Aparição de Nossa Senhora
em Lourdes1
É da obra de Henrique Lasserre que extraímos um resumo da história das aparições de Nossa Senhora em Lourdes a Bernadete Soubirous.
À entrada dos sete vales do Lavedan, entre as últimas ondulações que limitam a planície de Tarbes e os primeiros escarpados precipícios em que começa a grande montanha dos Pirineus, está situada a pequena cidade de Lourdes. No meio dela destaca-se um enorme rochedo, sobre o qual se levanta um grande castelo medieval. No sopé deste rochedo corre tumultuoso o Gave de Pan, à sombra dos álamos, dos freixos e dos choupos.
Nos arredores de Lourdes a paisagem, que se estende pelas margens do Gave, é ora selvagem e sombria, ora encantadora. Vicejantes prados, campos cultivados, bosques e alcantilados rochedos, se estão alternadamente espelhando em suas águas. De um lado alegres e férteis campinas, paisagens admiráveis e a estrada de Pan, cruzada constantemente por carruagens, cavaleiros e gente de pé, e do outro, montes sáfaros e a sua triste solidão.
Era a onze de Fevereiro de 1858; corria o tempo frio, algum tanto encoberto, mas bastante sereno; conservavam-se as nuvens imóveis nas alturas do Céu; nenhum brisa as impelia, e a atmosfera estava placidíssima. Neste dia, por privilégios particulares do seu rito próprio, celebrava a Diocese de Tarbes a memória da ilustre pastora de France, Santa Genoveva.
Tinham já dado onze horas da manhã na igreja de Lourdes. Enquanto que por todas as partes se preparavam alegres reuniões e banquetes, uma pobre família, que morava em uma desprezível casa de renda na rua dos Petits-Fossés, não tinha sequer lenha para fazer o seu magro jantar.
O pai, moço ainda, era moleiro e tinha por algum tempo desfrutado, como rendeiro, uma pequena azenha, situada ao norte da cidade. Mas, como o povo costuma mandar moer fiado, exige esta ocupação dinheiros adiantados, sendo por isso o pobre moleiro constrangido a renunciar ao arrendamento daquela azenha. Aguardando melhores tempos, trabalhava, não em casa, porque nem um quintal possuía, mas nas casas de seus vizinhos, que o empregavam como jornaleiro. Chamava-se Francisco Soubirous, era casado com uma virtuosa mulher, chamada Luíza Castéran, boa cristã, e que sustentava a coragem do seu marido. Tinham quatro filhos: duas meninas, das quais a mais velha tinha cerca de catorze anos e dois rapazes de muito menos idade, o mais novo dos quais tinha apenas três ou quatro anos.
A mais velha, que era de pouca saúde, estava com seus pais havia somente quinze dias. Cabe a esta menina representar um papel importante na nossa história. Quando nasceu, sua mãe que estava então doente, não pode amamentá-la, e por isso deu-a a criar a uma mulher de Bartrès, aldeia vizinha. Quando a criança chegou à idade de poder trabalhar, continuou em casa da sua família adotiva, passando a maior parte dos dias na solidão, sobre as desertas encostas, em que apascentava o seu humilde rebanho.
Quanto a rezas, não sabia mais que o Rosário, e a toda a hora, onde quer que estivesse guardando o rebanho, repetia esta oração dos simples. Nesta inocente e solitária escola aprendeu a pastorinha o que o mundo ignora: a simplicidade tão agradável a Deus. Entretendo-se apenas com a Virgem Maria, passando o tempo e as horas a coroá-La de orações, rezando pelas suas contas, conservou essa candura e pureza batismal que o hábito do mundo tão depressa mancha, até nos mais perfeitos. Tal era esta alma infantil, límpida e tranquila como esses lagos desconhecidos que estão perdidos nas altas montanhas e onde se retratam em silêncio todos os resplendores do Céu.
A fim de a prepararem para a Primeira Comunhão trouxeram-na para a sua casa em Lourdes. Sua mãe, em atenção à sua delicada compleição, tinha com ela um cuidado particular.
Era, como dizíamos, a onze de Fevereiro de 1858. Tinham dado já onze horas e esta pobre gente ainda não tinha lenha para preparar o jantar. Como em muitos lugares, os pobres de Lourdes tinham o direito de apanhar os ramos secos que o vento fazia cair das árvores, e os fragmentos de lenha que a torrente deixava entre as pedras do rio. Foram as duas irmãs em companhia de Joana Abbadie, filha de um vizinho, às margens do Gave apanhar alguma dessa lenha. Saíram as três meninas da cidade e, atravessando a ponte, depressa chegaram à margem esquerda do Gave. Bernadete, a mais fraquinha, que sua mãe tinha duvidado deixar sair, ia um pouco atrás. Atravessaram com certa dificuldade uma corrente que estava um pouco adiante, tendo para isso Bernadete de se descalçar.
