Blog Católico, para os Católicos

BLOG CATÓLICO, PARA OS CATÓLICOS.

"Uma vez que, como todos os fiéis, são encarregados por Deus do apostolado em virtude do Batismo e da Confirmação, os leigos têm a OBRIGAÇÃO e o DIREITO, individualmente ou agrupados em associações, de trabalhar para que a mensagem divina da salvação seja conhecida e recebida por todos os homens e por toda a terra; esta obrigação é ainda mais presente se levarmos em conta que é somente através deles que os homens podem ouvir o Evangelho e conhecer a Cristo. Nas comunidades eclesiais, a ação deles é tão necessária que, sem ela, o apostolado dos pastores não pode, o mais das vezes, obter seu pleno efeito" (S.S. o Papa Pio XII, Discurso de 20 de fevereiro de 1946: citado por João Paulo II, CL 9; cfr. Catecismo da Igreja Católica, n. 900).

quinta-feira, 11 de julho de 2019

A ORIGEM DO MAL, DA DOR, DO SOFRIMENTO E DA MORTE. SUAS CONSEQUÊNCIAS E SUAS SOLUÇÕES.



Mas, quando chegou a Plenitude do Tempo”1,2
a Plenitude dos Erros e Fraquezas.3


1 – O problema do Mal: Quem, como nós, depois de ter soletrado algumas estrofes do grandioso poema da Criação, e haver admirado as sucessivas perfeições, brotadas das mãos do Artista Divino, detiver o seu olhar no homem, não poderá ocultar o seu espanto e a sua decepção. Será esse o rei da Criação, para cujo soberano domínio todas as coisas foram feitas? Enquanto, para o concerto universal, todos os seres concorrem com sua nota harmoniosa, as únicas dissonâncias partem precisamente de quem deveria ser o mais perfeito! Como explicar o aparecimento da dor, num mundo criado por Deus, cuja bondade não tem limites? Teria sido concebido no seio da felicidade infinita, esse homem que surge na terra apenas para ter a existência atravessada pelo sofrimento e só é realmente grande quando tem as faces banhadas pelas lágrimas das mais comoventes dores? Como explicar essa estranha sedução que o mal sobre o homem exerce ao ponto de só fazer o bem, cortando na própria carne e despedaçando a alma? Como explicar a morte? Ainda não ha muito, dos lábios trêmulos de um pai e de uma mãe, ouvia eu compungido a narração que, entre lágrimas, me faziam do quadro de dores lancinantes, que precedera à morte de seu filhinho, graciosa criança de 9 anos, que tinha tudo para triunfar na vida. Por que foi ceifada essa flor que mal desabrochava?

Como vemos, srs., o problema de que vamos tratar é dos que sempre têm apaixonado os filósofos de todos os tempos. Complexo, como é, merecerá de nós, não uma, mas várias palestras. Por hoje, contentar-nos-emos com ver que as escolas materialistas ou semi-materialistas não respondem satisfatoriamente a esta pergunta: Como nasceu o mal, neste mundo? Veremos, depois, que tem a Bíblia a solução para esse angustioso problema.

Quando Alexandre, o Macedônio, depois de ter derrotado os Persas, nas vizinhanças de Tiro, e penetrado no Egito, sua primeira preocupação foi a de consultar o oráculo de Júpiter-Ammon. O antigo que escreveu a história desse grande conquistador, suspende neste trato a pena para indagar: “Que será que o grande homem vai perguntar ao deus?” E como Alexandre perguntasse quais eram as nascentes do Nilo, o historiador observa que teria sido bem melhor se informasse das origens do bem e do mal, porquanto ao gênero humano pouco monta saber onde nasce o Nilo, ao passo que lhe importa muito conhecer a fonte do bem e do mal.

O mal, é uma dessas tristes realidades que ninguém, dotado de bom senso, poderá negar.

O mal existe em nós, antes mesmo de qualquer ato nosso que lhe manifeste a presença. Podemos até dizer que foi o nosso primeiro mestre, latente nas dobras da nossa natureza.

De fato, se atentarmos no bem e no mal, no vício e na virtude – esses dois planos da ordem moral – ficaremos surpreendidos ao verificar que maior é a soma do mal e de mais fácil e mais espontânea prática. Quem já se tenha adiantado na estrada da vida, facilmente poderá averiguar que, na urdidura da História – já de homem, já de hoje – está o mal em proporção maior que o bem. Eis porque a Escritura não poupa acusações ao mundo e lhe exprobra a influência nefasta. E se, por qualquer motivo, não quiserdes levar em conta a Escritura, escutai como Tácito explica a palavra “século”, sinônimo de “mundo”: Corrumpere et corrumpi vocatur soeculum! Corromper e corromper-se é a senha do século”. Sem querer fazer carga maior à época em que vivemos, não vos parece ter sido talhada para esta, a frase curta e incisiva, com que o velho romano condenava o mundo corrupto e corruptor? O mal é fácil de ser praticado: basta deixar a natureza seguir os próprios pendores; ao passo que só com dificuldade extrema consegue o homem encadear pelos anos à fora, os anéis de ouro de suas boas ações!

Finalmente, o mal é espontâneo, brota, à flor da nossa vida, como os venenosos cogumelos, sem cultivo de espécie alguma. A conquista do bem requer, pelo contrário, os mais árduos esforços. Os pais que me ouvem, estarão, quiçá, intimamente aplaudindo as minhas palavras. Quantas vezes, apesar das lágrimas da mãe, dos severos protestos do pai, da hereditária honra do nome, não vemos filhos ignobilmente conculcarem venerandas tradições de família e, esquecidos do leite sugado na infância, arrastarem na lama da desonra, a obscuridade e a torpeza de uma vida de vícios e de pecados!

Não há de duvidar: nos pratos da balança da natureza humana, o mal pesa mais que o bem, acusando em nós mais pronunciada inclinação para o vício que para a virtude.

Estabelecido o fato, pesquisemos-lhe agora a causa. Fora da doutrina católica, três são os sistemas que pretendem ter encontrado uma solução para o problema: o materialismo, o dualismo e o naturalismo anti-social de Rousseau.

Para o materialismo, a explicação é simplicíssima. O homem nada mais é do que um aglomerado de carne e ossos. Arrastado em todos os sentidos, pelas forças obscuras dos instintos e dos apetites, são meras manifestações da natureza, ao que damos o nome de mal. Para os partidários dessa doutrina, prazer e dever são uma e mesma coisa. O materialismo, logicamente, conduz à imoralidade e, pois, seria absurdo admitir como sistema moral uma doutrina que justifica o mal, apresentando-o como função normal da natureza.

O dualismo, por não poder atribuir a Deus a criação do mal, imaginou dois deuses: um bom, outro mau; em criador do bem, outro criador do mal; um autor da luz, outro autor das trevas. Segundo tal sistema, força-nos a praticar o mal o determinismo de um poder infinito a que não podemos subtrair-nos. Ficamos assim reduzidos a campo de batalha em que dois deuses se digladiam, sucumbindo ora um, ora outro, consoante praticamos o bem ou o mal. Cometido o mal, não nos caberia maior nem menor responsabilidade que a da arena em que dois litigantes se empenham em duelo de morte. Quem se lembraria de a incriminar do homicídio nela perpetrado? Esta doutrina é, pois, tão imoral quanto o materialismo.

O naturalismo anti-social de Rousseau, estabelece que o homem nasce bom, e é a sociedade que o deprava. A ser isto exato, segue-se que o mal é imposto por uma força incoercível e não há de lobrigar moralidade nenhuma nos atos humanos, porquanto responsável pelos crimes que pratica o indivíduo é a sociedade, posto que não só prepara o clima favorável à perpetração de todos os delitos, mas ainda impele o homem a cometê-los. É imoral como as precedentes, esta doutrina.

Nenhum desses três sistemas explica satisfatoriamente por onde entrou o mal no mundo, nem desvenda o tenebroso Mistério, inacessível à argúcia da inteligência humana.

Sim, porque, se a trama obscura da natureza humana constasse apenas de tendências para o mal, ainda poderíamos discutir as soluções apresentadas pelos três sistemas referidos. Mas, não. No meio do pantanal de misérias que são o triste quinhão do homem, o nosso olhar descobre o ouro puríssimo das mais nobres e mais elevadas aspirações. Eis o fenômeno perpétuo e universal, que há seis mil anos vem sendo assinalado quase que nos mesmos termos.

Conheceis certamente aquela cena incomparável da tragédia grega, em que, pálida, perturbada, com olhos avermelhados pelas longas noites de vigília, surge à vista uma mulher, cujas feições denotam o profundo e doloroso combate em que se empenhou. É a Phedra antiga. Escutai-lhe os gemidos:

Quantas vezes, em diuturnas insônias, não refleti sobre a fonte dos vícios da humanidade! Vemos o bem e fazemos o mal! Conhecemos a virtude e nos entregamos ao vício!” Que magistral quadro da alma humana!

Mudemos de teatro, de lugar, de clima e de língua. É Ovídio a derramar sobre as misérias humanas este pranto imortal: Video meliora proboque, deteriora sequor. Vejo o bem que aprovo; abraço, contudo, o mal”. Outro homem ilustre pelo gênio, mais ilustre ainda pela grandeza do caráter e pela energia da vontade: o Apóstolo São Paulo. Ouvi-lhe a angustiosa queixa: “Procuro compreender-me a mim mesmo e o não consigo. Pois que o bem, que vejo, não o faço; e pratico o mal, que odeio”. Transponde 17 séculos e vos encontrareis às portas de Versalhes, com o rei-sol, Luiz XIV, e Mme. de Maintenon. Um coro de donzelas está a cantar a famosa estrofe:

Mon Dieu! Quelle guerre cruelle!
Je trouve deux hommes em moi.
L’un veut que, plein d’amour pour toi,
Mon coeur te soit toujours fidèle.
L’autre, à tes volontés rebelle,
Me revolte contre tá loi.

