Nossas
personagens estão agora disseminadas e só restam os Protagonistas.
Desapareceram Júlia, que tão importante papel representou neste
drama sacro, antes tragédia; depois seu esposo Vinícius. Partiram
Pedro, Petronila, Priscila, Prisco, e por fim Narciso. Saiu também
da cena a ímpia Messalina, Sêneca, e comparsas quase nulos se
tornaram Lino e as Pudentes, as libertas. Resta-nos Prisca,
só pela sua parte, e da outra Cláudio, Agripina, e por detrás da
cena, Lucusta. Mas, o desfecho é terrível e superior a todas as
tragédias inventadas e urdidas pelos poetas. Todavia, entre o horror
dos tormentos, até então inauditos e da morte desapiedada, brilha
suave e divina luz, destaca-se um vulto, que parece mágico, e a
tragédia se entrelaça com o drama, a história com o romance, a
prosa com a poesia. Isto somente conforta. Vê-se palpitar no peito
um coração firme, uma alma intrépida que
preza e ama a glória anexa ao martírio; se o leitor tem coração
tímido, alma pusilânime, que ama a própria vida mais do que
Cristo, prefere a felicidade terrena à eterna, pare aqui, feche este
livro que não é feito para ele. Semelhantemente se há no
Cristianismo, (e atualmente poucas haverá!) alguma jovem donzela
êmula das antigas heroínas, que estime e preze a sublime virtude da
virgindade e deseje a glória e delícias que gozam no Paraíso as
Virgens Mártires; esta donzela leia este livro, considere quanto
soube suportar uma menina de treze anos. Mas, as infelizes moças que
desdenham sua virgindade, são desejosas
pelo luxo e moleza, apaixonadas pelas pompas e modas, embebecidas com
as novelas e comédias, parem aqui, não busquem ingresso neste
excelso teatro. Elas não poderiam suportar à vista de tais
martírios, não saberiam compreender tanto heroísmo.
O
Tribuno deixou Prisca
na antecâmara no meio dos soldados, chegou à presença do
Imperador, disse-lhe que Prisca
obedecia as suas ordens. Cláudio alegre com esta notícia, a fez
entrar, e vendo-a tão bela e serena exclamou como em êxtase! –
Glorificado sejas, Deus Apolo, e glorioso sobre todos os Deuses, por
que criaste esta virgem, preclara no sangue, formosa no rosto, serena
na mente! Voltando-se
para Prisca
continuou: – Eu te
mandei buscar para te engrandecer e te fazer senhora no meu império,
se sacrificares aos nossos Numes. –
(Act. da Martyr, Cap. I.).
– Eu
estou pronta a tributar sacrifício incruento a meu Deus e Senhor
Jesus Cristo.
Cláudio
era tão estúpido que não compreendeu a linguagem da Virgem, e
ordenou que a conduzissem ao templo de Apolo.
Prisca
sorrindo lhe disse: –
Grande Imperador! De que serve eu ir sem testemunhas. Fazei-me a
mercê de vir comigo, e de chamar também o sacerdote de Apolo para
que veja como o Onipotente Deus acolhe com boa vontade os imaculados
sacrifícios de seus fiéis.
– De
boa vontade, respondeu o
imperador, que ainda não compreendia a piedosa astúcia da Santa, e
foi com ela para o templo.
Este
era no mesmo Palatino, um pouco distante do palácio imperial. Vendo
o imperador entrar no templo com aquela encantadora Virgenzinha,
cercada de soldados, numeroso concurso de curiosos pagãos foi em
seguimento dela. No cortejo
imperial iam Agripina, Lucusta; entre a multidão, porém, mais de
longe, foram os Pudentes, Cláudia, as libertas. Prisca
ia adiante com passo firme, com o rosto e olhos elevados ao Céu;
tanta luz se irradiava em torno dela, que parecia um Serafim do
Paraíso, e atraía o amor de todos. Entrando no vestíbulo do altar,
prostra-se perante o ídolo, eleva os braços ao Céu, exclama em
alta voz, para que todos a ouvissem: –
Glória Te
seja dada, excelso Pai; invoco-Te, suplico-Te; atira no chão este
ídolo imundo e surdo; porque é de barro, e enlameia quem nele
espera. Deus meu, atende à pobre pecadora, para que este imperador
conheça que é vã a esperança que deposita em seus ídolos, e que
não devemos adorar outro Deus senão a Ti.
(Act. da Martyr.).
Prisca
não tinha ainda acabado esta oração, quando a cidade começou a
tremer, o templo a abalar-se, de modo que se desmoronou a terceira
parte dele, esmagando os curiosos pagãos. O ídolo caiu e fez-se em
pedaços. Agripina e Lucusta fugiram. Cláudio também queria
fugir, porém, Prisca
o segurou pelo manto de púrpura: –
Onde ides, Imperador? Ficai, pedi auxílio ao vosso deus. Não vedes
que ele consiste em barro feito em pedaços? Pobrezinho! Convém
reunir-lhe os membros. Ele não vê seus sacerdotes esmagados? Por
que não os socorre?
Então,
o Demônio que estava dentro do ídolo o abandonou gritando.
– Ó
Virgem Prisca,
serva do grande Deus que está nos Céus, observadora de seus
Mandamentos, tu me privas da minha habitação! Permaneço há
sessenta e sete anos neste templo, doze sob o reinado de Cláudio.
Nenhum dos outros
Mártires me desterrou: eu tinha aqui noventa e três espíritos
cruéis, e os governava, ofereciam-me diariamente cinquenta almas de
homens. Ó imperador perseguidor dos Cristãos, apareceu uma alma
santa que aniquilará com desprezo o teu império.
Desta forma uivando, gritando, lamentando-se muito, voou e foi visto
por todos na forma de horrível espectro, espalhando pelo ar negras
nuvens.
O
imperador por causa do medo, da aflição e ameaças do Demônio,
saiu fora de si, e furioso gritou aos guardas: –
Esbofeteai essa sacrílega, quebrai a boca dessa mágica.
– Dois soldados a seguraram pelos braços, e conservando-a imóvel,
começaram a esbofeteá-la com grande ímpeto e crueldade em todo o
rosto. Foi este o primeiro e cruel tormento da pequena
Virgenzinha. Enquanto lhe batiam com tanta força os dois verdugos,
um de um lado e outro de outro lado, dando-lhe grandes bofetadas; ela
não soltou um grito, não derramou uma lágrima, antes sorria,
porém, sua delicada pele não inchou, nem deitou gota de sangue; os
que assim a maltratavam começaram a gritar gemendo: –
Benigno imperador, tende piedade de nós. Ela está ilesa, e nós
pecadores padecemos a dor.
– Porém, o imperador aumentando sua indignação, mandou que fosse
mais asperamente espancada. Prisca
agradecendo a Deus, exclamou: –
Bendito sejas, Senhor Jesus Cristo, que dás a eterna graça aos que
em Ti creem.
– Enquanto fazia esta prece foi rodeada de fulgurante luz, ouviu-se
do Céu uma voz que disse: –
Filha, confia, não temas, por que Eu Sou o Deus que adoras e
invocas, e não te abandonarei eternamente.
O
imperador
presenciando estes prodígios, ouvindo aquela voz, julgando tudo
efeito de arte mágica, ficou furioso e ordenou que Prisca
fosse algemada e encerrada em cárcere.
