Análise do termo técnico corrupção,
que no mundo jurídico
tem alguns sentidos muito precisos
Há certas palavras que vão tomando, no vocabulário comum,
acepções mais amplas do que têm em sua significação mais técnica. Uma
delas é o termo “corrupção”, que, no mundo jurídico, tem alguns sentidos
muito precisos; significa, por exemplo, adulterar a qualidade de alguma
coisa, tornando-a maléfica ou imprestável. É o caso do tipo penal do
art. 271 do Código Penal: corrupção de água potável; ou ainda o art.
272, corrupção de substância ou produto alimentício.
Num sentido mais próximo do vulgar, mas ainda bem restrito,
fala-se, no Código Penal, em “corrupção” como o crime daquela pessoa que
oferece ou promete vantagem indevida a funcionário público, para
determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício: é o art. 333.
A lei criminaliza ainda o servidor público que aceita tal vantagem ou
promessa no art. 317.
O sentido, aqui, é, no entanto, ainda muito mais restrito que o
sentido vulgar: para considerar alguém corrupto, é necessário provar que
houve efetivamente uma oferta ou promessa de vantagem indevida, que o
recebedor era servidor público, que a vantagem tinha relação com suas
funções e que ele, em qualquer medida, tinha, ao menos em tese, o poder
de praticar o ato que se visava alterar pela oferta da vantagem.
É também neste sentido que a Constituição Federal usa a palavra na
única vez que a menciona no seu texto: é o art. 14, § 10, que considera
impugnáveis os mandatos eletivos obtidos mediante abuso do poder
econômico, corrupção ou fraude.
Não é neste sentido preciso, mas no sentido muito mais largo do seu
uso popular, que o clamor “contra a corrupção” vem mais uma vez se
elevando nas ruas. O uso que se faz ali do termo “corrupção” é muito
mais amplo e abrangente do que o sentido do “nomen juris” de um tipo
penal. É preciso ouvir e compreender essas vozes, para as quais o termo
“corrupção” parece significar, imprecisamente, todo exercício de poder
que se desgarra da sua finalidade republicana de buscar o bem comum.
Neste sentido, no brado “contra a corrupção”, o sentido do termo
parece aproximar-se muito mais daquilo que a Constituição denomina de
“improbidade administrativa” (art. 15, V, e art. 37, § 4º da CF 1988),
vale dizer, o desvio de finalidade existente naqueles atos praticados
por agentes políticos, públicos ou delegados, que deixem de observar os
princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência, para buscar a simples vantagem pessoal, para si ou seu
grupo. O sentido jurídico da improbidade e sua repressão estão na lei
federal n.º 8.429/92, conhecida como “lei da improbidade
administrativa”; e ela não pertence à esfera penal propriamente dita:
suas sanções estão na área administrativa, política e civil; envolvem
multas, suspensão de direitos políticos e do direito de contratar com a
Administração, cassação de mandatos, ressarcimento dos cofres públicos e
inelegibilidade, dentre outras. Isto tudo sem prejuízo, quando for o
caso,de que os agentes ímprobos sejam também processados e condenados
pelos crimes que cometerem, inclusive a corrupção em sentido estrito.
Seria um absurdo querer ou imaginar que os clamores do povo fizessem a
distinção deste tipo de tecnicismo jurídico. As pessoas, de modo geral,
desconhecem estes detalhes. Não cabe à população procurar os termos
jurídicos para expressar: cabe aos dirigentes e agentes públicos e
políticos compreender as vozes populares e encontrar os meios jurídicos
para expressá-la e torná-la efetiva.
