Blog Católico, para os Católicos

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"Uma vez que, como todos os fiéis, são encarregados por Deus do apostolado em virtude do Batismo e da Confirmação, os leigos têm a OBRIGAÇÃO e o DIREITO, individualmente ou agrupados em associações, de trabalhar para que a mensagem divina da salvação seja conhecida e recebida por todos os homens e por toda a terra; esta obrigação é ainda mais presente se levarmos em conta que é somente através deles que os homens podem ouvir o Evangelho e conhecer a Cristo. Nas comunidades eclesiais, a ação deles é tão necessária que, sem ela, o apostolado dos pastores não pode, o mais das vezes, obter seu pleno efeito" (S.S. o Papa Pio XII, Discurso de 20 de fevereiro de 1946: citado por João Paulo II, CL 9; cfr. Catecismo da Igreja Católica, n. 900).

sábado, 24 de fevereiro de 2024

AS BOAS OBRAS E O INFERNO, NUM ESPANTOSO CASO.

 

HISTÓRIA MEMORÁVEL E ANTIGA,

DA QUAL, ENTRE OUTRAS

VERDADES CATÓLICAS,

SE PROVA, CONTRA OS SECTÁRIOS,

A NECESSIDADE DAS BOAS OBRAS

PARA A SALVAÇÃO ETERNA.


Na cidade de Cartago na África, nos tempos de Nicetas, patrício,1 houve um soldado pretoriano, oficial de certo magistrado maior, o qual estragara muito com pecados, sua primeira idade e depois, por ocasião de uma pestilência geral, compungido e temeroso com a mortandade de tantos tão repentinamente, se retirou, com sua mulher, a uma pequena propriedade rural no interior. Porém, nem aqui o deixou o Demônio prosseguir quietamente seus exercícios de devoção e penitência, antes o fez cair em adultério com a mulher de um rústico seu vizinho. Não muito tempo depois, adoeceu e morreu de males, porque os males da pena se proporcionam com os males da culpa: Per quae peccat quis, per haec et torquetur.

Havia, em distância de uma milha, um Mosteiro, cujos religiosos, rogados pela mulher do soldado, o acompanharam e enterraram na sua igreja à hora de Terça. Mas, estando depois rezando Noa, ouviram uma lastimosa voz, que parecia sair daquela mesma sepultura e dizia: Misericórdia, tende de mim misericórdia. Certificados, mais que daquela parte procedia aquele gemido, acodem logo a retirar a laje da sepultura; acham vivo o soldado. Uns o levantam da cova, outros lhes desamarram, outros lhe perguntam o que lhe aconteceu, e todos admirados, estavam pendentes da boca do redivivo, esperando novas do outro mundo. Mas ele, podendo mal formar algumas palavras, entre muitos gemidos, rogou que o levassem à presença de Talássio, varão santo que florescia então naquelas partes. Levado ali, com efeito, informaram a Talássio2 do que se tinha passado, o qual por três dias continuou em dar-lhe as consolações e doutrinas em tal caso, oportunas, e no quarto dia o veio a reduzir a que contasse o que lhe acontecera. Cuja relação, acompanhada com pranto e interrompida com suspiros, foi a seguinte:



Irmãos caríssimos: – Quando eu estava em passamento e já quase arrancando, vi diante de mim3 uns feros negros agigantados, cuja vista me era mais odiosa e insofrível, que qualquer outro tormento, e a alma, conturbada e medrosa, se encolhia todo o possível dentro de si mesma. Daí a pouco, vi dois mancebos formosíssimos, e logo a minha alma saltou fora do corpo e se lhes pôs nas mãos e comecei a voar em sua companhia por essas regiões aéreas. Onde encontramos várias tropas como de delatores e cobradores, que cercavam os caminhos e detinham os passageiros. E havia também muitas como alfândegas ou mesas, cada uma com seu almoxarife, com livro de razão e pediam conta, uns deste vício, outros daquele, cada qual do que lhe tocava, e sem pagarem não os deixavam passar adiante. Ninguém pode explicar a severidade, aperto e miudeza com que faziam o seu ofício.

