“Mas,
quando chegou a Plenitude do Tempo”,
a
Plenitude dos Erros e Fraquezas.
1
– O problema do Mal: Quem,
como nós, depois de ter soletrado algumas estrofes do grandioso
poema da Criação, e haver admirado as sucessivas perfeições,
brotadas das mãos do Artista Divino, detiver
o seu olhar no homem, não poderá ocultar o seu espanto e a sua
decepção. Será esse o rei da Criação, para cujo soberano domínio
todas as coisas foram feitas? Enquanto, para o concerto universal,
todos os seres concorrem com sua nota harmoniosa, as únicas
dissonâncias partem precisamente de quem deveria ser o mais
perfeito! Como explicar o aparecimento da dor, num mundo criado por
Deus, cuja bondade não tem limites? Teria sido concebido no seio da
felicidade infinita, esse homem que surge na terra apenas para ter a
existência atravessada pelo sofrimento e só é realmente grande
quando tem as faces banhadas pelas lágrimas das mais comoventes
dores? Como explicar essa estranha sedução que o mal sobre o homem
exerce ao ponto de só fazer o bem, cortando na própria carne e
despedaçando a alma? Como explicar a morte? Ainda não ha muito, dos
lábios trêmulos de um pai e de uma mãe, ouvia eu compungido a
narração que, entre lágrimas, me faziam do quadro de dores
lancinantes, que precedera à morte de seu filhinho, graciosa criança
de 9 anos, que tinha tudo para
triunfar na vida. Por que foi ceifada essa flor que mal desabrochava?
Como
vemos, srs., o problema de que vamos tratar é dos que sempre têm
apaixonado os filósofos de todos os tempos. Complexo, como é,
merecerá de nós, não uma, mas várias palestras. Por hoje,
contentar-nos-emos com ver que as escolas materialistas ou
semi-materialistas não respondem satisfatoriamente a esta pergunta:
Como nasceu o mal, neste mundo?
Veremos, depois, que tem a Bíblia a solução para esse angustioso
problema.
Quando
Alexandre, o Macedônio, depois de ter derrotado os Persas, nas
vizinhanças de Tiro, e penetrado no Egito, sua primeira preocupação
foi a de consultar o oráculo de Júpiter-Ammon. O antigo que
escreveu a história desse grande conquistador, suspende neste trato
a pena para indagar: “Que
será que o grande homem vai perguntar ao deus?”
E como Alexandre perguntasse quais eram as nascentes do Nilo, o
historiador observa que teria sido bem melhor se informasse das
origens do bem e do mal, porquanto ao gênero humano pouco monta
saber onde nasce o Nilo, ao passo que lhe importa muito conhecer a
fonte do bem e do mal.
O
mal, é uma dessas tristes realidades que ninguém, dotado de bom
senso, poderá negar.
O
mal existe em nós, antes mesmo de qualquer ato nosso que lhe
manifeste a presença. Podemos até dizer que foi o nosso primeiro
mestre, latente nas dobras da nossa natureza.
De
fato, se atentarmos no bem e no mal, no vício e na virtude – esses
dois planos da ordem moral – ficaremos surpreendidos ao verificar
que maior é a soma do mal e de mais fácil e mais espontânea
prática. Quem já se tenha adiantado na estrada da vida, facilmente
poderá averiguar que, na urdidura da História – já de homem, já
de hoje – está o mal em proporção maior que o bem. Eis porque a
Escritura não poupa acusações ao mundo e lhe exprobra a influência
nefasta. E se, por qualquer motivo, não quiserdes levar em conta a
Escritura, escutai como Tácito explica a palavra “século”,
sinônimo de “mundo”:
Corrumpere et
corrumpi vocatur soeculum! Corromper e corromper-se é a senha do
século”.
Sem querer fazer carga maior à época em que vivemos, não vos
parece ter sido talhada para esta, a frase curta e incisiva, com que
o velho romano condenava o mundo corrupto e corruptor? O mal é fácil
de ser praticado: basta deixar a natureza seguir os próprios
pendores; ao passo que só com dificuldade extrema consegue o homem
encadear pelos anos à fora, os anéis de ouro de suas boas ações!
Finalmente,
o mal é espontâneo, brota, à flor da nossa vida, como os venenosos
cogumelos, sem cultivo de espécie alguma. A conquista do bem requer,
pelo contrário, os mais árduos esforços. Os pais que
me ouvem, estarão, quiçá, intimamente aplaudindo as minhas
palavras. Quantas vezes, apesar das lágrimas da mãe, dos severos
protestos do pai, da hereditária honra do nome, não vemos filhos
ignobilmente conculcarem venerandas tradições de família e,
esquecidos do leite sugado na infância, arrastarem na lama da
desonra, a obscuridade e a torpeza de uma vida de vícios e de
pecados!
Não
há de duvidar: nos pratos da balança da natureza humana, o mal pesa
mais que o bem, acusando em nós mais pronunciada inclinação para o
vício que para a virtude.
Estabelecido
o fato, pesquisemos-lhe agora a causa. Fora da doutrina católica,
três são os sistemas que pretendem ter encontrado uma solução
para o problema: o materialismo, o dualismo e o naturalismo
anti-social de Rousseau.
Para
o materialismo, a explicação é simplicíssima. O homem nada mais é
do que um aglomerado de carne e ossos. Arrastado em todos os
sentidos, pelas forças obscuras dos instintos e dos apetites, são
meras manifestações da natureza, ao
que damos o nome de mal. Para os partidários dessa doutrina, prazer
e dever são uma e mesma coisa. O materialismo, logicamente, conduz à
imoralidade e, pois, seria absurdo admitir como sistema moral uma
doutrina que justifica o mal, apresentando-o como função normal da
natureza.
O
dualismo, por não poder atribuir a Deus a criação do mal, imaginou
dois deuses: um bom, outro mau; em criador do bem, outro criador do
mal; um autor da luz, outro autor das trevas. Segundo tal sistema,
força-nos a praticar o mal o determinismo de um poder infinito a que
não podemos subtrair-nos. Ficamos assim reduzidos a campo de batalha
em que dois deuses se digladiam, sucumbindo ora um, ora outro,
consoante praticamos o bem ou o mal. Cometido o mal, não nos caberia
maior nem menor responsabilidade que a da arena em que dois
litigantes se empenham em duelo de morte. Quem se lembraria de a
incriminar do homicídio nela perpetrado? Esta doutrina é, pois, tão
imoral quanto o materialismo.
O
naturalismo anti-social de Rousseau, estabelece que o homem nasce
bom, e é a sociedade que o deprava. A ser isto exato, segue-se que o
mal é imposto por uma força incoercível e não há de lobrigar
moralidade nenhuma nos atos humanos, porquanto responsável pelos
crimes que pratica o indivíduo é a sociedade, posto que não só
prepara o clima favorável à perpetração de todos os delitos, mas
ainda impele o homem a cometê-los. É imoral como as precedentes,
esta doutrina.
Nenhum
desses três sistemas explica satisfatoriamente por onde entrou o mal
no mundo, nem desvenda o tenebroso Mistério, inacessível à argúcia
da inteligência humana.
Sim,
porque, se a trama obscura da natureza humana constasse apenas de
tendências para o mal, ainda poderíamos discutir as soluções
apresentadas pelos três sistemas referidos. Mas, não. No meio do
pantanal de misérias que são o triste quinhão do homem, o nosso
olhar descobre o ouro puríssimo das mais nobres e mais elevadas
aspirações. Eis o fenômeno perpétuo e universal, que há seis mil
anos vem sendo assinalado quase que nos mesmos termos.
Conheceis
certamente aquela cena incomparável da tragédia grega, em que,
pálida, perturbada, com olhos avermelhados pelas longas noites de
vigília, surge à vista uma mulher, cujas feições denotam o
profundo e doloroso combate em que se empenhou. É a Phedra antiga.
Escutai-lhe os gemidos:
“Quantas
vezes, em diuturnas insônias, não refleti sobre a fonte dos vícios
da humanidade! Vemos o bem e fazemos o mal! Conhecemos a virtude e
nos entregamos ao vício!”
Que magistral quadro da alma humana!
Mudemos
de teatro, de lugar, de clima e de língua. É Ovídio a derramar
sobre as misérias humanas este pranto imortal: Video
meliora proboque, deteriora sequor. Vejo o bem que aprovo; abraço,
contudo, o mal”.
Outro homem ilustre pelo gênio, mais ilustre ainda pela grandeza do
caráter e pela energia da vontade: o Apóstolo São Paulo. Ouvi-lhe
a angustiosa queixa: “Procuro
compreender-me a mim mesmo e o não consigo. Pois que o bem, que
vejo, não o faço; e pratico o mal, que odeio”.
Transponde 17 séculos e vos encontrareis às portas de Versalhes,
com o rei-sol, Luiz XIV, e Mme. de Maintenon. Um coro de donzelas
está a cantar a famosa estrofe:
Mon
Dieu! Quelle guerre cruelle!
Je
trouve deux hommes em moi.
L’un
veut que, plein d’amour pour toi,
Mon
coeur te soit toujours fidèle.
L’autre,
à tes volontés rebelle,
Me
revolte contre tá loi.
Meu
Deus! Que guerra cruel!
Eu
encontro dois homens em mim.
Um
quer isso, cheio de amor por Vós,
Meu
coração é sempre fiel a Vós.
O
outro, sua vontade rebelde,
Eu
me revolto contra essa lei.
Eis
o que é a natureza humana. “Enquanto,
diz Bougaud, contemplamos
os cimos radiosos e imponentes da virtude, abre-se ao nosso lado, sob
os nossos pés, tenebroso, abjeto, infame abismo que nos causa
horror, e que, não obstante, nos está a chamar, a solicitar e a
atrair, sem contudo conseguir obscurecer o sublime e inesquecível
ideal do bem; e assim arrastados, fascinados, crivados de remorsos e
extenuantes de alegria,
mergulhamos na miséria moral, rolamos na hedionda voragem, em que a
alma saboreia na vergonha, um prazer que a desonra”.
Essa
é a natureza humana, na sua misteriosa contradição, no seu milenar
sofrimento.
Já
que os sistemas elaborados pelo homem se têm mostrado incapazes de
nos dar a chave desse doloroso enigma, vamos na próxima vez folhear
as Santíssimas Escrituras para ver se aí descobrimos uma palavra
precisa, a clara explicação de tamanho sofrimento.
O
Cristianismo deixaria de ser a Religião perfeita, a Religião
definitiva da humanidade, se permitisse uma nuvem sequer a respeito
dessa condição vital. Terá que projetar sobre esse ponto luz tão
brilhante, que à resposta não faltará nenhuma das características
da Revelação.
O
Primitivo Estado de Inocência
Quando
a doutrina do Evangelho, deixou os acanhados confins da Palestina, e
penetrou os vastos domínios do Império Romano, foi encontrar, nos
centros culturais de Atenas, Roma e Alexandria, grandes escolas
filosóficas para onde convergia, de todos os quadrantes, a fina-flor
da inteligência de então.
Podeis
avaliar a luta que se travou no terreno das ideias. A doutrina
recém-chegada – que já levara de vencida os sistemas e as velhas
escolas filosóficas – foi submetida a exame rigoroso. Todos
os seus princípios cardeais, todos os seus argumentos de convicção
foram analisados por crítica que nada tinha de benévola, e que lhes
era essencialmente hostil. Dentro desses afamados liceus, havia,
contudo, almas retas que cedem sempre à evidência, quando
sinceramente procuram a verdade. Muitas dentre elas abraçaram desde
logo o novo Credo. O que, porém, conferiu à palavra evangélica os
louros de um triunfo, que ainda hoje perdura, foi o ter ela dado uma
solução, por assim dizer divina, ao problema que tanto havia
atormentado a humanidade, no correr dos tempos. O que não pudera
vislumbrar sequer a clarividência dos grandes gênios do mundo
antigo, a Fé o expunha com a simplicidade característica do ensino
que brota dos lábios do próprio Deus.
Abrindo
hoje o Livro Sagrado, vamos conhecer, através de suas páginas
inspiradas, qual a condição primitiva em que fora por Deus criado o
homem. Veremos que este decaiu do estado de perfeição relativa, em
que fora situado, originando essa queda a torturante contradição,
na qual se debate cada um de nós.
Ocupando
o homem o segundo lugar na escala magnífica dos seres inteligentes,
sensíveis e livres – maior que o animal colocado em mais baixo
nível; mas paulo minus ab angelo,
pouco menor que o Anjo, puro espírito, em mais alta esfera –
convinha-lhe receber a perfeição relativa, adequada ao plano que
lhe tinha sido assinalado pela Sabedoria Suprema. Esse estado de
perfeição – chamado pela Teologia “estado de
inocência” – consistia no
império da alma sobre si mesma, na supremacia do ser inteligente e
livre sobre o grosseiro involucro corpóreo, no domínio perfeito
sobre os sentidos.
Nesse
estado de perfeição relativa, o homem gozava da justiça habitual,
a qual o armava de maravilhosa aptidão para nunca violar a lei que
Deus lhe gravara no âmago do coração, e sempre conservar as
faculdades e os sentidos dentro da ordem regulada pelo Criador. Com a
submissão absoluta dos sentidos corpóreos às potências
espirituais, com o equilíbrio perfeito das faculdades da alma, vivia
o homem em paz constante, numa felicidade inefável, sem conhecer as
crispações da dor, os dilaceramentos da alma ralada de torturas, os
horrores da agonia, as profundas humilhações da morte. Enfeitada
com as flores de perene juventude, a vida lhe seria como o suave
deslizar do barco na superfície azul de um lago de incomparável
magia.
Mas,
não passará tudo isso de linda fantasia a criar a torre de marfim
de um ideal de perfeição que nunca existiu? Não. Esse estado de
perfeição relativa, o homem realmente o possuiu. Pouco importa
indagar, se pro um instante, ou por um século. É a Fé que nô-lo
afirma de maneira a não sofrer a mínima dúvida. É o que
transparece à luz meridiana, do trecho do Gênesis, que refere o
estado dos nossos primeiros pais, antes de terem comido o fruto
proibido.
