SÉTIMA PALAVRA1
“Pater, in manus tuas commendo spiritum meum”.2
“Pai, nas vossas mãos entrego o meu espírito”.
Chegamos, finalmente, aos últimos instantes de Jesus, ao momento supremo do sacrifício do Homem-Deus, que ia entregar a sua Alma em prol do resgate da humanidade.
“O rosto da adorável Vítima, cada vez mais lívido, contraía-se. Todo o seu Corpo pesava sobre Si mesmo, como se os cravos não pudessem aguentá-lO. O Sangue corria sempre ao longo do madeiro, mas gota a gota: estavam quase esgotadas as veias. O Coração batia muito fracamente; as pálpebras iam-se cerrando, velando os vítreos olhos. Os lábios aproximavam-se e fechavam-se convulsamente, como para reterem o último alento.
De súbito, os membros parecem reviver, os olhos ergueram-se para o Céu, e, com voz sonora e forte, em que se reconhece um Deus morrendo, o Filho de Deus exclama: ‘Meu Pai, em vossas mãos entrego o meu espírito!...’3”.
A seguir, inclina a cabeça sobre o peito e exala o último suspiro.
“Era aquilo, escreve um autor, morrer como Senhor da morte. Aquela liberdade de inteligência e de vontade na Cruz, aquela prova do cumprimento de todas as circunstâncias anunciadas nos Profetas, aquele grande brado, aquela força recobrada depois do longo suplício, revelavam a plena liberdade d’Àquele que dissera: ‘Eu tenho o poder de deixar a minha vida e o poder de recobrá-la’4”.
Só mesmo a intervenção de uma força sobrenatural, só mesmo a manifestação de um poder acima das energias ordinárias da humanidade poderia fazer que um moribundo, que havia padecido tantos tormentos e havia derramado todo o seu sangue, pudesse soltar um grande brado, na derradeira hora de sua agonia.
Atentando às circunstâncias extraordinárias da morte de Jesus, um sábios escritor traça estas linhas:
“Ia já exalar o último suspiro, quando de repente, reerguendo a cabeça, deu um brado de tal força que todos os assistentes ficaram gelados de espanto. Não era o gemido plangente de um homem moribundo; era o brado triunfal de um Deus que diz à terra: Eu morro porque eu quero”.5
É verdadeiramente notável que Jesus, antes de expirar se tenha dirigido ao Eterno, invocando-O sob o doce nome de Pai e Lhe haja entregado a sua Alma. Queria, desse modo, indicar que a oferta de seu sacrifício supremo era toda livre, cheia de amor e prestada da melhor boa vontade.
A morte é um acontecimento terrível e inevitável; é um fato a que não podemos fugir e com o qual nunca nos acostumamos, tal a repugnância natural, que nos infunde.
Podemos considerá-la debaixo de três aspectos, sob três pontos de vista inteiramente diversos: científico, humano e sobrenatural.
Considerada sob o ponto de vista científico, a morte é a cessação dos fenômenos vitais; os órgão param a sua atividade e a matéria orgânica entra, rapidamente, no caminho da decomposição.
A morte, encarada unicamente sob o ponto de vista humano, apresenta-se como o término das ilusões, dos projetos, das alegrias e das aspirações do indivíduo.
O ponto de vista sobrenatural, considera a morte como o encerramento do ciclo vital e o início da eternidade.
À luz da revelação sobrenatural, a morte traz consigo o fim de tudo que é sensível. As vaidades do mundo, o conforto material, os prazeres terrenos, as relações sociais, as alianças de família, os interesses, as ambições e todas as coisas que nos preocupam na vida acabam, exatamente, quando termina nossa existência terrestre.
A morte, é o fim dos enganos e das ilusões dessa vida e de tudo quanto lisonjeia os sentidos. É, finalmente, o fim do tempo, isto é, do período que Deus nos concede, para que conquistemos a eterna Bem-aventurança.
A morte, para o homem, é tremenda encruzilhada, onde pode começar uma felicidade eterna ou uma desgraça infinita. É o momento único e supremo, do qual depende a eternidade.
Isso é o que é a morte para o homem.
Para Jesus Cristo, a morte era o início do seu triunfo, era o começo de sua vitória sobre o mal e o Demônio.
Era o fundamento do reino de Deus sobra a terra.
A circunstância de Jesus, à hora extrema, recomendar sua Alma ao Pai, traz-nos à memória uma grande verdade, que o materialismo e a impiedade têm procurado apagar da mente humana: a imortalidade da alma.
Realizam-se, em nosso íntimo, operações que excedem as forças da matéria, operações que exigem um princípio espiritual. São os atos de nossa vontade e nosso entendimento.
A nossa alma é espiritual e, portanto, é, necessariamente imortal. Assim o afirmamos, em nome da reta razão e da verdadeira filosofia, por dois motivos principais: primeiramente, porque o ser espiritual é, por natureza, imortal, uma vez que ele não encerra em si nenhum princípio de corrupção ou dissolução; em segundo lugar, porque a alma humana possui faculdades independentes da matéria.
A observação do que se passa dentro de nós concorre para fortalecer nossa crença e nossa convicção de que a alma humana é imortal.