Todas
as prisões são certamente medonhas e horríveis, especialmente
as secretas, porém, as de Roma naquela época eram extremamente
terríveis. Para dar ideia delas, bastaria recordar o que acima
dissemos, que Messalina para induzir Pompeia a suicidar-se, bastou
fazer-lhe conhecer o horror dos cárceres a que seria condenada. Os
cárceres eram nos subterrâneos, sem vislumbre de luz, cercados de
paredes grossas e negras, com pavimento úmido, enlameado; aterra só
imaginar semelhante calabouço. Para acréscimo de mal, havia
grilhões, cepos com que se oprimiam os prisioneiros, havia
insuportável odor fétido; a qualidade e
escassez de alimento e incômodo da postura forçada, completavam o
padecimento. Se semelhante cárcere causaria espantoso horror a
qualquer um, quanto mais a uma dama, antes, menina, e menina nobre,
criada com todas as comodidades em vasto palácio, habituada a
residir em douradas câmaras, a deitar-se em fofos colchões, com
qualificadas servas para a vestir e adornar? Quem,
ouvindo o estridente som da férrea porta nos pesados gonzos,
vendo-se sepultado naquelas espessas trevas, sentindo oprimir-lhe as
mãos e pés pesados cepos, duros grilhões, vendo que está fechado
com cadeados, e achando-se só nesta medonha sepultura, não soltará
gritos, não desmaiará e cairá morto?
Oh!
Poder da divina graça! Heroísmo dos primeiros cristãos! Aquela
menina entrou serena na prisão, como outra iria a um convite ou
dança; quando ficou só pôs-se a cantar e a bendizer ao Senhor,
esperando o amanhecer do dia, para ir sofrer tormentos e morte!
Agripina
voltando a si do susto que tinha tido, e solicitada pela infernal
Lucusta, foi falar com Cláudio: – Vedes
como esta menina foi seduzida? Vós estáveis prevenido contra os
Hebreus? Os Cristãos são os verdadeiros mágicos, se não os
exterminais, vosso império e vossa vida estão perdidos. Cumpre
empregar todos os meios para converter esta menina, mas se permanecer
obstinada, convém dar um exemplo a Roma e não atender que Prisca
é nossa parenta; ela é blasfemadora de nossos santos Numes,
derrubou com seus
encantamentos o ídolo de Apolo e seu templo, matou os sacerdotes e
muita gente. Semelhante insulto feito a nossos Numes, afronta
expressa feita à majestade imperial, chamada de propósito para
espectadora do sacrílego atentado e dos encantamentos, exige
reparação, castigo, vingança; sirva
o sangue da maléfica e sacrílega mágica de expiação de tais
horrores! O povo a reclama, a exige, e vós correis grave perigo se a
recusardes.
Esta
última razão, mais do que os sacrilégios, convenceu Cláudio, e
lhe causou grande furor. Por isso, na manhã seguinte, disse aos
guardas:
– Trazei
a minha presença aquela encantadora e perversa Prisca,
para ver se renova os feitiços.
Quando
ela chegou disse-lhe:
– Prisca,
faze a minha vontade, sacrifica aos Numes.
– Tu,
o mais celerado dos homens!
Respondeu Prisca,
filho do Demônio,
teu pai, não pões fim a tua perfídia? Não te envergonhas de ser
vencido por uma menina, e por ela zombado? Jamais conseguirás que eu
sacrifique a teus ídolos!
Agora
começa a catástrofe, e os tormentos mais temidos por Prisca
iam ser-lhe impostos! O imperador indignado com esta resposta,
ordenou que a despissem, e nua a flagelassem cruelmente.
Muita gente assistia a este espetáculo, e entre esta os Pudentes,
Cláudia e as libertas.
Ouvindo
este cruel anúncio, Prisca
corou, o que a fez parecer ainda mais formosa. Porém, os verdugos
ouvindo o feroz preceito, atiraram-se sobre ela como abutres e
gaviões sobre cândida pomba, arrancaram-lhe todas as vestes, e nua
a amarraram com os braços para traz, a uma coluna que estava no meio
do pátio do palácio imperial, entre as zombarias e escárnios da
população. Os lictores escolheram os feixes de varas, e arregaçando
as mangas até o cotovelo, para serem mais ágeis, dois de um lado e
dois de outro, se desvelaram na carnificina, uns nas costas, outros
adiante, ferindo-a sem piedade.
Prisca
não temia os flagelos, mas sim a nudez, mas felizmente, lembrou-se
que semelhante vexame havia padecido por ela seu Esposo Jesus, e que
na mesma posição havia Ele estado. Deus a socorreu também,
permitindo que seu corpo nu aparecesse tão
cândido e refulgente, que cegava a vista, e ninguém o podia
profanar com impudicos olhares. (Act.
da Martyr,
cap. II, nº 7.)
Aos
primeiros golpes das varas os tenros membros se inflamaram, ficaram
lívidos, com a continuação rebentou o sangue virginal, e começou
a tingir as varas, a salpicar em redor da vítima, e a correr em rios
no chão; ela em breve ficou revestida de púrpura, sem que o sangue
amortecesse a luz. O povo furioso uivava, gritava, batia as mãos
e exclamava: –
Dai, dai com força, lictores, atormentai essa malvada.
– Prisca
no auge do tormento pediu auxílio a Deus e exclamou: –
Minha voz a Ti se eleva, ó Senhor, acode-me na batalha de meu
martírio.
O
imperador ouvindo isto disse: – Prisca,
esperas seduzir-me com teus
encantamentos?
– Teu
pai Satanás,
replicou a Virgem, é
o príncipe de todos os maléficos, o amador dos fornicários, e o
protetor dos perversos.
Os
verdugos tinham suspendido a flagelação, porém, o imperador mandou
que com mais crueldade continuassem. Ouvindo a ordem feroz
renovaram-se os golpes, e não havendo já parte sã naquele
corpinho, aprofundaram-lhe as feridas. Prisca rindo e
escarnecendo disse: – Ó injusto, ímpio, inimigo de Deus,
inventor de maldades, não observas em mim os prodígios do Senhor?
Me pareces louco!
Enquanto
Prisca era assim espancada, apresentou-se ao imperador,
Limanio, seu parente e disse: – Esta criatura não sofre a pena
para glória dos Cristãos e de seu Crucificado, mas pelas suas artes
mágicas. Não vedes que resplandece como o sol, e os verdugos falham
os golpes? Eu vos aconselho para estorvar estes encantamentos, que a
mandeis encerrar no cárcere, e amanhã antes de começar o castigo,
a façais untar com banha. Agradou o conselho, e Cláudio ordenou
que assim se fizesse. Desligada Prisca da coluna, correu como
se saísse de odorífero banho e rapidamente se vestiu. Vestida se
entregou nas mãos dos algozes e disse em alta voz:
– Dou-Te
graças, meu Senhor Jesus Cristo, e imploro Teu auxílio. Defende-me,
Senhor, deste celerado e impuro Cláudio, que despreza Tua bondade.
Por
mercê divina Prisca em um momento sarou, de forma que não
sentia dor alguma, não se via em seu corpo sinal de pisaduras e
feridas. Por isso, aquele dia e a noite seguinte não fez senão
cantar no seu cárcere; seu jubilo e alegria eram tão grandes, que
não os podia conter. Os carcereiros que a escutavam, não julgavam
que ela estivesse só, mas que havia um coro de muitas vozes.
Depois
da meia-noite, Prisca ouviu ruído de gente, seu virginal
pudor a fez estremecer; chorando interrompeu seus cânticos, e
prostrada começou a orar do fundo do coração, com suspiros e
gemidos suplicou a seu celeste Esposo, que a salvação da desventura
de ser atacada sua virgindade, que de preferência lhe mandasse a
morte e lhe fizesse sentir os mais desapiedados e horríveis
martírios. Ela conhecia as leis e costumes nacionais, e sabia o que
a esperava, se Deus a não amparasse com um milagre.