É
aliás o que a razão nos ensina por meio de argumentos de uma
solidez a toda prova. Se não, vejamos.
A
certeza desse primitivo estado de perfeição, funda-se no conceito
que formamos do próprio Deus. É infinitamente sábio, infinitamente
poderoso. Não lhe contrasta o querer nenhum obstáculo. Pensar uma
criatura e realizá-la tal qual deve ser, é para Deus uma e mesma
coisa.
Ora,
relanceando o olhar por todas as criaturas, tanto superiores como
inferiores, as que se acham no primeiro ou no último degrau da
escala social, e observando que todas possuem a perfeição relativa,
inerente à natureza de cada uma, somos forçados a concluir que
também o homem deve ter sido criado no mesmo estado de perfeição
como as demais criaturas, por não ser possível que Deus se tenha
revelado Artista falho, precisamente no instante em que produzia Sua
obra-prima.
Este
argumento ganha maior relevo se figurarmos a hipótese de nos cometer
Deus a missão de criar o homem. Como o formaríamos? Dominado pelas
tendências grosseiras de sua natureza, vivendo apenas para as
satisfações dos sentidos, para os regalos da mesa, para os prazeres
do corpo? Ou submetendo às potências da alma os sentidos
transformados em serviçais?
Se
Deus antes de criar o homem, se voltasse para um de vós e dissesse:
o homem será o que quiseres que ele seja. Feito à minha imagem e
semelhança, ele será inteligência, sensibilidade e liberdade. Mas
essa trindade da terra, obrará como tu determinares: ou dominando o
corpo de modo que este se dobre sempre à lei do espírito; ou
dominada pelo corpo, do qual será escrava. Eu pergunto: quem dentre
vós, não teria feito o homem, conservando-lhe a grandeza, a
espiritual nobreza, o domínio dos sentidos? Certo que o teríamos
criado assim. E poderíamos supor que Deus teria sido menos sábio
que nós? Não é possível. Deus, ou é necessariamente grande e
necessariamente sábio, ou não existe. Não há meio termo. A
conclusão que se impõe não pode ser senão esta: Ao criar o homem
Deus deveria tê-lo feito menos como o faríamos nós se fossemos
dotados do Seu poder e da Sua sabedoria, isto é, na plena posse de
uma perfeição relativa.
Nem
é outra a conclusão que se colhe do confronto entre o estado atual
do homem e o das outras criaturas.
Vede
como os seres inferiores ao homem gravitam em torno do próprio
centro consoante as leis que lhes regem as operações. Os astros
cintilantes percorrem a extensão dos céus com harmoniosa
regularidade; a terra, na imensa variedade do seu ornamento,
mostra-nos a prodigiosa fecundidade do seu seio; o oceano,
encanta-nos a vista, quando lhe admiramos a majestade dos vagalhões,
o tremendo poder das ondas enfurecidas, o seu rugir de fera faminta
em noite de tempestade; a flor viçosa dos campos, dos bosques e dos
jardins; o pequenino grão, o humilde gérmen, a semente das messes;
a ave que canta e faz o ninho num ramo do arvoredo; em suma, nenhum
ser se afasta por um instante sequer das suas leis precisas e
invariáveis. Não há um só que aspire a melhor posição.
Perguntai à águia, que sobrepaira as mais altas montanhas, se
deseja possuir o doce arrulhar da juriti, oculta na espessa floresta?
Perguntai à humilde formiga, a vaguear por entre a relva do campo,
se inveja a condição do tigre que passeia altivo por sobre as
areias esbraseadas do deserto? Todos responderão que estão
satisfeitos com a sorte que lhes foi dada por Deus.
Somente
o homem é o eterno incontentável. O seu coração assemelha-se a um
golfo imenso, que não consegue encher os muitos e caudalosos rios
que para ele confluem. Ah! Se eu fosse rico! – diz o pobre; ah! Se
eu fosse pobre! – diz o rico; ah! Se eu fosse grande! – diz o
humilde; ah! Por que não sou filho de um camponês! – diz o
potentado. Vede esse jovem que corria atrás das volúpias da vida e
que, depois de as ter saboreado todas, sente a alma vazia, o coração
frio diante dos objetos que tão ardentemente o haviam apaixonado!
Vede esse argentário que, com todos os seus milhões, se julga o
mais infeliz dos homens, por ter, no jogo da bolsa, perdido algumas
centenas de contas de réis!
Esses
fatos provam, ao menos, que o homem nunca está satisfeito com a
posição que lhe foi designada pela Providência e confirmam o
íntimo, poderoso e irresistível instinto que o força a procurar a
felicidade.
Ora,
de duas uma: ou Deus quis zombar do homem fazendo-o joguete nas mãos
da infelicidade – o que é uma blasfêmia atirada contra a bondade
de um Deus que é Pai amantíssimo; ou o homem se transviou,
destruindo, por funesto abuso da liberdade, o sábio e salutar
império que exercia sobre si mesmo, na sua condição de inocência
primitiva.
Na
primeira página do Gênesis encontramos a resposta clara para esse
dilema. É cena de rapidez e dramaticidade rara. Ainda pela manhã,
Deus conversara amigavelmente com os nossos primeiros pais, passeando
com eles por entre as maravilhas do Éden. Depois desse colóquio
divino, Eva deixa-se imprudentemente ficar perto da árvore da
ciência do bem e do mal, cujos pomos dourados lhe aguçam o desejo,
enquanto lhe atravessa a mente a tentadora promessa: Eritis
sicut dii, sereis como Deus.
Levanta os olhos, fixa-os no fruto proibido, hesita um momento, e
depois, resoluta apanha-o e come-o, dando-o a provar ao companheiro.
Era a desobediência, a ambição, a vaidade que assim triunfavam.
Era a catástrofe que se processava, despenhando em fragorosa ruína
toda a espécie humana.
A
razão do nosso desequilíbrio, a causa da dor e da morte, a origem
de todas as misérias humanas aí a tendes – o Pecado Original.
Consequências
do Pecado Original
Quem
já teve a dita de visitar Roma e pode contemplar as ruínas dos
velhos monumentos e edifícios, que assinalaram o apogeu da
civilização greco-romana, rendeu certo o seu preito de admiração
aos artistas obscuros e ignorados, que tão grandes maravilhas
souberam construir.
Dentre
esses monumentos, o que mais prende a atenção, apesar dos escombros
a que o reduziu o tempo e a mão do homem é, sem dúvida, o do Fórum
romano, onde Cícero, o príncipe da eloquência latina, se fez ouvir
tantas vezes, em suas famosas orações, ainda hoje apontadas qual
modelo do gênero. Quem, ao
contemplar esses blocos de pedra cinzelados com tanta arte, as
colunas, os capitéis, os frisos ricamente esculpidos, esparsos em
desordem pela vasta praça, vos dissesse: “aqui nunca
existiu nenhum edifício construído com simetria, decorado por um
conjunto de trabalhos delicados; essas esculturas elegantes
produziram-nas os artistas de outros tempos para deixá-las aqui
disseminadas pelo chão”,
certo não deixaria de acudir-vos a íntima resposta: este perdeu o
siso! É impossível não ver nessas ruínas os restos do antigo
palácio, donde a poderosa Roma distribuía por todo o Império a sua
justiça.
Também
nós, estudando o homem, nele deparamos com esparsas ruínas, restos
de suntuoso templo, demolido pela mão sacrílega de algum bárbaro.
É sobretudo na inteligência e no coração, que descobrimos as
provas mais convincentes do indizível transtorno, que no homem
causou o Pecado Original.
A
inteligência foi por tal forma criada para a posse e contemplação
da verdade, que não é possível ao homem deixar de amá-la
constantemente e procurá-la sempre. Para a conseguir despende os
melhores e mais generosos esforços, consagrando a esse labor,
próprio das grandes almas, os estudos, a ciência, a própria vida.
Quem dentre vós, ainda não experimentou o gozo inefável, o raro
deleite dessas altas especulações, às quais se entrega o espírito
ardorosa e apaixonadamente? Observai o homem de ciência, quando se
encontra diante de um problema que o atormenta e cuja solução
escapa às suas vigílias e às meditações pacientes do seu gênio.
É como Arquimedes que, absorvido no estudo dos seus teoremas de
Geometria, só percebeu que sua cidade natal, Siracusa, tinha sido
tomada pelas armas inimigas e ardia envolta no clarão dos incêndios,
quando um soldado romano o apunhalou.
Pois
bem, não obstante essa lei divina, que fez da verdade o alimento do
espírito, não obstante o prazer que lhe dá a consciência de
possuir a verdade, o homem, por um contraste cruel, sente-se
constantemente arrastado para o erro. Lede a História da Filosofia e
deparareis com provas acumuladas das tenebrosas aberrações em que
incidiram os mais ilustres gênios da humanidade, dando assim razão
ao testemunho de Cícero, quando afirmou “não haver
absurdo que não tivesse sido ensinado por algum filósofo”.
Feita
para a verdade, seria natural que sentisse a inteligência
irresistível atração para Deus, a mais
alta expressão da verdade, a verdade absoluta. Pois, é o contrário
que se verifica. Quem ousará negar em si a disposição para fugir
de Deus, para esquecer a Deus, para viver sem Deus? Não somente os
que vivem mergulhados nos negócios e prazeres do mundo, passam longa
parte da vida sem elevar a alma para Deus, mas ainda os que têm a
felicidade de viver da fé, sentem a fatal inclinação de relegar
para longe de si tudo o que lembre Deus e as coisas de Deus, para se
apegarem à vida banal e aos gozos materiais. Não apenas os
indivíduos, mas os povos, as massas humanas também sofrem a
influência dessa estranha sedução para a falsidade e para a
mentira.
Assim
é que, desde o berço do mundo, vemos coletividades inteiras
escravizarem-se às mais inacreditáveis superstições, que tão
fundas consequências lhes produziram na vida moral, social e
religiosa. Vede como, na hora presente, se embriagam as massas com o
erro, aderindo às mais grosseiras e menos realizáveis ideologias,
com tamanho ardor, e cega paixão que as leva a perpetrarem os
maiores crimes, os mais nefandos sacrilégios, que envergonhada
registra a história dos povos civilizados. Não há dúvida: a
inteligência humana padece de algum mal, inexplicável se não se
admitir o Pecado Original.
A
esta primeira degradação, vem unir-se a de outra faculdade, menos
nobre talvez, mas não menos preciosa – 0 coração – que nos
ministra as provas mais evidentes de um desvio, de uma desordem. Em
seu estado normal, o homem deveria amar os bens reais, a verdadeira
beleza – Deus, por conseguinte, fonte de todo o bem, formosura
antiga e sempre nova; deveria amar o irmão, o próximo, criado com
os mesmos dons, destinado ao mesmo
Céu; deveria amar-se a si mesmo, na ordem dos bens imperecíveis e
da felicidade futura.
Pois
bem, interrogai o coração a respeito do amor devido a Deus e vereis
se não vos é necessário grande esforço, penosa excitação da
alma para vos desvencilhar das afeições vulgares, quando desejais
saborear um pouco as suavidades do Amor supremo. Esse amor
sobrenatural não se vos apresenta como divida onerosa a ser paga,
como dever incômodo, diante do qual o coração se detém e só se
determina a cumpri-lo porque a tanto o força imperiosa lei? Deus,
convertido em pesado fardo para o coração humano! Haverá prova
mais indiscutível da nossa profunda miséria? Mas o homem não só
não ama a Deus, chega também a votar-lhe ódio feroz de extermínio,
que não sacia tão só por lho não permitirem as minguadas forças.
E observai que não se trata de algumas raras exceções: são as
massas humanas que, absorvidas pelas preocupações vulgares da vida,
dominadas por um sensualismo grosseiro, ou iludidas pelos falsos
pregoeiros de um impossível paraíso terrestre, não somente espumam
de cólera ao ouvirem pronunciar o Nome Santo de Deus, como se atiram
contra os Seus templos, saqueando, destruindo, incendiando, e se
rojam contra os Seus Ministros, trucidando-os no meio dos mais
atrozes suplícios, crendo assim poderem viver sem Deus e sem
remorsos.
O
homem não ama a seu irmão, seu próximo, seu semelhante. Tem
ciúmes, inveja dos bens, dos talentos que Deus lhe dispensou. Se é
fraco, procura dominá-lo, oprimi-lo, tiranizá-lo; se é forte,
roja-se-lhe aos pés, para conquistá-lo por vis bajulações. Terei
eu necessidade de desfiar diante de vós a série espantosa de crimes
que o homem praticou contra seu irmão, desde o fratricídio
de Abel até hoje? Não, não
me será preciso mostrar-vos os rios de sangue derramado entre povos
em guerra, todas as loucuras dos dominadores do mundo, todo o ódio
dos conquistadores, talando a ferro e fogo províncias e cidades
inteiras, sem poupar a vida de crianças e mulheres inermes, sem
respeitar sequer as cãs dos velhos desvalidos, para vos fazer
compreender o profundo desvio que se operou nessa natureza humana,
criada tão amável, mas agora capaz de violências e de horrores que
ultrapassam o instinto das feras mais sanguinárias.
O
homem não se ama a si mesmo. Os imperecíveis bens de uma felicidade
futura nenhuma impressão exercem sobre o seu coração, que se deixa
arrastar pela vida efêmera, pelas alegrias do momento, pelos
prazeres sensuais. Sacrifica à atração da vida presente, às suas
cobiças, e às suas paixões, às delícias infindas, reservadas
como recompensa inefável às almas que servem a Deus com coragem e
perseverança. Cede a cada instante ao próprio coração corrupto, a
despeito dos protestos da consciência. Vê que são ilusórias e vãs
e miseráveis tais satisfações e, contudo, continua a sujeitar-lhes
a inteligência, o coração e a liberdade.
