Blog Católico, para os Católicos

BLOG CATÓLICO, PARA OS CATÓLICOS.

"Uma vez que, como todos os fiéis, são encarregados por Deus do apostolado em virtude do Batismo e da Confirmação, os leigos têm a OBRIGAÇÃO e o DIREITO, individualmente ou agrupados em associações, de trabalhar para que a mensagem divina da salvação seja conhecida e recebida por todos os homens e por toda a terra; esta obrigação é ainda mais presente se levarmos em conta que é somente através deles que os homens podem ouvir o Evangelho e conhecer a Cristo. Nas comunidades eclesiais, a ação deles é tão necessária que, sem ela, o apostolado dos pastores não pode, o mais das vezes, obter seu pleno efeito" (S.S. o Papa Pio XII, Discurso de 20 de fevereiro de 1946: citado por João Paulo II, CL 9; cfr. Catecismo da Igreja Católica, n. 900).

domingo, 24 de fevereiro de 2019

O MARTÍRIO DE SANTA PRISCA, PROTOMÁRTIR DA IGREJA DE ROMA.


Nossas personagens estão agora disseminadas e só restam os Protagonistas. Desapareceram Júlia, que tão importante papel representou neste drama sacro, antes tragédia; depois seu esposo Vinícius. Partiram Pedro, Petronila, Priscila, Prisco, e por fim Narciso. Saiu também da cena a ímpia Messalina, Sêneca, e comparsas quase nulos se tornaram Lino e as Pudentes, as libertas. Resta-nos Prisca, só pela sua parte, e da outra Cláudio, Agripina, e por detrás da cena, Lucusta. Mas, o desfecho é terrível e superior a todas as tragédias inventadas e urdidas pelos poetas. Todavia, entre o horror dos tormentos, até então inauditos e da morte desapiedada, brilha suave e divina luz, destaca-se um vulto, que parece mágico, e a tragédia se entrelaça com o drama, a história com o romance, a prosa com a poesia. Isto somente conforta. Vê-se palpitar no peito um coração firme, uma alma intrépida que preza e ama a glória anexa ao martírio; se o leitor tem coração tímido, alma pusilânime, que ama a própria vida mais do que Cristo, prefere a felicidade terrena à eterna, pare aqui, feche este livro que não é feito para ele. Semelhantemente se há no Cristianismo, (e atualmente poucas haverá!) alguma jovem donzela êmula das antigas heroínas, que estime e preze a sublime virtude da virgindade e deseje a glória e delícias que gozam no Paraíso as Virgens Mártires; esta donzela leia este livro, considere quanto soube suportar uma menina de treze anos. Mas, as infelizes moças que desdenham sua virgindade, são desejosas pelo luxo e moleza, apaixonadas pelas pompas e modas, embebecidas com as novelas e comédias, parem aqui, não busquem ingresso neste excelso teatro. Elas não poderiam suportar à vista de tais martírios, não saberiam compreender tanto heroísmo.

O Tribuno deixou Prisca na antecâmara no meio dos soldados, chegou à presença do Imperador, disse-lhe que Prisca obedecia as suas ordens. Cláudio alegre com esta notícia, a fez entrar, e vendo-a tão bela e serena exclamou como em êxtase! – Glorificado sejas, Deus Apolo, e glorioso sobre todos os Deuses, por que criaste esta virgem, preclara no sangue, formosa no rosto, serena na mente! Voltando-se para Prisca continuou: – Eu te mandei buscar para te engrandecer e te fazer senhora no meu império, se sacrificares aos nossos Numes. – (Act. da Martyr, Cap. I.).

Eu estou pronta a tributar sacrifício incruento a meu Deus e Senhor Jesus Cristo.

Cláudio era tão estúpido que não compreendeu a linguagem da Virgem, e ordenou que a conduzissem ao templo de Apolo.

Prisca sorrindo lhe disse: – Grande Imperador! De que serve eu ir sem testemunhas. Fazei-me a mercê de vir comigo, e de chamar também o sacerdote de Apolo para que veja como o Onipotente Deus acolhe com boa vontade os imaculados sacrifícios de seus fiéis.1

De boa vontade, respondeu o imperador, que ainda não compreendia a piedosa astúcia da Santa, e foi com ela para o templo.

Este era no mesmo Palatino, um pouco distante do palácio imperial. Vendo o imperador entrar no templo com aquela encantadora Virgenzinha, cercada de soldados, numeroso concurso de curiosos pagãos foi em seguimento dela. No cortejo imperial iam Agripina, Lucusta; entre a multidão, porém, mais de longe, foram os Pudentes, Cláudia, as libertas. Prisca ia adiante com passo firme, com o rosto e olhos elevados ao Céu; tanta luz se irradiava em torno dela, que parecia um Serafim do Paraíso, e atraía o amor de todos. Entrando no vestíbulo do altar, prostra-se perante o ídolo, eleva os braços ao Céu, exclama em alta voz, para que todos a ouvissem: – Glória Te seja dada, excelso Pai; invoco-Te, suplico-Te; atira no chão este ídolo imundo e surdo; porque é de barro, e enlameia quem nele espera. Deus meu, atende à pobre pecadora, para que este imperador conheça que é vã a esperança que deposita em seus ídolos, e que não devemos adorar outro Deus senão a Ti. (Act. da Martyr.).



Prisca não tinha ainda acabado esta oração, quando a cidade começou a tremer, o templo a abalar-se, de modo que se desmoronou a terceira parte dele, esmagando os curiosos pagãos. O ídolo caiu e fez-se em pedaços. Agripina e Lucusta fugiram. Cláudio também queria fugir, porém, Prisca o segurou pelo manto de púrpura: – Onde ides, Imperador? Ficai, pedi auxílio ao vosso deus. Não vedes que ele consiste em barro feito em pedaços? Pobrezinho! Convém reunir-lhe os membros. Ele não vê seus sacerdotes esmagados? Por que não os socorre?

Então, o Demônio que estava dentro do ídolo o abandonou gritando.

Ó Virgem Prisca, serva do grande Deus que está nos Céus, observadora de seus Mandamentos, tu me privas da minha habitação! Permaneço há sessenta e sete anos neste templo, doze sob o reinado de Cláudio.2 Nenhum dos outros Mártires me desterrou: eu tinha aqui noventa e três espíritos cruéis, e os governava, ofereciam-me diariamente cinquenta almas de homens. Ó imperador perseguidor dos Cristãos, apareceu uma alma santa que aniquilará com desprezo o teu império. Desta forma uivando, gritando, lamentando-se muito, voou e foi visto por todos na forma de horrível espectro, espalhando pelo ar negras nuvens.

O imperador por causa do medo, da aflição e ameaças do Demônio, saiu fora de si, e furioso gritou aos guardas: – Esbofeteai essa sacrílega, quebrai a boca dessa mágica. – Dois soldados a seguraram pelos braços, e conservando-a imóvel, começaram a esbofeteá-la com grande ímpeto e crueldade em todo o rosto. Foi este o primeiro e cruel tormento da pequena Virgenzinha. Enquanto lhe batiam com tanta força os dois verdugos, um de um lado e outro de outro lado, dando-lhe grandes bofetadas; ela não soltou um grito, não derramou uma lágrima, antes sorria, porém, sua delicada pele não inchou, nem deitou gota de sangue; os que assim a maltratavam começaram a gritar gemendo: – Benigno imperador, tende piedade de nós. Ela está ilesa, e nós pecadores padecemos a dor. – Porém, o imperador aumentando sua indignação, mandou que fosse mais asperamente espancada. Prisca agradecendo a Deus, exclamou: – Bendito sejas, Senhor Jesus Cristo, que dás a eterna graça aos que em Ti creem. – Enquanto fazia esta prece foi rodeada de fulgurante luz, ouviu-se do Céu uma voz que disse: – Filha, confia, não temas, por que Eu Sou o Deus que adoras e invocas, e não te abandonarei eternamente.

O imperador presenciando estes prodígios, ouvindo aquela voz, julgando tudo efeito de arte mágica, ficou furioso e ordenou que Prisca fosse algemada e encerrada em cárcere.