Naquela
noite, serena brilhava a lua. A escolta viu descer do Viminal sete
vultos embuçados em seus mantos, por que se estava em meado de
Janeiro, e naquela hora soprava o vento boreal de Roma, que gelava a
respiração nos lábios e o sangue nas veias. Dos vultos, cinco
tinham aspecto feminino e os outros, masculino, ainda que fosse
difícil distingui-los, por que além de terem a cabeça envolta em
pano fino, iam mui juntos uns dos outros, tinham andar suspeitoso,
menos os dois primeiros que iam adiante com o rosto descoberto,
observando todo o desvio e cruzamento do caminho, dirigiram-se para o
cárcere Mamertino, buscando os atalhos mais solitários. Chegando à
prisão pararam, e a mais moça das damas foi adiante, e mandou
chamar o carcereiro, enquanto misteriosamente lhe punha na mão uma
moeda de ouro, lhe disse alto para que os guardas ouvissem: –
Carcereiro, mostrai-me a Prisioneira.
– Quem
sois vós, senhora, disse ele, apesar de a ter reconhecido, quem
vos deu esta faculdade?
– Eu
sou Cláudia, respondeu claramente a jovem dama, a filha do
Imperador; e tenho as licenças precisas.
– Entrai,
senhora. Guardas, deixai-a passar e ficar em liberdade com a
Prisioneira. Estas quem são?
– São
minhas amigas e as libertas. O frio é tanto que se precisa estar
embuçado. – Disse isto Cláudia para disfarçar os homens que
trazia consigo, os quais estavam embrulhados até a cabeça. Quanto
ao carcereiro não havia perigo, por que o ouro lhe havia obscurecido
um pouco a vista, para não discernir homens de mulheres, mas o
perigo estava nos guardas, que podiam ter recebido ordem de Agripina
para vigiar a Prisioneira, a fim de descobrir os outros Cristãos.
Eram eles que faziam na escada o ruído que aterrou Prisca.
Terror que chegou ao maior auge, quando ouviu abrir a porta, e à
pouca luz de uma lanterna viu entrarem aqueles vultos, e ainda mais
quando dois deles sem pronunciar palavra, correram a abraçá-la e
beijá-la. Então, Prisca soltou um grito:
– Oh!
Deus salvai-me! – Seu susto durou um instante e se transformou
na mais doce alegria, quando aqueles vultos e outros três
adiantando-se para abraçá-la, levantaram o manto do rosto. – Ah!
Prisca! Valente Mártir de Cristo!
Exclamaram, não nos conheceis? Pela voz e vista conheceu
Praxedes, Pudenciana, Cláudia e as duas libertas, Doralice e Ervina.
Prisca as abraçava e beijava de novo, depois se afastou um
pouco delas, e corre com os braços abertos a deitar-se aos pés de
um dos vultos, que tinha ficado atrás encostado à porta, gritando:
– Ah! Padre! Como mereci eu a honra e a caridade que vos fez expor ao incômodo e perigo de visitar neste imundo cárcere vossa
pobre filha?
Nossos leitores não precisam que lhes digamos que era o Pontífice
Lino, e o outro o Senador Pudente. Antes desejaram saber quais fossem
os colóquios das amigas e de Prisca naquela longa noite de
inverno. Bem quisera comprazer aos meus leitores, mas há coisas mais
fáceis de imaginar do que de expressar para quem está familiarizado
com a história daqueles felizes tempos. Prisca estava solta
das cadeias por que um Anjo do Céu lhe as havia quebrado. Ela não
tinha feridas para lhes mostrar e dar a beijar,
pois como dissemos estava sã; as amigas só puderam beijar suas
cadeias e vestes. As senhoras expandiram seu amor, ternura,
compaixão, deram-lhe os parabéns por seu heroísmo e prodígios que
alcançara de Deus, e pela sua feliz sorte de ser a primeira em Roma
que sofresse o martírio. Tinham mil coisas que perguntar-lhe, se
tinha padecido muito, se a flagelação era um grande tormento. Mas a
esta última pergunta respondia por ela Ervina:
– Oh!
Eu posso dizê-lo por que a experimentei.
– Não
Ervina, não pensas bem, tu quando foste flagelada não foi por amor
de Cristo. Eu te asseguro que não é como dizes. Eu sofri um grande
suplício, mas não foi a flagelação. O martírio, o suplício foi
a nudez. Afirmo que me sentia morrer, parecia-me que ao mesmo tempo,
que as vestes me arrancavam a pele e também os ossos e as entranhas.
Isto, isto é tormento, quanto aos flagelos, asseguro-te, minha cara,
que nunca senti tanta alegria em minha vida, como na ocasião em que
levava os açoites e via correr o sangue pelo corpo abaixo. Não se
deixa de sentir a dor; porém, a divina graça e a lembrança de
padecer por amor de Jesus, suaviza de tal modo a dor, que se tem pena
quando os algozes cessão.
– Bem-aventurada
és, Prisca! Por que começaste a tua questão e
fizeste a confissão. Já estás inscrita no bem-aventurado Livro dos
Mártires de Cristo! Nós não merecemos tão ditosa sorte. Que doce
consolação terá nosso bom Pai, quando souber teu Martírio!
Diziam as duas irmãs, continuando a abraçá-la e beijá-la,
derramando ternas lágrimas; o mesmo dizia e fazia Cláudia.
– Viste-nos
entre a gente?
– Sim,
eu os vi, e senti grande conforto
com vossa presença: peço-vos que continueis a acompanhar-me, que
Deus vos recompensará.
Lino
com grande doçura e majestade lhe dizia: – Minha filha!
Começaste bem, é preciso continuar, pois não é quem
começa, mas quem continua até a morte, que há de alcançar a
coroa.
Não convém contentar-nos com uma só agressão, (martírio)
feita ao inimigo,
mas é preciso abatê-lo e aniquilá-lo. Nos outros combates vence-se
e triunfa-se matando o inimigo, neste vence-se morrendo. Somente
assim serás vencedora e alcançarás a coroa de verdadeira Mártir.
Não te julgues segura enquanto vives. Sobejas astúcias empregará o
inimigo para seduzir-te; não lhe faltam artifícios, lisonjas,
promessas. Se estes ardis forem em vão, ainda não confies em ti.
Buscará novos e mais horríveis tormentos, mostrar-te-á os mais
pavorosos instrumentos de sua crueldade. Não te há de matar de uma
vez, descobrirá torturas que lentamente te façam sentir excessivas
dores sem te acabar a vida. Porém, não desespere, tem confiança em
Deus, vencerás e serás coroada; se a tiveres em ti própria,
estarás perdida. Anima-te quando estiveres no meio dos tormentos,
pensa que a Igreja observa se combates dignamente pela Sua causa, se
és Sua digna filha. Os Anjos te acompanham e assistem com espanto e
admiração. Se enfraqueceres entre os martírios, recorre à oração,
e recobrarás esforço, pois o Senhor te ajudará. Se tiveres
repugnância e horror aos tormentos, levanta os olhos ao Céu,
contempla a glória e delícias que te esperam. Este horrendo cárcere
é a antecâmara do Paraíso; as catastas, os ecúleos, as torturas
são os degraus dele, as mãos dos algozes recamam a veste nupcial da
alma; as gotas de sangue que te fazem derramar, sãos as pérolas, os
brilhantes, o ornato de tuas vestes, de teu corpo, tua coroa.