Era por volta do meio-dia, e nesse momento deviam estar dando as Ave Marias em todos os sinos das aldeias dos Pirineus. Bernadete estava a tirar a primeira das meias, quando ouviu em redor de si um ruído semelhante a uma rajada de vento. Julgou que fosse um repentino furacão e voltou-se instintivamente. Com grande surpresa sua, os choupos que orlavam as margens do Gave estavam completamente imóveis; nenhuma brisa fazia balançar os seus pacíficos ramos.
Continuou a descalçar-se. Neste instante ouviu novamente o impetuoso estrondo de desconhecido vento. Bernadete levantou a cabeça, olhou para defronte e logo soltou, ou, para melhor dizer, quis dar um grito que se lhe embargou na garganta. Um espetáculo verdadeiramente inaudito acabava de se apresentar diante dos seus olhos. Por cima de uma gruta, diante da qual Maria, sua irmã, e Joana, juntavam feixes de lenha, e numa concavidade rústica formada pelo rochedo, a menina via uma mulher de incomparável esplendor, em pé e rodeada de um clarão sobre-humano. Era de mediana estatura. Mostrava ser moça e tinha o viço e a graça dos vinte anos; mas este brilho tinha um caráter eterno.
O vestuário, de um pano desconhecido e tecido sem dúvida na misteriosa fábrica que veste o lírio dos vales, era branco como a pura neve das montanhas, e de mais magnificência na sua simplicidade, do que o traje de Salomão na sua glória. O manto comprido e roçando pelo chão, deixava aparecer os pés que pousavam num rochedo e pisavam levemente os ramos de uma roseira brava. Sobre cada um dos seus pés desabrochavam uma rosa cor de ouro. Adiante um cinto azul-celeste, ligando-lhe a cintura, caía em duas pontas compridas que lhe chegavam quase aos pés. Por detrás descia-lhe até quase à orla do manto um véu branco, colocado sobre a cabeça, envolvendo na sua amplidão as costas e os ombros.
Não trazia anéis, nem colar, nem diadema, nem joias; nenhum, enfim, desses ornamentos com que em todos os tempos, a humana vaidade se ataviou. Pendiam-lhe das mãos, postas fervorosamente, umas contas, cujos glóbulos eram brancos como gotas de leite, enfiadas em uma cadeia amarela como ouro das searas. As contas passavam-lhe umas após outras pelos dedos. Conservavam-se, contudo, imóveis os lábios da Rainha das Virgens. Em vez de recitar o Rosário, ouvia talvez em seu próprio coração o eco eterno da Saudação Angélica e o imenso murmúrio das invocações vindas da terra. Por cada glóbulo que tocava, era sem dúvida uma chuva de graças celestes que caíam sobre as almas, como as pérolas de orvalho caiem sobre o cálice das flores.
Estava silenciosa; porém, mais tarde, a sua própria palavra e os fatos milagrosos que teremos de contar, deviam atestar que era Ela, a Virgem Imaculada, a Santíssima e Augustíssima Maria, Mãe de Deus.
Olhava esta aparição maravilhosa para Bernadete, que sobressaltada, como dissemos, se curvara toda, e como que insensivelmente se prostrara repentinamente de joelhos.
Com gesto grave e doce que dava mostra de uma poderosíssima bênção ao Céu e à terra, a Aparição, como para animar a menina, fez o Sinal da Cruz. E a mão de Bernadete, elevando-se pouco a pouco como que sustentada invisivelmente por Aquela a quem chamam o Auxílio dos Cristãos, fez ao mesmo tempo o santo Sinal da Cruz.
O susto da menina já estava desvanecido. Deslumbrada, encantada, duvidando por instantes de si mesma, e esfregando os olhos, com a vista constantemente atraída pela celeste Aparição, sem saber que pensasse, continuava a rezar humildemente as suas contas: “Creio em Deus, Ave Maria”.
E quando acabava dizendo: “Glória ao Pai, e ao Filho e ao Espírito Santo, pelos séculos dos séculos”. Desapareceu repentinamente a Virgem luminosa, entrando certamente nos Céus eterno, onde reside a Santíssima Trindade.
A cena que deixamos descrita, tinha durado um quarto de hora; não porque Bernadete tivesse consciência do tempo que durara, mas pode calcular-se pela circunstância de ter podido rezar os cinco Mistérios do Rosário.
Joana e Maria, tinham-na visto ajoelhar e pôr-se a rezar; mas isto, louvado Deus, não é raro entre as crianças das montanhas, e entretidas no seu trabalho, não lhe tinham dado nenhuma atenção.
– Não vistes nada? Lhes perguntou a menina.
Notaram então que parecia agitada e comovida.