Todas as prisões são certamente medonhas e horríveis, especialmente as secretas, porém, as de Roma naquela época eram extremamente terríveis. Para dar ideia delas, bastaria recordar o que acima dissemos, que Messalina para induzir Pompeia a suicidar-se, bastou fazer-lhe conhecer o horror dos cárceres a que seria condenada. Os cárceres eram nos subterrâneos, sem vislumbre de luz, cercados de paredes grossas e negras, com pavimento úmido, enlameado; aterra só imaginar semelhante calabouço. Para acréscimo de mal, havia grilhões, cepos com que se oprimiam os prisioneiros, havia insuportável odor fétido; a qualidade e escassez de alimento e incômodo da postura forçada, completavam o padecimento. Se semelhante cárcere causaria espantoso horror a qualquer um, quanto mais a uma dama, antes, menina, e menina nobre, criada com todas as comodidades em vasto palácio, habituada a residir em douradas câmaras, a deitar-se em fofos colchões, com qualificadas servas para a vestir e adornar? Quem, ouvindo o estridente som da férrea porta nos pesados gonzos, vendo-se sepultado naquelas espessas trevas, sentindo oprimir-lhe as mãos e pés pesados cepos, duros grilhões, vendo que está fechado com cadeados, e achando-se só nesta medonha sepultura, não soltará gritos, não desmaiará e cairá morto?

Oh! Poder da divina graça! Heroísmo dos primeiros cristãos! Aquela menina entrou serena na prisão, como outra iria a um convite ou dança; quando ficou só pôs-se a cantar e a bendizer ao Senhor, esperando o amanhecer do dia, para ir sofrer tormentos e morte!

Agripina voltando a si do susto que tinha tido, e solicitada pela infernal Lucusta, foi falar com Cláudio: – Vedes como esta menina foi seduzida? Vós estáveis prevenido contra os Hebreus? Os Cristãos são os verdadeiros mágicos, se não os exterminais, vosso império e vossa vida estão perdidos. Cumpre empregar todos os meios para converter esta menina, mas se permanecer obstinada, convém dar um exemplo a Roma e não atender que Prisca é nossa parenta; ela é blasfemadora de nossos santos Numes, derrubou com seus encantamentos o ídolo de Apolo e seu templo, matou os sacerdotes e muita gente. Semelhante insulto feito a nossos Numes, afronta expressa feita à majestade imperial, chamada de propósito para espectadora do sacrílego atentado e dos encantamentos, exige reparação, castigo, vingança; sirva o sangue da maléfica e sacrílega mágica de expiação de tais horrores! O povo a reclama, a exige, e vós correis grave perigo se a recusardes.

Esta última razão, mais do que os sacrilégios, convenceu Cláudio, e lhe causou grande furor. Por isso, na manhã seguinte, disse aos guardas:

Trazei a minha presença aquela encantadora e perversa Prisca, para ver se renova os feitiços.

Quando ela chegou disse-lhe:

Prisca, faze a minha vontade, sacrifica aos Numes.

Tu, o mais celerado dos homens! Respondeu Prisca, filho do Demônio, teu pai, não pões fim a tua perfídia? Não te envergonhas de ser vencido por uma menina, e por ela zombado? Jamais conseguirás que eu sacrifique a teus ídolos!


Agora começa a catástrofe, e os tormentos mais temidos por Prisca iam ser-lhe impostos! O imperador indignado com esta resposta, ordenou que a despissem, e nua a flagelassem cruelmente.3 Muita gente assistia a este espetáculo, e entre esta os Pudentes, Cláudia e as libertas.

Ouvindo este cruel anúncio, Prisca corou, o que a fez parecer ainda mais formosa. Porém, os verdugos ouvindo o feroz preceito, atiraram-se sobre ela como abutres e gaviões sobre cândida pomba, arrancaram-lhe todas as vestes, e nua a amarraram com os braços para traz, a uma coluna que estava no meio do pátio do palácio imperial, entre as zombarias e escárnios da população. Os lictores escolheram os feixes de varas, e arregaçando as mangas até o cotovelo, para serem mais ágeis, dois de um lado e dois de outro, se desvelaram na carnificina, uns nas costas, outros adiante, ferindo-a sem piedade.


Prisca não temia os flagelos, mas sim a nudez, mas felizmente, lembrou-se que semelhante vexame havia padecido por ela seu Esposo Jesus, e que na mesma posição havia Ele estado. Deus a socorreu também, permitindo que seu corpo nu aparecesse tão cândido e refulgente, que cegava a vista, e ninguém o podia profanar com impudicos olhares. (Act. da Martyr, cap. II, nº 7.)

Aos primeiros golpes das varas os tenros membros se inflamaram, ficaram lívidos, com a continuação rebentou o sangue virginal, e começou a tingir as varas, a salpicar em redor da vítima, e a correr em rios no chão; ela em breve ficou revestida de púrpura, sem que o sangue amortecesse a luz. O povo furioso uivava, gritava, batia as mãos4 e exclamava: – Dai, dai com força, lictores, atormentai essa malvada.Prisca no auge do tormento pediu auxílio a Deus e exclamou: – Minha voz a Ti se eleva, ó Senhor, acode-me na batalha de meu martírio.

O imperador ouvindo isto disse: – Prisca, esperas seduzir-me com teus encantamentos?

Teu pai Satanás, replicou a Virgem, é o príncipe de todos os maléficos, o amador dos fornicários, e o protetor dos perversos.

Os verdugos tinham suspendido a flagelação, porém, o imperador mandou que com mais crueldade continuassem. Ouvindo a ordem feroz renovaram-se os golpes, e não havendo já parte sã naquele corpinho, aprofundaram-lhe as feridas. Prisca rindo e escarnecendo disse: – Ó injusto, ímpio, inimigo de Deus, inventor de maldades, não observas em mim os prodígios do Senhor? Me pareces louco!5

Enquanto Prisca era assim espancada, apresentou-se ao imperador, Limanio, seu parente e disse: – Esta criatura não sofre a pena para glória dos Cristãos e de seu Crucificado, mas pelas suas artes mágicas. Não vedes que resplandece como o sol, e os verdugos falham os golpes? Eu vos aconselho para estorvar estes encantamentos, que a mandeis encerrar no cárcere, e amanhã antes de começar o castigo, a façais untar com banha. Agradou o conselho, e Cláudio ordenou que assim se fizesse. Desligada Prisca da coluna, correu como se saísse de odorífero banho e rapidamente se vestiu. Vestida se entregou nas mãos dos algozes e disse em alta voz:

Dou-Te graças, meu Senhor Jesus Cristo, e imploro Teu auxílio. Defende-me, Senhor, deste celerado e impuro Cláudio, que despreza Tua bondade.6

Por mercê divina Prisca em um momento sarou, de forma que não sentia dor alguma, não se via em seu corpo sinal de pisaduras e feridas. Por isso, aquele dia e a noite seguinte não fez senão cantar no seu cárcere; seu jubilo e alegria eram tão grandes, que não os podia conter. Os carcereiros que a escutavam, não julgavam que ela estivesse só, mas que havia um coro de muitas vozes.

Depois da meia-noite, Prisca ouviu ruído de gente, seu virginal pudor a fez estremecer; chorando interrompeu seus cânticos, e prostrada começou a orar do fundo do coração, com suspiros e gemidos suplicou a seu celeste Esposo, que a salvação da desventura de ser atacada sua virgindade, que de preferência lhe mandasse a morte e lhe fizesse sentir os mais desapiedados e horríveis martírios. Ela conhecia as leis e costumes nacionais, e sabia o que a esperava, se Deus a não amparasse com um milagre.7

Naquela noite, serena brilhava a lua. A escolta viu descer do Viminal sete vultos embuçados em seus mantos, por que se estava em meado de Janeiro, e naquela hora soprava o vento boreal de Roma, que gelava a respiração nos lábios e o sangue nas veias. Dos vultos, cinco tinham aspecto feminino e os outros, masculino, ainda que fosse difícil distingui-los, por que além de terem a cabeça envolta em pano fino, iam mui juntos uns dos outros, tinham andar suspeitoso, menos os dois primeiros que iam adiante com o rosto descoberto, observando todo o desvio e cruzamento do caminho, dirigiram-se para o cárcere Mamertino, buscando os atalhos mais solitários. Chegando à prisão pararam, e a mais moça das damas foi adiante, e mandou chamar o carcereiro, enquanto misteriosamente lhe punha na mão uma moeda de ouro, lhe disse alto para que os guardas ouvissem: – Carcereiro, mostrai-me a Prisioneira.

