o exigem, e tudo o que há nelas é
cristão. Pergunta-se por que é que o Salvador concorreu a estas
bodas com sua Mãe e Seus discípulos? Parece que a vida austera e
retirada que sempre tinha tido, mal se casavam com a alegria e
divertimento, que acompanham ordinariamente esta espécie de festas.
A maior parte dos Padres asseveram que foi para autorizar com Sua
presença os Casamentos. Como por Seu exemplo e por Seus discursos
devia aconselhar a todos os Seus discípulos o celibato e exortar a
todos a guardar castidade, da qual fazia em todas as ocasiões tão
magníficos elogios, queria também mostrar que não desaprova o
Matrimônio, que devia elevar à altura de Sacramento. É bastante
crível que, achando-se ali bastante parentes Seus, e os discípulos
que até então havia escolhido, quis fazer em Sua presença Seu
primeiro milagre, a fim de afirmar a crença dos que já o
reconheciam por Messias, e dar-se a conhecer aos que ainda não criam
n’Ele.
Pelos
fins do banquete notou a Santíssima Virgem que faltava o vinho, e
compreendeu logo o apuro em que deviam estar os donos da casa, e a
sensação que esta falta iria causar em todos os convidados. Como
fora o impulso da caridade o que A moveu a vir ali, pensou em
poupar-lhes esta confusão e prover a necessidade sem ruído e de um
modo eficaz. O meio que se lhe afigurou logo, foi o de se dirigir a
Jesus que está perto d’Ela. Sabia muito bem que não tinha menos
bondade que poder, e que bastava para O mover a fazer um milagre,
mostrar-lhe somente a necessidade e a turbação, em que se
encontravam. Voltando-se pois para Ele, contentou-se com dizer-lhe:
“falta-lhes o vinho”.
O Salvador que, respondendo a sua Mãe, queria instruir-nos, dar-nos
a entender que só obrava por motivos sobrenaturais, e de modo algum
com vistas ou respeitos humanos, disse-lhe gravemente que bem
conhecia a necessidade que tinham, e que não devia apoquentar-se por
ela, porque faria a seu tempo o que preciso fosse; mas o tempo de
manifestar meu poder e minha glória não chegou ainda. Santo
Agostinho, São João Crisóstomo e muitos outros Padres dizem, que o
Salvador esperava que o vinho faltasse de todo, a fim de que não
julgassem que tinha simplesmente aumentado aquele licor, ou que tinha
misturado a água com o vinho; queria que o Seu primeiro milagre
fosse irrecusável, e que todos os circunstantes fossem dele
testemunhas. Jesus Cristo quis também dar a conhecer por esta
resposta, que se até então não havia feito brilhar Seu poder por
meio de prodígios, não era porque lhe faltasse o poder, mas por não
haver ainda chegado o tempo marcado por Sua sabedoria. Também parece
querer inculcar quão eficaz era a intercessão de sua Mãe, e o
poder que tinha sobre Ele, pois tendo dito que Sua hora de fazer
milagres ainda não chegara, nem por isso deixou de fazer um dos mais
brilhantes, tão prontamente quanto Ela lhe manifestou que o
desejava.
Isto
compreendeu perfeitamente a Santíssima Virgem, porque, sem insistir,
nem explicar-se mais com Ele, chamou
os que serviam, e disse-lhes que fizessem tudo quanto Jesus lhes
ordenasse. Muitos haviam já advertido que o vinho faltava, o mesmo
esposo o notara também, quando Jesus mandou aos que serviam que
enchessem de água seis jarras de pedra, isto é, seis vasilhas de
certa espécie de alabastro ou de serpentina, destinadas às
purificações dos judeus, os quais antes da refeição costumavam
lavar os pés, e as mãos desde o cotovelo até a extremidade dos
dedos. Cada uma destas jarras continha duas ou três medidas de água,
isto é, cinquenta ou sessenta quartilhos. Logo que as vasilhas
estiveram cheias, mudou de repente de cor e de natureza, e
converteu-se em um vinho excelente por virtude d’Aquele que, por um
só ato de Sua vontade, fez e criou todas as coisas do nada. Então
disse Jesus aos que serviam: Tomai-o
agora e ide levá-lo ao diretor do festim, para que o prove. O que
presidia ao banquete era ordinariamente, se dermos crédito às
tradições judaicas, um dos seus sacerdotes, a quem incumbia regular
tudo, e impedir que se fizesse coisa alguma contrária à honestidade
e à decência. A este sacerdote foi, portanto, segundo a ordem do
Salvador, apresentado o vinho novo. Provou-o; e como andava distraído
em muitas outras coisas, não sabia mais nada do que se passava,
ficou surpreendido da qualidade do vinho. Chamou logo ao esposo, que
segundo o costume, ao ir para a mesa, dava ordem de que tudo fosse
servido a tempo, e que nada faltasse. “Com
que então nos enganais?
