Dom
Estêvão Bettencourt (OSB)
1.
A raiz do mal
1.1.
Para explicar a atual divergência de crenças cristãs, levar-se-ão
em conta dois fatores capitais:
1)
uma observação geral impõe-se imediatamente: tudo que é humano, é
sempre marcado pelo cunho do individual; o homem tende sempre a
imprimir sua índole pessoal às suas palavras e às suas obras. Até
mesmo a Religião (diríamos mesmo: de modo particular, a Religião)
é afetada por essa tendência, pois é professada e vivida por
homens. Com efeito, a Religião, em virtude da sua finalidade de unir
o homem com Deus (o Valor Máximo), solicita a personalidade toda da
criatura, fazendo-a vibrar com tudo que ela tem de mais íntimo ; os
temperamentos mais diversos (exaltados ou melancólicos, místicos ou
racionalistas) se exprimem espontaneamente através das fórmulas
religiosas, chegando por vezes a tomar atitudes apaixonadas, pois a
Religião toca os mais profundos anelos do homem.
Ainda
por outro motivo a Religião é setor em que muito facilmente
prorrompem os subjetivismos humanos: toda profissão de fé religiosa
tem de per si consequências na vida prática do respectivo sujeito;
ora, se este se acha preso a certos hábitos dos quais não tenha a
coragem de se desvencilhar, tal indivíduo, consciente ou
inconscientemente, tende a conceber a sua Religião ou a sua «fé»
de modo tal que não interfira na sua conduta de vida. A experiência
o comprova bem: é
comum encontrarem-se pessoas que, embora sejam inteligentes e cultas,
rejeitam verdades óbvias ou comumente aceitas, fazendo a sua
religião própria, ou simplesmente abandonando toda crença
religiosa, a fim de não desdizerem ao gênero de vida que levam.
2)
Conhecedor dessa índole natural do homem, o Senhor Deus, querendo
entregar às criaturas a sua Palavra de Verdade e Vida, houve por bem
muni-la de um meio que a preservasse dos mal-entendidos. Com efeito;
instituiu um
magistério visível, órgão de interpretação autêntica, que, por
assistência do próprio Deus, seria capaz de guardar e transmitir a
todas as gerações o genuíno sentido da Palavra Revelada. Tal
magistério é o da Santa Igreja de Cristo, a qual desde os tempos de
Jesus até hoje ininterruptamente se faz ouvir.
Uma
parte da Verdade divina revelada por via meramente oral foi no
decorrer dos tempos consignada por escrito, a fim de atender a
necessidades ocasionais dos fiéis desta ou daquela região, desta ou
daquela época; assim é que surgiram paulatinamente, desde os tempos
de Moisés (séc. XIII a.C.) até os de São João Evangelista (fim
do séc. I d. C.), os escritos (narrativas, cartas, pequenos livros
didáticos) do Antigo e do Novo Testamento ou da Escritura Sagrada
(Bíblia); os respectivos autores nunca tiveram a intenção de
resumir nesses escritos toda a Revelação Divina, mas apenas
quiseram focalizar aspectos da mesma, em vista de circunstâncias
esporádicas do povo de Deus; em torno desses livros, permanecia o
conjunto da Revelação Divina, a ser transmitida oralmente de
geração em geração; deve-se mesmo dizer que essa tradição oral
(guardada fielmente por assistência do Espírito Santo) ficava sendo
o critério para se interpretar a Escritura Sagrada.
Anterior
à Bíblia, a tradição oral é como que a mãe da Bíblia, mãe sem
a qual a Escritura não pode ser devidamente entendida. Ora — seja
lícito repetir — essa tradição ainda hoje vive e é afirmada
pelo ensinamento oficial da Santa Igreja.
Eis,
porém, que no séc. XVI, após outros pretensos reformadores menos
importantes, Lutero tomou como base de
uma nova forma de
Cristianismo o princípio de que só
a Bíblia é fonte de doutrina, fonte capaz de
se explicar a si mesma sem
as luzes do magistério da Igreja. Com isto, o «Reformador»
esperava conseguir um Cristianismo preservado de qualquer possível
corrupção humana: Lutero
julgava que a Igreja e as gerações de cristãos anteriores haviam
errado decisivamente e que lhe cabia o privilégio de «redescobrir»
o Evangelho.
Como
se podia prever, porém, este parecer comprovou-se ilusório. E como
?