Dizei-me
se não sofreu o homem profunda lesão na sua faculdade de amar, para
assim rojar-se diante de prazeres, de cuja ignominiosa baixeza não
tem a menor dúvida, sentindo até por eles, a maior repugnância nas
horas em que a virtude se lhe desenha diante da consciência, com
todo o seu cortejo de grandeza e de heroísmo?
Das
mãos de Deus sábio, inteligente e perfeito é que não poderia ter
saído essa fonte perene de contradições as mais absurdas, que é o
homem tal qual o conhecemos. Do contrário, eu não reconheceria esse
Deus na Sua obra imperfeita, acusá-lo-ia de incapacidade, chamá-lo-ia
de cruel, teria o direito de me julgar superior a Ele, pois que eu
não teria criado o homem nesse estado de abjeção. Por menor e mais
imperfeito que me considere diante de Deus, eu teria agido com maior
sabedoria.
A
minha conclusão está brotando dos vossos próprios lábios e é a
seguinte: A não ser que nos queiramos condenar a negar a Deus
suprema inteligência, ou blasfemá-Lo por malvado e cruel, havemos
de imputar ao próprio homem esta sua visível degradação moral.
Sim, o homem é exclusivamente o único responsável pela mísera
situação em que se encontra hoje. Foi ele que se perdeu a si mesmo,
não obstante a riqueza de dons e de graças de que Deus o havia
cumulado. Por mais severo que seja o meu julgamento, serei obrigado a
reconhecer que Deus não faltou nem à Sua sabedoria, nem à Sua
bondade, nem à Sua providência, quando permitiu que o homem, por
abuso da sua liberdade, malbaratasse os dons preciosos, as
prerrogativas excepcionais com que no Seu amor infinito o idealizara
e o criara.
O
Pecado Original
e
a sua Transmissão
Depois
de termos contemplado as maravilhas do poder criador, grande foi a
nossa surpresa ao averiguarmos que o homem – destinado a ser o rei
da criação – era o único ser torturado por misteriosa
contradição, que não lhe permitia sentir-se bem no estado em que
atualmente se encontra. O problema do mal e da dor surgiu então
diante dos nossos olhos, com todas as suas perspectivas tristes e
sombrias, parecendo-nos vãs todas as soluções alvitradas pelo
espírito humano, para explicar esse misterioso fato.
A
única solução que nos satisfaz amplamente, foi a que nos deu a
Revelação, quando nos ensinou que o homem, criado num estado de
inocência e de santidade, decaiu dessa primitiva perfeição, ao
desobedecer a Deus, no Paraíso terreal.
Na
sua faculdade intelectiva e volitiva, fomos, finalmente, encontrar as
provas concludentes da desordem introduzida na natureza humana, em
consequência dessa queda, cujos funestos efeitos sofremos todos nós.
Para
concluir o nosso pensamento e assim completar o estudo que viemos
fazendo desse angustioso problema, resta-nos expor a doutrina da
Igreja sobre o Pecado Original e sua forma de transmissão.
O
Pecado Original! Eis a pedra de escândalo de todos os que se apoiam
sobre a ciência para melhor dar aos seus ataques contra a Igreja o
cunho do ridículo, que impressiona fortemente a quem os ouve
desprevenido. Para denegrirem mais a gosto a Igreja e a cobrirem de
zombarias grotescas, desvirtuam a Palavra de Deus, falsificam-na com
o maior desplante e impingem à massa dos seus leitores ou dos seus
ouvintes, um absurdo nunca proferido pelos nossos lábios. É velha
tática, seguida com sorte varia, pela eterna má-fé dos inimigos da
Igreja.
Para
desmascará-los, será suficiente expor com exatidão a fórmula
dogmática do Pecado Original. Quem a conhece não pode menos de
ficar surpreso ante a palpável má-fé e leviandade dos que neste
ponto, como aliás em todos os demais, arremetem contra Deus.
Que
ensina a Igreja a esse respeito? A Igreja ensina que, tendo o
primeiro homem, Adão, transgredido as ordens de Deus, decaiu daquele
estado de justiça e santidade em que fora criado e que por efeito da
ofensa implícita nessa prevaricação, incorreu na cólera e na
indignação de Deus, tornando-se passível da morte que antes lhe
fora cominada (prescrita). A Igreja acrescenta, que essa prevaricação
não prejudicou somente a Adão, mas também a toda a sua raça,
perdendo primeiro para si e depois para os seus, os dons
sobrenaturais com que tinha sido gratificado; e que, por essa
desobediência, transmitiu à sua posteridade, não só o sofrimento
e a morte, que são as penas do pecado, mas o próprio pecado, que é
a morte da alma. São palavras, reproduzidas quase textualmente do
Concílio de Trento, na sessão V, cânones 1, 2 e 3, e que
sintetizam a doutrina da Igreja a respeito do Pecado Original.
Sessão
V (17-6-1546)
Decreto
sobre o Pecado Original
787.
Para que a nossa fé católica, sem a qual é impossível agradar
a Deus,
purificada dos erros, permaneça em sua pureza íntegra e ilibada; e
para que o povo cristão não se deixe agitar por qualquer
sopro de doutrina
– pois aquela antiga serpente, que foi inimiga do gênero humano
desde o princípio, entre os muitos males que perturbam a Igreja de
Deus em nossos tempos, também suscitou a respeito do Pecado Original
e do seu antídoto, não só novas, mas ainda antigas dissenções –
o sacrossanto Concílio Ecumênico e Geral de Trento, legitimamente
reunido no Espírito Santo, presidindo-o os mesmos três legados da
Sé Apostólica, querendo tratar logo de chamar [à fé] os que
laboram em erro e confirmar os vacilantes, tendo seguido os
testemunhos da Sagrada Escritura, dos Santos Padres e dos Concílios
autorizadíssimos bem como o juízo e o consenso da própria Igreja,
estabelece, confessa e declara o seguinte a respeito do mesmo Pecado
Original:
788.
1) Se alguém não confessar que o primeiro homem Adão, depois de
transgredir o Preceito de Deus no Paraíso, perdeu imediatamente a
santidade e a justiça em que havia sido constituído; e que pela sua
prevaricação incorreu na ira e indignação de Deus e por isso na
morte que Deus antes lhe havia ameaçado, e, com a morte, na
escravidão e no poder daquele que depois teve o império
da morte,
a saber, o Demônio; e que Adão por aquela ofensa foi segundo o
corpo e a alma mudado para pior – seja excomungado.
789.
2) Se alguém afirmar que a prevaricação de Adão prejudicou a ele
só e não à sua descendência; e que a santidade e justiça
recebidas de Deus, e por ele perdidas, as perdeu só para si e não
também para nós; ou [disser] que, manchado ele pelo pecado de
desobediência, transmitiu a todo o gênero humano somente a morte e
as penas do corpo, não porém o mesmo pecado, que é a morte da alma
– seja excomungado, porque contradiz o Apóstolo que
diz: Por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a
morte e assim a morte passou para todos os homens, no qual todos
pecaram.
790.
3) Se alguém afirmar que esse pecado de Adão – que é um pela
origem e transmitido pela propagação e não pela imitação, mas
que é próprio de cada um – se apaga ou por forças humanas ou por
outro remédio, que não seja pelos méritos de um único Mediador
Nosso Senhor Cristo, que nos reconciliou com Deus por seu Sangue,
fazendo-se para nós justiça, santificação e redenção;
ou negar que o mesmo mérito de Jesus Cristo, devidamente conferido
pelo Sacramento do Batismo na forma da Igreja, é aplicado tanto aos
adultos como às crianças – seja excomungado, porque
sob o Céu nenhum outro Nome foi dado aos homens, pelo qual
devamos ser salvos;
daí aquela palavra: Eis o Cordeiro de Deus que tira os pecados do
mundo;
e esta outra: Todos vós que fostes batizados em Cristo, vos
vestistes de Jesus Cristo.
…
Procurando
melhor elucidá-la, os Padres da Igreja, em seus escritos, dizem ser o Pecado Original morte, doença, mancha, que nos enfraquece o livre
arbítrio e nos torna escravos do Demônio.
O
Pecado Original é “morte”, porque destrói a vida
superior da santidade, a qual purifica os atos da natureza e a eleva
pelo esplendor do mérito aos seus destinos sobrenaturais. É
“doença”, para esta pobre carne, outrora impassível e
imortal, sujeita agora à dor e à decomposição; doença para a
alma, que perdeu, com o privilégio da integridade, a primitiva
clarividência e vigorosa energia. É “mancha”, análoga à
de um templo suntuoso que, por efeito de um cataclismo, perdeu a
decoração de seus mármores, de seu ouro e de sua prata, para
ostentar agora apenas o arcabouço de pedras brutas. Enfraquece o
livre arbítrio, porque, hoje, a soma de suas forças é
contrabalançada pela soma de dificuldades que encontra e pelas
vacilações a que se vê exposto com a perda da infalível direção,
que lhe dava a razão isenta de ignorância e imune de erro. Por
último, faz-nos escravos do Demônio, por ser Satã o senhor
de todos os transviados, os quais por isso não podem alcançar o
próprio fim.
Eis,
exposto em breves palavras, o nosso Dogma tão caluniado e demasiadas
vezes tão desfigurado. Depois de tudo o que ouvistes, nesta palestra
e nas anteriores, não é verdade que esse Dogma, cujo fundo
permanece obscuro e misterioso, projeta uma luz intensa que ilumina
as dobras mais recônditas da natureza humana? Não é verdade que
subscreveríeis a afirmação de Pascal: “Sem esse Mistério, o
mais incompreensível de todos, seríamos incompreensíveis a nós
mesmos?”
Vejamos
agora como esse pecado se transmite a toda a posteridade de Adão e
melhor compreenderemos o alcance profundo do pensamento de Pascal,
que vimos de citar.
Observemos,
antes do mais, que o Pecado Original não é falta que haja contraído
cada homem em particular por um ato de sua vontade. Não! O Pecado
Original não é ato, mas estado de privação dos dons e privilégios
que nos teriam cabido, se não houvesse prevaricado o Pai da grande
família humana. Para de certo modo explicar a transmissão desse
estado de privação, aí está a lei da hereditariedade, em virtude
da qual um ser transmite a seus descendentes o que é e o que possui.
Baseado
nessa lei, o médico, para melhor orientar o diagnóstico da moléstia
que vos aflige, pergunta se vossos pais são fortes e sadios ou, se
já são mortos, de que mal sucumbiram. E quantas vezes não sobem as
suas indagações até os vossos ascendentes, os vossos avós,
tentando, num esforço louvável, pesquisar, através das gerações
passadas, a qualidade do sangue que vos corre nas veias.
Esse
sangue que recebestes, alterado, em certo grau, pelas enfermidades e
deficiências dos vossos pais e que transmitis a vossos filhos,
acrescido dos vossos próprios males; esse sangue não carrega
consigo apenas as doenças do corpo, mas também, de maneira
misteriosa, as afecções da alma, as tristezas da alma, as dores e
as fraquezas da alma.
Quando
se pergunta aos psicólogos e sociólogos qual a causa desse estado
de ansiedade, de asfixia moral, de incertezas e de pavor, que parece
caracterizar a geração atual, todos unânimes apontam os quadros de
horror, as cenas dantescas, o imane pesadelo em que viveu o mundo
todo e especialmente a Europa, durante os anos atrozes da grande
guerra.
À
exigência dessa lei se dobra, portanto, a vida, os bens, a honra.
O
filho herda dos pais a conformação do corpo, a fisionomia, o
temperamento, as diáteses,
as nevropatias, o que tudo repercute na esfera espiritual e
condiciona a vida intelectual e a vida moral.
Quem
não deparou na vida com crianças que, desde os primeiros anos,
manifestam espantosas tendências para o mal? E quem não viu, pelo
contrário, esses jovens robustos e galhardos, que têm nas veias
sangue puro, sangue vivo e nobre e trazem no semblante a prova de que
pertencem a uma raça transformada pela virtude?
Isto
posto, pergunto: qual o sangue que corre nas veias da humanidade? Sem
mesmo descer a uma análise mais minuciosa, já à primeira vista
podemos responder: o sangue transfundido nas veias da humanidade é
desgraçadamente sangue viciado, que a faz propender mais para o mal
do que para o bem, como vimos em nossas anteriores palestras. E isso
por que? Porque Adão prevaricou, porque se despojou da graça e
assim transmitiu aos seus descendentes, a natureza humana vulnerada,
destituída dos bens gratuitos, como a água que perde toda a
virtude, quando lhe subtraem as partículas minerais do solo donde
mana, como os vossos filhos que não terão saúde, nem fortuna, nem
honra, se vierdes vós a perder todos esses bens.
O
tronco anoso de árvore seca, que um dia encontraram os soldados
romanos e sobre o qual atravessaram outro, para nele pregarem um
homem, condenado pelos tribunais civis e religiosos de sua terra, vós
o chamais a Santa, a Venerável, a preciosa Cruz a que reverentes e
agradecidos chegais os vossos lábios trêmulos de emoção. Se Jesus
de Nazaré não tivesse sido suspenso nesse madeiro de infâmia,
nenhum homem quiçá, por mais pobre que fosse, o aceitaria para viga
mestra de sua mísera choupana.
Qual
é, pois, o segredo das vossas homenagens? Vós adorais essa Cruz,
por que a sabeis purpurada do Sangue de Jesus o qual, ao morrer pela
nossa salvação, imprimiu nesse madeiro o selo do Seu infinito amor.
Destarte, um novo sangue, o Sangue do Justo, o Sangue do Inocente, o
Sangue do Santo por excelência, veio purificar, fortalecer e
enriquecer o sangue empobrecido, o sangue fraco, o sangue pecaminoso
dos filhos de Adão.
Diante
dessa tremenda e dolorosa consequência do pecado do primeiro homem e
de todos nós, a Igreja, entretanto, não hesita em cantar: Oh!
Venturosa culpa, que nos valeu tão alto Redentor! O felix culpa,
quae talem ac tantum meruit Redemptorem! É a visão dos
Mistérios da Encarnação e da Redenção, que desta eminência já
principiamos a vislumbrar e que vai constituir o assunto grandioso e
sublime das nossas ulteriores palestras.