Lhe disse sorrindo-se; é
uso nos jantares servir-se o melhor vinho logo ao princípio, e o
pior quando se vê que já tem bebido bastante; mas vós fizestes o
contrário, guardaste o bom para o fim”.
Não passou esta observação desapercebida, e cada qual reconheceu
no gosto que um vinho imediatamente preparado pelo Criador é melhor
incomparavelmente, do que aquele que a natureza produz. Neste
prodígio, que foi o primeiro de Seus milagres públicos, começou
o Salvador a fazer brilhar o Seu poder; pois, no sentir de Maldonado,
não pode supor-se que o Salvador não houvesse já feito outros
inumeráveis, só conhecidos da Santíssima Virgem e de São José;
mas como não havia chegado o tempo determinado para se dar a
conhecer, permanecia oculta a Sua Onipotência; foi portanto, este o
primeiro, pelo qual o Salvador manifestou a Sua glória, e não
contribui pouco para firmar os discípulos na fé.
Os
discípulos de Jesus Cristo haviam acreditado n’Ele desde que
tinham tido a dita de O ver e de O ouvir; uma prova da sua crença é
que O tinham seguido, e se haviam agregado a Ele, fazendo-se
discípulos Seus; mas este milagre, de que foram testemunhas,
corroborou-os em sua fé.
Se
esta maravilha manifestou a glória e o poder do Salvador sobre todas
as criaturas; se deu a conhecer àquela numerosa companhia o que Ele
era, não deve servir menos para dar a conhecer a todo os fiéis o
poder que tem a Santíssima Virgem junto de Seu querido Filho, e a
deferência que este divino Filho tem por sua prezada Mãe. Alguns
dizem que o Salvador não quis fazer o Seu primeiro milagres senão a
rogos de sua Mãe e até mesmo que adiantou o tempo de manifestar o
Seu poder logo que a Virgem lhe mostrou desejos de que realizasse
esta maravilha. Motivo grande de confiança na Mãe de Deus, dizem os
Santos Padres, é o saber quão ditosos são aqueles, por quem Maria
se interessa. Sabemos, diz Santo Anselmo, que a Bem-aventurada Virgem
tem tanto valimento junto de Deus, que não pode deixar de surtir
todo o efeito, de tudo o que Ela quer.
5ª
MEDITAÇÃO
1.
“Celebraram-se umas bodas em Caná da Galileia”.
Antes do advento de Jesus, a mais insigne mercê com que Deus
favorecia aos homens era a de recebê-los entre Seus servidores. Mas,
depois, de Seu Nascimento, conferiu-lhes o título de filhos de deus;
e, para esse fim, fê-los de tal modo participantes de Suas
prerrogativas que não somente assim o designa, mas os considera
realmente e lhes concede todos os direitos de herdeiros do Céu. E
não se limitou a isso o adorável Salvador: no excesso do Seu amor,
quis escolher almas consagradas para elevar à categoria de esposas e
com elas contrair uma aliança verdadeiramente nupcial. Este mistério
é o mistério augusto que antecipadamente celebram o Salmista e os
Profetas; são estas as núpcias celestes que nos representa a Igreja
sob as formas sensíveis das Bodas de Caná e que nos explica pela
boca de seus Doutores e pelas cerimônias solenes da Profissão
Religiosa. Espetáculo verdadeiramente maravilhoso perante os Anjos e
os homens, ao contemplarem o mistério em que a alma consagrada a
Deus ouve inebriada o convite: “Vem, esposa de Cristo, e recebe
a coroa que te preparei desde toda a eternidade!”