Meu Deus! Que guerra cruel!
Eu encontro dois homens em mim.
Um quer isso, cheio de amor por Vós,
Meu coração é sempre fiel a Vós.
O outro, sua vontade rebelde,
Eu me revolto contra essa lei.

Eis o que é a natureza humana. “Enquanto, diz Bougaud, contemplamos os cimos radiosos e imponentes da virtude, abre-se ao nosso lado, sob os nossos pés, tenebroso, abjeto, infame abismo que nos causa horror, e que, não obstante, nos está a chamar, a solicitar e a atrair, sem contudo conseguir obscurecer o sublime e inesquecível ideal do bem; e assim arrastados, fascinados, crivados de remorsos e extenuantes de alegria, mergulhamos na miséria moral, rolamos na hedionda voragem, em que a alma saboreia na vergonha, um prazer que a desonra”.

Essa é a natureza humana, na sua misteriosa contradição, no seu milenar sofrimento.

Já que os sistemas elaborados pelo homem se têm mostrado incapazes de nos dar a chave desse doloroso enigma, vamos na próxima vez folhear as Santíssimas Escrituras para ver se aí descobrimos uma palavra precisa, a clara explicação de tamanho sofrimento.

O Cristianismo deixaria de ser a Religião perfeita, a Religião definitiva da humanidade, se permitisse uma nuvem sequer a respeito dessa condição vital. Terá que projetar sobre esse ponto luz tão brilhante, que à resposta não faltará nenhuma das características da Revelação.




O Primitivo Estado de Inocência


Quando a doutrina do Evangelho, deixou os acanhados confins da Palestina, e penetrou os vastos domínios do Império Romano, foi encontrar, nos centros culturais de Atenas, Roma e Alexandria, grandes escolas filosóficas para onde convergia, de todos os quadrantes, a fina-flor da inteligência de então.

Podeis avaliar a luta que se travou no terreno das ideias. A doutrina recém-chegada – que já levara de vencida os sistemas e as velhas escolas filosóficas – foi submetida a exame rigoroso. Todos os seus princípios cardeais, todos os seus argumentos de convicção foram analisados por crítica que nada tinha de benévola, e que lhes era essencialmente hostil. Dentro desses afamados liceus, havia, contudo, almas retas que cedem sempre à evidência, quando sinceramente procuram a verdade. Muitas dentre elas abraçaram desde logo o novo Credo. O que, porém, conferiu à palavra evangélica os louros de um triunfo, que ainda hoje perdura, foi o ter ela dado uma solução, por assim dizer divina, ao problema que tanto havia atormentado a humanidade, no correr dos tempos. O que não pudera vislumbrar sequer a clarividência dos grandes gênios do mundo antigo, a Fé o expunha com a simplicidade característica do ensino que brota dos lábios do próprio Deus.

Abrindo hoje o Livro Sagrado, vamos conhecer, através de suas páginas inspiradas, qual a condição primitiva em que fora por Deus criado o homem. Veremos que este decaiu do estado de perfeição relativa, em que fora situado, originando essa queda a torturante contradição, na qual se debate cada um de nós.

Ocupando o homem o segundo lugar na escala magnífica dos seres inteligentes, sensíveis e livres – maior que o animal colocado em mais baixo nível; mas paulo minus ab angelo, pouco menor que o Anjo, puro espírito, em mais alta esfera – convinha-lhe receber a perfeição relativa, adequada ao plano que lhe tinha sido assinalado pela Sabedoria Suprema. Esse estado de perfeição – chamado pela Teologia “estado de inocência” – consistia no império da alma sobre si mesma, na supremacia do ser inteligente e livre sobre o grosseiro involucro corpóreo, no domínio perfeito sobre os sentidos.

Nesse estado de perfeição relativa, o homem gozava da justiça habitual, a qual o armava de maravilhosa aptidão para nunca violar a lei que Deus lhe gravara no âmago do coração, e sempre conservar as faculdades e os sentidos dentro da ordem regulada pelo Criador. Com a submissão absoluta dos sentidos corpóreos às potências espirituais, com o equilíbrio perfeito das faculdades da alma, vivia o homem em paz constante, numa felicidade inefável, sem conhecer as crispações da dor, os dilaceramentos da alma ralada de torturas, os horrores da agonia, as profundas humilhações da morte. Enfeitada com as flores de perene juventude, a vida lhe seria como o suave deslizar do barco na superfície azul de um lago de incomparável magia.

Mas, não passará tudo isso de linda fantasia a criar a torre de marfim de um ideal de perfeição que nunca existiu? Não. Esse estado de perfeição relativa, o homem realmente o possuiu. Pouco importa indagar, se pro um instante, ou por um século. É a Fé que nô-lo afirma de maneira a não sofrer a mínima dúvida. É o que transparece à luz meridiana, do trecho do Gênesis, que refere o estado dos nossos primeiros pais, antes de terem comido o fruto proibido.

É aliás o que a razão nos ensina por meio de argumentos de uma solidez a toda prova. Se não, vejamos.

A certeza desse primitivo estado de perfeição, funda-se no conceito que formamos do próprio Deus. É infinitamente sábio, infinitamente poderoso. Não lhe contrasta o querer nenhum obstáculo. Pensar uma criatura e realizá-la tal qual deve ser, é para Deus uma e mesma coisa.

Ora, relanceando o olhar por todas as criaturas, tanto superiores como inferiores, as que se acham no primeiro ou no último degrau da escala social, e observando que todas possuem a perfeição relativa, inerente à natureza de cada uma, somos forçados a concluir que também o homem deve ter sido criado no mesmo estado de perfeição como as demais criaturas, por não ser possível que Deus se tenha revelado Artista falho, precisamente no instante em que produzia Sua obra-prima.

Este argumento ganha maior relevo se figurarmos a hipótese de nos cometer Deus a missão de criar o homem. Como o formaríamos? Dominado pelas tendências grosseiras de sua natureza, vivendo apenas para as satisfações dos sentidos, para os regalos da mesa, para os prazeres do corpo? Ou submetendo às potências da alma os sentidos transformados em serviçais?

Se Deus antes de criar o homem, se voltasse para um de vós e dissesse: o homem será o que quiseres que ele seja. Feito à minha imagem e semelhança, ele será inteligência, sensibilidade e liberdade. Mas essa trindade da terra, obrará como tu determinares: ou dominando o corpo de modo que este se dobre sempre à lei do espírito; ou dominada pelo corpo, do qual será escrava. Eu pergunto: quem dentre vós, não teria feito o homem, conservando-lhe a grandeza, a espiritual nobreza, o domínio dos sentidos? Certo que o teríamos criado assim. E poderíamos supor que Deus teria sido menos sábio que nós? Não é possível. Deus, ou é necessariamente grande e necessariamente sábio, ou não existe. Não há meio termo. A conclusão que se impõe não pode ser senão esta: Ao criar o homem Deus deveria tê-lo feito menos como o faríamos nós se fossemos dotados do Seu poder e da Sua sabedoria, isto é, na plena posse de uma perfeição relativa.

Nem é outra a conclusão que se colhe do confronto entre o estado atual do homem e o das outras criaturas.

Vede como os seres inferiores ao homem gravitam em torno do próprio centro consoante as leis que lhes regem as operações. Os astros cintilantes percorrem a extensão dos céus com harmoniosa regularidade; a terra, na imensa variedade do seu ornamento, mostra-nos a prodigiosa fecundidade do seu seio; o oceano, encanta-nos a vista, quando lhe admiramos a majestade dos vagalhões, o tremendo poder das ondas enfurecidas, o seu rugir de fera faminta em noite de tempestade; a flor viçosa dos campos, dos bosques e dos jardins; o pequenino grão, o humilde gérmen, a semente das messes; a ave que canta e faz o ninho num ramo do arvoredo; em suma, nenhum ser se afasta por um instante sequer das suas leis precisas e invariáveis. Não há um só que aspire a melhor posição. Perguntai à águia, que sobrepaira as mais altas montanhas, se deseja possuir o doce arrulhar da juriti, oculta na espessa floresta? Perguntai à humilde formiga, a vaguear por entre a relva do campo, se inveja a condição do tigre que passeia altivo por sobre as areias esbraseadas do deserto? Todos responderão que estão satisfeitos com a sorte que lhes foi dada por Deus.

Somente o homem é o eterno incontentável. O seu coração assemelha-se a um golfo imenso, que não consegue encher os muitos e caudalosos rios que para ele confluem. Ah! Se eu fosse rico! – diz o pobre; ah! Se eu fosse pobre! – diz o rico; ah! Se eu fosse grande! – diz o humilde; ah! Por que não sou filho de um camponês! – diz o potentado. Vede esse jovem que corria atrás das volúpias da vida e que, depois de as ter saboreado todas, sente a alma vazia, o coração frio diante dos objetos que tão ardentemente o haviam apaixonado! Vede esse argentário que, com todos os seus milhões, se julga o mais infeliz dos homens, por ter, no jogo da bolsa, perdido algumas centenas de contas de réis!

Esses fatos provam, ao menos, que o homem nunca está satisfeito com a posição que lhe foi designada pela Providência e confirmam o íntimo, poderoso e irresistível instinto que o força a procurar a felicidade.

Ora, de duas uma: ou Deus quis zombar do homem fazendo-o joguete nas mãos da infelicidade – o que é uma blasfêmia atirada contra a bondade de um Deus que é Pai amantíssimo; ou o homem se transviou, destruindo, por funesto abuso da liberdade, o sábio e salutar império que exercia sobre si mesmo, na sua condição de inocência primitiva.