– Não, replicaram elas. E tu, viste acaso alguma coisa?
– Confesso que se nada vistes, também nada tenho a dizer-vos.
Estavam prontos os feixinhos; voltaram pois as três meninas para Lourdes.
Mas Bernadete não pode dissimular a sua perturbação. Maria e Joana atormentaram-na com desejo de saber o que tinha visto. Cedeu finalmente a Pastorinha às suas instâncias, com a promessa de guardarem segredo.
– Vi uma coisa vestida de branco, respondeu a menina.
E descreveu-lhes na sua linguagem a maravilhosa visão.
– Eis o que vi, concluiu ela; mas, peço-vos que não digais nada.
Passaram-se dois dias, a sexta e o sábado. A cada instante se representava no pensamento de Bernadete aquele acontecimento extraordinário, sendo o objeto das conversações com sua irmã, com Joana e com algumas outras meninas. Bernadete possuía ainda no fundo da alma a suave recordação d’Aquela Visão Celeste.
Despontara radiante o sol do Domingo, e o tempo estava magnífico. Na estação do inverno há nos vales dos Pirineus muitos destes dias de primavera, temperados e agradáveis.
De volta da Missa, pediu Bernadete a Maria, sua irmã, a Joana e a outras duas ou três meninas, que insistissem com sua mãe para lhe levantar a proibição que fizera, e deixá-la voltar aos penedos de Massabielle.
Obtida a licença, dirigiu-se o grupo das meninas à igreja, onde rezaram por alguns instantes. Tinha-se umas das companheiras de Bernadete provido de uma garrafa de meio litro; encheram-na pois de água benta.
– Façamos oração, disse Bernadete, e rezemos as contas.
Ei-las de joelhos começando cada uma de per si a reza do Rosário. De repente parece que o rosto de Bernadete se transfigura.
– Olhem, diz ela, lá está!
Levantou-se, e sacudindo por diferentes vezes a garrafa aspergiu a maravilhosa Senhora, que graciosamente se conservava no interior do nicho, alguns passos distante dela.
– Se vindes da parte de Deus, aproximai-Vos, disse Bernadete.
A estas palavras e gestos da menina fez a Virgem repetidas inclinações, e adiantou-se quase até à beira do rochedo. Parecia sorrir à vista das precauções de Bernadete e de suas armas de guerra, e ao ouvir o sagrado nome de Deus, iluminou-se-Lhe o rosto.
Ajoelhou de novo, e continuou a rezar as contas, que a Virgem parecia ouvir, fazendo também deslizar as Suas por entre os dedos. Ao terminar esta reza, desapareceu a Aparição.
Durante os primeiros dias da semana, acudiu a casa dos Soubirous muita gente do povo, para interrogar Bernadete. A criança dava respostas claras. Podia estar iludida; mas bastava vela e ouvi-la para se ficar certo da sua boa fé.
Bernadete, que por um sentimento interior tinha um vivo desejo de voltar a gruta, alcançou nova licença dos pais; e às seis horas da manhã seguinte, 18 de Fevereiro, ao romper da aurora, tendo ouvido Missa às cinco e meia, se foi à caminho da gruta com Antônia Peyret e a senhora Millet, que tinham posto em dúvida as Aparições.
Bernadete chegou alguns minutos mais cede à gruta. Prostrou-se por terra, começou a rezar as contas, olhando para o nicho ainda vazio, alcatifado com os ramos da roseira brava.
Solta de súbito um grito. Brilha no interior da escavação o clarão do resplendor tão conhecido; ouve uma voz que a chama.
Chegavam neste momento, depois de muitos difíceis esforços, as duas companheiras de Bernadete, Antônia e a senhora Millet. Veem o rosto da menina transfigurado pelo êxtase.
Ouve-as Bernadete e as vê.
– Eis ali está, disse ela. Diz-me que me aproxime.
– Pergunta-Lhe se a incomodamos por estarmos aqui.
Se o não fazes retirar-nos-emos.
A menina olhou para a Virgem, visível só para ela, esteve por um momento escutando, e voltou-se depois para as companheiras.
– Diz que podeis ficar.
Ajoelharam as duas a par da menina, e acenderam uma vela benta de que se tinham provido.
– Adianta-te para Ela, visto que te acena e te chama. Aproxima-te. Pergunta-Lhe quem é? Para que vem cá? Se é uma alma do Purgatório que implora orações, e deseja que se digam Missas por Ela?… Pede-Lhe que te escreva neste papel o que deseja. Estamos resolvidas a fazer tudo quanto quiser, se for necessário para seu descanso.
Pegou Bernadete na pena, papel e tinta que lhe apresentaram, e adiantou-se para a Aparição, cujo olhar maternal, ao vê-la aproximar-se, lhe deu alento.
