Notas Escriturísticas sobre
Nossa Senhora, a Mãe de
Deus.
“Entre as suaves e sublimes
figuras, que as Memórias Evangélicas apenas descobrem de relance, a da Mãe de
Jesus é a primeira, que a nossa veneração e o nosso culto procuram com extremo,
depois de consumado diante da sua vista o Holocausto do Messias.
Trespassado de fundos golpes,
aquele Coração tão fino no afeto, e tão sublime nas virtudes, gotejando em
lágrimas todo o sangue da sua alma, que os tratos esgotaram das veias do
Redentor, como suportou o Sacrifício, e até à hora, em que deixou a terra para
gozar a celeste morada, de que maneira existiu, aceitando a cruel separação de
um Filho amado?
Na sua humildade, cheia de graça,
rodeada, como consoladora e luz de esperança, de todos os pobres e infelizes,
que o mundo desamparava, assegura-nos a Tradição, que foi para os homens na
terra a mesma estrela protetora, que os aflitos invocam hoje no Paraíso, como
intercessora compadecida dos infortúnios, que atribulam o desterro da vida.
Mais venturosos, os primeiros
cristãos gozaram da presença, e benigna influência da Esposa do Espírito Santo.
Os Apóstolos tiraram da vista Daquela, que padeceu tanto sem se queixar, a
força necessária para arrostarem animosos com as tempestades e cruezas do
mundo. Os desgraçados acharam Nela conforto e refúgio. Os convertidos, pegando
na sua cruz, e seguindo A de Cristo, tinham na Mãe de Deus o exemplo de todas
as perfeições, e por Ele se confirmavam na abnegação, e na perseverança.
Um escritor do quinto século, São
Cirilo de Alexandria, celebrando os louvores da Virgem dá-nos exata ideia do
grande respeito, que os cristãos lhe tributaram sempre.
Tratando das prerrogativas de
Maria, o eloquente Doutor eleva-se, e exclama, ardendo em entusiasmo: 'Salve,
Maria, Mãe de Deus, tesouro precioso do universo, luz eterna, e puríssima coroa
de virgindade, cetro da Lei da Graça!... Salve tu, que trouxeste nas castas
entranhas o Imenso e o Incompreensível!... por amor de ti a Santíssima Trindade
foi glorificada e a Cruz do Redentor se exaltou em toda a terra! Salve, triunfo
glorioso dos Céus, jubilo dos Anjos, e terror dos Infernos... venceste o
Tentador, mostrando às criaturas, apesar da culpa, as portas do Paraíso,
abertas para recebê-las! Por ti reina o conhecimento da verdade sobre as ruínas
da idolatria; os fiéis são regenerados com o Batismo, as nações do mundo
arrependem-se e choram penitentes os seus erros!... Por ti, o Filho Unigênito
de Deus, facho do mundo, iluminou os que jaziam debaixo das trevas da morte...
Quem poderá louvar-Te dignamente, Mãe incomparável, Virgem puríssima?'
São Dionísio Areopagita, escritor
do primeiro século, na Carta que se lhe atribui, dirigida a seu mestre São
Paulo, Apóstolo, refere-nos o que experimentou, quando pôs os olhos na Virgem.
Eis as suas palavras, viva
expressão dos sentimentos: 'Diante de Deus, confesso, que não se pode
perceber pelos homens Aquela, que eu vi e contemplei... porque apenas João,
alteza do Evangelho, me levou à presença da Senhora, rodeou-me tão imenso
resplendor, foi tão copiosa a luz interior, e sobreveiu-me tanta fragrância de
todas as coisas, que nem o infeliz corpo, nem o meu espírito pode sofrer os
efeitos insignes de tão suprema ventura. Desfaleceu o coração, e desfaleceu o
ânimo, oprimidos com a majestade de tanta glória. Deus que habitava na Virgem,
me é testemunha de que se a vossa doutrina não me tivesse ensinado, chegaria a
crer que Maria era o verdadeiro Deus!'
Alguns autores, citados por
Macedo na sua obra, Eva e Maria, acrescentam, sem hesitar, que São Dionísio,
apenas se achou na presença da Virgem, caiu em terra, sem sentidos, e como
morto, não podendo suportar os raios de tanta majestade, e o esplendor da luz,
que o cegava, o que ele mesmo parece significar, quando assevera, que na sua
fraqueza corpórea não pudera sofrer os efeitos daquela felicidade,
desfalecendo-lhe o coração e o espírito, deslumbrados, e oprimidos de tamanha
glória.
Estas Tradições, porém, não são
mais do que notícias, filhas de crenças, que devemos supor sinceras mas que de
nenhum modo obrigam.
No mesmo caso está, a todos os
respeitos, a Carta atribuída à Senhora, e que certos escritores dizem enviada
diretamente a Santo Inácio, Bispo e Mártir de Antioquia, na qual com palavras
graves e eficazes a Mãe de Deus o exortava a acreditar firmemente para tudo no
Evangelista São João, conformando sempre a vida e os costumes pelo seu voto de
Cristão.
A mesma força tem a outra
Epístola, que afirmam ter sido escrita à cidade de Messina, na qual, em prêmio
de haver abraçado a Fé, a Senhora lhe promete a sua proteção perpétua, e lhe
manda a sua bênção.