Quem sois vós, senhora, disse ele, apesar de a ter reconhecido, quem vos deu esta faculdade?

Eu sou Cláudia, respondeu claramente a jovem dama, a filha do Imperador; e tenho as licenças precisas.

Entrai, senhora. Guardas, deixai-a passar e ficar em liberdade com a Prisioneira. Estas quem são?

São minhas amigas e as libertas. O frio é tanto que se precisa estar embuçado. – Disse isto Cláudia para disfarçar os homens que trazia consigo, os quais estavam embrulhados até a cabeça. Quanto ao carcereiro não havia perigo, por que o ouro lhe havia obscurecido um pouco a vista, para não discernir homens de mulheres, mas o perigo estava nos guardas, que podiam ter recebido ordem de Agripina para vigiar a Prisioneira, a fim de descobrir os outros Cristãos. Eram eles que faziam na escada o ruído que aterrou Prisca. Terror que chegou ao maior auge, quando ouviu abrir a porta, e à pouca luz de uma lanterna viu entrarem aqueles vultos, e ainda mais quando dois deles sem pronunciar palavra, correram a abraçá-la e beijá-la. Então, Prisca soltou um grito:


Oh! Deus salvai-me! – Seu susto durou um instante e se transformou na mais doce alegria, quando aqueles vultos e outros três adiantando-se para abraçá-la, levantaram o manto do rosto. – Ah! Prisca! Valente Mártir de Cristo! Exclamaram, não nos conheceis? Pela voz e vista conheceu Praxedes, Pudenciana, Cláudia e as duas libertas, Doralice e Ervina. Prisca as abraçava e beijava de novo, depois se afastou um pouco delas, e corre com os braços abertos a deitar-se aos pés de um dos vultos, que tinha ficado atrás encostado à porta, gritando: – Ah! Padre! Como mereci eu a honra e a caridade que vos fez expor ao incômodo e perigo de visitar neste imundo cárcere vossa pobre filha?8 Nossos leitores não precisam que lhes digamos que era o Pontífice Lino, e o outro o Senador Pudente. Antes desejaram saber quais fossem os colóquios das amigas e de Prisca naquela longa noite de inverno. Bem quisera comprazer aos meus leitores, mas há coisas mais fáceis de imaginar do que de expressar para quem está familiarizado com a história daqueles felizes tempos. Prisca estava solta das cadeias por que um Anjo do Céu lhe as havia quebrado. Ela não tinha feridas para lhes mostrar e dar a beijar,9 pois como dissemos estava sã; as amigas só puderam beijar suas cadeias e vestes. As senhoras expandiram seu amor, ternura, compaixão, deram-lhe os parabéns por seu heroísmo e prodígios que alcançara de Deus, e pela sua feliz sorte de ser a primeira em Roma que sofresse o martírio. Tinham mil coisas que perguntar-lhe, se tinha padecido muito, se a flagelação era um grande tormento. Mas a esta última pergunta respondia por ela Ervina:

Oh! Eu posso dizê-lo por que a experimentei.

Não Ervina, não pensas bem, tu quando foste flagelada não foi por amor de Cristo. Eu te asseguro que não é como dizes. Eu sofri um grande suplício, mas não foi a flagelação. O martírio, o suplício foi a nudez. Afirmo que me sentia morrer, parecia-me que ao mesmo tempo, que as vestes me arrancavam a pele e também os ossos e as entranhas. Isto, isto é tormento, quanto aos flagelos, asseguro-te, minha cara, que nunca senti tanta alegria em minha vida, como na ocasião em que levava os açoites e via correr o sangue pelo corpo abaixo. Não se deixa de sentir a dor; porém, a divina graça e a lembrança de padecer por amor de Jesus, suaviza de tal modo a dor, que se tem pena quando os algozes cessão.10

Bem-aventurada és, Prisca! Por que começaste a tua questão e fizeste a confissão. Já estás inscrita no bem-aventurado Livro dos Mártires de Cristo! Nós não merecemos tão ditosa sorte. Que doce consolação terá nosso bom Pai, quando souber teu Martírio! Diziam as duas irmãs, continuando a abraçá-la e beijá-la, derramando ternas lágrimas; o mesmo dizia e fazia Cláudia.

Viste-nos entre a gente?

Sim, eu os vi, e senti grande conforto11 com vossa presença: peço-vos que continueis a acompanhar-me, que Deus vos recompensará.

Lino com grande doçura e majestade lhe dizia: – Minha filha! Começaste bem, é preciso continuar, pois não é quem começa, mas quem continua até a morte, que há de alcançar a coroa.12 Não convém contentar-nos com uma só agressão, (martírio) feita ao inimigo,13 mas é preciso abatê-lo e aniquilá-lo. Nos outros combates vence-se e triunfa-se matando o inimigo, neste vence-se morrendo. Somente assim serás vencedora e alcançarás a coroa de verdadeira Mártir. Não te julgues segura enquanto vives. Sobejas astúcias empregará o inimigo para seduzir-te; não lhe faltam artifícios, lisonjas, promessas. Se estes ardis forem em vão, ainda não confies em ti. Buscará novos e mais horríveis tormentos, mostrar-te-á os mais pavorosos instrumentos de sua crueldade. Não te há de matar de uma vez, descobrirá torturas que lentamente te façam sentir excessivas dores sem te acabar a vida. Porém, não desespere, tem confiança em Deus, vencerás e serás coroada; se a tiveres em ti própria, estarás perdida. Anima-te quando estiveres no meio dos tormentos, pensa que a Igreja observa se combates dignamente pela Sua causa, se és Sua digna filha. Os Anjos te acompanham e assistem com espanto e admiração. Se enfraqueceres entre os martírios, recorre à oração, e recobrarás esforço, pois o Senhor te ajudará. Se tiveres repugnância e horror aos tormentos, levanta os olhos ao Céu, contempla a glória e delícias que te esperam. Este horrendo cárcere é a antecâmara do Paraíso; as catastas, os ecúleos, as torturas são os degraus dele, as mãos dos algozes recamam a veste nupcial da alma; as gotas de sangue que te fazem derramar, sãos as pérolas, os brilhantes, o ornato de tuas vestes, de teu corpo, tua coroa.14 Basta por ora minha filha, se continuar tua paixão voltaremos de novo. Por enquanto alivia, fortifica um pouco teu corpo com a bênção que te trazemos.15

Doralice descobriu uma cestinha que trazia na qual as Pudentes e Cláudia tinham colocado boa ceia e um frasco de vinho generoso, e outro de límpida água. Não havendo cômodo algum naquela horrível prisão, as libertas se puseram de joelhos diante de Prisca, segurando ambas limpa toalha. As irmãs Pudentes e Cláudia rivalizaram em servi-la. A pobrezinha estava em jejum desde que fora presa. Não queria aceitar aqueles serviços, mas o Pontífice lhe fez sinal que os recebesse para contentar a devoção das amigas; e lhe aconselhou que se confortasse com algum vinho. Ele benzeu a mesa; Prisca fez o sinal da Cruz, rezou uma oração, e alegremente comeu, conversando entretanto como se estivesse na véspera de suas núpcias. Depois deu os agradecimentos, guardaram-se os arranjos da refeição, e ela continuou a conversar com a maior indiferença e com afetuoso gosto. Ali não havia relógios e as horas voavam. No melhor da sua doce conversação ouviram sussurro de muitas vozes e bulha pela escada, e retinir de chaves. Assustaram-se vendo-se surpreendidas. Aberto o cárcere, entrou adiante o carcereiro dizendo-lhes que por ordem do Imperador se devia dar um tormento à Prisioneira, antes de a conduzir à sua presença apenas amanhecesse; que dependia deles saírem ou serem espectadores. Ele disse isto por que tinha feito acreditar aos verdugos que os visitantes eram parentes da Prisioneira, que a visitavam com permissão do Imperador. As donzelas empalideceram ouvindo estas palavras e tiveram o coração repartido entre o desejo de assistir à Mártir, e o terror de a ver torturar. Prevaleceu o primeiro sentimento, por que o Pontífice respondeu, que sendo possível ficariam; não houve quem se retirasse. Afastaram-se todos para um ângulo da prisão a fim de presenciarem aquela dolorosa cena.