Basta por ora minha filha, se continuar tua paixão voltaremos de
novo. Por enquanto alivia, fortifica um pouco teu corpo com a bênção
que te trazemos.
Doralice
descobriu uma cestinha que trazia na qual as Pudentes e Cláudia
tinham colocado boa ceia e um frasco de vinho generoso, e outro de
límpida água. Não havendo cômodo algum naquela horrível prisão,
as libertas se puseram de joelhos diante de Prisca, segurando
ambas limpa toalha. As irmãs Pudentes e Cláudia rivalizaram em
servi-la. A pobrezinha estava em jejum desde que fora presa. Não
queria aceitar aqueles serviços, mas o Pontífice lhe fez sinal que
os recebesse para contentar a devoção das amigas; e lhe aconselhou
que se confortasse com algum vinho. Ele benzeu a mesa; Prisca
fez o sinal da Cruz, rezou uma oração, e alegremente comeu,
conversando entretanto como se estivesse na véspera de suas núpcias.
Depois deu os agradecimentos, guardaram-se os arranjos da refeição,
e ela continuou a conversar com a maior indiferença e com afetuoso
gosto. Ali não havia relógios e as horas voavam. No melhor da sua
doce conversação ouviram sussurro de muitas vozes e bulha pela
escada, e retinir de chaves. Assustaram-se vendo-se surpreendidas.
Aberto o cárcere, entrou adiante o carcereiro dizendo-lhes que por
ordem do Imperador se devia dar um tormento à Prisioneira, antes de
a conduzir à sua presença apenas amanhecesse; que dependia deles
saírem ou serem espectadores. Ele disse isto por que tinha feito
acreditar aos verdugos que os visitantes eram parentes da
Prisioneira, que a visitavam com permissão do Imperador. As donzelas
empalideceram ouvindo estas palavras e tiveram o coração repartido
entre o desejo de assistir à Mártir, e o terror de a ver torturar.
Prevaleceu o primeiro sentimento, por que o Pontífice respondeu, que
sendo possível ficariam; não houve quem se retirasse. Afastaram-se
todos para um ângulo da prisão a fim de presenciarem aquela
dolorosa cena.
Entraram
dois escravos, um deles trazia um braseiro cheio de carvões acesos,
o outro uma grande panela com uma vasilha de banha e betume, e junto
dele dois algozes. Os escravos deposto o braseiro, e tendo encima a
panela, a encheram de banha, e tiraram do cinto duas pás. Um dos
algozes voltou-se para Prisca, enquanto os escravos assopravam
as brasas e faziam derreter e ferver a banha, disse-lhe o bruto:
– Malvada
feiticeira, despe-te ou nós te despiremos. Queremos estorvar teus
malefícios e encantamentos.
Prisca,
contra a vontade, teve que obedecer a esta ordem, para que não lhe
tocassem aqueles perversos, e considerou como grande ventura a
presença de suas visitas. Apenas despida fizeram-lhe sinal que se
deitasse perto do braseiro; ela obedeceu e um dos algozes começou a
derramar-lhe sobre o corpo a banha fervendo, enquanto outro espetando
em um pau uma grande
esponja se pôs a esfregá-la com um pincel molhado na banha, e assim
lhe queimava o rosto, as mãos, as extremidades dos membros, onde não
podia chegar a banha derramada, para que nenhuma parte de seu corpo
permanecesse intacta; por isso, depois de untada e queimada de um
lado, a fizeram voltar do outro; dando-lhe com a coronha da arma e
prendendo-a com um forcado.
Durante
este horrível tormento, Prisca
não soltou um gemido, não deu um só grito, somente no íntimo do
seu coração se recomendava ao Senhor, volvendo os olhos ora para o
Céu, ora para os piedosos espectadores. Nenhum deles ousava
mover-se, porém, as senhoras choravam muito, cobrindo-se, para que
não lhes vissem o rosto. Acabado o martírio, partiram os escravos e
verdugos com o carcereiro; Prisca
levantou-se, como se não lhe tivesse acontecido nada, semelhante a
quem desperta do sono, e correu para se vestir; mas as libertas
quiseram ter a consolação de lhe prestar este último serviço.
Elas pensavam achar Prisca
reduzida a uma chaga viva, coberta de pústulas e queimaduras. Qual
foi seu espanto, quando a viram sem vestígio algum do martírio! Não
podiam compreender semelhante maravilha, nem acabavam de dar a Deus
infinitas graças, por que opera tais prodígios em suas esposas. A
aurora ia despontar; as amigas se separaram de Prisca,
abraçando-a de novo e derramando sentidas lágrimas de ternura, ela
se recomendou as suas orações e disse-lhes que as esperava no dia
de seu combate, e se estivesse viva, na noite seguinte.
Responderam-lhe todos que sim.
Limenio,
apenas nasceu o sol, desceu ao cárcere e perguntou aos verdugos se
tinham cumprido suas ordens, eles responderam que sim, não tendo
deixado intacta a mais pequena parte do corpo da Prisioneira, da
cabeça aos pés e mãos.
– Mas
de que procede este perfume de precioso bálsamo que tendes em vós?
Replicou Limenio,
por acaso a
untastes em vez de banha com unguentos?
Nós a ungimos com
banha,
responderam, e
fervendo. Como se assava aquela tenra carne! Uma só gota que tivesse
caído num pé ou braço, faria blasfemar e gritar; em vez disto, ela
sentindo derramar esta matéria inflamada em seu corpinho de leite,
ria-se, como se fosse bálsamo! Vós dizeis que ela é feiticeira,
mas nós pensamos que é muito amada dos Numes; este perfume que
sentis rescende de seu corpo nu,
não das vestes que não tinha, e estava deitada de costas; perfume
que dela se nos comunicou,
apenas a tocamos para melhor untar.
– Ela
é uma feiticeira, uma blasfemadora, e vós, estúpidos, dizeis que é
amada dos Numes!
– Será!
Porém, o carcereiro e guardas afirmam que a Prisioneira toda a noite
falou com os Deuses e cantou com eles? O que significa haver sido
ontem tão cruelmente flagelada, e esta noite ter os membros sãos?
Por que motivo a banha fervendo não só não lhe fazia chagas, mas
não privava aquele corpo de sua alvura de neve, apesar de a termos
sujado com as imundícies do cárcere?
– Bem,
bem, vereis, vereis?
Correram
em fileira os satélites ao cárcere, pressurosos por vê-la. Ao
abrir a porta são deslumbrados por vivíssima luz, e veem Prisca
sentada em imperial trono, rodeada e cortejada por infinita multidão
de Anjos em forma humana e apresentando-lhe uma tabuleta em que
estava escrito:
– Quão
gloriosas são tuas obras, ó Senhor! Tudo fizeste com suma
sapiência.
Limenio
correu ao Imperador a narrar-lhe o sucesso. Este talvez cedesse;
porém, Agripina o repreendeu dizendo-lhe que não devia deixar-se
vencer por uma mágica, e ordenou que a trouxessem à sua presença.
Chegaram
os satélites ao cárcere e acharam Prisca
na mesma posição, enquanto eles se esforçavam por derrubar aquele
trono, ela cantava: –
Corri pela vereda de tua lei; ensina-me tuas justificações, para eu
celebrar as maravilhas de tua Divindade. Livra-me do suplício dos
homens para que eu guarde teus Preceitos.
Ditas
estas palavras, desapareceram os Anjos e o trono, e ela se entregou
nas mãos dos soldados, que a levaram à presença do Imperador.