A
Plenitude dos Erros e Fraquezas
Deus
que criou a dignidade da natureza humana de forma admirável, ainda
mais maravilhosamente a reformou, diz a Igreja, numa das suas mais
belas orações. Que antecedem, na Missa, o Ofertório do Cálice. De
fato. A criação dos mundos em geral e do homem em particular, é
grandioso salmo que canta a glória, o poder, e a sabedoria de Deus.
Contudo, nessa radiante obra de luz, cheia de harmonias divinas, o
homem, abusando da sua liberdade, projetou a sombra do seu pecado,
transformou um paraíso num lugar de desterro, introduziu soluços de
morte num esplêndido cenário de vida.
Deus,
não obstante, em vez de retirar-se para a solidão do Seu empíreo e
aí permanecer indiferente e impassível ante a destruição de Sua
obra, movido por misericordioso amor, decidiu criar o plano magnífico
da Encarnação reparadora. Jesus Cristo, o Alfa e o ômega de todo
esse grande drama; o Princípio e o Fim, principium et finis,
a primeira e a última palavra de todas as coisas, surge como o
Restaurador da dignidade da natureza humana, ardentemente desejado
pelas nações, cansadas de errarem pelos caminhos sombrios do crime
e do pecado.
A
figura idealmente bela do Cristo meigo e bom, aos poucos se desenhará
com Seus contornos cada vez mais nítidos, no decurso desta nova
série de palestras.
Hoje,
lançaremos um olhar para a situação em que se encontrava o mundo,
nas vésperas do Nascimento do Salvador. Vê-lo-emos esse pobre mundo
pagão caindo aos pedaços, carcomido como estava pela gangrena da
mais infrene corrupção.
Muitos
teólogos, como Santo Tomás à frente, perguntam, por que Deus,
Bondade suma, não acudiu logo ao homem que tão miseramente caíra,
mas esperou que se escoassem nada menos de 40 séculos para dar-lhe
essa comovente prova do Seu magoado amor? Respondem todos
unanimemente: Para que o mundo completasse a experiência das suas
fraquezas, conhecesse em que profundo abismo se despenhara e, pois,
sentisse a absoluta necessidade de um Salvador.
Por
que terrível experiência não passou o mundo, nessa longa noite de
40 séculos! Comecemos por verificar o estado de desolação e de
misérias de toda a espécie em que encontrava a religião.
O
respeito, o amor, a submissão que nos inspira a ideia de um Senhor
infinitamente grande, infinitamente sábio, infinitamente santo,
convertera-se na indiferença, na irrisão de um ceticismo polido,
que levava, no tempo de Scipião, o poeta Lucílio, seu amigo, a
zombar dos deuses, aos quais sobrepunha Lucrécio as galas e as
delícias do materialismo.
Transformada
em repelente idolatria, a religião cuidava de enriquecer-se
multiplicando os objetos impostos à veneração. Varrão, citado por
Santo Agostinho, não contava menos de seis mil divindades em Roma,
entre as quais 300 Júpiteres diversos! Infamada de monstruosidades
ocultas e de superstições patentes, não existia vício que não
acobertasse, devassidão que não autorizasse, impudicícia que um ou
mais deuses não ensinassem com seu exemplo. Desde o adultério e o
rapto, até a prostituição e a crueldade, o Olimpo de tudo oferecia
variados modelos aos seus adoradores.
Os
mistérios de Adônis, de Cibele, de Priapo e de Flora – as
célebres saturnais – representavam-se no templo e nos jogos
consagrados, com tamanha desenvoltura que Lactâncio escreveu a
respeito deles: “que ali se via à luz do sol o
que se costuma sumir nas trevas, gelando às vezes o suor do pejo, o
vigor infame dos atores”.
Mergulhada
no lodo de tantas misérias, como podia erguer a fronte para o Céu,
uma religião envilecida de semelhantes torpezas?
O
simples fato de ter sido possível deificar o vício e a libertinagem
e ter como adoradores dessas vergonhosas divindades, não uma tribo
degenerada, mas a população inteira da nação mais civilizada da
época, é a prova mais frisante que podemos apresentar do estado de
ínfima decadência a que havia chegado o conceito da religião.
Se
a religião se transformara assim nessa inacreditável escola da mais
deslavada corrupção, podemos imaginar o grau de perversidade dos
costumes no seio de um povo, que retinha sob as garras de ferro de
suas águias vitoriosas o mundo então conhecido.
Não
iluminava a doce luz dos mais nobres instintos, nem unia o suave laço
dos afetos mais extremosos do coração os membros da sociedade e da
família. Assim, o infanticídio era autorizado pela lei Rômulo, bem
como pela lei das Dez Tábuas. Entre os gregos, quando uma criança
nascia, depunham-na aos pés do pai; se este a erguesse, estava com a
vida salva; se, porém, dela se afastasse, lançavam-na ao mar.
Quando
sentimentos como esses – tão naturais que as próprias feras os
respeitam – assim eram calcados aos pés, é fácil avaliar a que
deplorável estado se reduzira a família.
Diante
das leis que os imperadores e senado se viram na contingência de
promulgar, prometendo prêmios a quem se casasse, assiste-nos o
direito de perguntar se então ainda existia a família. Essas
uniões, que se decidiam por cálculos de ambição e por interesse
de cobiça, eram de tal ordem que Plutarco chegou a escrever: “São
casamentos que se contraem, não para haver herdeiros, mas para obter
heranças”. Sem o apoio do sentimento mais natural ao homem,
essas uniões se desfaziam ao sabor dos caprichos mais tolos, dos
interesses menos confessáveis. A família deixava de ser ninho,
entretecido dos mais puros afetos, para se transformar em campo
propício às mais arriscadas aventuras, ao desabrochar das paixões
mais brutais da alma humana.
Nem
foi o caráter mais respeitado que os costumes. A subserviência, o
aviltamento, a dobres (falsidade) de ânimo, só foram igualados pela
crueldade e pela sede de sangue, de que dera tantas e tão sobejas
provas o povo-rei.
Citai-me
um só dos grandes homens da antiga Roma que, no seu procedimento,
não tenha sido mau ou miserável.
Rômulo,
o fundador de Roma, assassina o irmão Remo. Tarquínio, o soberbo,
mata o avô e o irmão. Sua mulher, Túllia, faz as rodas do seu
carro passarem por sobre o corpo do próprio pai. Os dois Brutus
alcançam notoriedade porque um, assassina o filho e o outro apunhala
a César, seu pai adotivo, junto à estátua de Pompeu, no senado.
Mário faz jorrar em borbotões o sangue dos nobres e Sylla ceva a
sua crueldade encharcando as ruas de Roma com o sangue do povo. Nero
manda assassinar a mãe e encontra ainda um homem como Sêneca que
não se envergonha de elogiar ao matricida. Esse monstro coroado,
cuja vida foi pontilhada dos mais negregados crimes, longe de
provocar no povo romano indignação e repulsa, teve a significativa
sorte de ver que, até quase às vésperas de sua morte, seus súditos
o aplaudiam como histrião (palhaço). Seria interminável o elenco
desses vultos sinistros, os quais, entretanto, na época em que
viveram, eram tidos por varões ilustres.
A
estes sentimentos cruéis, junte-se a lepra da venalidade
(corrupção/suborno), e ter-se-á completado o quadro sombrio da
sociedade de então.
Nada
se obtinha de graça. Os empregos compravam-se; os pleitos
vendiam-se; as eleições subornavam-se. A justiça pesava-se na
balança da avareza e vencia quem mais dava. Os patrícios
denunciavam seus melhores e mais íntimos amigos, na esperança de,
com a morte deles, se apropriarem dos seus bens apetecidos. A
liberdade, a honra, a dignidade, o amor da Pátria – todos os
nobres sentimentos, eram numa palavra, objeto do mais vil comércio.
Foi, por isso, que Jugarta, o africano, na insolência de um
justificado orgulho, ao afastar-se de Roma, depois de ter remido, a
preço de ouro, toda uma série de crimes horrendos, pode, sem
mentir, dizer da pátria dos Scipiões: “Aqui tudo se vende! Só
te falta, Roma, comprador”.
O
homem convenceu-se afinal de que sua natureza era como um campo
agreste que, deixado ao abandono, produz unicamente as urzes e os
espinhos dos seus erros e fraquezas. É essa angustiada voz, esse
dolorido lamento do mundo, a pedir aos Céus clemência e salvação,
que iremos ouvir, no próximo Domingo.
E
o que dizer da escravidão? Para se formar uma ideia do ponto a que
chegara essa hedionda mancha da civilização pagã, basta esta frase
de Luciano: Humanum paucis vivit genus, todo o gênero humano
trabalha em proveito de um reduzido número. Só no Império, havia
120 milhões de escravos, para uma população de 6 milhões de
homens livres.
Toda
a abominação desse estado social aparece no confronto entre dois
textos, lançado pelos juris consultores romanos, com a naturalidade
de uma disposição vulgar. Classificando os instrumentos agrícolas
em vocais, semivogais e mudos, diz Varrão que os primeiros são os
escravos; os segundos, os animais; e os últimos, as coisas
inanimadas. Non tam vilis quam nullus: eis a definição legal
do servo. Menos desprezível que nulo. E assim eram tratados.
Quando
vemos as patrícias romanas experimentarem nos seus escravos o grau
de virulência dos seus venenos; Flamínio decepar pelas suas
próprias mãos a cabeça de um escravo para mostrar a um convidado
como se morre de morte violenta; Pollião engordar as moreias de seu
viveiro com escravos, lançados vivos para as tornar mais saborosas –
diante de todos esses horrores friamente praticados contra a
dignidade da natureza humana, compreendemos todos os degraus de
miséria por que foi descendo o mundo até sepultar-se na mais
espessa camada de lama, e de selvageria.
Era
demais! A taça de todos esses crimes e de todas essas degradações
já principiava a transbordar. Encerrado nessa atmosfera pesada e
irrespirável, carregado de suas taras humilhantes, sentindo que ia
morrendo aos poucos e nada vendo na Terra que lhe pudesse valer,
recolheu o mundo suas últimas forças e pela boca dos Profetas, dos
filósofos e dos poetas, pôs-se a pedir aos Céus lhe abreviassem o
tempo da provação e lhe enviassem o Príncipe da paz, o Desejado
das nações.
A
severa lição da experiência lograra os resultados esperados.
O
Clamor das Nações
O
mundo havia sorvido até a última gota a taça transbordante dos
crimes e desordens que o homem, de depravação em depravação, fora
acumulando. Asfixiado sob o entulho de tantas ruínas esparsas, ei-lo
que prorrompe em gemidos lancinantes a que as próprias coisas
inanimadas parece juntarem suas lágrimas, como diz o insigne
Mantuano: “Sunt lacrimae rerum”.
Desvanecidas
as últimas esperanças, ameaçado de extinção total, vê-se
finalmente o homem constrangido a confessar a própria fraqueza e a
incapacidade de poder conseguir por si mesmo a sua reabilitação.
Das mais diversas e mais afastadas regiões da terra, vozes se erguem
impressionantes a clamarem todas por um Salvador que não há de
tardar.
É
esse clamor das nações que vamos ouvir. Escutaremos, primeiro, a
voz dos povos sentados à sombra da idolatria, para, depois, na visão
dos Profetas de Israel, ouvirmos o seguro vaticínio da vinda do
Messias.
Todos
os grandes historiadores são, unânimes em reconhecer que, 64 anos
antes de Cristo por todo o mundo se divulgou um vaticínio, que
assegurava o próximo natal de um grande rei, que viria inaugurar uma
era de paz e de felicidade.
Em
Roma, como em todas as nações conquistadas pelas armas da república
e pacificadas pelo herdeiro de César, esta persuasão se espalhara,
fazendo com que de toda a parte a esperança procurasse o berço do
Messias. Assim é que antes de Jesus baixar ao mundo, já Ele havia
transposto o Jordão, o Eufrates, o Ganges, os Oceanos, nas asas
invisíveis da Providência, visitando as regiões mais remotas, as
raças mais diversas. Os Brahmanes, os Magos, os Bonzos anunciam a
vinda do Mediador filho de uma Virgem, enviado para reconciliar os
homens.
Na
extremidade da Ásia, Confúcio promete o verdadeiro Santo, que há
de vir do ocidente, e o faz em termos que relembram os acentos dos
Profetas. Esta mesma esperança vamos encontrá-la nos livros santos
do Tibet, na Conchinchina, no reino de Sião, em Ceilão e até no
Japão.
Por
toda a parte é esperado um santo insigne, um ser celeste, um
taumaturgo que há de repor tudo em ordem. Embora as épocas e os
lugares sejam diversos, as tradições se abraçam e se estreitam
através do espaço e do tempo, parecendo ditadas por anciãos da
mesma tribo.
Menchi,
discípulo de Confúcio, era o intérprete de todas as ânsias do
coração humano, quando comparava a expectação geral à
impaciência das plantas murchas que suspiram pela orvalhada
refrigerante da manhã.
Na
Grécia e em Roma, centros donde irradiava para todos os lados a
vistosa civilização de então, os mais autorizados representantes
do pensamento humano, tocados da mesma crença, claramente aludem à
transformação da sociedade por obra de um Deus. “A terna
imaginação de Virgílio, tantas vezes eco da melancolia moderna,
descrevendo as árvores frondosas e as águas sussurrantes das
campinas romanas, suspende um instante a voz, esquece de repente as
Dafnes e as Galateas pagãs, e afinando a lira para
sons mais altos, rompe o misterioso canto da quarta écloga,
e, no meio das pompas do metro e da magnificência do pensamento,
aponta o berço auspicioso de um filho do Céu, profetizado nos
oráculos da Sibila e eleito para trazer a renovação dos tempos,
abertas as portas de ouro à idade nova”.
Ultima
Cumaei venit jam carminis aetas;
Magno
ab integro saeculorum nascitur ordo.