Entraram dois escravos, um deles trazia um braseiro cheio de carvões acesos, o outro uma grande panela com uma vasilha de banha e betume, e junto dele dois algozes. Os escravos deposto o braseiro, e tendo encima a panela, a encheram de banha, e tiraram do cinto duas pás. Um dos algozes voltou-se para Prisca, enquanto os escravos assopravam as brasas e faziam derreter e ferver a banha, disse-lhe o bruto:

Malvada feiticeira, despe-te ou nós te despiremos. Queremos estorvar teus malefícios e encantamentos.


Prisca, contra a vontade, teve que obedecer a esta ordem, para que não lhe tocassem aqueles perversos, e considerou como grande ventura a presença de suas visitas. Apenas despida fizeram-lhe sinal que se deitasse perto do braseiro; ela obedeceu e um dos algozes começou a derramar-lhe sobre o corpo a banha fervendo, enquanto outro espetando em um pau uma grande esponja se pôs a esfregá-la com um pincel molhado na banha, e assim lhe queimava o rosto, as mãos, as extremidades dos membros, onde não podia chegar a banha derramada, para que nenhuma parte de seu corpo permanecesse intacta; por isso, depois de untada e queimada de um lado, a fizeram voltar do outro; dando-lhe com a coronha da arma e prendendo-a com um forcado.

Durante este horrível tormento, Prisca não soltou um gemido, não deu um só grito, somente no íntimo do seu coração se recomendava ao Senhor, volvendo os olhos ora para o Céu, ora para os piedosos espectadores. Nenhum deles ousava mover-se, porém, as senhoras choravam muito, cobrindo-se, para que não lhes vissem o rosto. Acabado o martírio, partiram os escravos e verdugos com o carcereiro; Prisca levantou-se, como se não lhe tivesse acontecido nada, semelhante a quem desperta do sono, e correu para se vestir; mas as libertas quiseram ter a consolação de lhe prestar este último serviço. Elas pensavam achar Prisca reduzida a uma chaga viva, coberta de pústulas e queimaduras. Qual foi seu espanto, quando a viram sem vestígio algum do martírio! Não podiam compreender semelhante maravilha, nem acabavam de dar a Deus infinitas graças, por que opera tais prodígios em suas esposas. A aurora ia despontar; as amigas se separaram de Prisca, abraçando-a de novo e derramando sentidas lágrimas de ternura, ela se recomendou as suas orações e disse-lhes que as esperava no dia de seu combate, e se estivesse viva, na noite seguinte. Responderam-lhe todos que sim.

Limenio, apenas nasceu o sol, desceu ao cárcere e perguntou aos verdugos se tinham cumprido suas ordens, eles responderam que sim, não tendo deixado intacta a mais pequena parte do corpo da Prisioneira, da cabeça aos pés e mãos.

Mas de que procede este perfume de precioso bálsamo que tendes em vós? Replicou Limenio, por acaso a untastes em vez de banha com unguentos?16 Nós a ungimos com banha, responderam, e fervendo. Como se assava aquela tenra carne! Uma só gota que tivesse caído num pé ou braço, faria blasfemar e gritar; em vez disto, ela sentindo derramar esta matéria inflamada em seu corpinho de leite, ria-se, como se fosse bálsamo! Vós dizeis que ela é feiticeira, mas nós pensamos que é muito amada dos Numes; este perfume que sentis rescende de seu corpo nu, não das vestes que não tinha, e estava deitada de costas; perfume que dela se nos comunicou, apenas a tocamos para melhor untar.

Ela é uma feiticeira, uma blasfemadora, e vós, estúpidos, dizeis que é amada dos Numes!

Será! Porém, o carcereiro e guardas afirmam que a Prisioneira toda a noite falou com os Deuses e cantou com eles? O que significa haver sido ontem tão cruelmente flagelada, e esta noite ter os membros sãos? Por que motivo a banha fervendo não só não lhe fazia chagas, mas não privava aquele corpo de sua alvura de neve, apesar de a termos sujado com as imundícies do cárcere?

Bem, bem, vereis, vereis?

Correram em fileira os satélites ao cárcere, pressurosos por vê-la. Ao abrir a porta são deslumbrados por vivíssima luz, e veem Prisca sentada em imperial trono, rodeada e cortejada por infinita multidão de Anjos em forma humana e apresentando-lhe uma tabuleta em que estava escrito:

Quão gloriosas são tuas obras, ó Senhor! Tudo fizeste com suma sapiência.

Limenio correu ao Imperador a narrar-lhe o sucesso. Este talvez cedesse; porém, Agripina o repreendeu dizendo-lhe que não devia deixar-se vencer por uma mágica, e ordenou que a trouxessem à sua presença.

Chegaram os satélites ao cárcere e acharam Prisca na mesma posição, enquanto eles se esforçavam por derrubar aquele trono, ela cantava: – Corri pela vereda de tua lei; ensina-me tuas justificações, para eu celebrar as maravilhas de tua Divindade. Livra-me do suplício dos homens para que eu guarde teus Preceitos.

Ditas estas palavras, desapareceram os Anjos e o trono, e ela se entregou nas mãos dos soldados, que a levaram à presença do Imperador. Prisca conservava resplandecente o rosto e estava mais bela do que nunca; o miserável Cláudio julgou isto um prodígio de seus deuses e lhe disse:

Tu te converteste, Prisca? Estás decidida a sacrificar a nossos Numes?

Sem dúvida, Imperador, minha conversão é perfeita, embora te empenhes em perverter-me. Eu estou isenta de tua vaidade, impiedade, das loucas seduções do século, abraçada com meu Deus. Por isso, o meu bem consiste em pôr em Deus minha esperança, a qual é a verdade que não me pode faltar. Tuas sedutoras palavras são semelhantes a tenebrosos dardos que se cravam na terra. Eu desejo a morte dos Santos, que me patrocinam, e encadeiam o Demônio que é teu pai!

Prisca! Clamou irado o Imperador, não continues a escarnecer de mim, vai ao templo e sacrifica.

Queres que eu vá ao templo?

Sem, se não queres ser pasto de feras.

Com a graça de meu Deus irei de boa vontade.

O cego Imperador ainda não ensinado pela primeira ida de Prisca ao templo, jubiloso a quis acompanhar. Mas o Demônio que via as coisas em esfera mais ampla, começou a gritar: – Ai de mim; para onde fugirei de tua ira, Deus do Céu? Uma chama me rodeia dos quatro ângulos do templo.


Prisca depois que entrou fez o Sinal da Cruz, e fazendo um aceno ao ídolo, disse ao Imperador: – Vede a ilusão; tem olhos e não vê; tem ouvidos e não escuta; tem mãos e não apalpa; tem pés e não anda; só tem fingida e adornada aparência esta estátua. Queres, Imperador, que eu lhe ofereça sacrifícios?

O desassisado (sem juízo) Cláudio não compreendendo esta linguagem, respondeu: – Sim, querida Prisca, vivam os Deuses que te moveram a comprazer-me.

Riu-se Prisca de tanta estultícia, e voltando-se para o ídolo exclamou: – Ó espírito mudo e surdo que habitas neste ídolo, eu te ordeno, sai.

Deus e eterno Rei, continuou elevando os olhos, que criaste o Céu, fundaste a terra, criaste as águas, desterraste o Dragão, suplico-Te, Senhor, que agora não me desampares, antes acolhendo minha prece, destruas este ídolo, feitura do homem, diabólica sedução, e faças conhecer a Cláudio, impregnado de malícia, pela força dos castigos, que Tu só és bendito em todos os séculos. Assim seja.

Imediatamente soou medonho trovão, e caiu fogo do Céu que abrasou todos os sacerdotes do ídolo e a multidão dos pagãos que tinham entrando por curiosidade no templo. Uma faísca caiu no manto de púrpura do Imperador, e o queimou do lado direito. O ídolo ficou reduzido a cinzas, apesar de ser de metal.

Glória a Deus nos Céus, e paz na terra aos homens de boa vontade, cantou alegre Prisca.17

Não se pode descrever o terror de Cláudio e sua raiva! Mandou chamar o Prefeito do Pretório e lhe disse gritando: – Tira-me daqui esta mágica, e faze-lhe despedaçar todo o corpo, até que acabe a vida; por que eu já não sei o que hei de fazer dela.