– Senhora, disse a menina, se tendes que me comunicar alguma coisa, querereis ter a bondade de me escrever quem sois e o que desejais?
A Virgem sorria com este pedido ingênuo. Descerraram-se-Lhe os lábios e falou:
– O que tenho a dizer-te, respondeu Ela, não preciso escrevê-lo. Faze-me simplesmente o favor de aqui vir por espaço de quinze dias.
– Assim o prometo, retorquiu Bernadete.
À palavra de Bernadete, respondeu também a Virgem, com uma promessa solene:
– Também Eu te prometo, disse Ela, fazer-te feliz, não neste mundo, mas no outro.
Bernadete sem perder de vista a Aparição, voltou para junto de suas companheiras. Notou que a Virgem, seguindo-a sempre com seu olhar, o lançou por longo espaço, e com benevolência, sobre Antônia Peyret, que ainda estava solteira e que pertencia à Congregação das Filhas de Maria.
Contou-lhes o que se passava.
– Está neste momento olhando para ti, disse Bernadete a Antônia.
Comoveu-a altamente esta palavra, e desde então tem vivido com esta recordação.
– Pergunta-Lhe, disseram elas, se Lhe desagrada virmos nós acompanhar-te aqui durante estes quinze dias?
Bernadete voltou-se para a Aparição.
Podem vir contigo não só elas, como outras mais, respondeu a Virgem. Desejo ver aqui muita gente.
Ao proferir estas palavras desapareceu, deixando na sua passagem um luminoso resplendor que A rodeava, e que pouco a pouco também se desvaneceu.
Desta vez, como em todas as mais, notou a menina uma circunstância que lhe parecia como que a lei desse resplendor de que a Virgem estava cercada.
– Quando começa a Visão, dizia ela na sua linguagem, vejo primeiro a luz e depois a “Senhora”; quando acaba, é a “Senhora” que desaparece primeiro e a luz em segundo lugar.
Voltando a Lourdes, teve Bernadete de falar na promessa, que fizera à misteriosa Senhora, de voltar à gruta durante quinze dias consecutivos. Em pouco tempo se divulgou por todos os lugares vizinhos o boato destes acontecimentos estranhos. O instinto popular não esperava que a Aparição dissesse o seu nome, para a reconhecer. É de certo a Santíssima Virgem, diziam de todos os lados muitos do povo.
No terceiro dia da quinzena, a 21 de Fevereiro, primeiro Domingo da Quaresma, antes do nascer do sol, uma imensa multidão, muitos milhares de pessoas estavam já reunidas, diante, em torno da Gruta, sobre as margens do Gave e na campina.
Era a hora em que Bernadete costumava vir. Ela chega, embuçada na mantilha branca, seguida de alguém dos seus, sua mãe ou sua irmã. Seus parentes tinham assistido na véspera ou antevéspera aos seus êxtases; tinham-na visto transfigurada, e agora acreditavam. Ajoelhou e instantes depois veem-lhe o rosto iluminar-se e tornar-se resplandecente.
Um dos observadores, o dr. Dozous, estava ao lado dela. Isto não é, pensava ele, nem a catalepsia com o seu inteiriçamento, nem o êxtase inconsciente dos alucinados; isto é um fato extraordinário, de uma ordem totalmente desconhecida à medicina.
Neste momento, a menina deu, de rojo (arrastou-se), alguns passos para diante na gruta. A Aparição tinha-se deslocado, e era agora pela abertura interior que Bernadete a podia avistar. O olhar da Santíssima Virgem pareceu num instante percorrer toda a terra e tornou a volvê-lo, cheio de dor, sobre Bernadete ajoelhada.
– Que tendes? Que é necessário fazer? Murmurou a menina.
– Orai pelos pecadores, respondeu a Mãe do gênero humano. Pouco depois a Aparição desapareceu. A Rainha do Céu acabava de entrar no seu reino. A auréola, como de costume, demorou-se ainda por alguns segundos; depois desvaneceu-se insensivelmente, igual a uma nuvem luminosa que se desfaz e desaparece no ar.
Durante toda a manhã, depois da Missa e até à hora de vésperas, não se falou em Lourdes senão destes estranhos acontecimentos, aos quais se davam naturalmente as mais diversas interpretações. A autoridade civil proibiu a Bernadete que voltasse à gruta.
A 23 de Fevereiro, à hora habitual das Aparições, a multidão que esperava a menina sobre as margens do Gave não a viu chegar. Seus pais a tinham, logo ao nascer do sol, mandado para a escola, e Bernadete, não sabendo a quem obedecer, para aí foi, com o coração cheio de pesares.
Deus queria provar Bernadete. Tendo-a, nos dias precedentes, inundado de consolações, entendia, na sua sabedoria, deixá-la por um certo tempo no desamparo absoluto, exposta às zombarias e às injúrias, e excitá-la ao combate, só e abandonada, com a hostilidade de todos aqueles que a rodeavam.