Jam
nova progenies coelo demittitur alto.
Mas,
não é só o autor das Geórgicas,
o poeta imortal da Eneida, que canta as esperanças de uma próxima
regeneração do mundo. Tácito, o frio analista da devassidão
imperial, ao escrever a história do reinado de Vespasiano, declara
ser quase geral esta persuasão: “Era opinião de muitos,
diz ele, opinião conforme os velhos escritos sacerdotais,
que o Oriente havia de prevalecer nesta época, apoderando-se os
homens da Judeia da direção das coisas”.
Suetônio, referia-se ao mesmo sentimento, quando assinalava que “o
Oriente estava cheio do rumor dessa antiga e constante opinião,
segundo a qual, o Destino marcara aquele tempo para saírem da Judeia
os dominadores dos homens”.
Flávio
José, historiador judeu, diz expressamente que “nessa
época, um homem da Judeia, assumiria o governo do mundo”.
Diante
desses velhos escritos que os mencionados historiadores reputam
sagrados; diante desse Rei que todos esperam esteja prestes a sair da
Judeia, ante a data do seu aparecimento tão precisamente assinalada.
Voltaire, deixa de lado o
mordaz sarcasmo para confessar por sua vez: “De tempos
imemoriais, corria entre os Hindus e os Chineses a máxima que o
sábio viria do Ocidente; a Europa, ao contrário, dizia que o sábio
viria do Oriente”.
Assim,
de todos os pontos, os povos mais diversos vinham encontrar-se em
derredor dessa misteriosa expectação. E, à medida que se vai
avizinhando a hora, os ânimos cada vez mais conturbados, procuram
ansiosos divisar no Céu qualquer sinal que lhes indique o berço do
Rei do mundo.
Mas,
por maiores que tenham sido os anseios das antigas idolatrias, por
mais sublimes que se julguem os arroubos dos poetas e sábios da
Grécia e de Roma, nem podem comparar-se com a visão segura e
profunda que desse acontecimento teve o povo eleito, o povo de
Israel.
Davi,
Daniel, Isaías e tantos outros, rasgando o véu do futuro, celebram
a grande figura do Filho de Deus, sua glória e seus tormentos, o
infinito amor aos homens, que lhe caracterizará a existência, e a
ignomínia de seus suplícios, estigma da ingratidão humana. Durante
quatro mil anos, vêm eles bosquejando o maravilhoso perfil de Jesus
e são os traços que de antemão lhe indicam tão precisos, tão
reais, que, em Ele surgindo no cenário do mundo, é logo
reconhecido.
Admirai
a flagrante exatidão desses dados, ministrados pelos Profetas.
Dois
mil anos antes de Cristo, Abraão recebe a garantia de que o Esperado
sairá de sua raça e que será, pois, judeu.
Mil
anos antes, Davi, nos seus salmos – verdadeiras obras-primas da
poesia lírica – em acentos que ainda hoje reboam pelas naves e
abóbodas das nossas igrejas e catedrais, depois de cantar a glória
do Messias, a Quem chama seu Senhor, descreve a cena da Crucifixão
com tamanho luxo de pormenores, que chega a ver os soldados romanos
dividindo entre si as vestes da Augusta Vítima e sorteando-Lhe a
túnica para ver a quem caberia.
Oitocentos
anos antes, Miqueias nos indica Belém como o lugar em que nascerá.
Setecentos
anos antes, Zacarias O vê entrando triunfalmente em Jerusalém,
montado em simples jumentinho e conta nas mãos de Judas as trinta
moedas de prata, que serão o preço vil da infame traição.
Seiscentos
anos antes, é o grande Isaías, que projeta sobre a figura do Cristo
luz tão intensa, que lhe mereceu ao Profeta a denominação de
quinto evangelista.
Esse
inacreditável quadro, delineado com tão grande antecipação, não
seria completo, se não contivesse a data precisa, na qual surgiria
no mundo Aquele, por quem tantos séculos haviam suspirado. Pois nem
mesmo essa circunstância escapou à aguda visão dos vaticínios de
Israel. Daniel, com uma clareza que assombra, levanta uma ponta do
véu dos tempos e vaticina com segurança: “Desde o
decreto para a reedificação de Jerusalém até o Cristo Rei, 7
semanas e 62 semanas hão de correr. Depois de 62 semanas o Cristo
morrerá”.
O
edito, profetizado por Daniel, foi promulgado por Artaxerxes, no ano
445, antes da nossa era. Como as semanas de Daniel, são semanas de
anos, seriam pois 475 anos após, isto é no ano 33 de nossa era, que
o grande Esperado seria condenado à morte.
Maior
precisão não seria possível! Era a voz do futuro falando com a
segurança que só encontramos nas relações do passado.
Nos
monumentos da história hebraica, nas tradições universais do
gênero humano, acabamos de deparar com a persuasão constante e
generalizada de que estava prestes
a nascer o Divino, o Santo, o Poderoso, o Messias, o Desejado das
Nações.
Assim
amparado nos braços de Abraão, Jacó, Isaías, Davi, Miquéas,
Zacarias e Daniel, surge o Cristo no indestrutível do passado, esse
passado que não se inventa nem se usurpa.
Nenhum
mortal pode jamais desfrutar glória semelhante. Os maiores homens,
em torno dos quais a Terra entoou seus mais arrebatados ditirambos
(poesias)
de louvor, carregando-os em
seus carros de triunfo, só foram conhecidos, amados e adorados
depois do nascimento. Cristo, não. Sua fisionomia idealmente pura e
bela e sua incomparável grandeza foram conhecidas e aclamadas,
séculos e séculos antes de vir ao mundo. E a terra, que já O
amava, tanto e tanto O esperou que sua esperança se fez prolongado
gemido, o qual se transformou, por fim, nessa angústia indizível
cujo impressionante clamor, teve por vezes ecos sublimes como estes:
“Ó Oriente, esplendor da luz eterna! Sol de justiça!
Vinde iluminar os que estão sentados nas trevas e deitados à sombra
da morte!” “Rorejem os Céus e as nuvens chovam o Justo!”
A
Missão do Povo Judeu
Vimos,
Domingo passado, que, pela volta do ano 714 de Roma, a crer-se no que
afirmam velhos historiadores como Tácito, Suetônio, Flávio José e
outros, vivia o mundo na antiga e constante persuasão de que o Rei
das Nações estava para nascer.
Como
se explica que o Oriente e o Ocidente, a Ásia e a Europa, os povos
mais policiados como os que se achavam ainda mergulhados nas trevas
da barbárie, todos a uma voz professavam a mesma crença, viviam das
mesmas esperanças?
Essa
unanimidade de sentimentos, com que os povos mais diversos concorriam
de toda a parte ao berço do Messias, não é possível explicá-la
senão por meio de uma Revelação primitiva, feita a todos os
homens. Para que essa mensagem de esperança pouco a pouco se
difundisse por todos os recantos do mundo então conhecido, houve
Deus por bem servir-se de um povo missionário, o povo judeu, que,
misturando sua história com a dos outros povos, não só a propagou
no seio da humanidade, como a conservou íntegra e firme na plenitude
das suas afirmações.
Vejamos
pois, como Deus forma e prepara esse povo e como este cumpre a sua
augusta mas atormentada missão.
A
origem de uma nação, quando não se perde na noite dos tempos,
obedece a uma série de acontecimentos para os quais seria temerário
traçar leis gerais.
Um
magote de salteadores apodera-se de uma fortaleza e a torna
inexpugnável: surgem daí os romanos. Uma horda bárbara lança-se
contra um território vizinho e aí se fixa para sempre: assim
nasceu a França. Monges derrubaram florestas, saneiam pântanos;
missionários erguem uma igreja e ao lado um colégio: é a Alemanha
ou o Brasil que por essa maneira se forma.
O
nascimento do povo judeu é, entretanto, mui diferente e
extraordinário.
Esse
homem que Deus faz sair da Caldeia e conduz às terras de Canaã;
essa promessa de sua descendência torna-se mais numerosa que as
areias do mar e mais que as estrelas do Céu; esse filho único,
sorriso e ventura de uma tarda velhice e que deve o próprio pai
conduzir ao altar do sacrifício: tudo
aí tem algo de elevado e misterioso que faz com que esse povo desde
a sua origem seja chamado o povo de Deus.
Os
demais povos ignoram o destino que lhes foi prefixado. O povo judeu,
não. Tem nítida compreensão do papel sublime que vai representar.
Sabia, de fato, Israel que sua vocação lhe conferia o domínio do
mundo, não pela força das
armas nem pelo esplendor do gênio, mas por esta glória mais alta:
ser o depositário da Palavra de Deus e dar ao mundo Aquele que lhe
deveria trazer a salvação.
Pontífice
e Profeta do gênero humano, destinado a preparar a Terra para o
advento do Desejado, por sua legislação, filosofia e religião se
entrelaça com a história dos outros povos. Seria demasiado longo
relatar aqui toda a acidentada história desse povo. Contentar-me-ei
com uma rápida exposição.
Nem
bem nasce e já Deus, por uma série de acontecimentos providenciais,
o faz perlustrar várias regiões do mundo. O Egito, velho santuário
das tradições mais antigas, foi o primeiro e o mais demoradamente
visitado. Lá viveu Abraão, o pai dos crentes; José, que chegou a
ser primeiro-ministro; Moisés que, a força de milagres, obrigou os
sacerdotes egípcios a reconhecerem o poder de Deus, de quem era ele
o enviado e o representante. Há mais de cem anos que gemem os
Israelitas em duro cativeiro, quando Cécrops deixa o Egito e vai
fundar na Grécia, o reino de Atenas. Os Hebreus ainda estão sob o
mesmo jugo, quando Cadmus, o Fenício, que de há muito comercia com
o Egito, vai construir Tebas na Beócia.
Os
vestígios da passagem dos Hebreus pelo Egito, gravaram-se na pedra
dos famosos obeliscos. Quando foi possível decifrar os sinais
hieroglíficos – que por tanto tempo desafiaram a argúcia dos
homens de ciência – não foi sem espanto que, nesses velhos
monumentos, o arqueólogo se deparou com reproduções autênticas de
páginas inteiras da Bíblia.
Suficientemente
iluminado o velho Egito e quando os clarões já atingiam a Grécia e
a Fenícia, Deus faz sinal a seu povo e este logo se encaminha para a
terra que lhe fora divinamente preparada.
Em
harmonia com a missão que lhe tocava desempenhar, achava-se a nova
pátria colocada entre o Oriente e o Ocidente; à beira desse
Mediterrâneo, cujas águas sempre azuis, banham as plagas mais
ilustres; na vizinhança de Tiro, de Sidônia, de Mênfis, de
Alexandria; na rota fatalmente seguida por todos os grandes
condutores de povos: Nabucodonosor, Ciro, Xerxes, Alexandre, Pompeu,
Tito.
A
conquista, porém, não se faz pacificamente. Israel fatídico, sob o
impulso de sua misteriosa vocação, ora ataca e conquista, ora é
assaltado e reduzido à escravidão.
Assim
é que Filisteus, Moabitas, Amonitas, Amalecitas, sucessivamente caem
sobre ele, recortando-lhe em pedaços o território. Chega depois a
vez de sustentar o embate com os grandes impérios: o Assírio, o
Persa, o Grego, o Romano, esses gigantes que tão fundos vestígios
deixaram de sua passagem pela História. O povo judeu vê-se
envolvido no turbilhão dos violentos entrechoques desses povos e,
qual satélite, vai seguindo toda a parábola que descrevem esses
grandiosos astros, desde o início até a queda final. É então que
Senaqueribe com todo o seu poder se vê batido e destruído junto aos
muros de Jerusalém; é então que se funda Betúlia, a capital do
reino do sul; é então que, uns após outros, se erguem os Profetas
em Israel, para anunciar o terror e a esperança, ou para vaticinar
ao inimigo a decadência e a morte. Mas, no desterro ou na servidão,
longe da pátria ou no centro dela, a promessa do Messias é para
esse povo luz nas amarguras, consolação nos revezes.
Enfim,
no ano 599 antes de Cristo, Jerusalém é inteiramente destruída, o
templo incendiado, o rei, os grandes Profetas Ezequiel e Daniel,
conduzidos como escravos para a Babilônia. Ciro, entretanto, aparece
e, à frente dos Medas e dos Persas, destrói Babilônia e liberta os
judeus, desimpedindo-lhes a estrada que os havia de levar à pátria.
Heródoto,
o pai da História profana, só então começa a ser conhecido. Só
então Dario se lança contra a Grécia. Já nessa época os livros
hebreus são traduzidos para a língua caldaica, a mais falada em
toda a Ásia.
Chega
o momento em que também a Grécia, rainha então do mundo pelo
esplendor de sua civilização, sente o irresistível fascínio da
Palestina. Aparece Alexandre à frente das coortes de ferro, às
quais se misturam filósofos de vestes roçagantes. Jerusalém tem no
próprio nome tão grande estímulo e tamanho poder, que ele deseja
conhecê-la e destruí-la. Reúne seu poderoso exército e qual
furacão sobre ela se precipita. Na iminência da ruína e do
extermínio de seus habitantes passados a fio de espada, abrem-se ao
valoroso cabo de guerra as portas da cidade e lhe vem o Sumo
Sacerdote ao encontro, com o Livro das Profecias que lhe vaticina as
conquistas. Impressionado, retrocede com seus guerreiros, poupa a
cidade e promete amparo aos seus habitantes.
Quanto
mais se divulga a tradição por toda a parte, tanto mais vivas se
vão tornando as luzes. Assim, 233 anos antes de Cristo, coagidos por
causas múltiplas, dispersam-se os judeus e se estabelecem uns na
Ásia Menor, outros no Egito. Ptolomeu colma-os (enche-os) de
honrarias e concede-lhes o direito de cidadania. O templo
transforma-se numa das maravilhas do mundo e os sírios enviam-lhe
custosas oferendas. Enfim, quando Roma, já em contato com a Grécia
há muitos anos, move combate a Cartago, são os Livros Santos
traduzidos para o grego, o idioma então mais conhecido e mais
falado, a língua dos sábios e dos filósofos.