Na primeira página do Gênesis encontramos a resposta clara para esse dilema. É cena de rapidez e dramaticidade rara. Ainda pela manhã, Deus conversara amigavelmente com os nossos primeiros pais, passeando com eles por entre as maravilhas do Éden. Depois desse colóquio divino, Eva deixa-se imprudentemente ficar perto da árvore da ciência do bem e do mal, cujos pomos dourados lhe aguçam o desejo, enquanto lhe atravessa a mente a tentadora promessa: Eritis sicut dii, sereis como Deus. Levanta os olhos, fixa-os no fruto proibido, hesita um momento, e depois, resoluta apanha-o e come-o, dando-o a provar ao companheiro. Era a desobediência, a ambição, a vaidade que assim triunfavam. Era a catástrofe que se processava, despenhando em fragorosa ruína toda a espécie humana.

A razão do nosso desequilíbrio, a causa da dor e da morte, a origem de todas as misérias humanas aí a tendes – o Pecado Original.


Consequências do Pecado Original



Quem já teve a dita de visitar Roma e pode contemplar as ruínas dos velhos monumentos e edifícios, que assinalaram o apogeu da civilização greco-romana, rendeu certo o seu preito de admiração aos artistas obscuros e ignorados, que tão grandes maravilhas souberam construir.

Dentre esses monumentos, o que mais prende a atenção, apesar dos escombros a que o reduziu o tempo e a mão do homem é, sem dúvida, o do Fórum romano, onde Cícero, o príncipe da eloquência latina, se fez ouvir tantas vezes, em suas famosas orações, ainda hoje apontadas qual modelo do gênero. Quem, ao contemplar esses blocos de pedra cinzelados com tanta arte, as colunas, os capitéis, os frisos ricamente esculpidos, esparsos em desordem pela vasta praça, vos dissesse: “aqui nunca existiu nenhum edifício construído com simetria, decorado por um conjunto de trabalhos delicados; essas esculturas elegantes produziram-nas os artistas de outros tempos para deixá-las aqui disseminadas pelo chão”, certo não deixaria de acudir-vos a íntima resposta: este perdeu o siso! É impossível não ver nessas ruínas os restos do antigo palácio, donde a poderosa Roma distribuía por todo o Império a sua justiça.

Também nós, estudando o homem, nele deparamos com esparsas ruínas, restos de suntuoso templo, demolido pela mão sacrílega de algum bárbaro. É sobretudo na inteligência e no coração, que descobrimos as provas mais convincentes do indizível transtorno, que no homem causou o Pecado Original.

A inteligência foi por tal forma criada para a posse e contemplação da verdade, que não é possível ao homem deixar de amá-la constantemente e procurá-la sempre. Para a conseguir despende os melhores e mais generosos esforços, consagrando a esse labor, próprio das grandes almas, os estudos, a ciência, a própria vida. Quem dentre vós, ainda não experimentou o gozo inefável, o raro deleite dessas altas especulações, às quais se entrega o espírito ardorosa e apaixonadamente? Observai o homem de ciência, quando se encontra diante de um problema que o atormenta e cuja solução escapa às suas vigílias e às meditações pacientes do seu gênio. É como Arquimedes que, absorvido no estudo dos seus teoremas de Geometria, só percebeu que sua cidade natal, Siracusa, tinha sido tomada pelas armas inimigas e ardia envolta no clarão dos incêndios, quando um soldado romano o apunhalou.

Pois bem, não obstante essa lei divina, que fez da verdade o alimento do espírito, não obstante o prazer que lhe dá a consciência de possuir a verdade, o homem, por um contraste cruel, sente-se constantemente arrastado para o erro. Lede a História da Filosofia e deparareis com provas acumuladas das tenebrosas aberrações em que incidiram os mais ilustres gênios da humanidade, dando assim razão ao testemunho de Cícero, quando afirmou “não haver absurdo que não tivesse sido ensinado por algum filósofo”.

Feita para a verdade, seria natural que sentisse a inteligência irresistível atração para Deus, a mais alta expressão da verdade, a verdade absoluta. Pois, é o contrário que se verifica. Quem ousará negar em si a disposição para fugir de Deus, para esquecer a Deus, para viver sem Deus? Não somente os que vivem mergulhados nos negócios e prazeres do mundo, passam longa parte da vida sem elevar a alma para Deus, mas ainda os que têm a felicidade de viver da fé, sentem a fatal inclinação de relegar para longe de si tudo o que lembre Deus e as coisas de Deus, para se apegarem à vida banal e aos gozos materiais. Não apenas os indivíduos, mas os povos, as massas humanas também sofrem a influência dessa estranha sedução para a falsidade e para a mentira.

Assim é que, desde o berço do mundo, vemos coletividades inteiras escravizarem-se às mais inacreditáveis superstições, que tão fundas consequências lhes produziram na vida moral, social e religiosa. Vede como, na hora presente, se embriagam as massas com o erro, aderindo às mais grosseiras e menos realizáveis ideologias, com tamanho ardor, e cega paixão que as leva a perpetrarem os maiores crimes, os mais nefandos sacrilégios, que envergonhada registra a história dos povos civilizados. Não há dúvida: a inteligência humana padece de algum mal, inexplicável se não se admitir o Pecado Original.

A esta primeira degradação, vem unir-se a de outra faculdade, menos nobre talvez, mas não menos preciosa – 0 coração – que nos ministra as provas mais evidentes de um desvio, de uma desordem. Em seu estado normal, o homem deveria amar os bens reais, a verdadeira beleza – Deus, por conseguinte, fonte de todo o bem, formosura antiga e sempre nova; deveria amar o irmão, o próximo, criado com os mesmos dons, destinado ao mesmo Céu; deveria amar-se a si mesmo, na ordem dos bens imperecíveis e da felicidade futura.

Pois bem, interrogai o coração a respeito do amor devido a Deus e vereis se não vos é necessário grande esforço, penosa excitação da alma para vos desvencilhar das afeições vulgares, quando desejais saborear um pouco as suavidades do Amor supremo. Esse amor sobrenatural não se vos apresenta como divida onerosa a ser paga, como dever incômodo, diante do qual o coração se detém e só se determina a cumpri-lo porque a tanto o força imperiosa lei? Deus, convertido em pesado fardo para o coração humano! Haverá prova mais indiscutível da nossa profunda miséria? Mas o homem não só não ama a Deus, chega também a votar-lhe ódio feroz de extermínio, que não sacia tão só por lho não permitirem as minguadas forças. E observai que não se trata de algumas raras exceções: são as massas humanas que, absorvidas pelas preocupações vulgares da vida, dominadas por um sensualismo grosseiro, ou iludidas pelos falsos pregoeiros de um impossível paraíso terrestre, não somente espumam de cólera ao ouvirem pronunciar o Nome Santo de Deus, como se atiram contra os Seus templos, saqueando, destruindo, incendiando, e se rojam contra os Seus Ministros, trucidando-os no meio dos mais atrozes suplícios, crendo assim poderem viver sem Deus e sem remorsos.

O homem não ama a seu irmão, seu próximo, seu semelhante. Tem ciúmes, inveja dos bens, dos talentos que Deus lhe dispensou. Se é fraco, procura dominá-lo, oprimi-lo, tiranizá-lo; se é forte, roja-se-lhe aos pés, para conquistá-lo por vis bajulações. Terei eu necessidade de desfiar diante de vós a série espantosa de crimes que o homem praticou contra seu irmão, desde o fratricídio de Abel até hoje? Não, não me será preciso mostrar-vos os rios de sangue derramado entre povos em guerra, todas as loucuras dos dominadores do mundo, todo o ódio dos conquistadores, talando a ferro e fogo províncias e cidades inteiras, sem poupar a vida de crianças e mulheres inermes, sem respeitar sequer as cãs dos velhos desvalidos, para vos fazer compreender o profundo desvio que se operou nessa natureza humana, criada tão amável, mas agora capaz de violências e de horrores que ultrapassam o instinto das feras mais sanguinárias.

O homem não se ama a si mesmo. Os imperecíveis bens de uma felicidade futura nenhuma impressão exercem sobre o seu coração, que se deixa arrastar pela vida efêmera, pelas alegrias do momento, pelos prazeres sensuais. Sacrifica à atração da vida presente, às suas cobiças, e às suas paixões, às delícias infindas, reservadas como recompensa inefável às almas que servem a Deus com coragem e perseverança. Cede a cada instante ao próprio coração corrupto, a despeito dos protestos da consciência. Vê que são ilusórias e vãs e miseráveis tais satisfações e, contudo, continua a sujeitar-lhes a inteligência, o coração e a liberdade.

Dizei-me se não sofreu o homem profunda lesão na sua faculdade de amar, para assim rojar-se diante de prazeres, de cuja ignominiosa baixeza não tem a menor dúvida, sentindo até por eles, a maior repugnância nas horas em que a virtude se lhe desenha diante da consciência, com todo o seu cortejo de grandeza e de heroísmo?

Das mãos de Deus sábio, inteligente e perfeito é que não poderia ter saído essa fonte perene de contradições as mais absurdas, que é o homem tal qual o conhecemos. Do contrário, eu não reconheceria esse Deus na Sua obra imperfeita, acusá-lo-ia de incapacidade, chamá-lo-ia de cruel, teria o direito de me julgar superior a Ele, pois que eu não teria criado o homem nesse estado de abjeção. Por menor e mais imperfeito que me considere diante de Deus, eu teria agido com maior sabedoria.

A minha conclusão está brotando dos vossos próprios lábios e é a seguinte: A não ser que nos queiramos condenar a negar a Deus suprema inteligência, ou blasfemá-Lo por malvado e cruel, havemos de imputar ao próprio homem esta sua visível degradação moral. Sim, o homem é exclusivamente o único responsável pela mísera situação em que se encontra hoje. Foi ele que se perdeu a si mesmo, não obstante a riqueza de dons e de graças de que Deus o havia cumulado. Por mais severo que seja o meu julgamento, serei obrigado a reconhecer que Deus não faltou nem à Sua sabedoria, nem à Sua bondade, nem à Sua providência, quando permitiu que o homem, por abuso da sua liberdade, malbaratasse os dons preciosos, as prerrogativas excepcionais com que no Seu amor infinito o idealizara e o criara.