Entende-se
que, se Lutero atribuía a si o direito de se emancipar do magistério
da Igreja para se tornar novo «mestre», muitos discípulos seus,
nos séculos subsequentes, se julgaram habilitados a fazer outro
tanto em relação ao «Reformador», de sorte que novos «Luteros»
ou novos «Reformadores»— Reformadores da própria Religião
reformada — foram surgindo (Wesley, Smith, Helen White…); assim o
processo de reformar o Cristianismo se foi ramificando e ampliando em
ritmo crescente até nossos dias, quando chega a haver mais de
oitocentas seitas, sem que se possa prever o termo final do afã de
«redescobrir» o Evangelho. A causa dessa multiplicação de
reformas e seitas é, antes do mais, a renegação de um magistério
visível, instituído por Deus e independente do senso subjetivo dos
«videntes» (que não podem deixar de surgir na história dos
séculos).
Em consequência, percebe-se claramente o dilema:
a)
ou o cristão aceita a Escritura Sagrada com a Revelação oral que a
antecedeu e a acompanha e sem a qual a Escritura não pode ser
mantida acima dos subjetivismos humanos;
b)
ou o cristão, consciente ou inconscientemente, chega a renegar o
Cristianismo inteiro, guardando apenas palavras e rótulos que só
encobrem as
concepções individualistas
e mais ou menos contraditórias de tais ou tais «videntes».
Basta
lembrar que foi justamente das escolas protestantes que procederam os
exegetas liberais modernos, os quais mutilaram a Escritura Sagrada e
chegaram a negar a Divindade de Cristo.
1.2.
A esta altura, porém, talvez diga alguém: «Então requer-se fé, e
fé na face humana da Igreja, para abraçar o Cristianismo !»
–
Não há dúvida alguma responde o fiel católico. «O justo vive da
fé», afirma o Apóstolo três vezes (cf. Gál 3,11; Rom 1,17; Hebr
10,38), repetindo palavras do profeta Habacuque (cf. Hab 2,4). A fé
é a artéria central da vida cristã.
—
Mas… fé não somente em Deus? Fé também na Igreja visível ?
—
Sim. Note-se que o mistério donde o Cristianismo deriva seu nome, é
o mistério de Cristo ou o mistério de Deus feito homem; Deus se
dignou falar aos homens na plenitude dos tempos — assim como já
antes, no Antigo Testamento — por meio de sinais humanos, ou seja,
de maneira objetiva, perceptível a todos; é bem lógico, por
conseguinte, que também após a vinda de Cristo o Todo-Poderoso não
queira ser atingido senão através dessa realidade divino-humana que
é o Cristo
prolongado em seu Corpo Místico ou a Igreja Esta enquanto Cristo
nela vive, é uma sociedade sobrenatural infalível; enquanto, porém,
é representada por homens e tem uma face humana (o mistério da
Encarnação consistiu justamente em colocar o Divino dentro do
humano), é marcada pelas deficiências inerentes aos homens; essas
deficiências porem, não contaminam em absoluto sua pureza
intrínseca nem impedem que a Igreja, por seus ministros, comunique
aos homens a multiforme graça de Deus (como a carne de Cristo
padecente e mortal não foi empecilho, mas, ao contrário fator
positivo, para que Deus se entregasse ao gênero humano).
De
resto, o Senhor não exige que a fé prestada à Igreja seja uma fé
cega. A todo homem toca o direito de examinar as credenciais da Santa
Igreja Católica, antes de professar adesão a esta ; fazendo isto, o
estudioso verifica que o próprio Cristo nos Evangelhos dotou a
Igreja de um magistério infalível (cf. Mt 16,17-19 ; 28,19s ; Lc
22,31s) ; verifica outrossim que a existência deste magistério é
comprovada pela história dos fatos, pois, sempre que os homens
quiseram denegar fé à face humana e visível da Igreja, para
tributá-la apenas a Cristo e aos Evangelhos, nem sequer guardaram fé
no Cristo e nos Evangelhos, mas retorceram de diversos modos a
mensagem cristã.
Mais
amplas considerações sobre o magistério da Igreja se encontram em
«P. R.» 13/1959, qu. 2; 14/1959, qu. 2 e 3.
2.
Breve reflexão sobre a divisão entre cristãos
2.1.
A história dá a ver que na origem das divisões entre os discípulos
de Cristo estão geralmente alguns fatores clássicos, que se
poderiam assim discriminar: em determinada época, um cristão julga
que seus irmãos na fé, até mesmo os que mais autoridade possuem,
estão errando por seu gênero de vida e pelo seu modo de entenderem
a mensagem de Cristo. Tal cristão então, inspirado por grande
fervor, concebe um Cristianismo reformado, puro, que ele pretende
justificar mediante proposições do Evangelho. Esse homem bem
intencionado, porém, deixa-se empolgar ou obcecar por seu ideal; aos
poucos coloca a sua intuição acima de qualquer exigência da
caridade; deixa que o espírito de crítica nele prepondere sobre o
amor ao próximo; com isto corrói mais do que conserta ; por fim
sequestra-se da massa dos «pecadores cristãos», levando consigo um
grupo de discípulos, com os quais passa a constituir uma «igrejinha»
ou uma seita própria… É isto, sim, o que acontece quando o homem
se guia pela razão sem atender ao coração ou quando a inteligência
gera uma espécie de intelectualismo frio, unilateral; desencadeia-se
então a ruptura e forma-se um novo credo entre os cristãos. Jacques
Maritain diz muito acertadamente : «Se, em vez de ficar no coração,
a pureza sobe à cabeça, ela produz sectários e hereges»
(Humanisme intégral 265).