A infeliz menina sofria cruelmente, não somente por estas contradições exteriores, porém, ainda mais talvez pelas aflições internas da sua alma.
No dia seguinte de manhã, a multidão achava-se diante da gruta antes do nascer do sol. Bernadete chegou com aquela tranquila ingenuidade que não era alterada nem pela hostilidade de uns, nem pela veneração entusiástica dos outros. A tristeza e as aflições tinham deixado alguns vestígios sobre o seu semblante. Temia ainda não ver mais a Aparição, e qualquer que fosse a sua esperança, não ousava entregar-se a ela.
Ajoelhou humildemente, sustentando uma das mãos sobre uma vela benta que tinha levado, ou que lhe deram, tendo na outra as contas. O tempo estava sereno, e a chama da vela não subia mais direita para o Céu, do que a oração desta alma para as regiões invisíveis, de onde costumava descer a Bem-aventurada Aparição. Era assim sem dúvida, porque, apenas a menina se prostrou, logo a Beleza inefável, da qual invocava tão ardentemente a volta, se manifestou a seus olhos e a arrebatou fora de si.
– Bernadete! Dizia a Mãe divina.
– Eis-me aqui, respondeu a menina.
– Tenho que vos dizer a vós só e com respeito a vós só uma coisa secreta. Prometer-Me-eis não a repetir jamais a ninguém neste mundo?
– Prometo-Vos, diz Bernadete.
O diálogo continuou e entrou em um mistério profundo, que não nos é, nem possível, nem permitido sondar.
– “E agora, minha filha, diz a Bernadete, ide, ide dizer aos Sacerdotes que quero que Me edifiquem aqui uma capela”. E pronunciando estas palavras, sua fisionomia, seu olhar e seu gesto pareciam prometer que ali espalharia graças inumeráveis. Depois destas palavras desapareceu, e o rosto de Bernadete entrou na sombra, como, à tarde, fica a terra, quando o sol se tem sumido pouco a pouco nas profundezas do horizonte.
Desde que Bernadete chegou à cidade, as ondas populares tinham-se postado diante para ver o que ia fazer. A menina desceu o caminho que atravessa Lourdes e forma a principal rua; depois, demorando-se na parte inferior da cidade, diante do muro que resguarda um quintal, abriu a porta que dava para a estrada, e dirigiu-se para a casa da qual este quintal dependia, a casa do Pároco.
O senhor Abade Peyramale, estando completamente convencido como fiel e devoto filho da Igreja, da possibilidade das Aparições, tinha alguma dificuldade em acreditar na realidade desta visão extraordinária.
– Não és tu Bernadete, a filha de Soubirous, o moleiro? Diz-lhe, logo que, depois de ter atravessado o quintal, ela se lhe apresentou diante.
Este Sacerdote eminente era com os seus paroquianos familiar como um pai, e tinha costume de tratar por tu, todas as crianças do seu rebanho. Somente neste dia, o tom de pai era severo.
– Senhor prior, venho da parte da “Senhora”, que me aparece na Gruta de Massabielle…
– Ah, sim! Observa o Sacerdote, cortando-lhe a palavra, tu pretendes ter visões e fazer correr todo o país com tuas histórias?
O homem de Deus sabia ser superior às suas prevenções pessoais. Acostumado por uma longa prática a ler no fundo dos corações, admirava consigo mesmo, enquanto ela falava, o caráter pasmosamente verdadeiro desta pequena camponesa, contando em sua rude linguagem acontecimentos maravilhosos.
– E não sabes tu o nome dessa Senhora?
– Não, respondeu Bernadete. Ela não me disse quem é.
– Aqueles que te creem, continuou o Sacerdote, imaginam que é a Santíssima Virgem Maria. Mas sabes tu bem, juntou com uma voz grave e vagamente ameaçadora, que se pretendes falsamente vê-la nessa gruta, tomas o caminho de não a ver jamais no Céu?
– Não sei se é a Santíssima Virgem, senhor prior, respondeu a menina, porém, vejo a visão como vos vejo a vós, e ela me fala como vós me falais. E venho vos dizer, da Sua parte, que Ela quer que lhe edifiquem uma capela nas Rochas de Massabielle, onde me aparece.
– A Aparição, contas-me tu, tem debaixo de seus pés uma roseira silvestre, uma roseira que sai das rochas. Nós estamos no mês de Fevereiro. Dize-Lhe da minha parte que, se quer a capela, faça florescer a roseira.
E despediu a menina.
Entre aqueles que um desdém transcendente da superstição tinha impelido até ali de se misturarem, para examinar as coisas, às ondas da multidão, muitos resolveram então transportar-se à gruta, a fim de assistir à decepção popular. Um deles era o senhor Estrade. Ele próprio nos contou as suas impressões pouco suspeitas.