O Pecado Original
e a sua Transmissão


Depois de termos contemplado as maravilhas do poder criador, grande foi a nossa surpresa ao averiguarmos que o homem – destinado a ser o rei da criação – era o único ser torturado por misteriosa contradição, que não lhe permitia sentir-se bem no estado em que atualmente se encontra. O problema do mal e da dor surgiu então diante dos nossos olhos, com todas as suas perspectivas tristes e sombrias, parecendo-nos vãs todas as soluções alvitradas pelo espírito humano, para explicar esse misterioso fato.

A única solução que nos satisfaz amplamente, foi a que nos deu a Revelação, quando nos ensinou que o homem, criado num estado de inocência e de santidade, decaiu dessa primitiva perfeição, ao desobedecer a Deus, no Paraíso terreal.

Na sua faculdade intelectiva e volitiva, fomos, finalmente, encontrar as provas concludentes da desordem introduzida na natureza humana, em consequência dessa queda, cujos funestos efeitos sofremos todos nós.

Para concluir o nosso pensamento e assim completar o estudo que viemos fazendo desse angustioso problema, resta-nos expor a doutrina da Igreja sobre o Pecado Original e sua forma de transmissão.

O Pecado Original! Eis a pedra de escândalo de todos os que se apoiam sobre a ciência para melhor dar aos seus ataques contra a Igreja o cunho do ridículo, que impressiona fortemente a quem os ouve desprevenido. Para denegrirem mais a gosto a Igreja e a cobrirem de zombarias grotescas, desvirtuam a Palavra de Deus, falsificam-na com o maior desplante e impingem à massa dos seus leitores ou dos seus ouvintes, um absurdo nunca proferido pelos nossos lábios. É velha tática, seguida com sorte varia, pela eterna má-fé dos inimigos da Igreja.

Para desmascará-los, será suficiente expor com exatidão a fórmula dogmática do Pecado Original. Quem a conhece não pode menos de ficar surpreso ante a palpável má-fé e leviandade dos que neste ponto, como aliás em todos os demais, arremetem contra Deus.

Que ensina a Igreja a esse respeito? A Igreja ensina que, tendo o primeiro homem, Adão, transgredido as ordens de Deus, decaiu daquele estado de justiça e santidade em que fora criado e que por efeito da ofensa implícita nessa prevaricação, incorreu na cólera e na indignação de Deus, tornando-se passível da morte que antes lhe fora cominada (prescrita). A Igreja acrescenta, que essa prevaricação não prejudicou somente a Adão, mas também a toda a sua raça, perdendo primeiro para si e depois para os seus, os dons sobrenaturais com que tinha sido gratificado; e que, por essa desobediência, transmitiu à sua posteridade, não só o sofrimento e a morte, que são as penas do pecado, mas o próprio pecado, que é a morte da alma. São palavras, reproduzidas quase textualmente do Concílio de Trento, na sessão V, cânones 1, 2 e 3, e que sintetizam a doutrina da Igreja a respeito do Pecado Original.

Sessão V (17-6-1546)4

Decreto sobre o Pecado Original

787. Para que a nossa fé católica, sem a qual é impossível agradar a Deus,5 purificada dos erros, permaneça em sua pureza íntegra e ilibada; e para que o povo cristão não se deixe agitar por qualquer sopro de doutrina6 – pois aquela antiga serpente, que foi inimiga do gênero humano desde o princípio, entre os muitos males que perturbam a Igreja de Deus em nossos tempos, também suscitou a respeito do Pecado Original e do seu antídoto, não só novas, mas ainda antigas dissenções – o sacrossanto Concílio Ecumênico e Geral de Trento, legitimamente reunido no Espírito Santo, presidindo-o os mesmos três legados da Sé Apostólica, querendo tratar logo de chamar [à fé] os que laboram em erro e confirmar os vacilantes, tendo seguido os testemunhos da Sagrada Escritura, dos Santos Padres e dos Concílios autorizadíssimos bem como o juízo e o consenso da própria Igreja, estabelece, confessa e declara o seguinte a respeito do mesmo Pecado Original:

788. 1) Se alguém não confessar que o primeiro homem Adão, depois de transgredir o Preceito de Deus no Paraíso, perdeu imediatamente a santidade e a justiça em que havia sido constituído; e que pela sua prevaricação incorreu na ira e indignação de Deus e por isso na morte que Deus antes lhe havia ameaçado, e, com a morte, na escravidão e no poder daquele que depois teve o império da morte,7 a saber, o Demônio; e que Adão por aquela ofensa foi segundo o corpo e a alma mudado para pior – seja excomungado.

789. 2) Se alguém afirmar que a prevaricação de Adão prejudicou a ele só e não à sua descendência; e que a santidade e justiça recebidas de Deus, e por ele perdidas, as perdeu só para si e não também para nós; ou [disser] que, manchado ele pelo pecado de desobediência, transmitiu a todo o gênero humano somente a morte e as penas do corpo, não porém o mesmo pecado, que é a morte da alma – seja excomungado, porque contradiz o Apóstolo que diz: Por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte e assim a morte passou para todos os homens, no qual todos pecaram.8

790. 3) Se alguém afirmar que esse pecado de Adão – que é um pela origem e transmitido pela propagação e não pela imitação, mas que é próprio de cada um – se apaga ou por forças humanas ou por outro remédio, que não seja pelos méritos de um único Mediador Nosso Senhor Cristo, que nos reconciliou com Deus por seu Sangue, fazendo-se para nós justiça, santificação e redenção;9 ou negar que o mesmo mérito de Jesus Cristo, devidamente conferido pelo Sacramento do Batismo na forma da Igreja, é aplicado tanto aos adultos como às crianças – seja excomungado, porque sob o Céu nenhum outro Nome foi dado aos homens, pelo qual devamos ser salvos;10 daí aquela palavra: Eis o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo;11 e esta outra: Todos vós que fostes batizados em Cristo, vos vestistes de Jesus Cristo.12

Procurando melhor elucidá-la, os Padres da Igreja, em seus escritos, dizem ser o Pecado Original morte, doença, mancha, que nos enfraquece o livre arbítrio e nos torna escravos do Demônio.

O Pecado Original é “morte”, porque destrói a vida superior da santidade, a qual purifica os atos da natureza e a eleva pelo esplendor do mérito aos seus destinos sobrenaturais. É “doença”, para esta pobre carne, outrora impassível e imortal, sujeita agora à dor e à decomposição; doença para a alma, que perdeu, com o privilégio da integridade, a primitiva clarividência e vigorosa energia. É “mancha”, análoga à de um templo suntuoso que, por efeito de um cataclismo, perdeu a decoração de seus mármores, de seu ouro e de sua prata, para ostentar agora apenas o arcabouço de pedras brutas. Enfraquece o livre arbítrio, porque, hoje, a soma de suas forças é contrabalançada pela soma de dificuldades que encontra e pelas vacilações a que se vê exposto com a perda da infalível direção, que lhe dava a razão isenta de ignorância e imune de erro. Por último, faz-nos escravos do Demônio, por ser Satã o senhor de todos os transviados, os quais por isso não podem alcançar o próprio fim.

Eis, exposto em breves palavras, o nosso Dogma tão caluniado e demasiadas vezes tão desfigurado. Depois de tudo o que ouvistes, nesta palestra e nas anteriores, não é verdade que esse Dogma, cujo fundo permanece obscuro e misterioso, projeta uma luz intensa que ilumina as dobras mais recônditas da natureza humana? Não é verdade que subscreveríeis a afirmação de Pascal: “Sem esse Mistério, o mais incompreensível de todos, seríamos incompreensíveis a nós mesmos?”

Vejamos agora como esse pecado se transmite a toda a posteridade de Adão e melhor compreenderemos o alcance profundo do pensamento de Pascal, que vimos de citar.

Observemos, antes do mais, que o Pecado Original não é falta que haja contraído cada homem em particular por um ato de sua vontade. Não! O Pecado Original não é ato, mas estado de privação dos dons e privilégios que nos teriam cabido, se não houvesse prevaricado o Pai da grande família humana. Para de certo modo explicar a transmissão desse estado de privação, aí está a lei da hereditariedade, em virtude da qual um ser transmite a seus descendentes o que é e o que possui.

Baseado nessa lei, o médico, para melhor orientar o diagnóstico da moléstia que vos aflige, pergunta se vossos pais são fortes e sadios ou, se já são mortos, de que mal sucumbiram. E quantas vezes não sobem as suas indagações até os vossos ascendentes, os vossos avós, tentando, num esforço louvável, pesquisar, através das gerações passadas, a qualidade do sangue que vos corre nas veias.

Esse sangue que recebestes, alterado, em certo grau, pelas enfermidades e deficiências dos vossos pais e que transmitis a vossos filhos, acrescido dos vossos próprios males; esse sangue não carrega consigo apenas as doenças do corpo, mas também, de maneira misteriosa, as afecções da alma, as tristezas da alma, as dores e as fraquezas da alma.

Quando se pergunta aos psicólogos e sociólogos qual a causa desse estado de ansiedade, de asfixia moral, de incertezas e de pavor, que parece caracterizar a geração atual, todos unânimes apontam os quadros de horror, as cenas dantescas, o imane pesadelo em que viveu o mundo todo e especialmente a Europa, durante os anos atrozes da grande guerra.

À exigência dessa lei se dobra, portanto, a vida, os bens, a honra.

O filho herda dos pais a conformação do corpo, a fisionomia, o temperamento, as diáteses,13 as nevropatias, o que tudo repercute na esfera espiritual e condiciona a vida intelectual e a vida moral.

Quem não deparou na vida com crianças que, desde os primeiros anos, manifestam espantosas tendências para o mal? E quem não viu, pelo contrário, esses jovens robustos e galhardos, que têm nas veias sangue puro, sangue vivo e nobre e trazem no semblante a prova de que pertencem a uma raça transformada pela virtude?

