A
conversão de São Paulo deu-se no mesmo ano em que Cristo foi
crucificado e em que Estêvão foi lapidado. Não no mesmo ano
calendarial, e sim no intervalo de um ano, porque Cristo foi
crucificado no dia 8 antes das calendas de abril, Estêvão foi
lapidado no dia 3 de agosto do mesmo ano e Paulo foi convertido no
dia 8 antes das calendas de fevereiro.
Celebra-se
sua conversão, mas não a de outros Santos, por três razões. A
primeira,
para servir de exemplo, a fim de que ninguém, por mais pecador que
seja, desespere por perdão ao ver que aquele homem tão cheio de
culpa foi depois tão cheio de graça. A
segunda,
para lembrar a alegria da Igreja, muito triste anteriormente quando
perseguida por ele, e depois muito alegre por sua conversão. A
terceira,
pelo milagre que o Senhor manifestou nele, ao fazer do mais bárbaro
perseguidor o mais fiel pregador. De fato, sua conversão foi
milagrosa por quem a fez, pela maneira com que foi feita e pelo seu
sujeito.
Aquele
que realizou a conversão foi Cristo, mostrando assim três
atributos. Primeiro,
seu admirável poder, quando disse a Saulo: “É
duro para você resistir ao aguilhão”,
e quando o transformou subitamente, levando-o a perguntar: “Senhor,
que quer que eu faça?”.
Comentando essas palavras, Agostinho disse: “O
cordeiro morto pelos lobos transformou os lobos em cordeiros, e já
se prepara a obedecer Àquele que antes perseguia furiosamente”.
Segundo
atributo,
sua admirável sabedoria, porque demoliu o orgulho, aparecendo-lhe
não na sua sublime majestade e sim em ínfima humildade. “Eu
sou o Jesus de Nazaré que você persegue”,
disse a ele. A Glosa
acrescenta: “Ele
não diz que é Deus, nem mesmo Filho de Deus, e para incitá-lo a se
despojar das escamas do orgulho, mostra sua humildade”.
Terceiro
atributo,
sua admirável clemência, pois a conversão ocorreu no próprio
momento em que se dava a perseguição, quando por iniciativa própria
ele “fazia
ameaças, prometia carnificina”,
pedia autorização do sumo sacerdote para fazer prisioneiros e
levá-los a Jerusalém, e apesar disso foi convertido pela divina
misericórdia.
A
maneira como se deu a conversão também foi milagrosa, através da
luz, uma luz súbita, imensa e celestial. Súbita, pois “ele
foi de repente envolto por uma luz que vinha do Céu”.
Paulo tinha três vícios. O
primeiro
era
a audácia, como atestam as palavras: “Ele
foi encontrar o grão-sacerdote etc.”,
sobre as quais diz a Glosa:
“Ninguém
o tinha instado a isso, ele foi por si mesmo, seu zelo é que o
moveu”.
O
Segundo
era o orgulho, provado pelas palavras: “Ele
fazia ameaças, prometia carnificina”.
O
terceiro
era a interpretação material que dava à Lei, o que faz a Glosa
dizer: “Sou
Jesus, sou Deus do Céu, Aquele que como judeu você acredita estar
morto”.
Portanto, a luz divina foi súbita para aterrorizar o audacioso; foi
imensa para lançar esse altivo, esse soberbo, nas profundezas da
humildade; foi celestial para tornar celeste aquela inteligência
carnal. Ou, pode-se dizer, a conversão foi milagrosa pelos três
meios utilizados: a voz que chamou, a luz que brilhou e a força que
alterou.
A
conversão foi milagrosa quanto ao sujeito convertido, isto é, o
próprio Paulo. Em sua pessoa deram-se três milagres externos: sua
queda do cavalo, sua cegueira e seu jejum de três dias. Ele foi
derrubado para se reerguer mudado. Agostinho disse:
“Paulo foi derrubado para ser cegado; foi cegado para ser mudado;
foi mudado para ser enviado; foi enviado para que a verdade
aparecesse”.
O mesmo autor ainda diz: “O
cruel foi esmagado e tornou-se crente; o lobo foi abatido e
reergueu-se cordeiro; o perseguidor foi derrubado e tornou-se
pregador; o filho da perdição foi quebrado e transformou-se em vaso
eleito”.
Foi
cegado para ser iluminado em sua inteligência cheia de trevas. O
Evangelho diz que durante três dias ele ficou cego para ser
instruído. De fato, ele não recebeu o Evangelho da boca de um homem, nem por meio
de um homem, e sim, ele mesmo assegura, por revelação de Jesus
Cristo. Agostinho diz em outra passagem: “Considero
Paulo o verdadeiro atleta de Cristo, que o instruiu, que o ungiu com
a substância com a qual foi crucificado, que se glorificou nele”.
Ele mortificou sua carne para que ela colaborasse na realização de
boas obras. Desde então seu corpo ficou perfeitamente apto a toda
sorte de boas obras, sabendo viver tanto na penúria quanto na
abundância, pois tinha experimentado de tudo e suportava facilmente
todas as adversidades. Crisóstomo diz: “Os
tiranos e os povos enfurecidos pareciam-lhe mosquitos. A morte,
tormentos e milhares de suplícios eram para ele como brincadeiras de
crianças. Ele os acolhia de bom grado, e retirava mais glória das
correntes que o prendiam do que se estivesse coroado com preciosos
diademas. Aceitava torturas com mais satisfação do que outros
aceitam presentes”.
Estes
três estados, queda, cegueira, jejum, podem ser contrastados com as
três atitudes de nosso primeiro pai (Adão). Enquanto este se ergueu
contra Deus, Paulo ao contrário foi jogado ao solo; enquanto os
olhos daquele foram abertos, os de Paulo ao contrário foram
fechados, enquanto aquele comeu o fruto proibido, Paulo ao contrário,
absteve-se até mesmo de alimentos lícitos.
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Fonte:
Jacopo
de Varazze, Arcebispo de Gênova (1229-1298), “Legendae
sanctorum, vulgo historia lombardica dicta”;
tradução do latim, apresentação, notas e seleção iconográfica
por Hilário Franco Júnior, Cap. A Conversão de São Paulo,
Apóstolo, pp. 206-208; Editora Schwarcz Ltda – Companhia das
Letras, São Paulo/SP, 2003.
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