Cartago
não resiste e sucumbe às garras aduncas (recurvadas) das altivas e
invictas águias romanas. Sagunto é destruída, Nomancia arruinada e
os Gauleses destroçados: Roma, sentada sobre os destroços de tronos
e impérios que espedaçara, proclama-se com verdade Senhora de todos
os povos.
Nesse
tempo, governavam Israel os três irmãos Macabeus, os quais,
derrotados e vencidos já os reis da Síria, reconstituíam o reino
de Judá e estendiam o seu domínio sobre quase toda a Iduméa.
Dilatava-se,
entrementes, o poder romano e as águias imperiais já se aninhavam
na fortaleza Antônia, no próprio coração de Jerusalém.
Em
Roma, disputavam o supremo poder, procurando cada qual eliminar seu
rival, Mário, Silla, Pompeu, Antônio, César. Mário, o patrício,
e Sila, o plebeu, desaparecem afogados num mar de sangue; Pompeu
sucumbe em Farsália; Áccio vê Antônio derrotado e estendendo
César os grandes braços, devassando o horizonte sem lobrigar
(avistar) nenhum povo que não tenham os seus exércitos sujeitados,
pode finalmente exclamar: Eu sou o rei do mundo!
Então,
por toda a parte, dessa como por encanto o estrépito das armas e, no
meio do silêncio que envolve o mundo, submetido pela primeira vez a
um único cetro, ouve-se um rumor estranho; é o relógio dos séculos
que soa 4 mil anos, anunciando para breve o terrestre advento de
Jesus Cristo. Esses povos que se põem em movimento, essas sociedades
que se erguem, se policiam e se destroem, tudo isso converge para a
Encarnação, remate da obra divina em Jesus Cristo – verdadeiro
Deus e simultaneamente verdadeiro homem. Tudo isso tinha projetado o
Criador, quando plantara, desde o começo dos tempos, essa árvore
imensa a cuja sombra se abrigariam os povos todos, para chegar a essa
religião que divide a História em duas grandes fases distintas: uma
– de preparação; outra – de execução.
Jesus
Cristo é Deus.
Seu
Nascimento,
e
o Mundo Cristão
O
Proclamam.
Entre
cânticos angélicos e refulgentes luzes, nasceu o Menino de Belém.
Sua pobre Mãe recebera-lhe o primeiro suspiro, enxugara-lhe as
primeiras lágrimas que lhe umedeceram os olhos inocentes.
A
oficina do carpinteiro abrigara os anos de Sua infância e o trabalho
rude, sobre temperar-lhe de tristeza o pão, também lhe inundara a
fronte de copioso suor.
Mas,
depois de 30 anos de silêncio e de obscuridade, esse homem
apresentou-se à terra maravilhada para lhe dizer: “Eu Sou a luz
do mundo. Eu Sou o Princípio e o Fim… Eu Sou o Caminho, a Verdade
e a Vida...”. E roborando logo tão insólitos dizeres com
fatos não menos extraordinários, arrastou nas Suas pegadas
multidões embevecidas, que nunca mais deixaram de O amar e adorar.
Quem
é esse Homem? Jesus Cristo, dizemos nós.
Há,
entretanto, quem escarneça desta nossa afirmação e, não só
duvide que Ele seja Deus como chegue até a negar-lhe existência
real, envolvendo-lhe a Pessoa na vaga nebulosidade de um mito, na
dourada fantasia de uma lenda.
Veremos
hoje, que Ele realmente existiu e, mais ainda, que Sua existência
foi não a de um simples homem mas a de um Homem-Deus, como o atesta
meridianamente o Seu Nascimento e como o tem constantemente
proclamado o mundo cristão.
Quando
um homem nasce, ainda mesmo que tenha o seu berço no paço real,
surge sempre entre o nada e o desconhecido, entre o silêncio e o
mistério: sem passado, aguarda o futuro indevassável. Nenhum mortal
conseguiu jamais que dele se falasse antes de nascer.
Por
mais poderoso que tenha sido o homem durante a vida, e por mais
célebre depois da morte, acaso conseguiu que se preocupassem com sua
pessoa os que existiram antes dele? Quem há que tenha logrado, antes
de nascer, perpetuar-se na memória de uma família, de um povo, da
humanidade inteira, fazendo-se admirar, amar e adorar por
antecipação?
Os
clarões dessa glória incomparável uma só pessoa iluminaram: JESUS
CRISTO!
Numa
das palestras anteriores, vimos que Jesus vivera, antes de nascer, na
memória do povo judeu. Sua lembrança foi luz nas amarguras e
consolo nos múltiplos revezes por que passara esse povo. A esperança
de Sua vinda fizera vibrar os lábios dos Profetas, incrustara-se
nas páginas dos seus Livros Sagrados, nos reluzentes mármores dos
Seus altares, nas pedras preciosas do Seu templo suntuoso;
misturara-se por tal forma com as origens, os destinos, as alegrias,
as desgraças desse povo, que podemos dizer ter sido Ele a pedra de
fecho da cúpula desse grande monumento histórico e social da
antiguidade. Por outro lado, tivemos ainda ensejo da averiguar que,
embora sob luz menos brilhante, com seus traços esbatidos na sombra,
Jesus viveu também na memória dos Gentios.
No
fundo dos seus santuários, no seio das suas florestas, como no
jardim de Academus e no Liceu de Atenas, o nome do misterioso Menino
insinuou-se na poesia, invadiu a história, penetrou a filosofia
desses povos. E notai bem que esses povos tão diversos, vinham todos
encontrar-se em redor do berço de um Deus, não de um homem. Era um
Deus que os pagãos pediam ao Oriente pela boca de seus sábios; era
um Deus que Israel pedia a Belém pela voz dos seus Profetas.
Alguém
dirá: “Não foi Jesus Cristo que viveu na memória dos povos do
Oriente e do Ocidente”. Se não foi Jesus Cristo, que outro
homem do Oriente registra a História, que outro descendente de Davi,
que outro menino de Belém, o qual, no momento assinalado pela
expectação universal, se tenha apresentado aos homens como o Deus
que esperavam?
A
esperança universal dos povos teria sido frustrada e passaria a
constituir um fenômeno singular, nunca antes assinalado nem depois,
a saber: uma loucura coletiva que levou povos de tão diversa índole,
religião e posição geográfica, a considerarem como Deus um homem
que nunca existiu e que jamais existirá.
Mas,
para provar a existência histórica de Jesus e a Sua divindade, aí
se encontra, à vista de todos, o mundo cristão.
Como
essas nebulosas fecundas que povoaram os espaços incomensuráveis, o
Cristianismo, transpostas as planícies da Judeia, foi
progressivamente suscitando em toda a terra, sociedades que,
iluminadas da mesma doutrina e temperadas na mesma virtude, nele
encontraram a genuína fonte de vida e calor. Transponde as
montanhas, vadiai os rios, atravessai os mares que separam os grandes
continentes, visitai os arquipélagos e as ilhas perdidas na vastidão
dos oceanos: por toda a parte descobrireis a Cruz agrupando à volta
de si grandes ou pequenas comunidades, as quais, se vos aprouver
saber que fé professam, todas unânimes responderão: Somos
cristãos!
Sim,
somos cristãos, isto é, amamos a Jesus e procuramos imitar a Jesus.
E unânimes deveras amam a Jesus! A criança, que, no regaço
materno, aprende a juntar as mãos e a invocar a Deus, não te desejo
mais ardente do que o de dar ao bom Jesus, ao Amigo dos simples e
pequeninos, seu coraçãozinho forrado de inocência, na festa da
Primeira Comunhão. O moço, que sente no seu íntimo o raivar das
tempestades, o sangue alvorotado pela violência das paixões,
reclina a fronte sobre o peito de Jesus para lhe segredar seus
combates, suas fraquezas, suas derrotas e implorar contrito a graça
que lhe purifica a alma. A idade madura descansa confiadamente, nas
misericordiosas mãos de Jesus, o fardo imenso de uma vida
atravessada de lutas e de fadigas. A velhice, já vergada ao peso de
tantas fadigas e tantas decepções, atira-se aos braços do único
Amigo que jamais faltou e que lhe diz, benévolo como sempre: Aqui Me
tens.
Jesus
é assim “amado como um amigo… como um pai, como o mais
magnânimo dos benfeitores, como o mais doce dos consoladores, como
Redentor e Salvador”. “É amado com amor terno que
conforta o coração e lhe proporciona castas delícias. É amado com
amor confiante, certo de ver satisfeitos os seus mais imperiosos
desejos e as suas mais caras esperanças. É amado com amor generoso,
disposto aos mais árduos sacrifícios, às renúncias mais acerbas
para a natureza humana”.
O
mundo cristão imita a Jesus Cristo. E essa imitação esmaltou a
superfície da terra com a floração de virtudes até então
completamente desconhecidas.
Nenhum
inimigo do Cristianismo, por mais rancoroso, deixou de reconhecer
que, no mundo cristão, a perfeição moral atingiu o mais alto grau.
De fato, a nobreza das aspirações, a firmeza na luta contra os
apetites desregrados da natureza, a flor da pureza, o lírio da
virgindade, o respeito ao direito alheio, o amor do sacrifício, a
generosidade no benefício, a magnanimidade ante a ofensa, a
facilidade em perdoar, a generosa porfia quotidiana por sempre mais
se aprimorar e muitíssimas outras variadas flores de virtude, que
engrinaldam a fronte do justo e, por fim, culminam na santidade –
exclusivo apanágio do Cristianismo – só vingam no jardim regado
com o Sangue de Cristo.
De
todos os fenômenos que surgiram à superfície tempestuosa da
História, não há sequer um que possa confrontar-se com o do mundo
cristão. Este é singular e sem precedentes na sucessão dramática
desses vinte séculos volvidos.
Ora,
de duas, uma: ou esse fenômeno, com a profunda transformação que
produziu na face da terra, mergulha suas raízes no húmus impalpável
de uma lenda, e outros termos, é efeito sem causa – inadmissível,
por absurdo – ou a sua pedra angular, sua causa viva, pessoal,
próxima, efetiva e total é Jesus Cristo.
Essa
obra se reveste de caracteres tão surpreendentes, supõe fatores tão
superiores às forças de um simples homem, que ela, por si só,
basta para provar. Em subsequentes palestras analisaremos outras não
menos brilhantes e não menos concludentes.
Para
terminar, seja-me lícito fazer minha a súplica do grande Monsabré:
“Mestre adorado, querido amigo de minha alma, assisti-me no
longo percurso das verdades de que Sois o revelador e o centro
vivificante… Fazei falar meu coração mais do que minha
inteligência… Preparai os que me ouvem… Abri-lhes as portas da
fé. Trata-se da Vossa glória e da salvação das almas: a Vossa
glória e a salvação das almas que para mim valem mais que todos os
bens deste mundo”.
Jesus
Cristo é Deus,
afirma-o
Ele próprio:
“Eu
Sou Deus”.
Ter
vivido na memória dos povos, quarenta séculos antes de nascer, ter
constituído, durante esse longo período de tempo, o anseio das
nações e ter granjeado, após Sua morte, 20 séculos de amor e
adoração que, num crescendo maravilhoso, vieram formar a viga
mestra de toda uma civilização – quem não veria em tudo isso
exuberante prova da Divindade de Jesus Cristo?
Segundo
o método que adotamos a fim de vos poupar a benévola atenção,
também a respeito da divindade de Jesus, iremos enfileirando as
principais provas, que, no seu conjunto, formarão um bloco maciço e
indestrutível; analisaremos hoje a Palavra de Jesus, para comprovar
que essa Palavra inefável difere de todas as que foram pronunciadas
neste mundo; que a proferiu Jesus em Seu nome próprio e que tem
persistido indelével a despeito da ação destruidora do tempo.
Ouvindo o que ela diz, colheremos esta afirmação excepcional –
uma só vez proferida por lábios humanos - “Eu Sou Deus”.
A
palavra humana! Haverá debaixo dos Céus coisa que jorre tanta luz,
que produza tanta harmonia, que possua tão eletrizante poder como a
palavra humana?
É
por ela que o homem se exterioriza, porque a palavra é o sinal
sensível do seu pensamento, o verbo da sua inteligência, o grito da
sua alma. Por ela a alma, escapando do seu invólucro material, faz
vibrar os lábios do homem para entrar em contato com outras almas,
outras inteligências.
No
mundo conhecemos três grandes palavras: a palavra da virtude, a
palavra do gênio, a palavra da autoridade. A palavra da virtude
enfeita de alegria o coração do homem honesto e faz empalidecer o
crime, na miséria de suas maquinações perversas. A palavra do
gênio desce das alturas luminosas do pensamento para cair no meio
dos homens, envolta na música sonora e inebriante dos aplausos. A
palavra da autoridade impõe o respeito, concilia a obediência,
arrasta os povos para a morte, deita por terra os tronos, e modifica
algumas vezes a geografia das nações.
Empolgante,
arrebatadora, cheia de magias e seduções, a palavra humana,
contudo, paga o indefectível tributo à fragilidade e imperfeições
inerentes à natureza do homem. Não fala em seu nome próprio,
porque sabe que, se a tanto se abalançasse, havia de sufocá-la o
ridículo. É em nome do direito, da justiça, e sempre, em nome de
um princípio, que ela agita, revolve, convulsiona a massa de seus
ouvintes. É também limitada no tempo e no espaço.
Irremediavelmente presa à época em que foi proferida, assiná-la
sempre um determinado período da História.
Assim,
é no Liceu de Atenas que se ouve a palavra de Aristóteles; a de
Catão não transpõe os umbrais do senado romano. Fora da Agora que
significação poderia ter a palavra de Demóstenes? Longe do Fórum
a que ficariam reduzidas as magistrais orações que Cícero aí
proferira? César só foi ouvido e obedecido pelas aguerridas e
velozes legiões dos seus soldados… Nenhuma dessas três espécies
de palavras jamais logrou obter a universalidade, porque, sendo
palavra humana, se viu irremediavelmente circunscrita a determinado
tempo e lugar.