“À hora costumada, pelo nascer do sol, chegou Bernadete. Eu estava perto dela. Pôs-se de joelhos, naturalmente, sem ostentação e sem embaraço, sem perturbação, sem se preocupar com a multidão que a rodeava, absolutamente como se estivesse só em uma igreja ou em um bosque deserto, afastado a todas as vistas humanas. Tirou as suas contas e principiou a rezar. Bem depressa o seu olhar pareceu receber e refletir uma luz desconhecida; tornou-se atento, e fixou-se pasmado, arrebatado, cintilante de contentamento, sobre a abertura do rochedo.
A certa ocasião, Bernadete adiantou-se, andando de rojo do lugar onde rezava, quer dizer, das margens do Gave, até ao fundo da Gruta. Era um espaço aproximadamente de quinze metros. Enquanto subia esta inclinação um pouco abrupta, as pessoas por entre as quais passava ouviam-na distintissimamente pronunciar estas palavras: ‘Penitência! Penitência! Penitência!’
Alguns instantes depois levantou-se, e tomou o caminho da cidade no meio da multidão. Era uma pobre menina, pobremente vestida, que parecia não ter tido senão uma parte comum neste assombroso espetáculo”.
Entretanto, durante toda esta cena a roseira brava não tinha florescido. Seus ramos desguarnecidos e sem beleza serpenteavam ao longo do rochedo, e era em vão que o ajuntamento tinha esperado o milagre pedido pelo primeiro Pastor da cidade.
Circunstância digna de observação! A crença dos fiéis foi pouco agitada; e apesar desta aparente protestação da natureza inanimada contra todo o poder sobrenatural, muitos homens consideráveis, entre outros aquele de que acabamos de referir a narrativa, sentiam-se convertidos à fé pelo espetáculo inaudito da menina.
Pois bem? Ainda a viste hoje? Que te disse Ela? Perguntou o Pároco de Lourdes, quando Bernadete se apresentou em casa dele, voltando da Gruta.
– Vi a visão, respondeu a menina, e disse-lhe: “O senhor Prior pede-Vos que deis algumas provas, por exemplo, que façais florescer a roseira que está sob vossos pés, porque a minha palavra não basta aos Sacerdotes, e não querem fiar-se em mim”. Então sorriu, mas sem falar. Depois disse-me que pedisse pelos pecadores, e mandou-me subir até ao fundo da Gruta. E repetiu por três vezes as palavras: “Penitência! Penitência! Penitência!”, que eu repeti também, arrastando-me sobre os joelhos até ao fundo da Gruta. Ali revelou-me ainda um segundo segredo que me é pessoal. Depois desapareceu.
No dia seguinte Bernadete, chegada diante das Rochas de Massabielle, acabava de se ajoelhar. Uma multidão inumerável tinha-a precedido e apertava-se à roda dela. Muitos ajoelharam-se ao mesmo tempo que a filha do moleiro.
Neste momento a Aparição divina manifestou-se a Bernadete, arrebatada subitamente em seu êxtase maravilhoso.
– Minha filha, diz, quero confiar-vos sempre para vós só e concernente a vós só, um último segredo que, mais que os outros dois, não revelareis a ninguém no mundo.
– E agora, continuou a Virgem depois de um silêncio, ide beber e lavar-vos à fonte e comei a erva que cresce.
Bernadete, a esta palavra de “fonte” olha à roda de si. Nenhuma nascente existia e não tinha jamais existido neste lugar. A menina, sem perder a Virgem de vista, dirigiu-se pois naturalmente para o Gave, cujas águas tumultuosas corriam a alguns passos dali, através de seixos e de bocados de rocha. Uma palavra e um gesto da Aparição a detiveram no seu caminho.
– Não disse que bebesses no Gave, vai à fonte, está aqui. E estendeu sua mão, essa mão delicada e poderosa, à qual a natureza está sujeita, mostrou com o dedo à menina, ao lado direito da Gruta, este canto seco para o qual, na véspera de manhã, a tinha já feito subir de joelhos.
Fosse a um novo sinal da Aparição, fosse por um movimento interior de sua alma, Bernadete, com esta fé simples que agrada tanto ao Coração de Deus, abaixou-se, e, rapando o solo com as suas mãos pequenas, escavou a terra.
Repentinamente o fundo desta pequena cavidade escavada pela menina tornou-se úmida. Vindo das profundezas desconhecidas, através das rochas de mármore e das espessuras da terra, uma água misteriosa brotou pouco a pouco debaixo das mãos de Bernadete e encheu esta cova, do tamanho de um copo, que ela tinha acabado de formar.