O Prefeito a prendeu cruelmente e a levou ao tribunal. – Venha, disse, esta destruidora dos templos, para que saiba seu destino.

Prisca entrou rindo; o Prefeito vendo isto, gritou: – Escarnece de mim por que te poupei a vida? Mas juro-te por este resplandecente sol que se não sacrificares, farei os cães comerem tuas entranhas, e veremos se teu Cristo te salva.

Ímpio, exclamou Prisca, não tenho motivo para rir-me do poder de teu grande Imperador que, pela Onipotência de Jesus Cristo, foi vencido por uma menina, e agora reclama teu auxílio?

Ele é meu senhor, replicou o Prefeito, e tem o direito de ordenar-te que sacrifiques aos deuses ou pereças.

Eu não sacrifico, ouviste? Faze-me experimentar todas as torturas que quiseres.

O Prefeito mandou que a despissem, deitasse no tablado, lhe ligassem as mãos e os pés, e lhe cortassem todo o corpo com agudos ferros. Durante este tormento, enquanto lhe cortavam a carne, exclamou:

Meu Senhor Jesus Cristo, ajuda-me, em Ti espero. Não bastou semelhante suplício e as torrentes de sangue que rebentavam de mil feridas e inundavam a terra, pois vendo-a ainda viva, não só viva, mas rindo-se, o Prefeito furioso mandou que assim como estava, lhe fossem dilaceradas as carnes até os ossos e as entranhas com unhas de ferro. Estremecimento de horror comoveu o povo à vista de semelhante carnificina feita em uma menina; os cristãos estavam inconsoláveis. Então, os algozes pararam, julgando que a vítima já estivesse expirado, porque não a ouviam respirar, e tinha os olhos levantados para o Céu, mas imóveis e arregalados. Soltaram-na das cordas, mas qual foi o espanto dos verdugos vendo Prisca levantar-se do chão perfeitamente sã! Tendo o corpo alvo e rosado, sem cicatrizes, nem sinal de sangue, buscando cobrir-se o melhor que podia, e soltando as longas madeixas para que suprissem as vestes.18 Com esta vista o Prefeito ficou furioso e mandou fechar o cárcere. Depois foi visitá-la e a viu de novo em seu trono imperial, cortejada pelos Anjos, com o rosto radiante semelhante ao sol. Muito aflito com este espetáculo selou com seu anel a porta para que ninguém entrasse, e pôs-lhe de guarda cinquenta soldados escolhidos, receando talvez que fugisse, e partiu a cavalo para falar ao Imperador. Este, estupefato, vendo-o, – Para que vieste? lhe perguntou. – Para referir-vos a execução das ordens recebi. Quem é aquela mágica que me entregastes? Eu muito a atormentei fazendo-lhe cortar a carne, e dilacerá-la com unhas de ferro. Julgava-a morta com os primeiros cortes, porque é uma débil menina, e os ferros agudos penetravam em seu corpo como em um favo de mel. Porém, ela permanecia indiferente, como se o corpo atormentado não fosse seu, ria-se e escarnecia de mim; e não conserva em si vestígios dos tormentos. O que quereis que faça dela?

Se vedes que espera ainda o fruto de seus encantamentos, entregai-a as feras que a despedacem.

Naquela noite Prisca ficou só, pois ninguém teve licença para visitá-la, por que a porta do cárcere estava selada e bem guardada. Mas o piedoso Deus supriu a falta dos amigos. O calabouço se havia transformado em uma corte, antes num Paraíso. Viva e serena luz resplandeceu em redor de Prisca; um Coro de Anjos a acompanhou, e ela cantou sem cessar os louvores do Senhor.

Na seguinte manhã, foi de novo levada ao Prefeito sentado em seu tribunal.


Disse-lhe: – O Imperador te ordena que sacrifiques aos Numes, e se não o fizeres te condena a ser tragada pelas feras.

Qualquer alma ainda que fosse enérgica havia de se perturbar com esta alternativa; mas Prisca, resplandecendo de novo a modo de sol, intrépida respondeu: – Em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, que sofreu por nós que cremos nele, e reina na glória, espero vencer-te.
O Prefeito muito indignado escreveu ao Imperador que se dignasse de vir ao anfiteatro. Ele aquiesceu ao convite.

Prisca entrou despida envolta em uma rede.

Observai, disse ela ao Imperador, o meu sacrifício.

Havia um feroz leão que devorava todos os dias sete ovelhas, e havia quatro dias que estava em jejum. Rugia a fera cruel dentro da gaiola, todos no anfiteatro tremiam de medo; somente Prisca que estava no centro deste amarrada a um poste, exposta a ser devorada, não mudou de semblante.

O próprio Imperador estava bastante triste, e começou a exortar a Prisca para que obedecesse, assegurando-lhe que a amava muito.


Mas ela sem lhe dar resposta, voltou-se para Deus: – Senhor, que tens manifestado a glória da Tua Divindade, e coroaste Teus Santos, ampara-me! Assiste-me neste combate. Voltou-se para o Imperador:

Miserável, exclamou ela, considera que eu prefiro ser devorada por uma fera, e assim gozar a glória que Jesus Cristo me prometeu, a obedecer as tuas ordens sofrendo eterna morte.

Então se ouviu no Céu terrível voz que promoveu pavor nos circunstantes; mas o Imperador ordenou que se soltasse o leão.

Achando-se livre e vendo ante si a presa, rugindo e tremendo foi aos saltos, sacudindo a juba. Os Pudentes, Cláudia, as libertas cheios de terror e compaixão cobriram o rosto, pensando que a vítima seria tragada com duas dentadas. Depois ouvindo altos gritos e ruído no anfiteatro, viram a fera com as patas de diante curvadas, a cabeça inclinada, parece que em adoração perante a Mártir, abrir as horrendas fauces, e suavemente lamber-lhe os pés, sem ter a ousadia de levantar os olhos para não ver sua nudez.

Ouviram Prisca em alta voz exclamar: – Senhor, faze-me a mercê de falar a Cláudio; meu Deus, salva-me a vida!

Vê, Imperador, que Jesus Cristo criou o Céu e a terra, e todas as coisas, pela vontade de seu Pai, e me fez vencedora de todos os tormentos e das feras a que me entregaste.

Porém, Cláudio, obstinado e louco lhe respondeu: – Humilha-te aos nossos Deuses; foram eles que te defenderam.

Eles, responde Prisca, nem a si próprios sabem salvar-se! Foi Jesus Cristo, por cujo amor sofro o martírio, que me salvou.

O Imperador ordenou que se guardasse a fera, mas esta se vingou devorando um parente do Imperador, talvez Limenio, autor do ímpio conselho, que tão penoso martírio fez a Santa padecer. Mandou Prisca para o cárcere, ela ia cantando pelo caminho: – O Senhor me guarda dos laços que me armaram, e do escândalo dos celerados.

Prisca esteve sossegada três dias no cárcere, e nessas noites foi visitada e consolada pelas amigas e pelo Pontífice.

No quarto dia, o Imperador ordenou solene sacrifício, e fez vir Prisca ao vestíbulo do templo: – Disse-lhe, acredita-me uma vez e sacrifica a nossos Numes.

Eu sacrifico, respondeu ela imperturbável, eu creio em meu Senhor Jesus Cristo.

Irado o Imperador ordenou que estando ele presente e diante da multidão, trouxessem os instrumentos de martírio. Ordenou que de novo despissem Prisca, a deitassem no ecúleo, e fosse dilacerada com escorpiões. Porém, Deus renovou o milagre, e ela apareceu resplandecente, refulgindo de modo que ninguém podia vê-la.

Foi amarrada fortemente pelas mãos e pés que se deslocaram, a tortura foi tão violenta que se ouviram estalar os ossos, rebentar os nervos e desunir as juntas. No paroxismo da dor a vítima não podendo já resistir começou a orar ao Senhor com voz terna, que teria enternecido um tigre. Porém, não aqueles dragões, que tendo-a assim estendida, veio um verdugo de cada lado arrancar-lhe e dilacerar-lhe a carne, de tal modo que em muitas partes do corpo se viam os ossos nus, as costelas e as entranhas descobertas. Chovia o sangue em rios, e já tinha formado uma poça. A Mártir se recomendava ao Senhor e dizia: – Fizeste que eu cumprisse tua santa vontade, sou obra de Tuas mãos, e exultarei em Teus juízos. Ó Senhor, verdadeira e eterna luz, socorre-me, por que sinto a ponta do agudo ferro penetrar em meus ossos.