Prisca
conservava resplandecente o rosto e estava mais bela do que nunca;
o miserável Cláudio julgou isto um prodígio de seus deuses e lhe
disse:
– Tu
te converteste, Prisca? Estás decidida a sacrificar a nossos
Numes?
– Sem
dúvida, Imperador, minha conversão é perfeita, embora te empenhes
em perverter-me. Eu estou isenta de tua vaidade, impiedade, das
loucas seduções do século, abraçada com meu Deus. Por isso, o meu
bem consiste em pôr em Deus minha esperança, a qual é a verdade
que não me pode faltar. Tuas sedutoras palavras são semelhantes a
tenebrosos dardos que se cravam na terra. Eu desejo a morte dos
Santos, que me patrocinam, e encadeiam o Demônio que é teu pai!
– Prisca!
Clamou irado o Imperador, não continues a escarnecer de
mim, vai ao templo e sacrifica.
– Queres
que eu vá ao templo?
– Sem,
se não queres ser pasto de feras.
– Com
a graça de meu Deus irei de boa vontade.
O
cego Imperador ainda não ensinado pela primeira ida de Prisca
ao templo, jubiloso a quis acompanhar. Mas o Demônio que via as
coisas em esfera mais ampla, começou a gritar: – Ai de
mim; para onde fugirei de tua ira, Deus do Céu? Uma chama me rodeia
dos quatro ângulos do templo.
Prisca
depois que entrou fez o Sinal da Cruz, e fazendo um aceno ao ídolo,
disse ao Imperador: –
Vede a ilusão; tem olhos e não vê; tem ouvidos e não escuta; tem
mãos e não apalpa; tem pés e não anda; só tem fingida e adornada
aparência esta estátua. Queres, Imperador, que eu lhe ofereça
sacrifícios?
O
desassisado (sem juízo) Cláudio não compreendendo esta linguagem,
respondeu: –
Sim, querida Prisca,
vivam os Deuses que te moveram a comprazer-me.
Riu-se
Prisca
de tanta estultícia, e voltando-se para o ídolo exclamou: –
Ó espírito mudo e surdo que habitas neste ídolo, eu te ordeno,
sai.
– Deus
e eterno Rei,
continuou elevando os olhos, que
criaste o Céu, fundaste a terra, criaste as águas, desterraste o
Dragão, suplico-Te, Senhor, que agora não me desampares, antes
acolhendo minha prece, destruas este ídolo, feitura do homem,
diabólica sedução, e faças conhecer a Cláudio, impregnado de
malícia, pela força dos castigos, que Tu só és bendito em todos
os séculos. Assim seja.
Imediatamente
soou medonho trovão, e caiu fogo do Céu que abrasou todos os
sacerdotes do ídolo e a multidão dos pagãos que tinham entrando
por curiosidade no templo. Uma faísca caiu no manto de púrpura do
Imperador, e o queimou do lado direito. O ídolo ficou reduzido a
cinzas, apesar de ser de metal.
– Glória
a Deus nos Céus, e paz na terra aos homens de boa vontade,
cantou alegre Prisca.
Não
se pode descrever o terror de Cláudio e sua raiva! Mandou chamar o
Prefeito do Pretório e lhe disse gritando: –
Tira-me daqui esta mágica, e faze-lhe despedaçar todo o corpo, até
que acabe a vida; por que eu já não sei o que hei de fazer dela.
O
Prefeito a prendeu cruelmente e a levou ao tribunal. –
Venha,
disse, esta
destruidora dos templos, para que saiba seu destino.
Prisca
entrou rindo; o Prefeito vendo isto, gritou: –
Escarnece de mim por que te poupei a vida? Mas juro-te por este
resplandecente sol que se não sacrificares, farei os cães comerem
tuas entranhas, e veremos se teu Cristo te salva.
– Ímpio,
exclamou Prisca,
não tenho motivo
para rir-me do poder de teu grande Imperador que, pela Onipotência
de Jesus Cristo, foi vencido por uma menina, e agora reclama teu
auxílio?
– Ele
é meu senhor, replicou
o Prefeito, e tem
o direito de ordenar-te que sacrifiques aos deuses ou pereças.
– Eu
não sacrifico, ouviste? Faze-me experimentar todas as torturas que
quiseres.
O
Prefeito mandou que a despissem, deitasse no tablado, lhe ligassem as
mãos e os pés, e lhe cortassem todo o corpo com agudos ferros.
Durante este tormento, enquanto lhe cortavam a carne, exclamou:
– Meu
Senhor Jesus Cristo, ajuda-me, em Ti espero.
Não
bastou semelhante suplício e as torrentes de sangue que rebentavam
de mil feridas e inundavam a terra, pois vendo-a ainda viva, não só
viva, mas rindo-se, o Prefeito furioso mandou que assim como estava,
lhe fossem dilaceradas as carnes até os ossos e as entranhas com
unhas de ferro. Estremecimento de horror comoveu o povo à vista de
semelhante carnificina feita em uma menina; os cristãos estavam
inconsoláveis. Então, os algozes pararam, julgando que a vítima já
estivesse expirado, porque não a ouviam respirar, e tinha os olhos
levantados para o Céu, mas imóveis e arregalados. Soltaram-na das
cordas, mas qual foi o espanto dos verdugos vendo Prisca
levantar-se do chão perfeitamente sã! Tendo o corpo alvo e rosado,
sem cicatrizes, nem sinal de sangue, buscando cobrir-se o melhor que
podia, e soltando as longas madeixas para que suprissem as vestes.
Com
esta vista o Prefeito ficou furioso e mandou fechar o cárcere.
Depois foi visitá-la e a viu de novo em seu trono imperial,
cortejada pelos Anjos, com o rosto radiante semelhante ao sol. Muito
aflito com este espetáculo selou com seu anel a porta para que
ninguém entrasse, e pôs-lhe de guarda cinquenta soldados
escolhidos, receando talvez que fugisse, e partiu a cavalo para falar
ao Imperador. Este, estupefato, vendo-o, –
Para que vieste?
lhe perguntou. –
Para referir-vos a execução das ordens recebi. Quem é aquela
mágica que me entregastes? Eu muito a atormentei fazendo-lhe cortar
a carne, e dilacerá-la com unhas de
ferro. Julgava-a morta com os primeiros cortes, porque é uma débil
menina, e os ferros agudos penetravam em seu corpo como em um favo de
mel. Porém, ela permanecia indiferente, como se o corpo atormentado
não fosse seu, ria-se e escarnecia de mim; e não conserva em si
vestígios dos tormentos. O que quereis que faça dela?
– Se
vedes que espera ainda o fruto de seus encantamentos, entregai-a as
feras que a despedacem.
Naquela
noite Prisca
ficou só, pois ninguém teve licença para visitá-la, por que a
porta do cárcere estava selada e bem guardada. Mas o piedoso Deus
supriu a falta dos amigos. O calabouço se havia transformado em uma
corte, antes num Paraíso. Viva e serena luz resplandeceu em redor de
Prisca;
um Coro de Anjos a acompanhou, e ela cantou sem cessar os louvores do
Senhor.
Na
seguinte manhã, foi de novo levada ao Prefeito sentado em seu
tribunal.
Disse-lhe:
– O Imperador te
ordena que sacrifiques aos Numes, e se não o fizeres te condena a
ser tragada pelas feras.
Qualquer
alma ainda que fosse enérgica havia de se perturbar com esta
alternativa; mas Prisca,
resplandecendo de novo a modo de sol, intrépida respondeu: –
Em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, que sofreu por nós que cremos
nele, e reina na glória, espero vencer-te.