Isto posto, pergunto: qual o sangue que corre nas veias da humanidade? Sem mesmo descer a uma análise mais minuciosa, já à primeira vista podemos responder: o sangue transfundido nas veias da humanidade é desgraçadamente sangue viciado, que a faz propender mais para o mal do que para o bem, como vimos em nossas anteriores palestras. E isso por que? Porque Adão prevaricou, porque se despojou da graça e assim transmitiu aos seus descendentes, a natureza humana vulnerada, destituída dos bens gratuitos, como a água que perde toda a virtude, quando lhe subtraem as partículas minerais do solo donde mana, como os vossos filhos que não terão saúde, nem fortuna, nem honra, se vierdes vós a perder todos esses bens.

O tronco anoso de árvore seca, que um dia encontraram os soldados romanos e sobre o qual atravessaram outro, para nele pregarem um homem, condenado pelos tribunais civis e religiosos de sua terra, vós o chamais a Santa, a Venerável, a preciosa Cruz a que reverentes e agradecidos chegais os vossos lábios trêmulos de emoção. Se Jesus de Nazaré não tivesse sido suspenso nesse madeiro de infâmia, nenhum homem quiçá, por mais pobre que fosse, o aceitaria para viga mestra de sua mísera choupana.

Qual é, pois, o segredo das vossas homenagens? Vós adorais essa Cruz, por que a sabeis purpurada do Sangue de Jesus o qual, ao morrer pela nossa salvação, imprimiu nesse madeiro o selo do Seu infinito amor. Destarte, um novo sangue, o Sangue do Justo, o Sangue do Inocente, o Sangue do Santo por excelência, veio purificar, fortalecer e enriquecer o sangue empobrecido, o sangue fraco, o sangue pecaminoso dos filhos de Adão.

Diante dessa tremenda e dolorosa consequência do pecado do primeiro homem e de todos nós, a Igreja, entretanto, não hesita em cantar: Oh! Venturosa culpa, que nos valeu tão alto Redentor! O felix culpa, quae talem ac tantum meruit Redemptorem! É a visão dos Mistérios da Encarnação e da Redenção, que desta eminência já principiamos a vislumbrar e que vai constituir o assunto grandioso e sublime das nossas ulteriores palestras.




A Plenitude dos Erros e Fraquezas


Deus que criou a dignidade da natureza humana de forma admirável, ainda mais maravilhosamente a reformou, diz a Igreja, numa das suas mais belas orações. Que antecedem, na Missa, o Ofertório do Cálice. De fato. A criação dos mundos em geral e do homem em particular, é grandioso salmo que canta a glória, o poder, e a sabedoria de Deus. Contudo, nessa radiante obra de luz, cheia de harmonias divinas, o homem, abusando da sua liberdade, projetou a sombra do seu pecado, transformou um paraíso num lugar de desterro, introduziu soluços de morte num esplêndido cenário de vida.

Deus, não obstante, em vez de retirar-se para a solidão do Seu empíreo e aí permanecer indiferente e impassível ante a destruição de Sua obra, movido por misericordioso amor, decidiu criar o plano magnífico da Encarnação reparadora. Jesus Cristo, o Alfa e o ômega de todo esse grande drama; o Princípio e o Fim, principium et finis, a primeira e a última palavra de todas as coisas, surge como o Restaurador da dignidade da natureza humana, ardentemente desejado pelas nações, cansadas de errarem pelos caminhos sombrios do crime e do pecado.

A figura idealmente bela do Cristo meigo e bom, aos poucos se desenhará com Seus contornos cada vez mais nítidos, no decurso desta nova série de palestras.

Hoje, lançaremos um olhar para a situação em que se encontrava o mundo, nas vésperas do Nascimento do Salvador. Vê-lo-emos esse pobre mundo pagão caindo aos pedaços, carcomido como estava pela gangrena da mais infrene corrupção.

Muitos teólogos, como Santo Tomás à frente, perguntam, por que Deus, Bondade suma, não acudiu logo ao homem que tão miseramente caíra, mas esperou que se escoassem nada menos de 40 séculos para dar-lhe essa comovente prova do Seu magoado amor? Respondem todos unanimemente: Para que o mundo completasse a experiência das suas fraquezas, conhecesse em que profundo abismo se despenhara e, pois, sentisse a absoluta necessidade de um Salvador.

Por que terrível experiência não passou o mundo, nessa longa noite de 40 séculos! Comecemos por verificar o estado de desolação e de misérias de toda a espécie em que encontrava a religião.

O respeito, o amor, a submissão que nos inspira a ideia de um Senhor infinitamente grande, infinitamente sábio, infinitamente santo, convertera-se na indiferença, na irrisão de um ceticismo polido, que levava, no tempo de Scipião, o poeta Lucílio, seu amigo, a zombar dos deuses, aos quais sobrepunha Lucrécio as galas e as delícias do materialismo.

Transformada em repelente idolatria, a religião cuidava de enriquecer-se multiplicando os objetos impostos à veneração. Varrão, citado por Santo Agostinho, não contava menos de seis mil divindades em Roma, entre as quais 300 Júpiteres diversos! Infamada de monstruosidades ocultas e de superstições patentes, não existia vício que não acobertasse, devassidão que não autorizasse, impudicícia que um ou mais deuses não ensinassem com seu exemplo. Desde o adultério e o rapto, até a prostituição e a crueldade, o Olimpo de tudo oferecia variados modelos aos seus adoradores.

Os mistérios de Adônis, de Cibele, de Priapo e de Flora – as célebres saturnais – representavam-se no templo e nos jogos consagrados, com tamanha desenvoltura que Lactâncio escreveu a respeito deles: “que ali se via à luz do sol o que se costuma sumir nas trevas, gelando às vezes o suor do pejo, o vigor infame dos atores”.

Mergulhada no lodo de tantas misérias, como podia erguer a fronte para o Céu, uma religião envilecida de semelhantes torpezas?

O simples fato de ter sido possível deificar o vício e a libertinagem e ter como adoradores dessas vergonhosas divindades, não uma tribo degenerada, mas a população inteira da nação mais civilizada da época, é a prova mais frisante que podemos apresentar do estado de ínfima decadência a que havia chegado o conceito da religião.

Se a religião se transformara assim nessa inacreditável escola da mais deslavada corrupção, podemos imaginar o grau de perversidade dos costumes no seio de um povo, que retinha sob as garras de ferro de suas águias vitoriosas o mundo então conhecido.

Não iluminava a doce luz dos mais nobres instintos, nem unia o suave laço dos afetos mais extremosos do coração os membros da sociedade e da família. Assim, o infanticídio era autorizado pela lei Rômulo, bem como pela lei das Dez Tábuas. Entre os gregos, quando uma criança nascia, depunham-na aos pés do pai; se este a erguesse, estava com a vida salva; se, porém, dela se afastasse, lançavam-na ao mar.

Quando sentimentos como esses – tão naturais que as próprias feras os respeitam – assim eram calcados aos pés, é fácil avaliar a que deplorável estado se reduzira a família.

Diante das leis que os imperadores e senado se viram na contingência de promulgar, prometendo prêmios a quem se casasse, assiste-nos o direito de perguntar se então ainda existia a família. Essas uniões, que se decidiam por cálculos de ambição e por interesse de cobiça, eram de tal ordem que Plutarco chegou a escrever: “São casamentos que se contraem, não para haver herdeiros, mas para obter heranças”. Sem o apoio do sentimento mais natural ao homem, essas uniões se desfaziam ao sabor dos caprichos mais tolos, dos interesses menos confessáveis. A família deixava de ser ninho, entretecido dos mais puros afetos, para se transformar em campo propício às mais arriscadas aventuras, ao desabrochar das paixões mais brutais da alma humana.

Nem foi o caráter mais respeitado que os costumes. A subserviência, o aviltamento, a dobres (falsidade) de ânimo, só foram igualados pela crueldade e pela sede de sangue, de que dera tantas e tão sobejas provas o povo-rei.

Citai-me um só dos grandes homens da antiga Roma que, no seu procedimento, não tenha sido mau ou miserável.

Rômulo, o fundador de Roma, assassina o irmão Remo. Tarquínio, o soberbo, mata o avô e o irmão. Sua mulher, Túllia, faz as rodas do seu carro passarem por sobre o corpo do próprio pai. Os dois Brutus alcançam notoriedade porque um, assassina o filho e o outro apunhala a César, seu pai adotivo, junto à estátua de Pompeu, no senado. Mário faz jorrar em borbotões o sangue dos nobres e Sylla ceva a sua crueldade encharcando as ruas de Roma com o sangue do povo. Nero manda assassinar a mãe e encontra ainda um homem como Sêneca que não se envergonha de elogiar ao matricida. Esse monstro coroado, cuja vida foi pontilhada dos mais negregados crimes, longe de provocar no povo romano indignação e repulsa, teve a significativa sorte de ver que, até quase às vésperas de sua morte, seus súditos o aplaudiam como histrião (palhaço). Seria interminável o elenco desses vultos sinistros, os quais, entretanto, na época em que viveram, eram tidos por varões ilustres.

A estes sentimentos cruéis, junte-se a lepra da venalidade (corrupção/suborno), e ter-se-á completado o quadro sombrio da sociedade de então.

Nada se obtinha de graça. Os empregos compravam-se; os pleitos vendiam-se; as eleições subornavam-se. A justiça pesava-se na balança da avareza e vencia quem mais dava. Os patrícios denunciavam seus melhores e mais íntimos amigos, na esperança de, com a morte deles, se apropriarem dos seus bens apetecidos. A liberdade, a honra, a dignidade, o amor da Pátria – todos os nobres sentimentos, eram numa palavra, objeto do mais vil comércio. Foi, por isso, que Jugarta, o africano, na insolência de um justificado orgulho, ao afastar-se de Roma, depois de ter remido, a preço de ouro, toda uma série de crimes horrendos, pode, sem mentir, dizer da pátria dos Scipiões: “Aqui tudo se vende! Só te falta, Roma, comprador”.