Há em nós, um desejo incontido de felicidade, um coração ansioso, que não cessa de desejar e de esperar venturas e mais venturas. Os prazeres da terra, as riquezas do mundo e os faustos da sociedade, todos reunidos, não bastam para saciar um coração humano. Ao passo que os animais, satisfeitas as exigências de sua natureza, ficam tranquilos e felizes, o homem nunca está plenamente feliz nesta vida. É que sua própria natureza clama por uma felicidade infinita, que lhe encha, cabalmente, o coração.
O remorso, esse grito da consciência, que protesta contra o mal praticado, constitui também uma prova de que há, em nós, uma esperança inextinguível de uma vida eterna, na qual sejam plenificadas todas as nossas mais nobres aspirações.
Sob o peso da desgraça, quando vemos o desabamento de todas as nossas ilusões terrenas e sentimos acercar-se de nós e envolver-nos o frio da desgraça, mais fortes e mais vivos se manifestam os nossos anseios de felicidade.
O abalo profundo, que experimentamos por ocasião da morte de alguma pessoa querida, é a voz de nossa própria natureza, que afirma o prolongamento de nossa vida na região do além-túmulo.
O culto dos mortos, que encontramos entre selvagens, bárbaros e civilizados, nos tempos antigos e modernos, culto revelado por monumentos formidáveis, que atravessaram as vicissitudes dos tempos, esse culto atesta o acordo unânime de todas as raças na crença da sobrevivência da alma humana.
A desordem profunda, que lavra no seio do mundo moral, onde, as mais das vezes, prosperam os maus e sofrem os bons, está a exigir uma outra vida, um outro mundo melhor e mais justo, onde se corrijam as desigualdades e as injustiças desta terra. A reta razão e o sentimento natural de justiça clamam pela imortalidade da alma, que, na outra vida, deve receber prêmio ou castigo, de acordo com o que mereceram as próprias obras. A impiedade pode excogitar sofismas, o materialismo pode vomitar escárnios contra as nossas crenças, mas a verdade não deixará de brilhar nos ensinamentos da Igreja de Jesus Cristo.
As considerações, que acabamos de fazer sobre a imortalidade da alma e a crença numa vida futura, levam-nos, mui naturalmente, à lembrança da vida da graça, que é destruída pelo pecado.
O pecado, a morte da alma, é o maior mal ou antes, o único mal que existe sobre a terra, porque todos os males, que nos afligem ou nos podem afligir, procedem do pecado.
O pecado transtornou e perturbou toda a harmonia da criação, enchendo de desordem o universo inteiro.
A terra, jardim de delícias, preparado por Deus, para habitação dos nossos protoparentes, revestiu-se de cardos e cobriu-se de espinhos, após a culpa original.
A Bíblia Sagrada está cheia de exemplos terríveis, que nos mostram os próprios elementos arvorados em castigadores do pecado. Sodoma e Gomorra, as cidades malditas, foram destruídas pelo fogo do Céu. Coré, Datan e Abiron, israelitas revoltados contra Moisés, pereceram tragados pela mesma terra, em castigo de sua rebelião.
No mundo dos espíritos, na hierarquia dos Anjos, o pecado conseguiu fazer estragos irremediáveis e converter em Demônios horrendos os mensageiros da luz.
O pecado é mal tão grande, que chega até a afligir o Coração de Deus, que, segundo o dizer dos Livros Santos, se arrependera de haver criado o homem…
A vida inteira de Jesus, de Belém ao Calvário, constitui a prova cabal do quanto são terríveis os castigos do pecado, que exigiu tantos sofrimentos do Homem-Deus, para reparação completa das culpas da humanidade.
A esses efeitos gerais do pecado, podemos ajuntar os estragos individuais, que o mesmo acarreta a quem o comete: a perda da graça santificante e da amizade de Deus; a perda completa de todos os méritos anteriormente adquiridos; finalmente, a pena eterna e a condenação da própria alma.
Foi para reparar tudo isso, que Nosso Senhor Jesus Cristo veio ao mundo e quis padecer e morrer em sua Cruz.
Senhor Jesus, Vós viestes ao mundo para trazer o fogo de vossa caridade, e nada mais desejais, que ver tudo abrasado em um incêndio de amor.
Fazei, Senhor, que sejamos todos nós penetrados dos raios desse divino incêndio, que começa aqui na terra, para consumar-se, por toda a eternidade, no Céu. E, para que assim aconteça, permiti que conformemos a nossa vida com a vossa, de modo que, no momento final de nossa existência terrestre, possamos dirigir ao Eterno Pai a vossa derradeira palavra:
“Pai, nas vossas mãos entrego a minha alma”.
“Pater, in manus tuas commendo spiritum meum”.
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1. “Espírito e Vida” – As Sete Palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo Pe. J. Cabral, VII Palavra, pp. 81-88, da Coleção Cristo Redentor. Empresa Editora A.B.C. Ltda, Rio de Janeiro, 1938.
2. Luc. XXIII, 46.
3. Weber – De Gethsemani ao Golgota – págs. 187-188.
4. Louis Veuillot – A Vida de Nosso Senhor Jesus Cristo – págs. 257-258.
5. Pe. Berthe, C.SS.R., “Jesus Cristo, sua vida, sua paixão, seu triunfo”, pág. 402.
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