Este
mistério inefável, permite-nos avaliar, o quanto nos ama o Coração
de Jesus.
2.
Nas alianças da terra, a morte de um dos cônjuges dissolve o
Matrimônio; acaba-se o compromisso e a aliança. O mesmo não se dá
com as núpcias celestes; seus laços são imortais, nem a morte os
pode romper; pelo contrário, aperta-os ainda mais e consolida-os
eternamente. São Bernardo, em duas palavras, resume as condições
deste contrato: amar e ser amado. Amar – não somente enquanto
fruírem as consolações, as prosperidades e as delícias, mas em
meio às provações, às tentações, às trevas e à aridez. A
coroa real só será solenemente conferida às esposas do Rei dos
reis, que perseverarem até ao fim com amor generoso e fiel.
3.
“Presença da Mãe de Jesus às bodas de Caná”.
É com uma intenção cheia de profundeza e de sabedoria que o
Evangelista menciona a
presença de Maria nas Bodas de Caná, porque Maria é o modelo das
esposas de Deus. Ela é sua Mãe, protetora e soberana. Pelo exemplo
de Suas virtudes, excita a alma religiosa a amar, servir e glorificar
o Senhor. É ela o instrumento de que se serve Deus para a
santificação das virgens candidatas às sagradas núpcias; de tal
modo que estas podem aplicar a Maria as palavras de Salomão, a
respeito da Sabedoria: “Todos
os bens me vieram por seu intermédio e de suas mãos recebi riquezas
infinitas”. Estas
riquezas que, das mãos de Maria, se transmitem a suas dignas
herdeiras, são aquelas de que fala Jesus, quando diz em seu
Evangelho: “Todo aquele
que por mim abandonar seus irmãos ou suas irmãs, seu pai ou sua
mãe, sua mulher ou seus
filhos ou seus bens terrestres, receberá o cêntuplo neste mundo e a
vida eterna no século futuro”.
4.
Ensina um Padre da Igreja, que o matrimônio celeste opera uma
transformação que muda a vida natural em outra inteiramente
sobrenatural e sobre-humana; de maneira tal, prossegue o Santo
Doutor, que já antegoza as alegrias dos Bem-aventurados e preludia
na terra a vida do Céu, aquele que, tendo feito sua
profissão religiosa, vive de acordo com sua Regra.
Realmente, as esposas de Jesus Cristo, vivendo, como os Anjos, de
amor e de obediência, já desde esta vida tomam posse do reino de
Deus, na paz e na alegria do Espírito Santo.
Demos
graças à divina Bondade, pela mercê que nos concedeu de habitarmos
na morada santa, onde está sempre presente a Virgem de Sião e
mostremo-nos agradecidos por termos por Mãe, Àquela que é Mãe de
nossa vida, de nossa esperança e de nosso amor.
5.
“E faltando o vinho, a Mãe de Jesus disse-lhe: Eles não
têm vinho”.
O vinho generoso, que é servido comumente no princípio dos festins,
é figura do fervor mais ardente e sensível, que anima as almas no
início do serviço de Deus. São então fervorosas e cheias de zelo;
atiram-se com ânimo aos mais árduos deveres e sentem gosto em todas
as práticas religiosas indistintamente. Mas, no percurso da vida
espiritual, há horas de ansiedade e de provações; o vinho novo do
amor se concentra e acontece
que, à mesma mesa onde a alma amorosa se inebriava de delícias,
experimenta, agora, apenas, uma bebida insípida. É Deus que, por
Sua misteriosa operação, extingue, pouco a pouco, todo o prazer
sensível, a fim de atrair a alma no mais profundo de si mesma. E
enquanto a desprende das consolações exteriores, dispõe-na,
purificando-a, a provar um vinho mais fino e saboroso. Em vista
disso, não nos perturbemos ao passar por essas mortificadoras
privações; mas permaneçamos tranquilamente sentados no festim das
núpcias: Maria aí está; d’Ela nos há de vir o auxílio.
6.
Consideremos as atenções e amabilidades da Virgem Santíssima.