O homem convenceu-se afinal de que sua natureza era como um campo agreste que, deixado ao abandono, produz unicamente as urzes e os espinhos dos seus erros e fraquezas. É essa angustiada voz, esse dolorido lamento do mundo, a pedir aos Céus clemência e salvação, que iremos ouvir, no próximo Domingo.

E o que dizer da escravidão? Para se formar uma ideia do ponto a que chegara essa hedionda mancha da civilização pagã, basta esta frase de Luciano: Humanum paucis vivit genus, todo o gênero humano trabalha em proveito de um reduzido número. Só no Império, havia 120 milhões de escravos, para uma população de 6 milhões de homens livres.

Toda a abominação desse estado social aparece no confronto entre dois textos, lançado pelos juris consultores romanos, com a naturalidade de uma disposição vulgar. Classificando os instrumentos agrícolas em vocais, semivogais e mudos, diz Varrão que os primeiros são os escravos; os segundos, os animais; e os últimos, as coisas inanimadas. Non tam vilis quam nullus: eis a definição legal do servo. Menos desprezível que nulo. E assim eram tratados.

Quando vemos as patrícias romanas experimentarem nos seus escravos o grau de virulência dos seus venenos; Flamínio decepar pelas suas próprias mãos a cabeça de um escravo para mostrar a um convidado como se morre de morte violenta; Pollião engordar as moreias de seu viveiro com escravos, lançados vivos para as tornar mais saborosas – diante de todos esses horrores friamente praticados contra a dignidade da natureza humana, compreendemos todos os degraus de miséria por que foi descendo o mundo até sepultar-se na mais espessa camada de lama, e de selvageria.

Era demais! A taça de todos esses crimes e de todas essas degradações já principiava a transbordar. Encerrado nessa atmosfera pesada e irrespirável, carregado de suas taras humilhantes, sentindo que ia morrendo aos poucos e nada vendo na Terra que lhe pudesse valer, recolheu o mundo suas últimas forças e pela boca dos Profetas, dos filósofos e dos poetas, pôs-se a pedir aos Céus lhe abreviassem o tempo da provação e lhe enviassem o Príncipe da paz, o Desejado das nações.

A severa lição da experiência lograra os resultados esperados.




O Clamor das Nações


O mundo havia sorvido até a última gota a taça transbordante dos crimes e desordens que o homem, de depravação em depravação, fora acumulando. Asfixiado sob o entulho de tantas ruínas esparsas, ei-lo que prorrompe em gemidos lancinantes a que as próprias coisas inanimadas parece juntarem suas lágrimas, como diz o insigne Mantuano: “Sunt lacrimae rerum”.

Desvanecidas as últimas esperanças, ameaçado de extinção total, vê-se finalmente o homem constrangido a confessar a própria fraqueza e a incapacidade de poder conseguir por si mesmo a sua reabilitação. Das mais diversas e mais afastadas regiões da terra, vozes se erguem impressionantes a clamarem todas por um Salvador que não há de tardar.

É esse clamor das nações que vamos ouvir. Escutaremos, primeiro, a voz dos povos sentados à sombra da idolatria, para, depois, na visão dos Profetas de Israel, ouvirmos o seguro vaticínio da vinda do Messias.

Todos os grandes historiadores são, unânimes em reconhecer que, 64 anos antes de Cristo por todo o mundo se divulgou um vaticínio, que assegurava o próximo natal de um grande rei, que viria inaugurar uma era de paz e de felicidade.

Em Roma, como em todas as nações conquistadas pelas armas da república e pacificadas pelo herdeiro de César, esta persuasão se espalhara, fazendo com que de toda a parte a esperança procurasse o berço do Messias. Assim é que antes de Jesus baixar ao mundo, já Ele havia transposto o Jordão, o Eufrates, o Ganges, os Oceanos, nas asas invisíveis da Providência, visitando as regiões mais remotas, as raças mais diversas. Os Brahmanes, os Magos, os Bonzos anunciam a vinda do Mediador filho de uma Virgem, enviado para reconciliar os homens.

Na extremidade da Ásia, Confúcio promete o verdadeiro Santo, que há de vir do ocidente, e o faz em termos que relembram os acentos dos Profetas. Esta mesma esperança vamos encontrá-la nos livros santos do Tibet, na Conchinchina, no reino de Sião, em Ceilão e até no Japão.

Por toda a parte é esperado um santo insigne, um ser celeste, um taumaturgo que há de repor tudo em ordem. Embora as épocas e os lugares sejam diversos, as tradições se abraçam e se estreitam através do espaço e do tempo, parecendo ditadas por anciãos da mesma tribo.

Menchi, discípulo de Confúcio, era o intérprete de todas as ânsias do coração humano, quando comparava a expectação geral à impaciência das plantas murchas que suspiram pela orvalhada refrigerante da manhã.

Na Grécia e em Roma, centros donde irradiava para todos os lados a vistosa civilização de então, os mais autorizados representantes do pensamento humano, tocados da mesma crença, claramente aludem à transformação da sociedade por obra de um Deus. “A terna imaginação de Virgílio, tantas vezes eco da melancolia moderna, descrevendo as árvores frondosas e as águas sussurrantes das campinas romanas, suspende um instante a voz, esquece de repente as Dafnes e as Galateas pagãs, e afinando a lira para sons mais altos, rompe o misterioso canto da quarta écloga, e, no meio das pompas do metro e da magnificência do pensamento, aponta o berço auspicioso de um filho do Céu, profetizado nos oráculos da Sibila e eleito para trazer a renovação dos tempos, abertas as portas de ouro à idade nova”.

Ultima Cumaei venit jam carminis aetas;
Magno ab integro saeculorum nascitur ordo.
Jam nova progenies coelo demittitur alto.


Mas, não é só o autor das Geórgicas, o poeta imortal da Eneida, que canta as esperanças de uma próxima regeneração do mundo. Tácito, o frio analista da devassidão imperial, ao escrever a história do reinado de Vespasiano, declara ser quase geral esta persuasão: “Era opinião de muitos, diz ele, opinião conforme os velhos escritos sacerdotais, que o Oriente havia de prevalecer nesta época, apoderando-se os homens da Judeia da direção das coisas”. Suetônio, referia-se ao mesmo sentimento, quando assinalava que “o Oriente estava cheio do rumor dessa antiga e constante opinião, segundo a qual, o Destino marcara aquele tempo para saírem da Judeia os dominadores dos homens”.

Flávio José, historiador judeu, diz expressamente que “nessa época, um homem da Judeia, assumiria o governo do mundo”.

Diante desses velhos escritos que os mencionados historiadores reputam sagrados; diante desse Rei que todos esperam esteja prestes a sair da Judeia, ante a data do seu aparecimento tão precisamente assinalada. Voltaire, deixa de lado o mordaz sarcasmo para confessar por sua vez: “De tempos imemoriais, corria entre os Hindus e os Chineses a máxima que o sábio viria do Ocidente; a Europa, ao contrário, dizia que o sábio viria do Oriente”.

Assim, de todos os pontos, os povos mais diversos vinham encontrar-se em derredor dessa misteriosa expectação. E, à medida que se vai avizinhando a hora, os ânimos cada vez mais conturbados, procuram ansiosos divisar no Céu qualquer sinal que lhes indique o berço do Rei do mundo.

Mas, por maiores que tenham sido os anseios das antigas idolatrias, por mais sublimes que se julguem os arroubos dos poetas e sábios da Grécia e de Roma, nem podem comparar-se com a visão segura e profunda que desse acontecimento teve o povo eleito, o povo de Israel.

Davi, Daniel, Isaías e tantos outros, rasgando o véu do futuro, celebram a grande figura do Filho de Deus, sua glória e seus tormentos, o infinito amor aos homens, que lhe caracterizará a existência, e a ignomínia de seus suplícios, estigma da ingratidão humana. Durante quatro mil anos, vêm eles bosquejando o maravilhoso perfil de Jesus e são os traços que de antemão lhe indicam tão precisos, tão reais, que, em Ele surgindo no cenário do mundo, é logo reconhecido.

Admirai a flagrante exatidão desses dados, ministrados pelos Profetas.

Dois mil anos antes de Cristo, Abraão recebe a garantia de que o Esperado sairá de sua raça e que será, pois, judeu.

Mil anos antes, Davi, nos seus salmos – verdadeiras obras-primas da poesia lírica – em acentos que ainda hoje reboam pelas naves e abóbodas das nossas igrejas e catedrais, depois de cantar a glória do Messias, a Quem chama seu Senhor, descreve a cena da Crucifixão com tamanho luxo de pormenores, que chega a ver os soldados romanos dividindo entre si as vestes da Augusta Vítima e sorteando-Lhe a túnica para ver a quem caberia.

Oitocentos anos antes, Miqueias nos indica Belém como o lugar em que nascerá.

Setecentos anos antes, Zacarias O vê entrando triunfalmente em Jerusalém, montado em simples jumentinho e conta nas mãos de Judas as trinta moedas de prata, que serão o preço vil da infame traição.

Seiscentos anos antes, é o grande Isaías, que projeta sobre a figura do Cristo luz tão intensa, que lhe mereceu ao Profeta a denominação de quinto evangelista.

Esse inacreditável quadro, delineado com tão grande antecipação, não seria completo, se não contivesse a data precisa, na qual surgiria no mundo Aquele, por quem tantos séculos haviam suspirado. Pois nem mesmo essa circunstância escapou à aguda visão dos vaticínios de Israel. Daniel, com uma clareza que assombra, levanta uma ponta do véu dos tempos e vaticina com segurança: “Desde o decreto para a reedificação de Jerusalém até o Cristo Rei, 7 semanas e 62 semanas hão de correr. Depois de 62 semanas o Cristo morrerá”.

O edito, profetizado por Daniel, foi promulgado por Artaxerxes, no ano 445, antes da nossa era. Como as semanas de Daniel, são semanas de anos, seriam pois 475 anos após, isto é no ano 33 de nossa era, que o grande Esperado seria condenado à morte.