O
Prefeito muito indignado escreveu ao Imperador que se dignasse de vir
ao anfiteatro. Ele
aquiesceu ao convite.
Prisca
entrou despida envolta em uma rede.
– Observai,
disse ela ao Imperador, o
meu sacrifício.
Havia
um feroz leão que devorava todos os dias sete ovelhas, e havia
quatro dias que estava em jejum. Rugia a fera cruel dentro da gaiola,
todos no anfiteatro tremiam de medo; somente Prisca
que estava no centro deste amarrada a um poste, exposta a ser
devorada, não mudou de semblante.
O
próprio Imperador estava bastante triste, e começou a exortar a
Prisca
para que obedecesse, assegurando-lhe que a amava muito.
Mas
ela sem lhe dar resposta, voltou-se para Deus: –
Senhor, que tens manifestado a glória da Tua Divindade, e coroaste
Teus Santos, ampara-me! Assiste-me neste combate.
Voltou-se para o Imperador:
– Miserável,
exclamou ela, considera
que eu prefiro ser devorada por uma fera, e assim gozar a glória que
Jesus Cristo me prometeu, a obedecer as tuas ordens sofrendo eterna
morte.
Então
se ouviu no Céu terrível voz que promoveu pavor nos circunstantes;
mas o Imperador ordenou que se soltasse o leão.
Achando-se
livre e vendo ante si a presa, rugindo e tremendo foi aos saltos,
sacudindo a juba. Os Pudentes, Cláudia, as libertas cheios de terror
e compaixão cobriram o rosto, pensando que a vítima seria tragada
com duas dentadas. Depois ouvindo altos gritos e ruído no
anfiteatro, viram a fera com as patas de diante curvadas, a cabeça
inclinada, parece que em adoração perante a Mártir, abrir as
horrendas fauces, e suavemente lamber-lhe os pés, sem ter a ousadia
de levantar os olhos para não ver sua nudez.
Ouviram
Prisca
em alta voz exclamar: –
Senhor, faze-me a mercê de falar a Cláudio; meu Deus, salva-me a
vida!
– Vê,
Imperador, que Jesus Cristo criou o Céu e a terra, e todas as
coisas, pela vontade de seu Pai, e me fez vencedora de todos os
tormentos e das feras a que me entregaste.
Porém,
Cláudio, obstinado e louco lhe respondeu: –
Humilha-te aos nossos Deuses; foram eles que te defenderam.
– Eles,
responde
Prisca,
nem a si próprios
sabem salvar-se! Foi Jesus Cristo, por cujo amor sofro o martírio,
que me salvou.
O
Imperador ordenou que se guardasse a fera, mas esta se vingou
devorando um parente do Imperador, talvez Limenio, autor do ímpio
conselho, que tão penoso martírio fez a Santa padecer. Mandou
Prisca
para o cárcere, ela ia cantando pelo caminho: –
O Senhor me guarda dos laços que me armaram, e do escândalo dos
celerados.
Prisca
esteve sossegada três dias no cárcere, e nessas noites foi visitada
e consolada pelas amigas e pelo Pontífice.
No
quarto dia, o Imperador ordenou solene sacrifício, e fez vir Prisca
ao vestíbulo do templo: – Disse-lhe, acredita-me
uma vez e sacrifica a nossos Numes.
– Eu
sacrifico,
respondeu ela imperturbável, eu
creio em meu Senhor Jesus Cristo.
Irado
o Imperador ordenou que estando ele presente e diante da multidão,
trouxessem os instrumentos de martírio. Ordenou que de novo
despissem Prisca,
a deitassem no ecúleo, e fosse dilacerada com escorpiões. Porém,
Deus renovou o milagre, e ela apareceu resplandecente, refulgindo de
modo que ninguém podia vê-la.
Foi
amarrada fortemente pelas mãos e pés que se deslocaram, a tortura
foi tão violenta que se ouviram estalar os ossos, rebentar os nervos
e desunir as juntas. No paroxismo da dor a vítima não podendo já
resistir começou a orar ao Senhor com voz terna, que teria
enternecido um tigre. Porém, não aqueles dragões, que tendo-a
assim estendida, veio
um
verdugo de cada lado arrancar-lhe e dilacerar-lhe a carne, de tal
modo que em muitas partes do corpo se viam os ossos nus, as costelas
e as entranhas descobertas. Chovia o sangue em rios, e já tinha
formado uma poça. A Mártir se recomendava ao Senhor e dizia: –
Fizeste que eu cumprisse tua santa vontade, sou obra de Tuas mãos, e
exultarei em Teus juízos. Ó Senhor, verdadeira e eterna luz,
socorre-me, por que sinto a ponta do agudo ferro penetrar em meus
ossos.
Ainda
não tinha acabado de falar quando os carrascos gritaram. –
Imperador!
Salva-nos deste castigo! Somos atormentados pelos Anjos.
Ouvindo isto, o
Imperador que Prisca
fosse queimada viva. – Para
o fogo a mágica! Para o fogo!
- Clamou Agripina e com ela a multidão dos pagãos. Num instante se
aprontou a fogueira; elevaram-se altíssimas chamas; Prisca
foi solta da catasta, mas presa com um forcado pelo verdugo, foi
atirada no meio do incêndio. Nesta ocasião a Mártir clamou em alta
voz: – Senhor,
que do Céu observas se
alguma criatura na terra é fiel a Deus, socorre tua serva.
– Então, as chamas se dividem e a recebem como no seio,
espalham-se em roda, amontoam-se, e queimam os algozes e os pagãos
curiosos, depois furioso vento e grande chuva apagam a fogueira.
O
Imperador estava enraivecido, pois uma menina o vencia. Com efeito,
ela estava completamente intacta. Ninguém diria que tinha sofrido
semelhantes torturas.
Lucusta
sugeriu a Agripina, que os encantamentos de Prisca
estavam anexos a seus cabelos, em que ainda não se havia tocado, por
isso permanecia ilesa. Agripina comunicou esta lembrança a Cláudio,
que mandou que a rapassem até a pele da cabeça.
Executando-se
esta ordem, Prisca
se voltou para ele e lhe disse: –
A glória das damas consiste nos seus cabelos, e tu me privas do
ornato que Deus me deu? O Senhor também te há de privar do império.
Cláudio
a fez entrar no templo, selou a porta com seu anel, e voltou para o
paço, esperando fazê-la morrer de fome. Deus não precisa de pão
para sustentar suas criaturas. Todos os dias o Imperador e os
sacerdotes iam espreitar à porta, e muita gente fazia o mesmo; por
que dentro se ouvia dia e noite sem cessar dulcíssima harmonia,
suavíssimos cânticos, jamais ouvidos na terra. O louco Imperador
dizia às turbas que cogitavam acerca desta novidade, e tinham grande
curiosidade de ver o que havia dentro do templo:
– Não
vos perturbeis, o sumo Jove reuniu aqui todos os Deuses para instruir
e converter Prisca.
Aquela cega gente o acreditava!
Roma
inteira se interessava e discorria acerca destes desusados prodígios,
e cada um os interpretava a seu modo. Simão e Helena não falavam a
esmo, por que Lucusta lhes narrava tudo. –
Finalmente,
dizia o mágico a suas amantes, agora
podemos desanimar; estes Galileus nos suplantam. Eles tem arte
inteiramente nova; nossa divindade infernal não possui tanto poder.