Este é, em grande medida, o problema da chamada “PEC 37”, que cria um
monopólio de investigação criminal nas mãos da polícia. Ela torna mais
estreita e burocrática a possibilidade de investigar os crimes de
corrupção. “O mal feito é da conta de todos”, diz um velho ditado
popular que esta PEC parece desconhecer. E foram exatamente as
manifestações populares a captar o sentido pouco democrático da
proposta, veiculada neste Projeto de Emenda Constitucional, da criação
de um “monopólio de investigação” das condutas antirrepublicanas
criminosas em um único órgão (a Polícia), excluindo diversos outros
órgãos administrativos da legitimidade para investigar. Ver um assunto
aparentemente tão técnico e restrito a especialistas virar bandeira
popular foi talvez o mais inesperado e emocionante para os agentes
públicos que lidam profissionalmente com o assunto.
Há, certamente, algo mais no clamor das ruas do que o simples grito
pela efetiva aplicação das sanções jurídicas a corruptos e ímprobos. Há
uma ansiedade, uma pressa, pela efetiva melhoria da vida, uma sensação
difusa de insatisfação com uma classe dirigente que parece incapaz de
captar os anseios populares e concretizá-los. Há uma indignação com a
corrupção num nível muito mais profundo que o ordenamento jurídico
atualmente em vigor é capaz de responder.
Neste sentido, há uma homilia do Papa Francisco, de 04 de junho de
2013, que pode ajudar muito a pensar a corrupção numa dimensão mais
profunda, guiando os operadores jurídicos e, em especial, os
legisladores e os membros do Ministério Público para um discernimento
mais profundo sobre o que são, de fato, as pessoas corruptas. Fazendo
uma meditação sobre a diferença entre pecado e corrupção, o Santo Padre
aponta para a intuição de que, se por um lado somos todos pecadores, o
corrupto é aquele que foi um passo além: perdeu a noção do bem e do mal.
Já não sabe o que é o pecado. “Conhecemos o nosso interior e sabemos o
que é um pecador. E se algum de nós não se sente pecador, procure um bom
‘médico espiritual’, porque "alguma coisa está errada", ensina-nos o
Papa.
Os corruptos, no entanto, ensina-nos o Papa, querem "apropriar-se da
vinha e perderam o relacionamento com o dono dela", que "nos chamou com
amor, que zela por nós e também nos dá a liberdade". Assim, lembra ele, a
relação com o Bem está impressa no código genético do ser humano, mas
os corruptos procuram negá-la. Assim,os corruptos fazem de si mesmo o
único bem, o único sentido: negando-se a reconhecer a Deus, sumo Bem,
“fazem para si um Deus especial: são Deus eles mesmos".
"Judas começou, de pecador avaro e terminou na corrupção. O caminho
da autonomia é um caminho perigoso: os corruptos são grandes
desmemoriados, esqueceram este amor, com o qual o Senhor plantou a
vinha...". Os verdadeiros e maiores corruptos, ensina o Papa, são
aqueles para quem eles mesmos são a única origem e o único fim,ainda que
sejam hipócritas o suficiente para enganar a todos em nome de um bem
comum que juram defender, mas já não reconhecem. Fingem amar aos demais,
mas amam somente a si mesmos. "Cortaram a relação com este amor!”, diz o
Papa. “E eles se converteram em adoradores de si mesmos. Quanto mal
causaram os corruptos nas comunidades cristãs! Que o Senhor nos livre de
escorregar neste caminho da corrupção".
A responsabilidade que os jovens, nas ruas, estão nos legando, é
grande. Grandes mobilizações populares demonstram grandes anseios, que
podem lastrear grandes avanços democráticos e sociais, mas também podem
ser sequestrados pelos próprios corruptos – aqueles que forem hipócritas
o suficiente para prometer mudanças rápidas e eficazes naquilo cuja
construção é, em si mesma, lenta e penosa. Cabe-nos utilizar não somente
o instrumental jurídico atualmente em vigor, mas também aperfeiçoá-lo,
para ampliar o combate contra a corrupção naquilo que ela tem de mais
profundo: seu poder de sugar a esperança do povo.
(24 de Junho de 2013) © Innovative Media Inc.
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