Cada vez que eu empatava em algumas destas alfândegas, via que os meus dois companheiros, metendo a mão em umas bolsas em que levavam todas as minhas Obras Boas, que tinha feito, tiravam com que pagar aos cobradores, que pesavam tal por tal, palavra proveitosa por palavra ociosa, verdade por mentira, aplicação na reza por distração e, enfim, virtude por vício, com exigência e sumo rigor; e feito isto, passávamos livres adiante. Até que chegamos à alfândega da luxúria, que estava muito acima, e já as minhas bolsas iam vazias. Ali me agarraram os delatores e me representaram vivissimamente na memória, quanto neste vício tinha delinquido, que era muito e mui feio, porque da idade de 12 anos comecei a depravar-me. Oh! Anos de minha perdição e miséria! Estava eu desconsoladíssmo e desanimado por ver tanta fealdade, de que não podia negar ser o autor. A isto acudiram meus companheiros, dizendo que tudo o que pertencia a este ponto estava perdoado de graça, quando deixara a cidade e me retirava a melhor vida. Porém, da contrária parte, replicaram que, ainda depois da retirada, cometera adultério duplicado, de casado com casada. Neste passo, os meus companheiros, não achando nas bolsas virtude que pôr contra tão grave pecado,4 deixaram-me ali, como penhor ou represália, e se ausentaram.

E logo aqueles Demônios, arrebatando-me furiosamente, me açoitaram e derrubaram em terra, para a qual, abrindo-se, fui levado por umas cavernas medonhas, por umas encruzilhadas subterrâneas escuríssimas e apertadíssimas, até chegarmos ao reino da morte eterna, onde com os miseráveis condenados moram a tristeza imortal, a dor inconsolável, o pranto, o rugir dos leões famintos e, finalmente, a total ausência de Deus, irado e irreconciliável. Dizer o que ali se passa, sem que jamais possa passar, por toda a eternidade, não cabe na língua humana; e por isso, eu antes, quereria calar-me. Choram os réprobos lágrimas que queimam e ninguém se condói. Ouve-se o bater de dentes e não há esperança de remédio. Puxam do íntimo do espírito uns gemidos mui tristes e prolongados e não aparece o rosto da misericórdia, porque tudo ali é

confusa multidão de ais e clamores,

de atormentados e atormentadores.

Aqui fui arremessado como infame remador de galés, condenado, segundo o que me parecia, ao mesmo remo da miséria última e interminável; aqui a estive chorando até que, à hora que depois conheci ser de Noa, vi outra vez os dois Anjos, a quem comecei a rogar com quanta instância pude, que me tirassem daquele calabouço, para fazer penitência com que aplacasse a Deus e satisfizesse por meus pecados. “Em vão rogas, me responderam os Anjos, porque nenhum dos que aqui estão sairá senão no dia da Ressurreição Universal”.5 Porém, perseverando eu, todavia, em pedir tempo de penitência e prometendo de a fazer cumpridamente, disse um dos Anjos para o outro: Ficas por fiador deste, que fará penitência, se tornar ao mundo? Fico (respondeu ele), e vi que lhe deu a mão, a qual o outro aceitou. E logo ambos me tiraram fora e trouxeram a terra e me meteram dentro da sepultura junto ao meu cadáver, dizendo: “Entra donde há pouco te afastaste por divórcio”. E a minha alma via a sua natureza própria à semelhança de um cristal transparente ou de um diamante bem lavrado, e a do seu corpo, onde havia de entrar, por modo de um montinho de lodo escuro e sumamente asqueroso, e se lhe fez mui duro e molesto o mandamento de entrar ali e tornar a ser moradora de tão triste, imunda e estreita casa. O que vendo os Anjos, lhe disseram: “No corpo pecaste, no corpo é preciso que faças penitência”. Minha alma lhes requeria que a deixassem ficar fora; porém, eles responderam: “Desengana-te que, ou hás de entrar aqui ou tornar para onde te trouxemos”. Entrou então, quase violentada. E comecei a clamar desde a sepultura Misericórdia, que foi a voz que ouvistes.

Acabando o soldado de referir a história,6 o venerando e piedoso Talássio, lhe rogava que comece para sustentar a vida que Deus, por especial providência, quisera conceder-lhe; porém, não o pode convencer a isso, dizendo que a vida, lhe era dada toda para penitência. Dali por diante andava de igreja em igreja, de peito e rosto por terra, e de quando em quando, levantando a voz, lançava este horrendo pregão: Ai dos pecadores, que não fazem penitência! Oh, que tormentos os esperam! Ai dos pecadores, que mancharam seus corpos com deleites torpes! Oh, que Inferno os espera! Deste modo perseverou quarenta dias contínuos, com notável fruto dos que o ouviam e sabiam do que tinha acontecido, que não deviam ser tão duros de coração como aqueles de quem o Patriarca Abraão disse ao rico avarento, quando lhe demandava um pregador saído do outro mundo para convertê-los: Lá tem a Moisés e aos Profetas, e, se a estes não dão crédito, também não o darão aos mortos ressuscitados. Purificado, enfim, aquele espírito com esta saudável quaresma de penitência, havendo três dias antes, dito quando se havia de partir, no último deles se desatou do corpo felizmente.