Não
há dúvida, na origem dos cismas sucessivamente verificados entre os
cristãos no decorrer dos séculos, encontra-se um núcleo de verdade
ou uma intuição sadia. O mal, porém, consistiu em que esta
absorveu a atenção dos respectivos «iluminados», a ponto de fazer
fermentar os ânimos e violar as exigências da caridade, a qual é
prudente e paciente.
São
palavras do Sto. Padre o Papa Pio XI:
«Todas
as vezes que o zelo reformador… se tornou expressão e explosão da
paixão, turvou em lugar de esclarecer, destruiu em vez de construir,
e mais de uma vez veio a ser o ponto de partida para aberrações
mais fatais do que os males que se pretendiam sanear» (ene. «Mit
brennender Sorge», 14 de março de 1937. Acta Apostolicae Sedis
1937, pág. 154).
Para
o cristão, não pode haver autêntica renovação senão em comunhão
com o todo ou com o grande Corpo da Igreja ; os verdadeiros místicos
ou iluminados (como S. Francisco de Assis, S. Domingos, S. João da
Cruz, Sta. Teresa de Jesus…) conseguiram sempre resultados
estupendos de reavivamento cristão, mostrando-se humildes e
guardando reverência para com as autoridades da Igreja (estas,
em última análise, são instituídas por Deus e, ainda que não
sejam sempre pessoalmente santas, não deixam de ser instrumentos
manejados pelo Senhor e portadores da respectiva graça de estado).
Em
poucas palavras, a mentalidade que o reformador cismático nutre em
seu íntimo se poderia assim traduzir: «A Igreja errou; eu, porém,
não estou errando ; prevaleça, por conseguinte, meu ponto de vista,
ainda que eu tenha que romper com a comunidade». Ora tal mentalidade
já é afoita e perigosa no plano das instituições humanas ; em se
tratando, porém, das coisas de Deus, é mortal, pois nada há de tão
alheio às obras de Deus quanto a divisão e a ruptura entre os
homens.
Ainda
se poderia lembrar que, além de divergências propriamente
religiosas, certas diferenças de índole nacional ou política têm
motivado, às vezes sorrateira e inconscientemente, a separação
entre os cristãos. Mais de uma tentativa de refazer, no decurso da
história, a unidade entre os dissidentes e a Santa Igreja foi
entravada pela intervenção de fatores não teológicos, mas
nacionalistas e mesquinhos.
2.2.
É sobre este fundo de ideias que, mais oportuna do que nunca, ressoa
a norma recentemente formulada por S. S. o Papa João XXIII ao tratar
da planejada união entre os cristãos:
«Haja
unidade nas coisas essenciais, liberdade nas coisas acidentais, e
caridade em todas as coisas» (ene. «Ad Petri Cathedram», 29 de
junho de 1959).
Este
principio, entre outras coisas, quer dizer o seguinte: o discípulo
de Cristo não pode pactuar com o erro nem aceitar a mínima
corrupção da verdade entregue pelo Senhor aos Apóstolos e
ininterruptamente transmitida, sob a assistência do Espírito Santo,
de geração a geração até hoje. Antes morrer do que desvirtuar de
algum modo a mensagem da autêntica Tradição cristã.
Contudo, embora não possa legitimar o erro, o católico tem que amar
o homem que erra;
Cristo morreu por todos os indivíduos humanos, mesmo pelos que hoje
consciente ou inconscientemente não são fiéis à mensagem do
Evangelho ; o verdadeiro seguidor de Cristo, prolongando o amor do
Divino Mestre, deverá consequentemente querer bem a todos os homens,
ainda que causem graves danos à Verdade e ao Bem. «Ódio ao pecado,
mas amor à pessoa do pecador», diria S. Agostinho; destruamos,
portanto, o erro, mas procuremos a todo transe salvar o homem que
erra.
Donde
se vê quão injustificadas são as querelas religiosas,
principalmente quando acarretam incriminações
pessoais, com
detrimento geralmente grave para a caridade; não se pode dizer que
tais litígios sejam sustentados em nome do Evangelho ou por amor
genuíno ao Senhor Jesus; em verdade, não são mais do que expansões
da paixão, que, em hipótese nenhuma, poderiam agradar a Cristo e
construir o Reino de Deus. O sincero amigo do Divino Mestre, ao
defender a Verdade, mostrar-se-á também amigo do seu contendente…
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