Florença gloriou-se, muito tempo,
de possuir uma Carta quase semelhante, em que a concisão dos termos não fica
inferior em nada à brevidade das duas que notamos.
'Florença, amada de Deus,
de Jesus meu Filho, e de Mim, sustenta a Fé; insta com orações: esforça-te com
paciência: porque assim alcançarás perdurável saúde diante do Senhor.'...
Em todo o tempo, que se demorou
na terra, Maria não cessou de ser Aquela rosa, nascida em Jessé, e anunciada pelos
Profetas como alegria do mundo: e o aroma de tantas virtudes e perfeições,
enchendo tudo de pureza e fragrância, esforçava a devoção e piedade dos
verdadeiros discípulos de Jesus.
Antes de cerrar os olhos, a
Senhora não viu cumpridas as terríveis palavras de Seu Filho sobre Jerusalém.
O seu Coração mavioso não teve de
chorar a dor e a amargura de infelizes mães, forçadas pelas angústias de um
cerco sem misericórdia a amaldiçoar a fecundidade das suas entranhas,
secando-se-lhe o leite nos peitos, e pendendo-lhes sem vida o tenro fruto dos
castos amores!
Mas ainda nos seus dias, não se
assistiu ao castigo da cidade orgulhosa, viu florescer a promessa, e crescer a
seara a tal ponto, que os ceifeiros dificultosamente bastavam para a colher.
Em fim, bateu a hora destinada
para a Mãe de Deus deixar a terra; e a Tradição refere-nos que um Anjo foi o
núncio dos decretos do Altíssimo.
Retirando-se à montanha de Sião,
a curta distância dos paços arruinados dos príncipes da sua raça, e para o
mesmo Cenáculo sobre o qual baixara ao Espírito Santo, Maria humilde e conforme
com a vontade do Eterno, esperou ali o instante desejado de se unir para sempre
ao Filho amado.
A idade não murchou no seu rosto
a formosura angélica. Os anos sem força contra Ela, passaram deixando-A bela
como antes. Assim o afirma São Dionísio, testemunha ocular da sua morte.
Todas as graças a ornavam, e no
tremendo lance, que faz gemer todas as criaturas, a serenidade, que
resplandecia no Seu semblante, comovia e assombrava ao mesmo tempo.
Os Apóstolos, e muitos
discípulos, congregados miraculosamente para a despedida da Rainha dos Anjos,
mal podiam reprimir as lágrimas de saudade, arrancadas por esta separação. De
pé, ao lado do leito, contemplavam silenciosos e imóveis, a face da Virgem,
notando consigo mesmos quanto era semelhante nas feições a Jesus Cristo.
A posição, em que estava o Corpo
da Senhora, com a cabeça inclinada, como Seu Filho, durante a última Ceia,
ainda tornava mais notável a aparência.
Depois de comungar interiormente
com a Sua Alma, a Senhora, correndo a vista pelos fiéis que perseveravam com tanto valor no seu afeto a
Cristo, e que daí a pouco o haviam de provar ainda mais, desprezando tudo,
consolou-os com meigas palavras e reflexões ditadas por uma sabedoria sublime;
e estendendo as mãos sobre os discípulos de Seu Filho, que deixava órfãos do
seu amor de Mãe, elevou os olhos aos Céus, que se abriram, descendo Jesus
Cristo em uma nuvem luminosa para A receber nos confins da eternidade.
O seu rosto corou, então, o
íntimo ardor da sua infinita adoração, e despindo o invólucro terrestre, o
espírito jubiloso subiu ao Trono de Deus, caindo o seu Corpo em sono suave, e
repousando com 61, ou 66 anos de idade, no ano 798 de Roma, e 45 da era vulgar.
Os discípulos conduziram o Corpo,
rescendente de aromas, e coberto de um véu riquíssimo, ao túmulo, transformado
em verdadeiro berço de flores; e Herotheu, pronunciando o panegirico da Rainha
dos Anjos, parecia inspirado, e fora de si. As lágrimas do auditório manavam
rápidas como as palavras de fogo do orador. Depois de velarem três, ou quatro
dias, orando sobre o sepulcro, os Apóstolos despediram-se partindo cada um em
busca da coroa do seu martírio e da sua glória. Mas antes, e quando ainda
estavam reunidos, São Tomé, que era o último que tinha chegado e que não
assistira ao trânsito da Senhora, desejoso de beijar pela derradeira vez as
mãos à Mãe do Redentor, tanto pediu, e tantas súplicas amiudou, que vencidos
cederam todos aos seus prantos, e levantaram a tampa, que cerrava o jazigo.
Apenas o lugar se patenteou à
vista, recuaram pasmados!
O Corpo não estava lá, e somente
se encontraram murchas as flores, em que o haviam pousado, e fragrante de
celeste perfume o alvo sudário de linho, em que fora envolto.
É a razão, porque nenhum reino,
ou cidade se louvou nunca de possuir a menor relíquia do Corpo da Virgem. A
Tradição da Igreja é constante em nos afirmar, que o Céu o chamou todo a si
para O glorificar!”
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Fonte: “Fastos da Igreja”, Escritos Religiosos – Vida de Jesus
Cristo, Vol. IV, pp. 84-91; cfr. Obras Completas de Luiz Augusto Rebello da
Silva, Tom. XXII, Empreza da Historia de Portugal Sociedade Editora – Livraria
Moderna, Lisboa, 1907.
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