Portanto,
se depararmos com uma palavra que serenamente permaneça idêntica em
todos os tempos e em todos os lugares, e conserve, através dos
séculos, a inalterável frescura de sua mocidade, e todo o seu vigor
de expressão, estaremos certamente diante de uma palavra que não é
humana, mas divina; pronunciada não por um homem, mas por um Deus.
No
pórtico do templo de Jerusalém, pelas estradas poeirentas, pelas
vilas e cidades da Palestina, no esplendor de seus 30 e poucos anos,
Jesus profere a Sua Palavra que não se encerra num estreito círculo
de amigos; que não se circunscreve aos limites de um território, de
uma nacionalidade, de uma raça; que não ecoa apenas entre o Jordão
e o lago de Tiberíades nem vai expirar nos confins de Tiro e de
Samaria. Confiada a todos os ventos do Céu, semeada em todos os
quadrantes da terra, essa Palavra excepcional alcançou todos os
climas, penetrou as mais variadas zonas de civilização, reboou
impressionante e repercutiu solene em todos os tempos e todos os
lugares.
Sobrepondo-se
a, famílias, assembleias, povos e impérios, Jesus diz: falo a todos
os homens; quem receber a Minha palavra será salvo e quem a repelir
será condenado. Esta Minha palavra se dirige a todas as criaturas.
Ninguém pode ignorá-la. Reis e povos, grandes e pequenos, ricos e
pobres, ignorantes e sábios, hão de todos balbuciá-la ao nascer,
repeti-la durante a vida, e selar com ela o derradeiro suspiro.
Eis
uma palavra que jamais poderia ter sido proferida por homem nenhum.
Transpondo o espaço e ultrapassando o tempo, aspira à
universalidade, visa ao infinito.
A
História, registra essa palavra como única e excepcional. Só o
Cristo pode pronunciá-la. Só o Cristo pode falar ao homem em Seu
Nome próprio e fazer-se ouvir e compreender em todos os tempos e em
todas as latitudes, porque Sua Palavra transcende a esfera humana –
é Palavra de Deus.
Nessa
palavra, cujos caracteres divinos acabamos de analisar, o que mais
nos surpreende e nos enche mesmo de assombro, não é a autoridade
soberana de que se reveste, nem a extensão ilimitada que
vitoriosamente ostenta no espaço e no tempo; é antes a máxima e
sublime afirmação que encerra.
Conhecemos
na História fundadores de impérios, de repúblicas e de religiões
que, para darem à sua palavra o cunho de maior autoridade se
apadrinharam com o nome de Deus. Apresentaram-se como inspirados,
como iluminados por Deus, a fim de, penetrando mais fundo na alma
desses povos, poderem granjear maior respeito para as instituições
que fundaram. Não houve sequer um que seriamente se inculcasse por
Deus. De alguns sei que, embriagados pelo vinho capitoso do poder e
pelo incenso de um magote de bajuladores, por momentos se esqueceram
de que eram homens. Mas, nem Tibério, nem o senado romano foram
levados a sério. Sabiam que não era possível ludibriar a quem quer
que fosse e ainda mais se convenceram, quando, o povo humilhado, em
acesso de furor, tantas vezes se vingara da sacrílega comédia que
pretendiam representar.
Somente
Jesus disse com sinceridade a palavra que nunca lábios humanos
proferiram e que jamais homem algum pode sequer imaginar: “Eu
Sou Deus”.
Essa
palavra de Jesus nós a encontramos nos quatro evangelistas, não,
como seria lícito supor, em confidência discreta entre amigos e
admiradores, mas como a de Cesaréa de Filipe, qual afirmação
precisa e solene diante dos seus compatriotas. Esses possuíam a lei
que lhes armava as mãos implacáveis contra os blasfemadores do Deus
único por eles adorado. Jesus não a desconhece. Afronta com
afirmações repetidas os furores desse povo que, na defesa do Santo
Nome de Deus ia até ao paroxismo. E, para não sucumbir à lapidação
com que O ameaçavam, vê-se o Mestre, certa vez, constrangido a
fugir.
Jesus
afirma solenemente que é Deus, perante o mais alto Tribunal de sua
terra, no momento em que ia ser julgado. “Esconjuro-te, em nome
de Deus vivo que nos digas se és o Cristo, o Filho de Deus”,
exclama o magistrado. Jesus, de Coração tranquilo, responde com voz
serena: “Tu o disseste, Eu Sou. Ver-Me-eis um dia sobre as
nuvens do Céu a julgar os vivos e os mortos”. Acabava de
proferir a sua própria sentença de morte. “Nós temos uma lei,
bradam os judeus, e segundo essa lei Ele deve morrer porque se fez
Filho de Deus”.
Pregado
na Cruz, fronte coroada de espinhos, sentindo já chegados os
derradeiros momentos da Sua vida, Jesus não se retrata, antes
continua a falar como Deus. Promete o Paraíso ao bom ladrão que lhe
o havia implorado e resume as afirmações que fizera perante os
discípulos, as multidões e os juízes, nas repetidas súplicas ao
Pai, de quem se diz Filho: “Pai, perdoa-lhes, porque não
sabem o que fazem!” “Pai, nas tuas mãos encomendo o meu
Espírito”.
Nem
os maiores cínicos, nenhum dos grandes celerados teve, na iminência
da morte, forças para perseverar na estrada do crime: antes, caídos
em si e debulhados em lágrimas de arrependimentos, confessaram todo
o negror de suas vidas sinistras. E, contudo, nem o dever, nem o
interesse, nem a perspectiva dos tremendos juízos de Deus lograram
arrancar do coração e dos lábios de Jesus uma só palavra de
retratação.
Objetar-me-eis:
“Jesus dizia-se Deus sem estar convencido ou sem ter a certeza
de que realmente o fosse”. Respondo-vos que os maiores e mais
rancorosos inimigos de Jesus, todos O reputaram sábio, homem de alta
perfeição moral; ora, um sábio não teria a leviandade de
proclamar-se Deus, se não estivesse plena e absolutamente certo da
verdade que afirmava; um Santo não proferiria tão horrenda
blasfêmia, a que nem os lábios do mais infame celerado se
atreveriam, mormente no instante supremos de entregar a alma a Deus.
“Eu
Sou Deus”. Não! Esta palavra
nos lábios de Jesus e de Jesus crucificado, não é blasfêmia. É a
mais extraordinária verdade que repercutiu sob a cúpula do
firmamento.
Falo
a cristãos que trazem Jesus no âmago do coração; que, ao levantar
e ao deitar, depositam, no Crucifixo de marfim ou de madeira tosca,
uma prece fervorosa, um ósculo de amor; que, desse Crucifixo,
confidente de suas lágrimas secretas, vão haurir a coragem da
virtude, o ardor que sustenta o combate, a constância que assegura a
vitória.
A
inabalável fé nas Palavras de Jesus oxalá vos torne mais humildes,
mais castos, mais caridosos e vos inspire salutares desejos, santas
resoluções e piedosos sentimentos! Possa ela produzir em vós
frutos de graça e santidade para serdes, por vossa vez, testemunhas
vivas a bradar com altivez aos incrédulos: “Eu não
seria o que sou, se Jesus não fosse Deus!”.
Jesus
Cristo é Deus,
é
Ele quem o Afirma
com
Ciência e Veracidade.
Palavra
extraordinária a de Jesus! Sobrepairando as imperfeições e
fragilidades da mera palavra humana, a palavra de Jesus não é de
hoje, nem de ontem, mas de sempre; não a compreendem apenas os
gregos e os romanos, mas todos os povos, em todas as latitudes da
terra.
Brotava-lhe
dos lábios tão impressionante que os seus contemporâneos, não
podiam menos de exclamar: “Homem nenhum falou como este”.
Entre as muitas verdades que ensinou, uma se ergue que ilumina as
demais: a serena, alta e solene afirmação da Sua divindade – “Eu
Sou Deus!”.
Quando
tal se proclamava diante dos seus discípulos, dos seus compatriotas,
do Tribunal que, precisamente por isso, O condenou à morte, não se
teria Jesus enganado a Si mesmo ou não teria, quiçá, procurado
enganar-nos a todos nós?
Terminamos
nossa última palestra com essa pergunta e para que nenhuma sombra de
dúvida vos pairasse no espírito, já então enunciamos a resposta a
essa dificuldade.
Vamos,
hoje, analisá-la mais acuradamente. Veremos que Jesus não podia ter
sido vítima de qualquer engano a respeito de Sua natureza, pois que
a tanto se opunha Sua inteligência excepcional; nem poderia ter-nos
enganado, pois amando, como efetivamente amou a todos os homens com
ilimitado amor, era impossível que, transtornadas todas as leis da
psicologia, viesse a perpetrar tamanha monstruosidade.
O
esplendor do olhar de um homem de gênio, disse Fénelon, ofusca
todos os esplendores do sol.
Sem
dúvida alguma, a figura centra que ressalta das páginas do
Evangelho, a figura de Jesus, tem a fisionomia iluminada pelo clarão
incomparável do gênio. A dupla qualidade que caracteriza essa
eminência do pensamento, a saber: o dom de penetração e o dom de
elevação, Jesus os possuía a par de simplicidade e candura
verdadeiramente maravilhosas.
Quem
tenha lido os Evangelhos saberá que nada escapava à extraordinária
penetração do olhar de Jesus. Com que profunda intuição não
desvendava os pensamentos ocultos nas dobras mais recônditas do
coração!
Os
fariseus não perdem de vista o Taumaturgo, analisam-lhe todas as
palavras, esquadrinham-lhe todos os atos, na esperança de
surpreenderem uma infração à lei. Esta apresenta-se na ocasião em
que Jesus cura, em dia de Sábado, o paralítico da Piscina
Probática. Enquanto ainda ruminavam dentro de si a forma com que
vestiriam a denúncia, Jesus fixa-os demoradamente e, em voz alta,
responde as acusações íntimas dos seus inimigos, enchendo-os de
confusão. E, quando, acesos de cólera e cegos de ódio se
mancomunavam para O prender, o Evangelho observa que o Salvador
“conhecendo-lhes os desígnios” se afastou da região e se
retirou com Seus discípulos para as margens de Tiberíades.
Ei-Lo na casa de Simão, o fariseu. A Madalena, ajoelhada aos pés do
Mestre, lavando-os com suas lágrimas e enxugando-os com as madeixas
dos seus cabelos. Escandalizado, resmunga o fariseu, ou antes, pensa
consigo mesmo: “Se este homem fosse profeta, certo
saberia que esta mulher é pecadora”. A resposta a esse
pensamento não se fez esperar. Veio pronta e cheia de caridade,
lançando ao mesmo tempo, na alma da convertida, palavras de tanta
misericórdia que a ergueram do lamaçal aos cimos luminosos da
penitência heroica.
Poderia
multiplicar os exemplos. Eles pululam em cada página do Evangelho.
Os que venho de enumerar são, contudo, bastante eloquentes.
Na
inteligência de Jesus, o que mais nos enche de admiração é ver
que o dom de penetração não prejudica o de elevação, o movimento
que aprofunda não contraria ao que eleva, sendo a um tempo sublime e
penetrante.
Contam-se
na História os homens que proferiram grandes e nobres palavras.
Aquilo que, de onde em onde, a inteligência humana conseguiu a custo
produzir, era em Jesus a forma habitual e constante de expressão.
Vede
como Jesus é sublime, quando, como joalheiro emérito, entretece a
filigrana de ouro de Suas parábolas imortais; como é sublime,
quando, do alto da montanha, assim confunde as cobiças humanas e
reconforta os corações humilhados, as dores desprezadas:
“Bem-aventurados os pobres! Bem-aventurados os que choram!
Bem-aventurados!” Como é sublime, quando ensina que devemos
pagar com o bem aos que nos fazem mal. Como é sublime… não
prossigamos, que longa seria a enumeração. Lede o Evangelho e
vereis que cada palavra, cada frase brotada desses lábios divinos,
tem cintilações que não ofuscam, antes exaltam e comovem ao ponto
de nos banharem os olhos de lágrimas, e cuja doçura é realmente
inexprimível.
Com
a fronte assim coroada por essa fulgurante auréola de gênio –
coisa admirável! – jamais se valeu Jesus da ênfase, jamais
procurou em Suas palavras, em Seus gestos, em todas as Suas atitudes
essa espetaculosa solenidade que afasta para longe os pequeninos,
tomados de timidez. Ao revés, simples e bom, humilde entre os
humildes, em cuja convivência se comprazia.
Essa
a inteligência de Jesus. O Coração não era menos admirável.
Geralmente,
por viverem nas alturas glaciais do pensamento, têm os homens de
gênio o coração frio e quase insensível. Timbram mesmo em
mostrar-se inacessíveis aos mais puros e suaves afetos, rebeldes a
todas as expansões do sentimento, para que ninguém os confunda com
o comum dos homens. Em Jesus, o vasto e ilimitado da inteligência de
nenhum modo impedia as manifestações mais vivas do coração. Nele,
muito ao contrário, não sabemos o que mais admirar, se as
portentosas fulgurações da mente genial, ou se o Coração, feito
de larguezas infinitas, a dar-se por inteiro, não só aos que se lhe
vinculavam pelos laços do sangue ou lhe compartiam a intimidade
venturosa, senão também a todos os que d’Ele se acercavam, a
mendigarem uma gota do Seu imenso amor.
Acompanhai-Lhe
todos os passos da vida pública, segui-O desde a oficina de Nazaré
até o poço de Jacó, desde o pórtico do Templo de Jerusalém até
o lago de Genesaré e presenciareis os estupendos atos, que Seu amor
soube praticar. O Seu Coração não se inclina apenas para a
humanidade em geral, mas colma de afagos, de bênçãos e de ternuras
as crianças, Seus inocentes amiguinhos, que para Ele confiados
acorriam. João reclina a fronte sobre o Seu Coração para daí
colher os elementos com que compôs esse poema de amor, que é o
quarto Evangelho.