Deste maravilhoso caso, consta notoriamente a verdade, de que só as obras de cada um o acompanham, ao passar deste mundo e a importância suma, de que as obras boas prevaleçam às pecaminosas. Não porque os pecadores não se salvem só com um ato de verdadeira contrição, que façam no último instante de sua vida, ainda que esta fosse toda consumida em ofensas de Deus, nem porque muitos não se salvem com menos exercício de virtudes que de vícios, uma vez que a morte os colhessem em estado de graça, senão porque o dom da perseverança final e o auxílio eficaz para fazer esse tal ato de contrição, Deus, que não o deve de justiça (pois é mera graça Sua), porventura, que não o dará, ou não costuma dar, senão atendendo as balanças de nossas obras, contrapesando a das boas com a das pecaminosas. Por onde importa muito empregar bem o tempo em carregar daquelas e descarregar destas, porque, acabando-se o dia e entrando a noite, já nem uma nem outra diligência se pode fazer, como nos avisa nosso Salvador:7 Venit nox, quando nemo potest operari. Quanto mais que bem sabe cada um os pecados que cometem, ao menos em confuso e sem ofender a verdade daquele texto:8 Delicta quis intelligit? Quem entende os delitos? Porém,9 se lhe estão já perdoados ou se é digno do amor ou do ódio de Deus, isso totalmente ignora, e, por conseguinte, sempre lhe importa andar solícito em fazer cada dia mais e mais certa a sua eleição e salvação por obras santas, como nos admoesta o Príncipe dos Apóstolos.10 E, ainda no caso que de certo soubesse estar em amizade de Deus, sempre deve procurar adiantar-se nela, pois nesta vida não tem limite certo (como erradamente afirmaram os begardos, ou beguinos, condenados no Concílio Vienense, que congregou o Papa Clemente V11), e, conforme forem agora em uma alma as riquezas da caridade, serão depois os graus e aumentos de sua glória. Não desprezemos, pois, este terceiro amigo (que é o exercício de boas obras), pois ele só é o fiel e verdadeiro.


____________________________

Fonte: Obras Primas da Literatura Portuguesa“Nova Floresta”, pelo Pe. Manuel Bernardes, Oratoriano, Primeiro Tomo, Título IV, Cap. XXII, Amizade, pp. 171-177. Nova Edição. Livraria Lello & Irmão, editores. Porto/Lisboa, 1949.

1.  Zamaras, tom. 3, Annalium.

2.  Este Talássio foi Monge e Presbítero, de nome célebre, de nacionalidade grega, ou, pelo menos, douto naquela língua.

3.  Representou Deus a esta alma, por símbolos materiais, o que espiritualmente passa no Juízo de qualquer outra em termos equivalentes.

4.  Note-se a gravidade do pecado de Adultério, que muitos tão facilmente desprezam.

5.  Deve-se entender, que sairão as almas dos condenados, para dar conta, e aparecer no Juízo Universal, porém, tornam depois para o Inferno, juntamente com os seus corpos, porque será confirmada a sentença da sua reprovação eterna.

6.  O tornar esta alma ao seu corpo, nada tem contra a boa teologia, porque a exceção não tira a regra, antes a confirma, nem a dispensação particular derroga a lei comum. Suspende Deus a Sua sentença final e decretória, pelos fins que Ele sabe, como em outros exemplos têm feito, e lhe mostrou o Inferno e o rigor de Seu juízo, para que muitos se convertessem.

7.  Joan. IX, 4.

8.  Salm. XVIII, 13.

9.  Ecle. IX, 1. “Nescit homo utrum amore vel odio dignus sit”; Ecle., V, 5. “De propitiato peccato noli esse sine metu”.

10.  2º Ped. X, . “Fratres magis fatagite, ut per bona opera certam vocationem, et electionem faciatis”.

11.  Ano de 1311.


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