Maior precisão não seria possível! Era a voz do futuro falando com a segurança que só encontramos nas relações do passado.

Nos monumentos da história hebraica, nas tradições universais do gênero humano, acabamos de deparar com a persuasão constante e generalizada de que estava prestes a nascer o Divino, o Santo, o Poderoso, o Messias, o Desejado das Nações.

Assim amparado nos braços de Abraão, Jacó, Isaías, Davi, Miquéas, Zacarias e Daniel, surge o Cristo no indestrutível do passado, esse passado que não se inventa nem se usurpa.

Nenhum mortal pode jamais desfrutar glória semelhante. Os maiores homens, em torno dos quais a Terra entoou seus mais arrebatados ditirambos (poesias) de louvor, carregando-os em seus carros de triunfo, só foram conhecidos, amados e adorados depois do nascimento. Cristo, não. Sua fisionomia idealmente pura e bela e sua incomparável grandeza foram conhecidas e aclamadas, séculos e séculos antes de vir ao mundo. E a terra, que já O amava, tanto e tanto O esperou que sua esperança se fez prolongado gemido, o qual se transformou, por fim, nessa angústia indizível cujo impressionante clamor, teve por vezes ecos sublimes como estes: “Ó Oriente, esplendor da luz eterna! Sol de justiça! Vinde iluminar os que estão sentados nas trevas e deitados à sombra da morte!” “Rorejem os Céus e as nuvens chovam o Justo!”


A Missão do Povo Judeu


Vimos, Domingo passado, que, pela volta do ano 714 de Roma, a crer-se no que afirmam velhos historiadores como Tácito, Suetônio, Flávio José e outros, vivia o mundo na antiga e constante persuasão de que o Rei das Nações estava para nascer.

Como se explica que o Oriente e o Ocidente, a Ásia e a Europa, os povos mais policiados como os que se achavam ainda mergulhados nas trevas da barbárie, todos a uma voz professavam a mesma crença, viviam das mesmas esperanças?

Essa unanimidade de sentimentos, com que os povos mais diversos concorriam de toda a parte ao berço do Messias, não é possível explicá-la senão por meio de uma Revelação primitiva, feita a todos os homens. Para que essa mensagem de esperança pouco a pouco se difundisse por todos os recantos do mundo então conhecido, houve Deus por bem servir-se de um povo missionário, o povo judeu, que, misturando sua história com a dos outros povos, não só a propagou no seio da humanidade, como a conservou íntegra e firme na plenitude das suas afirmações.

Vejamos pois, como Deus forma e prepara esse povo e como este cumpre a sua augusta mas atormentada missão.

A origem de uma nação, quando não se perde na noite dos tempos, obedece a uma série de acontecimentos para os quais seria temerário traçar leis gerais.

Um magote de salteadores apodera-se de uma fortaleza e a torna inexpugnável: surgem daí os romanos. Uma horda bárbara lança-se contra um território vizinho e aí se fixa para sempre: assim nasceu a França. Monges derrubaram florestas, saneiam pântanos; missionários erguem uma igreja e ao lado um colégio: é a Alemanha ou o Brasil que por essa maneira se forma.

O nascimento do povo judeu é, entretanto, mui diferente e extraordinário.

Esse homem que Deus faz sair da Caldeia e conduz às terras de Canaã; essa promessa de sua descendência torna-se mais numerosa que as areias do mar e mais que as estrelas do Céu; esse filho único, sorriso e ventura de uma tarda velhice e que deve o próprio pai conduzir ao altar do sacrifício: tudo aí tem algo de elevado e misterioso que faz com que esse povo desde a sua origem seja chamado o povo de Deus.

Os demais povos ignoram o destino que lhes foi prefixado. O povo judeu, não. Tem nítida compreensão do papel sublime que vai representar. Sabia, de fato, Israel que sua vocação lhe conferia o domínio do mundo, não pela força das armas nem pelo esplendor do gênio, mas por esta glória mais alta: ser o depositário da Palavra de Deus e dar ao mundo Aquele que lhe deveria trazer a salvação.

Pontífice e Profeta do gênero humano, destinado a preparar a Terra para o advento do Desejado, por sua legislação, filosofia e religião se entrelaça com a história dos outros povos. Seria demasiado longo relatar aqui toda a acidentada história desse povo. Contentar-me-ei com uma rápida exposição.

Nem bem nasce e já Deus, por uma série de acontecimentos providenciais, o faz perlustrar várias regiões do mundo. O Egito, velho santuário das tradições mais antigas, foi o primeiro e o mais demoradamente visitado. Lá viveu Abraão, o pai dos crentes; José, que chegou a ser primeiro-ministro; Moisés que, a força de milagres, obrigou os sacerdotes egípcios a reconhecerem o poder de Deus, de quem era ele o enviado e o representante. Há mais de cem anos que gemem os Israelitas em duro cativeiro, quando Cécrops deixa o Egito e vai fundar na Grécia, o reino de Atenas. Os Hebreus ainda estão sob o mesmo jugo, quando Cadmus, o Fenício, que de há muito comercia com o Egito, vai construir Tebas na Beócia.

Os vestígios da passagem dos Hebreus pelo Egito, gravaram-se na pedra dos famosos obeliscos. Quando foi possível decifrar os sinais hieroglíficos – que por tanto tempo desafiaram a argúcia dos homens de ciência – não foi sem espanto que, nesses velhos monumentos, o arqueólogo se deparou com reproduções autênticas de páginas inteiras da Bíblia.

Suficientemente iluminado o velho Egito e quando os clarões já atingiam a Grécia e a Fenícia, Deus faz sinal a seu povo e este logo se encaminha para a terra que lhe fora divinamente preparada.

Em harmonia com a missão que lhe tocava desempenhar, achava-se a nova pátria colocada entre o Oriente e o Ocidente; à beira desse Mediterrâneo, cujas águas sempre azuis, banham as plagas mais ilustres; na vizinhança de Tiro, de Sidônia, de Mênfis, de Alexandria; na rota fatalmente seguida por todos os grandes condutores de povos: Nabucodonosor, Ciro, Xerxes, Alexandre, Pompeu, Tito.

A conquista, porém, não se faz pacificamente. Israel fatídico, sob o impulso de sua misteriosa vocação, ora ataca e conquista, ora é assaltado e reduzido à escravidão.

Assim é que Filisteus, Moabitas, Amonitas, Amalecitas, sucessivamente caem sobre ele, recortando-lhe em pedaços o território. Chega depois a vez de sustentar o embate com os grandes impérios: o Assírio, o Persa, o Grego, o Romano, esses gigantes que tão fundos vestígios deixaram de sua passagem pela História. O povo judeu vê-se envolvido no turbilhão dos violentos entrechoques desses povos e, qual satélite, vai seguindo toda a parábola que descrevem esses grandiosos astros, desde o início até a queda final. É então que Senaqueribe com todo o seu poder se vê batido e destruído junto aos muros de Jerusalém; é então que se funda Betúlia, a capital do reino do sul; é então que, uns após outros, se erguem os Profetas em Israel, para anunciar o terror e a esperança, ou para vaticinar ao inimigo a decadência e a morte. Mas, no desterro ou na servidão, longe da pátria ou no centro dela, a promessa do Messias é para esse povo luz nas amarguras, consolação nos revezes.

Enfim, no ano 599 antes de Cristo, Jerusalém é inteiramente destruída, o templo incendiado, o rei, os grandes Profetas Ezequiel e Daniel, conduzidos como escravos para a Babilônia. Ciro, entretanto, aparece e, à frente dos Medas e dos Persas, destrói Babilônia e liberta os judeus, desimpedindo-lhes a estrada que os havia de levar à pátria.

Heródoto, o pai da História profana, só então começa a ser conhecido. Só então Dario se lança contra a Grécia. Já nessa época os livros hebreus são traduzidos para a língua caldaica, a mais falada em toda a Ásia.

Chega o momento em que também a Grécia, rainha então do mundo pelo esplendor de sua civilização, sente o irresistível fascínio da Palestina. Aparece Alexandre à frente das coortes de ferro, às quais se misturam filósofos de vestes roçagantes. Jerusalém tem no próprio nome tão grande estímulo e tamanho poder, que ele deseja conhecê-la e destruí-la. Reúne seu poderoso exército e qual furacão sobre ela se precipita. Na iminência da ruína e do extermínio de seus habitantes passados a fio de espada, abrem-se ao valoroso cabo de guerra as portas da cidade e lhe vem o Sumo Sacerdote ao encontro, com o Livro das Profecias que lhe vaticina as conquistas. Impressionado, retrocede com seus guerreiros, poupa a cidade e promete amparo aos seus habitantes.

Quanto mais se divulga a tradição por toda a parte, tanto mais vivas se vão tornando as luzes. Assim, 233 anos antes de Cristo, coagidos por causas múltiplas, dispersam-se os judeus e se estabelecem uns na Ásia Menor, outros no Egito. Ptolomeu colma-os (enche-os) de honrarias e concede-lhes o direito de cidadania. O templo transforma-se numa das maravilhas do mundo e os sírios enviam-lhe custosas oferendas. Enfim, quando Roma, já em contato com a Grécia há muitos anos, move combate a Cartago, são os Livros Santos traduzidos para o grego, o idioma então mais conhecido e mais falado, a língua dos sábios e dos filósofos.

Cartago não resiste e sucumbe às garras aduncas (recurvadas) das altivas e invictas águias romanas. Sagunto é destruída, Nomancia arruinada e os Gauleses destroçados: Roma, sentada sobre os destroços de tronos e impérios que espedaçara, proclama-se com verdade Senhora de todos os povos.

Nesse tempo, governavam Israel os três irmãos Macabeus, os quais, derrotados e vencidos já os reis da Síria, reconstituíam o reino de Judá e estendiam o seu domínio sobre quase toda a Iduméa.

Dilatava-se, entrementes, o poder romano e as águias imperiais já se aninhavam na fortaleza Antônia, no próprio coração de Jerusalém.