Suportarias, Helena, e tu Lucusta, a milésima parte das torturas que
padeceu essa menina? Sofreríeis vós tão bárbara flagelação, ser
despedaçadas com pentes de ferro, estendidas nos ecúleos e férreas
rodas? Para ser fiel e por amor de nossos Numes vos decidiríeis a
suportar a aspersão de banha fervendo? Não morreríeis antes de
pavor, estando amarradas a um poste no anfiteatro, esperando o ataque
do altivo leão, com as fauces escancaradas, mostrando-vos as agudas
garras, e a espumosa língua?
– Por
piedade, não me digam semelhantes coisas,
interrompeu Helena; eu
morreria ainda que somente fosse espectadora de semelhantes torturas
infligidas a minha maior inimiga. E se fosse eu que padecesse? Não
teria vida depois do segundo tormento!
– Muito
bem!
Disse Lucusta
com sorrisinho sardônico nos lábios; fiz
bem em não te dizer o mais que se passou. Tu és extremamente
delicada e terna; tens coração de mel, alma de manteiga;
desmaiarias à vista de sangue, feridas, esquartejamentos! Que
delicadinha, que adocicada mulher! Por que não te fizeste cristã?
Era o melhor partido que tinhas a tomar! É
até impiedade ter compaixão destes cães? Pudesse eu vê-los todos
como eu vi Prisca! Só
te digo que se não fosse eu, não só o estúpido Cláudio,
mas a cruel Agripina se teria comovido, enternecido, e nada se
haveria feito, e nossa feroz inimiga teria triunfado, ter-se-ia rido
de nós, e executado sua vingança. Eu sugeri todos os tormentos de
Prisca a Agripina
para vencer a mágica e os encantamentos desta malvada. Eu sabia que
à semelhança de Sansão, toda a sua arte mágica estava concentrada
em seus belos cabelos, e que uma vez raspada a cabeça toda se
acabaria, mas não quis revelar este segredo para ter o gosto de a
ver atormentar. Ah! Se eu própria tivesse podido atassalhar-lhe a
carne, dilacerá-la com meus dentes, com as unhas, fazer correr gota
a gota seu sangue, e fazê-la padecer mil mortes antes de a matar!
Que prazer sentia eu vendo os garfos de ferro penetrarem no seu
corpo, em seu tenro peito, e por fim, chegarem aos ossos e às
entranhas, e tirar de cada vez pedaços de carne! Como era grande meu
contentamento contemplando as contorções e convulsões de seu
corpo, vê-la morder os beiços com a força da dor, o tremor de
todos os seus músculos, quando ela estava esticada no ecúleo,
sentir estalarem-lhe os ossos! Estes sim, são prazeres dignos de
nós, tu não és própria para pertencer a nossa seita.
– Helena
irritou-se vivamente com estas repreensões e sarcasmos, ficou
lívida, e disse-lhe:
– Se eu não sou digna de pertencer-lhe e desonro nossa seita, tu
nos envergonhas e a teu sexo. És mulher? Não! És tigre, és uma
ursa, uma hiena, uma víbora; ou antes, infernal fúria. Jamais se
ouviu linguagem tão bárbara, e cruel e tirânica sair dos lábios
de uma criatura em cujo peito palpitasse um coração? Em uma
palavra, que te fez aquela pobre menina? Quais são seus erros? Se
ela pertence à religião do Galileu, que te importa a ti, monstro?
Por acaso os sequazes do Galileu trataram tão cruelmente algum dos
nossos? Vai para junto das feras, recolhe-te em seus covis, e não
apareças mais entre os vivos! Que será feito de nós quando se
souberem estas coisas? Não seremos o alvo do ódio e execração de
todos? Que conseguiste com teus encantamentos e tua crueldade!
Fizeste aquela criatura sofrer inauditos tormentos; e depois? Ela
venceu, ela te excedeu: Roma inteira está cheia das maravilhas que
ela operou: todos hão de querer seguir sua religião e venerá-la
como Divindade. A própria Agripina se irritará contra ti, por que a
fizeste atormentar uma sobrinha; ela dirá que sua arte mágica era
mais poderosa do que a nossa, serás desterrada do paço, e conosco
de Roma. Eis os belos frutos de tua crueldade, monstro infernal!…
– Esta
é pois a gratidão que me deves? Replicou
Lucusta furiosa, é
este o galardão que recebo de te haver salvado três vezes do
desterro, mulher soberba? Tu gostarias de te relacionar com os nossos
inimigos, compadecer-te deles, aderir ao seu partido. Se ocultei o
segredo para fazer atormentar aquela inimiga, quando fiquei farta o
revelei, e ela vai morrer. Se tive gosto com seus padecimentos, que
te importa a ti louca varrida? Sei que não me podes ver, porque te
estimula o ciúme; mas eu posso agradar a outros, sem precisar de teu
velho Simão! Se não estás satisfeita, procura Agripina, revela
meus feitos, acusa-me. Percorre Roma atacando-me! Que me podes fazer,
covarde como és? Fezes de prostituição!
A
disputa se tornava séria, as rivais já não se contentavam com
insultos, agarram-se, arranharam-se, morderam-se como duas víboras
ou duas cadelas; porém, Simão se interpôs, as separou, as
repreendeu, e gritando disse: –
Pelo grande Arquiteto do Universo,
não vos enfureçais, não estabeleçais a guerra e a destruição em
nossa seita! Vai, minha cara Lucusta, acaba tua obra, tira a vida a
Prisca, senão muitos
males cairão sobre nós. Helena tem razão. Partilho teu furor,
louvo teu zelo, mas é preciso por ora moderação e astúcia.
– Fica
com tua Helena, velho estonteado, espera que eu torne a voltar! –
Partiu raivosa, fazendo
caretas a Helena, encarou-a com olhos de cobra, e partiu de corrida
com modo ameaçador.
Bem
diferentes eram as conversações que havia no Viminal, em casa de
Pudente. O Pontífice Lino avisado de que Lucusta e Simão o
procuravam e aos Cristãos para os fazer martirizar, ocultou-se nos
subterrâneos do palácio, e não aprecia em público.
Não havia suspeitas acerca dos Pudentes e de Cláudia, por isso,
Lino lhes pediu que fossem visitar Prisca,
mas sem as libertas, que a acompanhassem nos martírios, e lhe
contassem tudo que soubessem e vissem acerca da Mártir; que fizessem
diligência, na falta de
outro meio, pelo intermédio das pobres, recolhessem todas as gotas
de seu precioso sangue, e pedacinhos de carne que lhe fossem
arrancados, para servirem de relíquias que os fiéis venerassem.
Quanta consolação sentia o Santo Servo de Deus, sabendo todas as
noites novas maravilhas de sua dileta filhinha! Considerando a
emulação e entusiasmo que inspirava tão heroico exemplo às
Virgens cristãs! Uma lhe referia os prodígios que Deus fazia para
socorrê-la nestes horríveis martírios, salvá-la das chamas e do
leão, sará-la em um instante, colocar-lhe os ossos em seu lugar,
reatar-lhe os nervos, restabelecer-lhe as juntas, depois que foi
desconjuntada pelas torturas; restituir-lhe a carne, pele, e sangue
que se lhe tinha tirado, e que havia derramado, recuperar a cor
rosada, o viço e frescura da tez. Outra amiga da Mártir elogia sua
coragem, expondo-se aos verdugos e torturas, e sua intrépida
constância suportando-os. Outra referia ao Pontífice suas
sapientíssimas e admiráveis respostas, que confundiam os juízes,
espantavam os algozes; narravam-lhe a impressão que estes milagres e
virtudes causavam aos pagãos, que fazia esperar que muitos deles
abraçassem a fé. Uma tarde Cláudia, pegando em seu cestinho, lhe
disse que ia dar-lhe precioso mimo, tirou deste uma garrafinha de
sangue ainda espumoso, e lenços ensopados em sangue coalhado, e
alguns pedacinhos de carne vermelha, que ainda conservavam sinais dos
instrumentos que a tinham dilacerado e arrancado daquele tenro e
virginal corpo; dizendo-lhe: –
Eis o sangue, eis a carne de vossa filhinha e nossa irmãzinha.
