Do Verdadeiro Zelo: ódio ao pecado.
Do Falso Zelo: ódio ao pecador.
Um pecador famoso veio um dia lançar-se aos pés de um bom e digno Sacerdote, protestando com muita submissão vir para achar o remédio de seus males, isto é, para receber a santa absolvição de suas faltas. Um certo monge chamado Demófilo, achando, no seu entender, que aquele pobre penitente se aproximava demais do Santo Altar, entrou em cólera tão violenta, que, precipitando-se sobre ele a grandes pontapés, expulsou-o e exortou-o para fora dali, injuriando ultrajantemente o bom do Sacerdote, que, consoante o seu dever, docemente acolhera aquele pobre penitente; depois, correndo ao Altar, tirou dele as coisas santíssimas que ali estavam e carregou com elas, com medo, como queria fazer crer, de que pela aproximação do pecador o lugar houvesse sido profanado. Ora, tendo feito essa bela façanha de zelo, ele não ficou nisso, mas festejou-a grandemente junto ao grande São Dionísio Areopagita, por uma carta que lhe escreveu sobre isso, da qual recebeu uma resposta digna do espírito Apostólico, de que era animado esse grande discípulo de São Paulo. Pois São Dionísio lhe fez ver claramente que o seu zelo fora indiscreto, imprudente e impudente conjuntamente, visto que, embora o zelo da honra devida às coisas santas seja bom e louvável, todavia fora praticado contra toda razão, sem consideração nem julgamento algum, dado que ele empregara os pontapés, os ultrajes, injúrias e exprobrações num lugar, numa ocasião e contra pessoas a quem devia honrar, amar e respeitar; de modo que o zelo não podia ser bom, exercido como era com tamanha desordem. Mas nessa mesma resposta esse grande Santo relata outro exemplo admirável de um grande zelo procedente de uma alma muito boa, estragada todavia e viciada pelo excesso da cólera que excitara:
Um pagão seduzira e fizera voltar à idolatria um cristão candiota,1 recém-convertido à fé. Carpo, homem eminente em pureza e santidade de vida, e que há grande aparência de ter sido Bispo de Cândia, concebeu por isso tamanha cólera como nunca sofrera tal, e deixou-se arrastar tanto por essa paixão, que, levantando-se à meia-noite para rezar segundo seu costume, concluiu consigo mesmo não ser razoável que os homens ímpios vivessem mais, rogando à Divina Justiça matar com um raio aqueles dois pecadores juntos, o pagão sedutor e o cristão seduzido. Vede, porém, Teótimo, o que Deus fez para corrigir a aspereza da paixão de que o pobre Carpo estava dominado. Primeiramente fez-lhe ver, como a outro Santo Estêvão, o Céu todo aberto, e Jesus Cristo Nosso Senhor sentado num grande trono, rodeado por uma multidão de Anjos que lhe assistiam em forma humana; depois ele viu em baixo a terra aberta como um horrível e vasto báratro2 e os dois desviados, a quem ele desejara tanto mal, à beira desse precipício, trêmulos e quase desmaiados de pavor, por estarem prestes a cair dentro, atraídos de um lado por uma multidão de serpentes, que, saindo do abismo, se lhes enroscavam nas pernas e com as caudas lhes faziam cócegas e os provocavam à queda; e, do outro lado, certos homens que os empurravam e batiam para os fazerem cair, de modo que eles pareciam estar a pique de ser abismados naquele precipício. Ora, considerai, rogo-vos, Teótimo, a violência da paixão de Carpo. Porque, conforme ele mesmo contava depois a São Dionísio, ele não fazia caso de contemplar Nosso Senhor e os Anjos que se mostravam no Céu, tanto prazer achava em ver embaixo a angústia tremenda daqueles dois míseros maus, incomodando-se somente com o fato de tardarem eles tanto a perecer, e esforçando-se portanto para os precipitar por si mesmo; e, não o podendo fazer logo, despeitava-se com isso e os maldizia, até que enfim, levantando os olhos ao Céu, viu o meigo e mui compassivo Salvador que, por uma extrema piedade e compaixão do que se passava, se levantou do seu trono e, descendo até o lugar onde estavam aqueles dois pobres miseráveis, lhe estendeu a Sua mão providente, ao mesmo tempo que os Anjos também, uns de um lado, outros de outro, os retinham para impedi-los de cair naquele tremendo abismo; e, por conclusão, o amável e bondoso Jesus, dirigindo-se ao colérico Carpo, diz: olha, Carpo, bate agora em Mim; pois estou pronto a padecer mais uma vez para salvar os homens; e isto Me seria agradável se pudesse suceder sem o pecado dos outros homens. Porém, ademais, reflete o que te seria melhor, estar neste abismo com as serpentes ou ficar com os Anjos que são tão grandes amigos dos homens. Teótimo, o santo homem Carpo tinha razão de entrar em zelo por aqueles dois homens, e o seu zelo excitara justamente a cólera contra eles; porém, uma vez movida, a cólera deixara a razão e o zelo para trás, ultrapassando as fronteiras e limites do Santo Amor, e por conseguinte do zelo, que lhe é o fervor. Convertera o ódio do pecado em ódio do pecador, e a dulcíssima caridade em furiosa crueldade.
Assim há pessoas que pensam que não se possa ter muito zelo, se não se tem muita cólera, achando não poderem acomodar coisa alguma se não estragarem tudo, conquanto, ao contrário, o verdadeiro zelo quase nunca se sirva da cólera: porque, assim como não se aplica o ferro e o fogo aos doentes senão quando não se pode fazer de outro modo, assim também o santo zelo não emprega a cólera senão nas extremas necessidades.
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Fonte: São Francisco de Sales, “Tratado do Amor de Deus”, Livro X, Cap. XV, pp. 540-543. 2ª Edição, Ed. Vozes Ltda, Petrópolis/RJ, 1996.
1. Pertencente à Ilha de Cândia ou Creta.
2. Abismo, voragem (o Inferno).
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