Amemos a Deus,
porque Deus morreu por nosso amor.
Poderá Deus, no caso que se determinou a baixar ao mundo em forma humana, obrar este Mistério em carne impassível, e imortal: porém, não quis senão ser homem mortal, e passível, semelhante a nós; e com efeito, comprar a nossa vida eterna à custa da Sua morte, e morte dolorosíssima e afrontosíssima, qual foi a de Cruz. Eis aqui, ó minha alma, outra nova e apertadíssima obrigação, em que Deus te pôs de O amares; tão excessiva e prodigiosa; que os Santos Doutores da Igreja não acham adequados termos para explicar ainda esse limitado conceito, que dela formam: e com ser estupendo o benefício da Encarnação do Verbo: é certo que este de Sua Paixão e Morte o sobrepuja muito. Si Trinitas Personarum (diz um Douto) hypostatice millies myriadibus infer homines se conjunxisset: non tantum amoris erga nos, tantaeque benevolentiae dedisset argumentum, quam dum in Cruce pro peccatoribus vitam ponit.1
Os mesmos Anjos se admiram, e estavam como atônitos, de ver que Deus para resgatar o servo entregou o Filho, e para perdoar os culpados justiçou a Inocência, e para sarar o frenético, se vazava todo o Sangue do Médico: Fusus est Sanguis Medici, et factus est medicamentum phrenetici.2 O insólito e imensurável desta demonstração de caridade fez alucinar e perder o tino aos Sacerdotes, Pontífices, Fariseus, e sábios da Lei, e ao mesmo Lúcifer, com todo o Conciliábulo de seus Demônios: e é o que ainda hoje dificulta ao Gentilismo o crédito do Mistério da Cruz. Porque os Judeus êmulos de Cristo nunca lhes pareceu que podiam concordar se estes dois extremos sumamente opostos, Ser Filho de Deus, e morrer; particularmente, morte cruel, afrontosa e violenta. E assim o seu discurso em perseguir e condenar à morte a Cristo foi este: Ou este homem é Filho de Deus, ou não: se o é, Ele se livrará das nossas mãos; por mais que O atormentemos, não pode morrer, nem ser vencido do poder humano, e leis da natureza: se o não é, justamente Lhe procuramos a morte, pois, usurpa para Si blasfemamente o que é próprio só do Altíssimo. Este foi o seu pensamento, como já muito de antes estava revelado no livro da Sabedoria: Gloriatur Patrem se habere Deus videamus ergó, si sermones illius veri sunt… si enim est verus Filius Dei, suscipiet illum, et liberabit eum de manibus contrariorum.3 Por isso também, clamavam com irrisão, quando o Salvador piedosíssimo estava na Cruz:4 Salvou aos outros e não pode se salvar a Si? Desça da Cruz, já que é Filho de Deus bendito e O creremos. E em outra ocasião, havendo dito o Senhor que importava fosse exaltado na Cruz, rompeu-lhe a multidão: Nós sabemos pela Lei, que Cristo é eterno: Como dizes agora, que importa ser levantado na Cruz? De sorte que a esta gente com ser de letras e criados nas doutrinas da Lei Santa, nunca lhes passou pela cabeça que Deus havia de entregar à morte a seu Unigênito Filho por amor dos homens. Suposto que esta ignorância neles foi grandemente culpável, cegando-os a sua malícia e inveja, com que perseguiam a um homem inocentíssimo e admirável em milagres, e não querendo investigar, nem entender as Escrituras: e na dúvida de se era ou não, Filho de Deus, abalançarem-se a dar-Lhe a morte, foi erro desmascarado e atrevimento formidável, e depravadíssima maldade.
Quase do mesmo modo Lúcifer, com toda sua infernal canalha, com serem espíritos de astúcia e sutileza, que excede toda humana capacidade, nunca chegaram a assentar que Cristo era Filho de Deus, uma vez que O viam tão pobre, desprezado, fraco, e sujeito às calamidades de filho de Adão, como os demais homens. E tanto que foram rastejando o Mistério por conjecturas, logo procuraram solicitamente impedir, e embargar a Paixão e Morte do Senhor: porém, já não puderam refrear da carreira começada a impiedade judaica e o mal que lhes tinham persuadido. E depois que caíram de todo na conta, deram por perdido o seu Reino do pecado, parecendo-lhes que uma demonstração tão poderosa, qual era morrer Deus por amor dos homens, os levaria todos a amá-Lo e a não empregar seus corações em outra coisa.