Lázaro
morre. Lázaro, debaixo de cujo teto fora Ele encontrar toda a doçura
da amizade humana. Diante do cerrado sepulcro desse amigo, as
lágrimas rebentam-Lhe dos olhos, e embargam-Lhe a voz os soluços,
como também acontece conosco, quando a morte vem despedaçar-nos as
fibras mais delicadas do coração. As dores alheias tão vivamente
Lhe ferem o peito que O obrigam a restituir à viúva de Naim, o
filho, cujo esquife acompanhava à sepultura; e a Jairo, a filha
predileta, cuja morte o afogava em prantos.
Amou
os pobres ao ponto de lavar-lhes os pés e chegou mesmo a prometer
centuplicada recompensa e mais o Reino dos Céus a quem desse um copo
de água ao pobre sedento. Os pecadores, a Samaritana adúltera, a
Madalena desonrada, os desdenhados publicanos, amou-os tanto que, em
toda a parte com eles se apresentava, incorrendo, por isso, nas
recriminações e nas injúrias dos soberbos fariseus, extremamente
ciosos da observância literal da lei. Não só lhes prometeu àqueles
o perdão, mas ainda, numa de Suas mais enternecedoras parábolas,
representou Deus ofendido como um Pai, cujo coração, ralado de dor,
só deixa de sofrer, quando contempla jubiloso o regresso de todos
esses filhos pródigos. Não houve lágrima que não enxugasse, nem
dor que não suavizasse. Ao Seu encontro vieram sempre as maiores
angústias, os supremos desesperos, certos de, naquele grande e
incomparável Coração, depararem piedade, refrigerante gota de
consolo. E, amando assim, como homem nenhum amou na terra, Jesus
também nos ensinou a evitar e fugir dos abismos da fraqueza em que
os pobres corações humanos quase sempre se enlameiam. Uma austera
reserva, uma circunspecção a toda prova protegeu sempre contra a
mais leve suspeita, a pureza do Seu Coração, santuário imaculado,
que transformava em lírios as próprias flores do lodo que d’Ele
se avizinhavam.
Quando
um homem de gênio e de grande coração, habitualmente calmo, de
falar ponderado e agir discreto, interrompe de chofre o curso
tranquilo do pensamento, e se proclama Espírito Santo ou Pai Eterno,
não há quem não lastime o total eclipse de tão luminoso astro.
Por que, Srs? Porque essa estranha afirmação aberra do conjunto das
ações por ele praticadas, não se liga por fio nenhum à trama de
sua vida. É um demente, dizeis entristecidos. E o gênio que antes
nele refulgia só serve para dar triste notoriedade a essa terrível
desgraça. Não se teria passado o mesmo com Jesus? Não, srs. A
afirmação do Cristo: “Eu Sou Deus”, longe de violentar a
continuidade das Suas obras e das Suas palavras, foi, por assim
dizer, a pedra de fecho de toda a Sua doutrina, desígnios e
virtudes; tão intimamente se lhe entremeava na vida que, sem ela,
não se compreenderia o Cristo.
A
perfeição da inteligência de Jesus afasta, portanto, qualquer
suspeita de loucura, nem a perfeição imensa do Seu Coração
permite a hipótese de mentira e de falsidade. Logo, Jesus tinha
plena consciência e absoluta sinceridade, quando pronunciou esta
afirmação única: “Eu Sou Deus”.
E
vós, ao contemplardes a maravilhosa perfeição daquela inteligência
e daquele Coração, sentistes candente e insopitável nos vossos
lábios o ato de fé, que prorrompeu firme e entusiasta do coração
do Centurião: “Vere Filius Dei erat iste!
Vós
Sois o Filho do homem, no sentido absoluto, Vós Sois o Homem ideal,
puro, belo, completo, a mais alta flor de perfeição que desabrochou
um dia na Terra. Mais do que isso, Vós Sois o Homem-Deus, o Verbo
eterno, verdadeiro Filho de Deus, Redentor do mundo – Vós Sois o
meu Senhor e o meu Deus!
Jesus
Cristo é Deus:
Atestam-no
as Suas Obras.
A
proclamação que o Cristo fizera de Sua divindade nenhuma admiração
poderia suscitar. É que ela se entrelaça de forma admirável, quer
com as profecias concernentes ao Messias, quer com todo o conjunto de
Sua vida e doutrina.
Fronte
coroada pela Majestade do gênio, Coração Sagrado pelo amor mais
sublime que a terra jamais conheceu, Cristo, ao fazer tão
impressionante afirmação não podia enganar-se nem muito menos
enganar-nos.
Entretanto,
por mais genial que seja a inteligência que a inspirou, por mais
sagrados que tenham sido os lábios que a proferiram, essa afirmação
do Cristo não é suficiente para que desde logo o consideremos como
Deus. Faz-se necessário saber se Deus a corroborou com o selo da Sua
aprovação, a saber: o milagre.
Veremos
hoje que, para provar a Sua divindade, Cristo não se esqueceu de
obter para a Sua palavra a chancela de Deus, ratificando o que Ele,
Cristo, solenemente afirmara.
Não
padece dúvida alguma que, segundo a promessa feita aos Patriarcas,
ao enviar Seu Filho à Terra, caracterizado por um sinal
inconfundível, Deus não deixaria de credenciar devidamente a
embaixada da Redenção. É, aliás, o que fazem todos os chefes de
Estado e o que fazemos todos nós.
Por
que é que não contentes de lançar vossa assinatura num documento
importante, mandais ainda reconhecer a vossa firma? Para que não
seja possível confundi-la com audaciosa falsificação.
E
Deus não teria tomado essa elementar medida de prudência,
arriscando-se com isso a não ser reconhecido por nós e – o que é
pior – expondo-nos a cometer o feio e monstruoso crime de tomarmos
por Deus um simples e pobre mortal? Não é possível. O que não
escaparia a vulgar prudência humana, não seria descurado pela
sabedoria divina.
Mas,
quais os peculiares característicos das credenciais dadas por Deus?
As mesmas de todas as credenciais, a saber: selo que só a Deus
pertença, fácil de ser reconhecido e impossível de ser
completamente falsificado. E vai Deus buscá-lo acima, fora e, mesmo,
contra o mundo natural, porquanto ninguém reconheceria num fenômeno
vulgar a intervenção do Soberano Senhor do Universo.
Suponhamos
que se vos apresente um homem, o qual, sobre arrogar-se uma divina
missão, declare ser Filho de Deus e como prova dessa afirmação,
faça coisas extraordinárias: cure doenças para as quais não
conhece remédio a medicina, senhoreie os elementos, transmude a
vossa vista umas substâncias em outras substâncias, restitua a vida
aos mortos. Direis: Isto não é natural; aqui está o Dedo de Deus.
Suponhamos ainda que esse homem consiga, pela só influência da sua
doutrina, obrar no mundo a transformação mais profunda e radical,
tanto mais surpreendente quanto há que lutar contra todas as
paixões, todos os preconceitos, todos os interesses criados;
suponhamos que os seus adeptos, tamanha coragem manifestem que
velhos, mulheres, donzelas e crianças afrontem as mais cruéis
torturas, e vão ao encontro da morte como se fossem para as delícias
de uma festa. Direis: Isto não é natural; aqui está o Dedo de
Deus.
Aqui
está o Dedo de Deus!… Quereis com isso dizer que vos encontrais
diante de fatos, cuja explicação foge ao simples jogo das forças
naturais, cuja origem se esconde nas dobras do Mistério e com vos
encherem de pasmo, vos arrancam dos lábios esta exclamação:
Milagre!
O
milagre é a impressão digital de Deus! Sabeis que Bertillon, por
meio de seus estudos, provou que não há dois homens no mundo com as
mesmas características digitais. É por isso que hoje se faz
identificação não tanto pela fotografia, mas antes, pelas
impressões digitais de uma pessoa. O milagre é, por assim dizer,
sinal digital de Deus. Onde for ele encontrado, constitui prova
insofismável de que Deus por ali passou.
Teria
Jesus merecido a aprovação do Céu, quando declarou, com espanto
dos seus ouvintes: Ego et Pater meus unum sumus. “Eu e meu Pai
somos uma e mesma coisa?” Sim. Pois que não satisfeito de
proclamar-se Deus, imprimiu à Sua palavra o cunho inconfundível da
credencial divina.
De
fato. Abri o Evangelho e vereis que em cada página Jesus apela para
as Suas obras exteriores e visíveis a fim de provar Sua missão
divina e, portanto, Sua divindade. Convida toda a nação judaica a
convencer-se da verdade de Sua palavra pelo esplendor das obras que
só Ele pode operar: “Se não acreditais na minha palavra,
acreditai ao menos nas minhas obras, porque as obras que eu faço dão
testemunho de mim”. E, quando os discípulos de João Batista
vieram perguntar-lhe, da parte do mestre: “És tu o que deve vir
ou devemos esperar outro?” Jesus, invocando a Sua soberania
sobre o mundo exterior, não teve dúvidas em responder: “Ide
anunciar a João o que ouvistes e vistes: os cegos veem, os coxos
andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos
ressuscitam”.
De
outra feita, a um paralítico declarou que seus pecados lhe estavam
perdoados, e como replicassem os fariseus que só Deus pode perdoar
pecados, Jesus afirmou textualmente: “Para que saibais que o
Filho do homem tem o poder de perdoar os pecados (voltando-se para o
paralítico, ordena-lhe): toma o teu leito e anda”. E o
milagre incontinenti se verifica, com assombro de todos os presentes.
O
império que Jesus exercia sobre o mundo exterior, não era feito
desse temor respeitoso ou dessa insegurança muitas vezes manifestada
pelos taumaturgos, mas dessa tranquila serenidade que só possui quem
tem consciência do seu ilimitado poder. Não era poder de empréstimo
que lhe houvesse Deus delegado. A soberania que exercia sobre a
natureza lhe era própria e pessoal, brotava d'Ele como de sua origem,
de seu princípio. Era em Seu Nome pessoal que operava todos os
prodígios: “Adolescens, tibi dico, surge”, diz ao filho
morto da viúva de Naim. E o Evangelho consigna: Virtus de illo
exibat, et sanabat omnes, “procedia d’Ele uma virtude que
a todos curava”.
Fazer
milagres, durante a vida, já constitui por si prova tão grande, que
nenhuma inteligência, salvo se eivada de preconceitos, se recusaria
a admiti-la. Jesus, porém, vai mais longe. Avoca para Si a faculdade
de continuar a realizá-los ainda depois da morte: “Quando for
exaltado na Cruz, diz Ele, hei de tudo atrair para mim”.
Crucificaram-no e, não obstante, os povos e os séculos cada vez
mais se comprimem em derredor de Sua Cruz, amando-O e adorando-O como
Deus.
“Ouço
uma voz imensa, exclama
Monsabré, a voz das cidades e dos desertos, a voz dos
continentes e das ilhas, a voz dos lugares que habito e dos confins
da Terra, a voz dos séculos passados e dos tempos presentes: Credo
in Jesum Christum Filium Dei!
Quis que a fé n’Ele também operasse prodígios e eis
que os Apóstolos, os Santos, em Seu Nome, ordenam à natureza
submissa, curam os doentes, expulsam os Demônios, amolecem os
corações endurecidos por longa série de crimes”.
“Em
lugar das divindades mentirosas que pervertiam as nações, quis ser
adorado como Deus único, que recebia na montanha as homenagens do
povo privilegiado; e eis que os templos se esboroam, os ídolos rolam
na poeira de suas falsidades, e do esplendor da Casa de Javé não
resta pedra sobre pedra; por sobre tantas ruínas sagradas, ressoa o
cântico da Nova Humanidade: Adoramus te, Christe, et benedicimus
tibi, nós te adoramos, ó Cristo, nós te bendizemos”.
“Quis
ser amado com amor universal e sem rival: os bens deste mundo, as
afeições mais legítimas, a própria vida, tudo no coração do
homem deve ceder ao amor de Cristo, tudo deve ser santificado por
esse amor. E vistes o coração humano deixar-se invadir por esse
amor sublime e, por ele, despojar-se de todos os haveres, abandonar
pátria e família, passar uma vida de 30, 50 anos nos leprosários,
à cabeceira dos enfermos, subir os degraus mais culminantes do
heroísmo, da penitência, da santidade; tudo, tudo por amor desse
Cristo”.
Ora,
Deus não poderia, com milagres tão portentosos e que, no suceder
dos séculos, se repetem cada vez mais maravilhosos, Deus não
poderia aprovar uma impostura ou uma falsidade monstruosa sem
acumpliciar-se com esse crime, sem deixar, portanto, de ser Deus.
Logo, Jesus era o homem aprovado por Deus de quem falava o Apóstolo:
Jesum Nazarenum virum approbatum a Deo.
Logo, Jesus era verdadeiramente Deus.
Quando
outrora, nos campos da Babilônia, três pobres exilados,
consolavam-se da tirania do estrangeiro, orando a Deus, assim
exclamavam: “Obras de Deus, bendizei o Senhor, Céu e
terra, mares e rios, ventos e tempestades, bendizei o Senhor,
louvai-O e exaltai-O”. Esse
cântico dos três jovens, dizia a história do futuro. Os ventos e
as tempestades, os mares e os rios, o Céu e a terra, bendizem a
Jesus Cristo. A natureza inteira saúda em Jesus Cristo seu Deus e
soberano Senhor. Com os elementos submetidos a Seu poder e dóceis à
Sua voz, com as multidões que Ele nutria no deserto, com os mortos
que Ele ressuscitara, com os infelizes que Ele curara, com a voz das
gerações passadas, presentes e futuras, formemos um cortejo de
súditos e de adoradores e, ajoelhados diante do trono de Sua
soberania, digamos do fundo do coração: Tu es Christus,
Filius Dei vivi. “Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo”.
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