Notara a falta de vinho antes que lhe houvessem avisado. Não espera
que recorram à Sua intercessão; Ela possui todas as delicadezas e
solicitudes de uma mãe verdadeiramente vigilante e carinhosa. Mal
percebeu a necessidade, imediatamente a expôs a seu Filho. Mas em
Seu pedido não mostra nem afoiteza, nem inquietação. Poucas
palavras pronuncia, confiante na bondade d’Aquele que consola e
atende. É assim que, do alto do Céu, Maria continua a se interessar
pelas necessidades da nossa
alma. Conhece nossas fraquezas; previne nossos desejos, ouve nossos
lamentos; identifica com o Seu o nosso coração. Seria possível
perder-se o ânimo e a esperança, sabendo que Maria tem Seus olhares
constantemente volvidos para as misérias humanas, a fim de
aliviá-las?
7.
“Mulher, que nos importa a mim e a ti isso? Ainda não chegou a
minha hora”.
A resposta ininterpretável dada por Nosso Senhor à sua Mãe, nas
bodas de Caná, relembra uma frase análoga pronunciada no templo,
quando adolescente, aos doze anos. Esta
palavra promulga de um modo absoluto a necessidade do desapego dos
laços terrestres, quando se trata das obras de Deus. Ela exclui as
teimosias da natureza sobre o domínio da graça e demarca a barreira
onde devem estancar as solicitudes humanas. Este total desapego
exigido pelas palavras de Jesus Cristo, cortantes como o gládio do
sacrifício, é imposto a todos que são chamados à vida apostólica.
Jesus, entretanto, após nos ministrar essa importantíssima lição,
providenciou para que ninguém pudesse aplicá-la a Maria e, para
isso, satisfez imediatamente seu desejo, respondendo à sua
intercessão por um assombroso milagre. Como Maria, oremos, confiando
tranquilamente, e saibamos aguardar os momentos de Deus, sem
impaciência e sem desânimo.
8.
Este primeiro milagre operado por Jesus, ao dar entrada em Sua vida
pública, relaciona-se misteriosamente com aquele que iria realizar
na véspera de Sua partida deste mundo. Então, por outra mudança
milagrosa, transformará o pão em Sua própria Carne e o vinho em
Seu próprio Sangue; e até ao final dos séculos continuará a
operar este prodígio de amor sobre os sagrados altares. É provável
que Maria conhecesse esse Seu intento; quis então apressar sua
realização, para nos dar um antegozo do pão dos eleitos e do vinho
que gera as virgens. Mas não soara ainda a hora das derradeiras
efusões; esta chegaria somente depois de uma longa serie de outros
milagres de ternura e de divinas misericórdias.
Mais
felizes do que os convivas de Caná, possuímos uma bebida e um
alimento que não acabará nunca. Por nosso lado, não consintamos
que cessem algum dia as expansões da nossa gratidão.
9.
“A Mãe de Jesus disse aos que serviam: Fazei tudo o que ele vos
disser”.
Fixemos em nossa memória e em nossa consciência o conselho que dá
a Virgem Maria a todos os que servem ao Senhor. Ouvir atentamente a
voz do Bem-Amado, a fim de observar o que Ele ordenar: esta é, de
todas as práticas religiosas, a mais sólida, a mais essencial, a
mais eficaz. Resume todas as regras da vida espiritual e indica o
meio seguro de chegar à perfeição. Em todas as circunstâncias,
pois, sigamos o conselho de Maria. Ouçamos Jesus, quer seja Ele
mesmo a nos falar no íntimo de nossa alma, quer seja Sua divina
vontade manifestada pela boca de nossos Superiores. Ouçamo-Lo, sem
discutir, nem murmurar, nem diferir atos de obediência. Façamos o
que nos manda, ainda mesmo que se trata de coisas humilhantes, ou que
ele surpreendesse a nossa fé, como fez nas bodas de Caná,
prescrevendo-nos o que nos parecesse incompreensível. O importante é
obedecer! A explicação deve seguir a obediência e não precedê-la.
É pelos seus efeitos e frutos que se justifica a palavra divina. “Se
guardardes a minha palavra,
diz o Senhor, ser-vos-á
concedido tudo quanto pedirdes”.
10.