Quando Bernadete cumpriu da maneira que acabamos de contar, todas as ordens que tinha recebido, a Virgem lançou sobre ela um olhar satisfeito, e, um instante depois, desapareceu a seus olhos.
A comoção popular tinha tomado proporções consideráveis. Bernadete era aclamada quando passava, e a pobre menina entrava a toda a pressa em sua casa para escapar a estas ovações.
Na gruta, apesar do imenso concurso do povo, tudo continuava a passar-se com a melhor ordem. Tiravam água da nascente, cantavam cânticos, oravam. Os soldados da guarnição, comovidos como toda a gente destas terras, tinham pedido ao comandante do forte licença de irem, eles também, às Rochas de Massabielle. Alguns dias se passaram assim, durante os quais a Aparição se manifestou sem nenhuma particularidade nova, senão que a nascente crescia sempre e as curas milagrosas se multiplicavam cada vez mais.
Depois do último dia da quinzena, Bernadete havia voltado muitas vezes à gruta, mas um pouco como toda a gente, quer dizer, sem ouvir em si mesma esta vos interior que a chamava irresistivelmente. Esta voz, ela ouviu-a de novo a 25 de Março de manhã, e tomou imediatamente o caminho das Rochas de Massabielle. Seu semblante era radiante de esperança. Sentia em si mesma que ia tornar a ver a Aparição, e que diante dos seus olhos encantados, o Paraíso ia entreabrir um instante as suas portas eternas.
Bernadete em êxtase tinha esquecido a terra diante da formosura sem mácula.
– Ó minha Senhora, lhe diz, quereis ter a bondade de me dizer quem sois e qual o vosso nome?
A Aparição sorriu e não respondeu.
– Ó minha Senhora, repetiu Bernadete, quereis ter a bondade de me dizer quem sois e qual o vosso nome?
A Aparição pareceu cintilar mais, como se a sua alegria fosse aumentando, e não respondeu ainda à pergunta da menina.
Bernadete redobrou as suas instâncias e pronunciou pela terceira vez estas palavras: Ó minha Senhora, quereis ter a bondade de me dizer quem sois e qual o vosso nome?
A Aparição parecia entrar cada vez mais na Bem-aventurada glória; e como concentrada em sua felicidade, continuou a não responder.
Bernadete fez ainda ouvir uma vez estas suplicantes palavras:
– Ó minha Senhora, suplico-Vos, quereis ter a bondade de me dizer quem sois e qual o vosso nome?
A Aparição tinha as mãos postas fervorosamente e o rosto no resplendor da Bem-aventurança infinita. Era a humildade na glória. Assim como Bernadete contemplava a Visão, a Visão, sem dúvida, contemplava, no seio da Trindade Divina, Deus Pai, do qual era Filha, Deus Espírito Santo, do qual era Esposa, Deus Filho, do qual era Mãe.
À última pergunta da menina separou as mãos, fazendo passar para o braço direito as contas com fio de ouro e com os glóbulos de alabastro. Abriu então os braços e os inclinou para o solo, como para mostrar à terra as suas mãos virginais, cheias de bênçãos. Depois, levantando-as para a eterna região donde desceu, em igual dia, o Mensageiro divino da Anunciação, tornou-as a juntar fervorosamente, e, olhando para o Céu com sentimento de um indizível agradecimento, pronunciou estas palavras:
Eu Sou a Imaculada Conceição.
Tendo dito estas palavras, desapareceu, e a menina achou-se com a multidão, em frente de um rochedo deserto. Ao lado dela, a milagrosa água caindo pela calha de madeira no seu tanque rústico, fazia ouvir o murmúrio sereno destes borbotões.
Era o dia e a hora em que a Santa Igreja entoa em seu Ofício o Hino magnífíco: “Ó a mais gloriosa das Virgens…”.
O Gloriosa Virginum
Sublimis inter sidera.
Depois destes acontecimentos extraordinários, Lourdes têm sido o centro de numerosas peregrinações, operando-se todos os anos muitos milagres.
PALAVRAS AUTORIZADAS
SÃO PIO X:2
LOURDES É PROMESSA
DA VITÓRIA IMINENTE SOBRE A IMPIEDADE
“É preciso acrescentar que Pio IX não muito antes [das aparições] havia declarado ser de Fé Católica a Conceição Imaculada de Maria que, na cidade de Lourdes, começaram maravilhosas manifestações da Virgem, e foi, como se sabe, a origem dessas igrejas elevadas em honra da Imaculada Mãe de Deus, obra de alta magnificência e de imensos trabalhos, onde prodígios quotidianos, devidos à sua intercessão, fornecem esplêndidos argumentos para prostrar na confusão a incredulidade moderna.
“Tantos e tão insignes benefícios concedidos por Deus pelas piedosas solicitações de Maria, durante os cinquenta anos transcorridos, não deveriam nos fazer esperar a salvação num tempo ainda mais curto do que nós acreditávamos?