Ainda não tinha acabado de falar quando os carrascos gritaram. – Imperador! Salva-nos deste castigo! Somos atormentados pelos Anjos. Ouvindo isto, o Imperador que Prisca fosse queimada viva. – Para o fogo a mágica! Para o fogo! - Clamou Agripina e com ela a multidão dos pagãos. Num instante se aprontou a fogueira; elevaram-se altíssimas chamas; Prisca foi solta da catasta, mas presa com um forcado pelo verdugo, foi atirada no meio do incêndio. Nesta ocasião a Mártir clamou em alta voz: – Senhor, que do Céu observas se alguma criatura na terra é fiel a Deus, socorre tua serva. – Então, as chamas se dividem e a recebem como no seio, espalham-se em roda, amontoam-se, e queimam os algozes e os pagãos curiosos, depois furioso vento e grande chuva apagam a fogueira.


O Imperador estava enraivecido, pois uma menina o vencia. Com efeito, ela estava completamente intacta. Ninguém diria que tinha sofrido semelhantes torturas.

Lucusta sugeriu a Agripina, que os encantamentos de Prisca estavam anexos a seus cabelos, em que ainda não se havia tocado, por isso permanecia ilesa. Agripina comunicou esta lembrança a Cláudio, que mandou que a rapassem até a pele da cabeça.

Executando-se esta ordem, Prisca se voltou para ele e lhe disse: – A glória das damas consiste nos seus cabelos, e tu me privas do ornato que Deus me deu? O Senhor também te há de privar do império.


Cláudio a fez entrar no templo, selou a porta com seu anel, e voltou para o paço, esperando fazê-la morrer de fome. Deus não precisa de pão para sustentar suas criaturas. Todos os dias o Imperador e os sacerdotes iam espreitar à porta, e muita gente fazia o mesmo; por que dentro se ouvia dia e noite sem cessar dulcíssima harmonia, suavíssimos cânticos, jamais ouvidos na terra. O louco Imperador dizia às turbas que cogitavam acerca desta novidade, e tinham grande curiosidade de ver o que havia dentro do templo:

Não vos perturbeis, o sumo Jove reuniu aqui todos os Deuses para instruir e converter Prisca. Aquela cega gente o acreditava!19 Roma inteira se interessava e discorria acerca destes desusados prodígios, e cada um os interpretava a seu modo. Simão e Helena não falavam a esmo, por que Lucusta lhes narrava tudo. – Finalmente, dizia o mágico a suas amantes, agora podemos desanimar; estes Galileus nos suplantam. Eles tem arte inteiramente nova; nossa divindade infernal não possui tanto poder. Suportarias, Helena, e tu Lucusta, a milésima parte das torturas que padeceu essa menina? Sofreríeis vós tão bárbara flagelação, ser despedaçadas com pentes de ferro, estendidas nos ecúleos e férreas rodas? Para ser fiel e por amor de nossos Numes vos decidiríeis a suportar a aspersão de banha fervendo? Não morreríeis antes de pavor, estando amarradas a um poste no anfiteatro, esperando o ataque do altivo leão, com as fauces escancaradas, mostrando-vos as agudas garras, e a espumosa língua?

Por piedade, não me digam semelhantes coisas, interrompeu Helena; eu morreria ainda que somente fosse espectadora de semelhantes torturas infligidas a minha maior inimiga. E se fosse eu que padecesse? Não teria vida depois do segundo tormento!

Muito bem! Disse Lucusta com sorrisinho sardônico nos lábios; fiz bem em não te dizer o mais que se passou. Tu és extremamente delicada e terna; tens coração de mel, alma de manteiga; desmaiarias à vista de sangue, feridas, esquartejamentos! Que delicadinha, que adocicada mulher! Por que não te fizeste cristã? Era o melhor partido que tinhas a tomar! É até impiedade ter compaixão destes cães? Pudesse eu vê-los todos como eu vi Prisca! Só te digo que se não fosse eu, não só o estúpido Cláudio, mas a cruel Agripina se teria comovido, enternecido, e nada se haveria feito, e nossa feroz inimiga teria triunfado, ter-se-ia rido de nós, e executado sua vingança. Eu sugeri todos os tormentos de Prisca a Agripina para vencer a mágica e os encantamentos desta malvada. Eu sabia que à semelhança de Sansão, toda a sua arte mágica estava concentrada em seus belos cabelos, e que uma vez raspada a cabeça toda se acabaria, mas não quis revelar este segredo para ter o gosto de a ver atormentar. Ah! Se eu própria tivesse podido atassalhar-lhe a carne, dilacerá-la com meus dentes, com as unhas, fazer correr gota a gota seu sangue, e fazê-la padecer mil mortes antes de a matar! Que prazer sentia eu vendo os garfos de ferro penetrarem no seu corpo, em seu tenro peito, e por fim, chegarem aos ossos e às entranhas, e tirar de cada vez pedaços de carne! Como era grande meu contentamento contemplando as contorções e convulsões de seu corpo, vê-la morder os beiços com a força da dor, o tremor de todos os seus músculos, quando ela estava esticada no ecúleo, sentir estalarem-lhe os ossos! Estes sim, são prazeres dignos de nós, tu não és própria para pertencer a nossa seita.

Helena irritou-se vivamente com estas repreensões e sarcasmos, ficou lívida, e disse-lhe: – Se eu não sou digna de pertencer-lhe e desonro nossa seita, tu nos envergonhas e a teu sexo. És mulher? Não! És tigre, és uma ursa, uma hiena, uma víbora; ou antes, infernal fúria. Jamais se ouviu linguagem tão bárbara, e cruel e tirânica sair dos lábios de uma criatura em cujo peito palpitasse um coração? Em uma palavra, que te fez aquela pobre menina? Quais são seus erros? Se ela pertence à religião do Galileu, que te importa a ti, monstro? Por acaso os sequazes do Galileu trataram tão cruelmente algum dos nossos? Vai para junto das feras, recolhe-te em seus covis, e não apareças mais entre os vivos! Que será feito de nós quando se souberem estas coisas? Não seremos o alvo do ódio e execração de todos? Que conseguiste com teus encantamentos e tua crueldade! Fizeste aquela criatura sofrer inauditos tormentos; e depois? Ela venceu, ela te excedeu: Roma inteira está cheia das maravilhas que ela operou: todos hão de querer seguir sua religião e venerá-la como Divindade. A própria Agripina se irritará contra ti, por que a fizeste atormentar uma sobrinha; ela dirá que sua arte mágica era mais poderosa do que a nossa, serás desterrada do paço, e conosco de Roma. Eis os belos frutos de tua crueldade, monstro infernal!…

Esta é pois a gratidão que me deves? Replicou Lucusta furiosa, é este o galardão que recebo de te haver salvado três vezes do desterro, mulher soberba? Tu gostarias de te relacionar com os nossos inimigos, compadecer-te deles, aderir ao seu partido. Se ocultei o segredo para fazer atormentar aquela inimiga, quando fiquei farta o revelei, e ela vai morrer. Se tive gosto com seus padecimentos, que te importa a ti louca varrida? Sei que não me podes ver, porque te estimula o ciúme; mas eu posso agradar a outros, sem precisar de teu velho Simão! Se não estás satisfeita, procura Agripina, revela meus feitos, acusa-me. Percorre Roma atacando-me! Que me podes fazer, covarde como és? Fezes de prostituição!

A disputa se tornava séria, as rivais já não se contentavam com insultos, agarram-se, arranharam-se, morderam-se como duas víboras ou duas cadelas; porém, Simão se interpôs, as separou, as repreendeu, e gritando disse: – Pelo grande Arquiteto do Universo, não vos enfureçais, não estabeleçais a guerra e a destruição em nossa seita! Vai, minha cara Lucusta, acaba tua obra, tira a vida a Prisca, senão muitos males cairão sobre nós. Helena tem razão. Partilho teu furor, louvo teu zelo, mas é preciso por ora moderação e astúcia.