Realizado o prodígio, Mistério da Cruz, seguiu-se o pregarem-no os Apóstolos sagrados, para ser crido. Porém, a uns parecia matéria de escândalo, a outros de riso, como diz São Paulo: Judoeis quidem scandalum, gentibus autem stultitiam.5 Os daquele povo ingrato se envergonhavam e escandalizavam, de ouvir dizer que Deus morrera por eles em uma Cruz entre dois ladrões, e que eles O mataram: e ao Gentilismo, parecia-lhe tanto amor, vaidade, a qual está mui longe do ser Divino. Tanto assim; que ainda nos nossos tempos presentes, quando já o dia da Fé e Religião Cristã tem esclarecido em quase todo o mundo, foi proposto e perguntado à Santa Inquisição Geral de Roma, se podiam os Missionários da China encobrir aos que recebiam daqui escândalo e o reputavam por estultícia. Foi respondido, que de nenhum modo se devia encobrir ou reservar para depois do Batismo a doutrina da Paixão do Senhor:6 pois em seus abatimentos estava escondida a fortaleza e glória de Deus, e a vitória sobre o mundo, o Inferno e o pecado. Esta determinação aprovou a Congregação De propaganda: e à sua instância a confirmou o Papa Inocêncio X. E assim, a maior maravilha da graça do Senhor, foi render por meio da pregação Evangélica, a todo o mundo a crer e adorar por seu Deus um homem morto e pregado em um patíbulo.7
Nós os que em virtude da mesma Cruz já agora cremos nela, se nos parece este Mistério coisa bem ordenada e digna de Deus, é porque vivemos na região da luz da Fé, já feitos ao leite da doutrina de nossa Mãe a Santa Igreja Católica; mas, devemos muito advertir que diferente conceito faremos desta fineza de morrer Deus por nós, quando na pátria soubermos que coisa é Deus; porque impossível é tomarmos o peso a este abatimento, senão quando o tomarmos aquela sublimidade: e só quem vir a Cristo entre duas Pessoas Divinas no trono do Empíreo, poderá medir a distância que vai dali a pôr-se o mesmo Senhor entre dois ladrões no Calvário. O amoris vim! (exclama admirado S. Bernardo) Ita né summus omnium vilissimus factus est omnium? Quis hoc fecit? Amor dignitatis nescius, dignationedives, affectus potens, suasu efficax.8 Oh, força de amor! É possível, que a Pessoa mais alta de todas, se faz de todas a ínfima? Quem fez isto? O amor, que ignora dignidades e derrama dignações, valente no afeto, na persuasão eficacíssimo.
Logo se esta demonstração do amor Divino é a todas as luzes estupenda, singularíssima e infinita; que feia ingratidão será negar-lhe a correspondência do nosso pobrezinho amor? Algumas vezes tiveram os servos de Deus visões, em que lhes mostrou coisas inanimadas, em representação de figuras vivas: tenho para mim que se houvesse de representar-se uma figura desta ingratidão, quem visse sua fealdade feiíssima morreria de pavor. É possível, que não ao homem não haja de amar, a um Deus que morreu por ele de amor? Para Cristo nos mostrar o Coração, o abre por meio de uma cruel lançada; e nós os pecadores, amados de graça e à porfia recusarmos dar-Lhe o coração? Para nos abraçar consigo, estende os braços quanto pode, à custa de os fixar com cravos em um madeiro: e nós fugimos de abraçar este Senhor, sua lei e vontade, e vamos abraçar nossa perdição e opróbrio? Clama por tantas bocas quantas feridas, que nos ama, que nos quer, que não nos percamos, que acudamos a Ele e acharemos todo o bem: e nós duros, rebeldes e insensíveis, se o clamor nos entra por um ouvido, por outro nos sai? Não teremos com uma Pessoa infinitamente digna e soberana, aqueles bons termos, que se devem a qualquer outra que com seu amor nos obriga?
Conta-se que Tygranes Rei, sendo, juntamente, com sua mulher cativo por Ciro, Rei dos Persas, perguntando-lhe este, que daria pela liberdade de sua mulher, respondeu prontamente: Que daria a própria vida de boa vontade. Ciro se pagou tanto da resposta, que logo deu a ambos liberdade. Perguntou depois Tygranes a sua mulher, que lhe parecera da majestade e presença Del-Rei Ciro. Respondeu a prudente matrona com afeto enternecido: Não sei senhor dar razão disso: porque desde o ponto em que vos determináveis a comprar a minha liberdade com a vossa vida, nunca mais empreguei os olhos em pessoa alguma fora de vós, que tanta estimação fizeste de mim.