Da mesma maneira, há como uma lei da Providência divina, a experiência ensina-nos isto, segundo a qual entre os extremos derradeiros do mal e a liberação jamais há muita distância. “O tempo de sua vinda está próximo. Pois o Senhor terá piedade de Jacob, e em Israel terá seu eleito”.3
“É pois com inteira confiança que nós mesmos podemos esperar que dentro em breve exclamemos : “O Senhor quebrou o cetro dos ímpios. A terra está em paz e silêncio, ela se regozija e ela exulta”.4
PIO XI:5
LOURDES CONFIRMOU
A PROCLAMAÇÃO DO DOGMA
DA IMACULADA CONCEIÇÃO
“O que em Roma, pelo seu magistério infalível, o sumo pontífice definia, a Virgem Imaculada Mãe de Deus, a bendita entre as mulheres, quis, ao que parece, confirmá-lo por sua boca, quando pouco depois se manifestou por uma célebre aparição na gruta de Massabielle”.
“Certamente, a palavra infalível do pontífice romano, intérprete autêntico da verdade revelada, não necessitava de nenhuma confirmação celeste para se impor à fé dos fiéis. Mas com que emoção e com que gratidão o povo cristão e seus Pastores não recolheram dos lábios de Bernadete essa resposta vinda do céu: "Eu sou a Imaculada Conceição"!
PIO XII:6
A MALÍCIA DOS ADVERSÁRIOS
PERMITIU QUE A APARIÇÃO DE LOURDES
BRILHASSE COM MAIS EVIDÊNCIA
“Por isso, não é de admirar que os nossos predecessores se hajam comprazido em multiplicar os seus favores para com esse santuário. Desde 1860, Pio IX, de santa memória, regozijava-se de que os obstáculos suscitados contra Lourdes pela malícia dos homens houvessem permitido ‘manifestar com mais força e mais evidência a clareza do fato’.7 E, forte dessa segurança, ele cumula de benefícios espirituais a Igreja recém-educada, e faz coroar a estátua de nossa Senhora de Lourdes”.
BENTO XVI EM LOURDES:8
“Numerosas são as pessoas que o testemunharam: o encontro com o rosto luminoso de Bernadete impressionava os corações e os olhares. Tanto durante as aparições como quando ela as narrava, o seu rosto tornava-se completamente radioso. Bernadete já estava habitada pela luz de Massabielle.
“No entanto, a vida quotidiana da família Soubirous era tecida de miséria e tristeza, de doença e incompreensão, de rejeição e pobreza. Embora não faltando amor e afeto nas relações familiares, era difícil viver no “cachot” (no “cárcere”).
“Contudo, as sombras da terra não impediram de brilhar a luz do céu: «A luz brilha nas trevas...»”.9
SANTA CATARINA LABOURÉ:10
NOSSA SENHORA DE LOURDES
É A MESMA DA MEDALHA MILAGROSA
Quando Santa Catarina Labouré soube, em Paris, das aparições de Nossa Senhora em Lourdes, exclamou: “É a mesma!”.
A santa lamentou várias vezes que não se tivesse construído na Rue du Bac o santuário dedicado à Medalha Milagrosa, pedido pela Mãe de Deus:
“Se os superiores tivessem querido, a Santa Virgem teria escolhido nossa capela” para operar os milagres de Lourdes, disse em outra ocasião.
Para Santa Catarina, Nossa Senhora escolheu Lourdes para suprir a falta de interesse das autoridades religiosas de Paris pelo pedido de Nossa Senhora.
______________________
1. Pe. Croiset, “Ano Cristão – ou Devocionário para Todos os Dias do Ano”, traduzido do Francês, revisto e adaptado às últimas reformas litúrgicas pelo Pe. Matos Soares, Professor do Seminário do Porto, Vol. II, 11 de Fevereiro, pp. 149-161. Tradutor Seminário do Porto – Porto, 1923.
2. Carta Encíclica “Ad diem illum Laetissimum”, de 2 de Fevereiro de 1904: Acta Pii X, vol. 1, p. 149.
3. Is. XIV, 1.
4. Is. XIV, 5 e 7.
5. Decreto De Tuto para a canonização de Santa Bernadete, de 2 de Julho de 1933: AAS 25 (1933), p. 377.
6. Carta Encíclica “Le Pelèrinage de Lourdes”, de 2 de Julho de 1957.
7. Carta de 4 de Setembro de 1869, Ep. Lat. an. 1869, n. 388, f. 695.
8. Homilia na Procissão das Velas, 13/9/2008.
9. Jo. 1, 5.
10. Rev. Pe. René Laurentin, “Vie de Catherine Labouré”, Desclée de Brouwer, Paris, 1980, pp. 147-148.