A melhor prática da perfeição cristã consiste em conformar nossos
atos e nossos sentimentos com a Palavra de Deus. É, por conseguinte,
esta regra que nos dá a medida do nosso progresso na trilha dos
Santos. Quanto mais nos despojarmos de nossa vontade própria para
obedecermos à Divina, mais nos adiantaremos na virtude e nos
fixaremos na paz. Um coração
dócil à palavra de Jesus Cristo julga-se sempre feliz, está sempre
tranquilo, porque sua vida se desenvolve em harmonia com o Espírito
de Deus. É esta harmonia que distingue a Santíssima Virgem e todos
os Santos. Deve igualmente reinar em nós. Declaremos com Davi: “Meu
coração está está preparado, ó meu Deus, para vos seguir e fazer
tudo quanto me disserdes”.
11.
“Eis que vem o Esposo, saí ao seu encontro”.
O milagre das Bodas de Caná
merece uma menção relevante no Evangelho, por nos revelar, sob a
figura do Esposo e da Esposa, os Mistérios da aliança que o Filho
de Deus contraiu com a natureza humana. A água transmudada em vinho
significa, a transformação que se opera na alma quando se une a
Jesus Cristo. Então, inteiramente absorvida pelo Deus de amor, não
é senão amor, assim como o carvão, transformado em brasa pelo
fogo. É claro que nada altera de sua substância, nem de sua
natureza; mas tão profundamente se impregna das qualidades divinas
que se torna, por assim dizer, uma só coisa com Deus. E pode afirmar
com São Paulo: “Vivo,
mas não sou eu quem vive; é Cristo que vive em mim”.
12.
Tal qual o fogo, o amor produz chamas que para o Céu se elevam como
asas candentes. Assim, quando Jesus penetra numa alma e a enche de
Sua vida divina, fá-la desdobrar-se em atos e em obras de santidade;
permiti-lhe sentir as primícias de uma Bem-aventurança que
multiplica constantemente os desejos do Céu. A Bem-aventurança é
inseparável do amor, porque o amor infinito de Deus, possuindo a
alma cristã, traz necessariamente consigo o gozo de Deus. Foi isto
que o Salvador declarou a Seus discípulos: “Disse-Vos
estas coisas, para que minha alegria permaneça em vós e para que
vossa alegria seja perfeita”.
Mas esta alegria divina que o vinho milagroso representa, nem sempre
pode ser saboreada, senão após uma longa vida de fé e de
paciência. É somente ao fim do banquete das núpcias que a alma,
inebriada de verdadeiras delícias, sente em seu íntimo,
que é realmente amada, que Deus está todo nela e que ela está toda
em Deus.
13.
Maria nas Bodas de Caná.
Contemplemos a modesta simplicidade, a calma, a suave igualdade da
Mãe de Jesus no festim de Caná, onde inteiramente se esquece de Si
para se ocupar com os outros unicamente.
Não se impressiona, seja
que o vinho falte ou reapareça em abundância; mas é a primeira a
se compadecer dos apuros dos convivas. Recebe com a mesma serenidade
as palavras severas do Senhor e a graça milagrosa obtida por Sua
intercessão. Fala pouco e bem, quer ao se dirigir ao Filho, quer ao
dar aos servos Seus prudentes conselhos. Semelhante às regiões
superiores do firmamento, permanece sempre calma e tranquila; nem
precisa isolar-se para conservar as mesmas disposições de espírito
e de coração, em qualquer tempo e lugar.
Para
nos amoldarmos a este perfeito modelo, precisaríamos conservar em
nossa vida ativa as intenções, o espírito de bondade, as
disposições felizes que habitualmente nos animam por ocasião da
meditação e da oração.
14.
O papel de Maria nas Bodas de Caná nos mostra que não quis se
furtar a nenhuma das obrigações impostas pela caridade, para
conservar a calma de Sua vida interior. Permanece unida ao Senhor em
meio aos convivas que A rodeiam; e sem se deixar dominar por
influência alguma, faz sempre prevalecer a influência do Espírito
de Deus, que anima todos os Seus atos e palavras, consagrando assim,
por Seu exemplo, a regra da conduta cristã.
Se
nos conservássemos unidos ao Espírito de Jesus, mais abençoadamente
e com maior êxito haveríamos de cumprir
os nossos deveres diários, por vezes tão penosos! O Senhor nos
afiança no Evangelho: “Aquele
que em mim permanecer, produzirá frutos abundantes”.
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