O
Santo Pontífice chorou muito com ternura e consolação. Pegando na
garrafinha: –
Eis o sangue da Protomártir de Roma; eis o primeiro sangue que foi
derramado solenemente nesta grande cidade para testemunho da fé e
por amor de Cristo; derramou-o uma nobre Virgem, uma tenra menina.
Cristo se delicia com este sangue virginal e inocente. Na Judéia,
apenas nascido, exige o tributo do sangue dos Recém-nascidos; aqui
em Roma, para primícias da fé, para fundar e regar sua Igreja,
escolheu o de uma menina. Quão fecundo será este sangue! Quantas
almas há de atrair à Igreja, quantas donzelas há de entusiasmar
pela virgindade e martírio! Virgens, que me ouvis, presenciastes
grande exemplo! Exemplo da proteção divina, exemplo de heroísmo
humano. Osculai estas santas relíquias, conservai-as, venerai-as;
mas especialmente desvelai-vos na imitação desta vossa irmã.
As
virgens pressurosas foram com entusiasmo beijá-las, e em breve
mandaram fazer relicários de prata e ouro, que o Pontífice selava,
e os punham ao pescoço, como colar, conservando as outras relíquias
no Oratório; podemos dizer que foram estas as primeiras relíquias
veneradas em Roma. As libertas pediram também uma lembrança de sua
cara senhorinha, que graciosamente se lhes concedeu.
Uma
noite chegou Cláudia apressada, triste e chorosa; exclamou: –
Ah! Padre! Ah! Irmãs! Perdemos nossa Prisca!
–
Geral pranto acolheu a notícia, mas o Pontífice lhes impôs
silêncio:
– Cláudia
narrai-me sua morte, dizei-me onde está seu corpo, para que o
sepultemos com honra. Convém fazer todo o esforço para que não se
perca tão caro penhor.
Cláudia
soluçando disse: –
Eis o que me contou um Tribuno que tinha tomado parte nesta
catástrofe. No terceiro dia em que Prisca
estava fechada no templo, o
Imperador acreditando como dizia que ela se tivesse convertido,
ordenou solene sacrifício de touros. Imensa multidão de gente
atraída por viva curiosidade de ver a Mártir se reuniu. A multidão
se precipitou apenas a porta se abriu, viram no centro do edifício
com grande resplendor do Céu Prisca,
majestosamente sentada em um trono, cortejada por infinidade de
Anjos, semelhantes a mancebos de incrível formosura, e seu Ídolo em
terra, reduzido a pó. Extáticos, admiravam todos este prodígio,
somente uma mulher teve a ousadia de clamar – Mágica!
Encantamentos! Mas, fizeram-na umedecer bem a seu pesar. Sabendo
estas maravilhas vieram o Imperador e Agripina; apenas eles chegaram
aos degraus do templo desapareceu tudo, e viu-se somente Prisca,
risonha, e fulgurante.
– Onde
está meu Ídolo?
Gritou o Imperador; Prisca
fez-lhe sinal que olhasse para o pavimento: –
Não vedes que está reduzido a cinza?
– Cláudio
não se comoveu com tais milagres?
Perguntou o Pontífice.
– Pelo
contrário, replicou
Cláudia, mais se
indignou, e achando que eram em vão todos os tormentos, a condenou à
morte, mandando que fosse degolada fora da cidade, em distância de
dez milhas da porta ostiense.
– Prisca
ouvindo a sentença de morte, exultou, alegrou-se extremamente,
voltando-se para Deus, exclamou:
– Senhor
Jesus Cristo, libertador de todos, eu Te adoro, Te suplico, e invoco.
Tu, que até agora me livraste de tantos tormentos, meu Senhor Jesus
Cristo que não fazes distinção de pessoas, salva-me! Livra-me de
tantos males que me cercam, e faze que agora eu seja levada à Tua
Glória.
Voltando-se
para os algozes disse-lhes: –
Onde vos ordenam que me leveis?
– À
distância de dez milhas da porta ostiense.
– Bem;
vamos.
Prisca
tinha as mãos presas com longa cadeia, cujas pontas seguravam os
verdugos. A jornada era longa; e ela nunca a tinha feito a pé; era
débil, delicada; caminhava para a morte! Todavia, corria adiante dos
algozes, puxando-os com a sua cadeia, e zombando lhes dizia: –
Mais depressa preguiçosos! Vamos! Vamos!
Cantava, dançava, sempre com doce sorriso nos lábios, como se fosse
para um sarau ou baile.
Enfim,
chegaram ao lugar indicado, e afastando-a um pouco da estrada; a
rodearam.
– Aqui
te devemos matar.
– Concedei-me
um momento de demora, depois fazei o que se vos mandou.
Prisca
se prostrou, levantou as mãos e os olhos ao Céu, fez em voz baixa
uma oração; levantou-se, enrolou os cabelos sobre a testa,
descobriu o pescoço; ajoelhou de novo, compôs suas vestes sobre os
pés, para não se descompor caindo; cruzou as mãos sobre o peito,
inclinou a cabeça, esperando alegre e imóvel o fatal golpe. Então,
se ouviu uma voz do Céu que disse –
Pois, valorosa combateste pelo meu Nome, vem, Prisca,
entra no Reino do Céu com todos os Santos.
Um
dos algozes, com trêmula mão com um golpe da espada lhe corta o
pescoço; a cabeça resvalou sobre as vestes perto dos joelhos, e o
corpo pendeu para diante com as mãos abertas, como para abraçá-la.
Ela
morreu ontem, 18 de Janeiro, na tenra idade de 13 anos incompletos.
Acrescenta
o Tribuno, que os dois verdugos foram fulminados pelo Céu.
Pudenciana
e Praxedes, e ainda mais as libertas, choravam constantemente durante
a narração; mas o Pontífice: –
Não há motivo para chorar, lhes
advertiu, mas sim
para glorificar a Deus. Felizmente o lugar da morte é remoto, eu o
conheço bem. Amanhã muito cedo devemos ir tributar-lhe as honras
fúnebres e dar-lhe sepultura; até o dia em que aprouver a Deus
recolhê-la em Roma. Esta noite preparai tudo que é preciso.
Raiava
a aurora, e começava a alvejar o Céu, quando Lino com Cleto,
Clemente, os Clérigos, o Senador Pudente, Praxedes, Pudenciana,
Cláudia e as libertas, se encontraram na distância de dez milhas da
cidade, na estrada Ostiense. Saindo do caminho, no
lugar indicado acharam o corpo da Mártir com duas águias que o
guardavam. Lavaram-no, embalsamaram-no e vestiram-no; as senhoras o
adornaram com trajes de rainha, e as vestes que ela tinha guardaram
para relíquias. No entretanto, os coveiros que se tinham ajustado,
abriram a sepultura e depois dos ritos e aspersões, puseram o santo
corpo no sepulcro.
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Fonte:
Cardeal Wiseman, “PRISCA – Narração Histórica do Reinado de
Cláudio – Primeiro Século da Era Cristã”, Cap. XX - O
Martírio,
pp. 412-448;
traduzido do italiano; B. L. Garnier, Livreiro Editor, Rio de
Janeiro, 1879.
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