Fica com tua Helena, velho estonteado, espera que eu torne a voltar! – Partiu raivosa, fazendo caretas a Helena, encarou-a com olhos de cobra, e partiu de corrida com modo ameaçador.

Bem diferentes eram as conversações que havia no Viminal, em casa de Pudente. O Pontífice Lino avisado de que Lucusta e Simão o procuravam e aos Cristãos para os fazer martirizar, ocultou-se nos subterrâneos do palácio, e não aprecia em público.20 Não havia suspeitas acerca dos Pudentes e de Cláudia, por isso, Lino lhes pediu que fossem visitar Prisca, mas sem as libertas, que a acompanhassem nos martírios, e lhe contassem tudo que soubessem e vissem acerca da Mártir; que fizessem diligência, na falta de outro meio, pelo intermédio das pobres, recolhessem todas as gotas de seu precioso sangue, e pedacinhos de carne que lhe fossem arrancados, para servirem de relíquias que os fiéis venerassem.21 Quanta consolação sentia o Santo Servo de Deus, sabendo todas as noites novas maravilhas de sua dileta filhinha! Considerando a emulação e entusiasmo que inspirava tão heroico exemplo às Virgens cristãs! Uma lhe referia os prodígios que Deus fazia para socorrê-la nestes horríveis martírios, salvá-la das chamas e do leão, sará-la em um instante, colocar-lhe os ossos em seu lugar, reatar-lhe os nervos, restabelecer-lhe as juntas, depois que foi desconjuntada pelas torturas; restituir-lhe a carne, pele, e sangue que se lhe tinha tirado, e que havia derramado, recuperar a cor rosada, o viço e frescura da tez. Outra amiga da Mártir elogia sua coragem, expondo-se aos verdugos e torturas, e sua intrépida constância suportando-os. Outra referia ao Pontífice suas sapientíssimas e admiráveis respostas, que confundiam os juízes, espantavam os algozes; narravam-lhe a impressão que estes milagres e virtudes causavam aos pagãos, que fazia esperar que muitos deles abraçassem a fé. Uma tarde Cláudia, pegando em seu cestinho, lhe disse que ia dar-lhe precioso mimo, tirou deste uma garrafinha de sangue ainda espumoso, e lenços ensopados em sangue coalhado, e alguns pedacinhos de carne vermelha, que ainda conservavam sinais dos instrumentos que a tinham dilacerado e arrancado daquele tenro e virginal corpo; dizendo-lhe: – Eis o sangue, eis a carne de vossa filhinha e nossa irmãzinha.

O Santo Pontífice chorou muito com ternura e consolação. Pegando na garrafinha: – Eis o sangue da Protomártir de Roma; eis o primeiro sangue que foi derramado solenemente nesta grande cidade para testemunho da fé e por amor de Cristo; derramou-o uma nobre Virgem, uma tenra menina. Cristo se delicia com este sangue virginal e inocente. Na Judéia, apenas nascido, exige o tributo do sangue dos Recém-nascidos; aqui em Roma, para primícias da fé, para fundar e regar sua Igreja, escolheu o de uma menina. Quão fecundo será este sangue! Quantas almas há de atrair à Igreja, quantas donzelas há de entusiasmar pela virgindade e martírio! Virgens, que me ouvis, presenciastes grande exemplo! Exemplo da proteção divina, exemplo de heroísmo humano. Osculai estas santas relíquias, conservai-as, venerai-as; mas especialmente desvelai-vos na imitação desta vossa irmã.

As virgens pressurosas foram com entusiasmo beijá-las, e em breve mandaram fazer relicários de prata e ouro, que o Pontífice selava, e os punham ao pescoço, como colar, conservando as outras relíquias no Oratório; podemos dizer que foram estas as primeiras relíquias veneradas em Roma. As libertas pediram também uma lembrança de sua cara senhorinha, que graciosamente se lhes concedeu.

Uma noite chegou Cláudia apressada, triste e chorosa; exclamou: – Ah! Padre! Ah! Irmãs! Perdemos nossa Prisca! – Geral pranto acolheu a notícia, mas o Pontífice lhes impôs silêncio:


Cláudia narrai-me sua morte, dizei-me onde está seu corpo, para que o sepultemos com honra. Convém fazer todo o esforço para que não se perca tão caro penhor.

Cláudia soluçando disse: – Eis o que me contou um Tribuno que tinha tomado parte nesta catástrofe. No terceiro dia em que Prisca estava fechada no templo, o Imperador acreditando como dizia que ela se tivesse convertido, ordenou solene sacrifício de touros. Imensa multidão de gente atraída por viva curiosidade de ver a Mártir se reuniu. A multidão se precipitou apenas a porta se abriu, viram no centro do edifício com grande resplendor do Céu Prisca, majestosamente sentada em um trono, cortejada por infinidade de Anjos, semelhantes a mancebos de incrível formosura, e seu Ídolo em terra, reduzido a pó. Extáticos, admiravam todos este prodígio, somente uma mulher teve a ousadia de clamar – Mágica! Encantamentos! Mas, fizeram-na umedecer bem a seu pesar. Sabendo estas maravilhas vieram o Imperador e Agripina; apenas eles chegaram aos degraus do templo desapareceu tudo, e viu-se somente Prisca, risonha, e fulgurante.

Onde está meu Ídolo? Gritou o Imperador; Prisca fez-lhe sinal que olhasse para o pavimento: – Não vedes que está reduzido a cinza?

Cláudio não se comoveu com tais milagres? Perguntou o Pontífice.

Pelo contrário, replicou Cláudia, mais se indignou, e achando que eram em vão todos os tormentos, a condenou à morte, mandando que fosse degolada fora da cidade, em distância de dez milhas da porta ostiense.

Prisca ouvindo a sentença de morte, exultou, alegrou-se extremamente, voltando-se para Deus, exclamou:

Senhor Jesus Cristo, libertador de todos, eu Te adoro, Te suplico, e invoco. Tu, que até agora me livraste de tantos tormentos, meu Senhor Jesus Cristo que não fazes distinção de pessoas, salva-me! Livra-me de tantos males que me cercam, e faze que agora eu seja levada à Tua Glória.

Voltando-se para os algozes disse-lhes: – Onde vos ordenam que me leveis?

À distância de dez milhas da porta ostiense.

Bem; vamos.

Prisca tinha as mãos presas com longa cadeia, cujas pontas seguravam os verdugos. A jornada era longa; e ela nunca a tinha feito a pé; era débil, delicada; caminhava para a morte! Todavia, corria adiante dos algozes, puxando-os com a sua cadeia, e zombando lhes dizia: – Mais depressa preguiçosos! Vamos! Vamos! Cantava, dançava, sempre com doce sorriso nos lábios, como se fosse para um sarau ou baile.

Enfim, chegaram ao lugar indicado, e afastando-a um pouco da estrada; a rodearam.

Aqui te devemos matar.

Concedei-me um momento de demora, depois fazei o que se vos mandou.

Prisca se prostrou, levantou as mãos e os olhos ao Céu, fez em voz baixa uma oração; levantou-se, enrolou os cabelos sobre a testa, descobriu o pescoço; ajoelhou de novo, compôs suas vestes sobre os pés, para não se descompor caindo; cruzou as mãos sobre o peito, inclinou a cabeça, esperando alegre e imóvel o fatal golpe. Então, se ouviu uma voz do Céu que disse – Pois, valorosa combateste pelo meu Nome, vem, Prisca, entra no Reino do Céu com todos os Santos.

Um dos algozes, com trêmula mão com um golpe da espada lhe corta o pescoço; a cabeça resvalou sobre as vestes perto dos joelhos, e o corpo pendeu para diante com as mãos abertas, como para abraçá-la.


Ela morreu ontem, 18 de Janeiro, na tenra idade de 13 anos incompletos.

Acrescenta o Tribuno, que os dois verdugos foram fulminados pelo Céu.

Pudenciana e Praxedes, e ainda mais as libertas, choravam constantemente durante a narração; mas o Pontífice: – Não há motivo para chorar, lhes advertiu, mas sim para glorificar a Deus. Felizmente o lugar da morte é remoto, eu o conheço bem. Amanhã muito cedo devemos ir tributar-lhe as honras fúnebres e dar-lhe sepultura; até o dia em que aprouver a Deus recolhê-la em Roma. Esta noite preparai tudo que é preciso.