Quem há de agora, sem pedir primeiro licença e perdão a Deus, meter em comparação este caso com o nosso, de que vamos tratando? Este Rei era um homem, como os outros: Cristo é Rei da Glória e do Universo, Filho de Deus e o mesmo Deus. Este Rei estava pronto para dar a vida: Cristo a deu com efeito pela nossa liberdade. Este Rei dava a vida por sua esposa igual com ele no estado e nobreza: Cristo deu a vida por nós miserabilíssimos pecadores e seus inimigos. Este Rei dava a vida a mais não poder, para conseguir o seu intento: Cristo podendo livrar-nos por outros muitos meios, não o quis senão por morte de Cruz, escolhida e aceita livremente, para mais nos mostrar seu excessivo amor. Pois, por que há de haver alma, que depois de realizada esta portentosa fineza, ponha os olhos e empregue o coração na vaidade do mundo, no regalo da carne, na estimação da honra? Para alma, e considera. Para e toma o peso a este excesso do amor Divino e à tua obrigação.
Se um escravo nosso em uma briga de perigo e empenho nos mostrasse tal fidelidade e valor, que saísse dali crivado de estocadas, para nos salvar da morte: em que obrigação ficaríamos a este escravo? Como lhe poderíamos negar o amor? E quão estranha ingratidão seria tratá-lo mal e sem causa, açoitá-lo e vendê-lo? Pois acaso não cremos nós que muito maior e infinitamente maior fineza realizou por nós Cristo, dando a vida para nos salvar da morte eterna? Não o cremos assim? Acaso por ser Deus, O que tomou para este efeito a forma de servo, perdeu esta fineza o preço que tivera, obrada por qualquer outro homem, em matéria de muito menos importância, qual é a vida temporal? Que será isto, que aos mais dos homens não os penetram este amor, não os rende, não os obriga? Uma das principais causas é, porque O não consideram: e assim se ficam nos limites da natureza terrena e brutal, sem passar aos da racional e do espírito. Que importa ser a luz grande ou pequena, para quem tapa os olhos? Assim também: Que importa serem estas razões tão claras e fortes, senão aplicamos o entendimento? Mas isto mesmo é torpe ingratidão, digna de Inferno e Inferno muito mais grave que o dos infiéis, que suposto foram também remidos, não creem nesta dívida. Senhor (exclama a Deus seu servo Agostinho), quem não Vos serve, porque o criastes, merece o Inferno: mas, quem não Vos serve, porque o remistes, merece que se faça outro Inferno novo.
Hora pois, se a falta de consideração nos é causa de não advertirmos na grandeza desta dívida e nesta especial deformidade de nossos pecados, que daqui lhe acresce, não haja Cristão, que se lhe passe dia, em que não medite aos pés deste Senhor crucificado, o quanto lhe deve e o como poderá mostra-se agradecido. Ali chore, ali se confunda, ali proponha emendar a vida e lhe peça espírito amigo de padecer por seu amor, espírito de não amar coisa alguma, senão a quem com sua morte de Cruz, o livrou da morte eterna. Corra de vagar com os olhos por aquele retrato do amor, obra primorosíssima da mão do mesmo Deus, onde não há partezinha, nem circunstância mínima, que não esteja vertendo finezas e significando afetos. Adore a Majestade Divina ali humilhada, admire a profundeza de tantos Mistérios, abrace a bondade deste Senhor, que tão patente se manifesta, prove da suavidade que as amarguras de sua Paixão e Morte estão destilando e aproveite os inumeráveis bens, que desta fonte nos manaram. Estes, são cinco pontos (compreensivos dos mais), que um servo de Deus tinha escritos ao pé de um Crucifixo,9 para matéria e motivo dos afetos de seu espírito. 1. Adoro majestatem. 2. Stupesco profunditatem. 3. Amplexor bonitatem. 4. Libo suavitatem. 5. Suscipio utilitatem. Se assim o fizermos, entraremos em luz, teremos princípio de ser criaturas de Deus; que todo o que não O ama e serve, ainda (falando moralmente) não o começou a ser, pois ainda não foi gerado pela palavra interior, e vivificada da verdade; segundo aquilo do Apóstolo Santiago: Genuit nos verbo veritatis, ut simus initium aliquod creaturae ejus.10
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Fonte: Ven. Pe. Manoel Bernardez, Oratoriano, Luz e Calor, Segunda Parte, Opúsculo I, Estímulo VI, Pontos 270-272, pp. 251-256. Nova Edição, Lisboa, 1871.
1. P. Penequin. ig. Isagoge, p. 1, cap. 16, n. 3.
2. August. Lib. 5, contra haereses.
3. Sap. 2.
4. Matth., 27, 42.
5. 1 Cor., 1, 23.
6. Verricelli de Apostolicis Missionibus tit. 1, de Fide q. 7, sect. 2. fine.
7. Habac., 3, 1. cornua in manib. Ejus: ibi absc. Est fort. Ejus, &.c.
8. Serm. 64 in Cant.
9. O Padre Cláudio Aquaviva, Geral que foi da Companhia de Jesus.
10. Jac., 1, 18.
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