Raiava a aurora, e começava a alvejar o Céu, quando Lino com Cleto, Clemente, os Clérigos, o Senador Pudente, Praxedes, Pudenciana, Cláudia e as libertas, se encontraram na distância de dez milhas da cidade, na estrada Ostiense. Saindo do caminho, no lugar indicado acharam o corpo da Mártir com duas águias que o guardavam. Lavaram-no, embalsamaram-no e vestiram-no; as senhoras o adornaram com trajes de rainha, e as vestes que ela tinha guardaram para relíquias. No entretanto, os coveiros que se tinham ajustado, abriram a sepultura e depois dos ritos e aspersões, puseram o santo corpo no sepulcro.22



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Fonte: Cardeal Wiseman, “PRISCA – Narração Histórica do Reinado de Cláudio – Primeiro Século da Era Cristã”, Cap. XX - O Martírio, pp. 412-448; traduzido do italiano; B. L. Garnier, Livreiro Editor, Rio de Janeiro, 1879.

1.  Estas anfibologias eram lícitas, e delas temos muitos exemplos nas vidas dos mártires.

2.  Eis uma prova da verdade histórica de nossa narração, Prisca foi martirizada sob o reinado do primeiro Cláudio, no décimo terceiro ano de seu governo, e da vida dela. O Demônio afirma que antes dela houve outros mártires, que nos são desconhecidos; por isso, não erramos em enumerar entre estes, Júlia e Vinícius.

3.  Jussit eam expoliari (Actos da Martyr, cap. II). Já dissemos com os Santos Padres, que este tormento era o mais horrível para as sagradas Virgens. Elas se recordavam de Cristo e recobravam ânimo.

4.  Isto era costume daqueles bárbaros (S. Cypriano, louvor do martírio, etc.) e muito mais dos romanos, habituados aos combates dos gladiadores.

5.  Act. da Martyr, cap. 2, nº XXVII.

6.  Act. Ib., nº 8.

7.  Os Romanos tinham tal veneração pela Virgindade, que não podiam castigar nenhuma Virgem. Para poder condená-la, tinham esta lei, da qual Suetônio e S. Cipriano dão muitos exemplos, – Vitietur, deinde stranguletur in carcere. – Era a fórmula habitual da condenação. Por esta causa as Virgens cristãs, eram arrastadas aos lupanares, que estavam dentro dos teatros...

8.  São Cipriano refere que os cristãos e os Diáconos, iam visitar os Mártires nos cárceres, e para este fim, pagavam aos carcereiros e guardas. Porém, muitos destes foram descobertos e martirizados por esta causa, mas nem por isso desistiam das caridosas visitas, por que em vez de desventura, reputavam o martírio como prêmio. Todavia, os Bispos, que ordenavam estas obras de caridade, recomendavam prudente cautela, não queriam que fossem muitos cristãos de uma vez, nem sempre os mesmos. (Vide o citado S. Cipriano, Carta aos Diáconos.)

9.  Pela grande devoção e reverência que os cristãos tinham aos Mártires, quando os podiam visitar descobriam-lhes e beijavam as feridas. Pela sua parte os Mártires se gloriavam destas, e as mostravam, como as donzelas apresentam suas joias. Santa Flora assim fez com seu Pai espiritual, S. Eulógio, como este refere. (Vide Bibliot. dos Padres de Gallendi.)

10.  Deus tratava os Mártires de modo diverso; a alguns deixava sentir todas as dores, a outros nenhuma; fazia alguns sentirem um tormento, a outros nenhum. (Vede a carta escrita pelos Mártires a S. Cipriano.)

11.  Era tão grande o conforto que experimentavam os Mártires, sofrendo na presença de seus irmãos, que S. Cipriano animou com cartas os que eram privados desta consolação, dizendo-lhes que seu prêmio no Céu seria maior.

12.  S. Mat., Cap. X.

13.  S. Mat., Cap. X.

14.  Temos esta exortação em S. Cipriano, porém, ele é mais difuso. Na obra que acima citamos, e que em breve esperamos publicar, vendo a grande necessidade que dela temos, havemos de narrar todas estas belas exortações, não só as de S. Cipriano, mas também dos outros Padres. A todas excedem as de S. João Crisóstomo e de Orígenes, que excitavam ao martírio.

15.  Era tanta a crueldade dos pagãos, que faziam perecer de fome os mártires; os fiéis lhes levavam alimento e dinheiro para o comprar. (Vede as cartas de Celerino, de Luciano, etc., à S. Cipriano)

16.  Act. da Martyr, cap. II, nº 9.

17.  Act. da Martyr, cap. II, nº 9 e 10.

18.  Traduzimos estas palavras dos Actos: Ipsa autem constringens sanctum suum corpus et capillis capitis sui muniens, com os quais aparecia vestida.

19.  Act. da Martyr, Cap. II, nn. 13,14,15,16.

20.  Assim lemos nos Actos da Martyr: – Nuntiatum est Episcopo urbis Romae ubi sedebat absconsus, cap. IV, nº 18.

21.  A Igreja desde seu princípio, teve sempre grande cuidado de conservar e guardar as preciosas relíquias dos Mártires. Os fiéis eram tão zelosos de obter o sangue das Santas vítimas, que sacrificavam o próprio, por estava causa, e uns após outros se desvelavam pelas relíquias, sem que o perigo os intimidasse.

22.  Act. Da Martyr, cap. III, IV, nn. 16 e seguintes.

O sagrado corpo desta Virgem e ilustre Mártir ficou ai sepultado mais de 200 anos, até que o Papa Eutiquiano o fez desenterrar e trasladar para Roma, acompanhando-o em pessoa com grande pompa e solenidade. Colocou-o no próprio palácio, convertido em Igreja, ao lado de sua irmã Priscila e de seu cunhado Áquila, também Mártires. Aí repousou em paz e rodeado de veneração o santo corpo; até que na invasão francesa mão piedosa o ocultou, ou mão sacrílega o roubou, sem que se pudesse saber seu destino. Disse-se que estava oculto na Igreja dos Quatros Santos, ou em S. Maria in Trastévere. Seja assim ou não, seria conveniente que os Romanos o procurassem, e levassem para a sua Igreja, renovando a veneração pública que merece a excelsa Santa.

Os Pontífices rivalizaram em reverenciar S. Prisca. Além de Eutiquiano, Adriano I reedificou sua Igreja. (Bol. Prop. dos Atos da Santa, nº 2, cap. IV, nº 20); Pascal II a concertou (Ibid. Pref.) e fez mais grandiosa; restaurou-a Calisto III, o qual lhe fez pôr esta inscrição que ainda hoje se lê:

Prima ubi ab Evandro sacrata est Herculis ara.
Urbis romanae prima superstitio.
Post ubi structaque aedes longe celebratae Dianae.
Structaque tot veterum templa Deorum.
Montis Aventini nunc facta gloria maior.
Unius veri religione Dei Precipue ob Priscae quod cernis nobile templum.
Quod Priscum merito par sibi nomen habet.
Nam Petrus id coluit populos dum saepe doceret.
Dum faceret magno sacraque saepe Deo.
Dum quos Faunorum fontis deceperat error.
Hic melius sacra purificaret aqua.
Quod demum multis se se volventibus annis.
Corruit haud ulla subvenienti manu.
Summus at antistes Callistus tertius ipsum.
Extulit omne éius restituique decus.
Qui simul aeternae tribuit dona ampla salutis.
Ipsius ne qua parte careret ope.

Finalmente, o Cardeal Justiniano aprontou a Igreja de S. Prisca como está agora, e o Cardeal Luiz Belluga a consagrou no ano de 1628. Os Padres Agostinianos lhe puseram uma lápide com a recordação do fato, que atesta a época em que o Templo foi ereto antigamente na casa de Áquila e de Priscila.

Hanc Ecclesiam.
Primum Aquelae et Priscae domum.
Deinde Romanum titulum.

Atualmente existe ainda o batistério de que usou S. Pedro, e muitos relevos que representam os martírios da Santa, e sua solene transladação, e vários atos do Apóstolo São Pedro.


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