Em Roma, disputavam o supremo poder, procurando cada qual eliminar seu rival, Mário, Silla, Pompeu, Antônio, César. Mário, o patrício, e Sila, o plebeu, desaparecem afogados num mar de sangue; Pompeu sucumbe em Farsália; Áccio vê Antônio derrotado e estendendo César os grandes braços, devassando o horizonte sem lobrigar (avistar) nenhum povo que não tenham os seus exércitos sujeitados, pode finalmente exclamar: Eu sou o rei do mundo!

Então, por toda a parte, dessa como por encanto o estrépito das armas e, no meio do silêncio que envolve o mundo, submetido pela primeira vez a um único cetro, ouve-se um rumor estranho; é o relógio dos séculos que soa 4 mil anos, anunciando para breve o terrestre advento de Jesus Cristo. Esses povos que se põem em movimento, essas sociedades que se erguem, se policiam e se destroem, tudo isso converge para a Encarnação, remate da obra divina em Jesus Cristo – verdadeiro Deus e simultaneamente verdadeiro homem. Tudo isso tinha projetado o Criador, quando plantara, desde o começo dos tempos, essa árvore imensa a cuja sombra se abrigariam os povos todos, para chegar a essa religião que divide a História em duas grandes fases distintas: uma – de preparação; outra – de execução.




Jesus Cristo é Deus.
Seu Nascimento,
e o Mundo Cristão
O Proclamam.


Entre cânticos angélicos e refulgentes luzes, nasceu o Menino de Belém. Sua pobre Mãe recebera-lhe o primeiro suspiro, enxugara-lhe as primeiras lágrimas que lhe umedeceram os olhos inocentes.

A oficina do carpinteiro abrigara os anos de Sua infância e o trabalho rude, sobre temperar-lhe de tristeza o pão, também lhe inundara a fronte de copioso suor.

Mas, depois de 30 anos de silêncio e de obscuridade, esse homem apresentou-se à terra maravilhada para lhe dizer: “Eu Sou a luz do mundo. Eu Sou o Princípio e o Fim… Eu Sou o Caminho, a Verdade e a Vida...”. E roborando logo tão insólitos dizeres com fatos não menos extraordinários, arrastou nas Suas pegadas multidões embevecidas, que nunca mais deixaram de O amar e adorar.

Quem é esse Homem? Jesus Cristo, dizemos nós.

Há, entretanto, quem escarneça desta nossa afirmação e, não só duvide que Ele seja Deus como chegue até a negar-lhe existência real, envolvendo-lhe a Pessoa na vaga nebulosidade de um mito, na dourada fantasia de uma lenda.

Veremos hoje, que Ele realmente existiu e, mais ainda, que Sua existência foi não a de um simples homem mas a de um Homem-Deus, como o atesta meridianamente o Seu Nascimento e como o tem constantemente proclamado o mundo cristão.

Quando um homem nasce, ainda mesmo que tenha o seu berço no paço real, surge sempre entre o nada e o desconhecido, entre o silêncio e o mistério: sem passado, aguarda o futuro indevassável. Nenhum mortal conseguiu jamais que dele se falasse antes de nascer.

Por mais poderoso que tenha sido o homem durante a vida, e por mais célebre depois da morte, acaso conseguiu que se preocupassem com sua pessoa os que existiram antes dele? Quem há que tenha logrado, antes de nascer, perpetuar-se na memória de uma família, de um povo, da humanidade inteira, fazendo-se admirar, amar e adorar por antecipação?

Os clarões dessa glória incomparável uma só pessoa iluminaram: JESUS CRISTO!

Numa das palestras anteriores, vimos que Jesus vivera, antes de nascer, na memória do povo judeu. Sua lembrança foi luz nas amarguras e consolo nos múltiplos revezes por que passara esse povo. A esperança de Sua vinda fizera vibrar os lábios dos Profetas, incrustara-se nas páginas dos seus Livros Sagrados, nos reluzentes mármores dos Seus altares, nas pedras preciosas do Seu templo suntuoso; misturara-se por tal forma com as origens, os destinos, as alegrias, as desgraças desse povo, que podemos dizer ter sido Ele a pedra de fecho da cúpula desse grande monumento histórico e social da antiguidade. Por outro lado, tivemos ainda ensejo da averiguar que, embora sob luz menos brilhante, com seus traços esbatidos na sombra, Jesus viveu também na memória dos Gentios.

No fundo dos seus santuários, no seio das suas florestas, como no jardim de Academus e no Liceu de Atenas, o nome do misterioso Menino insinuou-se na poesia, invadiu a história, penetrou a filosofia desses povos. E notai bem que esses povos tão diversos, vinham todos encontrar-se em redor do berço de um Deus, não de um homem. Era um Deus que os pagãos pediam ao Oriente pela boca de seus sábios; era um Deus que Israel pedia a Belém pela voz dos seus Profetas.

Alguém dirá: “Não foi Jesus Cristo que viveu na memória dos povos do Oriente e do Ocidente”. Se não foi Jesus Cristo, que outro homem do Oriente registra a História, que outro descendente de Davi, que outro menino de Belém, o qual, no momento assinalado pela expectação universal, se tenha apresentado aos homens como o Deus que esperavam?

A esperança universal dos povos teria sido frustrada e passaria a constituir um fenômeno singular, nunca antes assinalado nem depois, a saber: uma loucura coletiva que levou povos de tão diversa índole, religião e posição geográfica, a considerarem como Deus um homem que nunca existiu e que jamais existirá.

Mas, para provar a existência histórica de Jesus e a Sua divindade, aí se encontra, à vista de todos, o mundo cristão.

Como essas nebulosas fecundas que povoaram os espaços incomensuráveis, o Cristianismo, transpostas as planícies da Judeia, foi progressivamente suscitando em toda a terra, sociedades que, iluminadas da mesma doutrina e temperadas na mesma virtude, nele encontraram a genuína fonte de vida e calor. Transponde as montanhas, vadiai os rios, atravessai os mares que separam os grandes continentes, visitai os arquipélagos e as ilhas perdidas na vastidão dos oceanos: por toda a parte descobrireis a Cruz agrupando à volta de si grandes ou pequenas comunidades, as quais, se vos aprouver saber que fé professam, todas unânimes responderão: Somos cristãos!

Sim, somos cristãos, isto é, amamos a Jesus e procuramos imitar a Jesus. E unânimes deveras amam a Jesus! A criança, que, no regaço materno, aprende a juntar as mãos e a invocar a Deus, não te desejo mais ardente do que o de dar ao bom Jesus, ao Amigo dos simples e pequeninos, seu coraçãozinho forrado de inocência, na festa da Primeira Comunhão. O moço, que sente no seu íntimo o raivar das tempestades, o sangue alvorotado pela violência das paixões, reclina a fronte sobre o peito de Jesus para lhe segredar seus combates, suas fraquezas, suas derrotas e implorar contrito a graça que lhe purifica a alma. A idade madura descansa confiadamente, nas misericordiosas mãos de Jesus, o fardo imenso de uma vida atravessada de lutas e de fadigas. A velhice, já vergada ao peso de tantas fadigas e tantas decepções, atira-se aos braços do único Amigo que jamais faltou e que lhe diz, benévolo como sempre: Aqui Me tens.

Jesus é assim “amado como um amigo… como um pai, como o mais magnânimo dos benfeitores, como o mais doce dos consoladores, como Redentor e Salvador”. “É amado com amor terno que conforta o coração e lhe proporciona castas delícias. É amado com amor confiante, certo de ver satisfeitos os seus mais imperiosos desejos e as suas mais caras esperanças. É amado com amor generoso, disposto aos mais árduos sacrifícios, às renúncias mais acerbas para a natureza humana”.

O mundo cristão imita a Jesus Cristo. E essa imitação esmaltou a superfície da terra com a floração de virtudes até então completamente desconhecidas.

Nenhum inimigo do Cristianismo, por mais rancoroso, deixou de reconhecer que, no mundo cristão, a perfeição moral atingiu o mais alto grau. De fato, a nobreza das aspirações, a firmeza na luta contra os apetites desregrados da natureza, a flor da pureza, o lírio da virgindade, o respeito ao direito alheio, o amor do sacrifício, a generosidade no benefício, a magnanimidade ante a ofensa, a facilidade em perdoar, a generosa porfia quotidiana por sempre mais se aprimorar e muitíssimas outras variadas flores de virtude, que engrinaldam a fronte do justo e, por fim, culminam na santidade – exclusivo apanágio do Cristianismo – só vingam no jardim regado com o Sangue de Cristo.

De todos os fenômenos que surgiram à superfície tempestuosa da História, não há sequer um que possa confrontar-se com o do mundo cristão. Este é singular e sem precedentes na sucessão dramática desses vinte séculos volvidos.

Ora, de duas, uma: ou esse fenômeno, com a profunda transformação que produziu na face da terra, mergulha suas raízes no húmus impalpável de uma lenda, e outros termos, é efeito sem causa – inadmissível, por absurdo – ou a sua pedra angular, sua causa viva, pessoal, próxima, efetiva e total é Jesus Cristo.

Essa obra se reveste de caracteres tão surpreendentes, supõe fatores tão superiores às forças de um simples homem, que ela, por si só, basta para provar. Em subsequentes palestras analisaremos outras não menos brilhantes e não menos concludentes.

Para terminar, seja-me lícito fazer minha a súplica do grande Monsabré: “Mestre adorado, querido amigo de minha alma, assisti-me no longo percurso das verdades de que Sois o revelador e o centro vivificante… Fazei falar meu coração mais do que minha inteligência… Preparai os que me ouvem… Abri-lhes as portas da fé. Trata-se da Vossa glória e da salvação das almas: a Vossa glória e a salvação das almas que para mim valem mais que todos os bens deste mundo”.




Jesus Cristo é Deus,
afirma-o Ele próprio:
Eu Sou Deus”.


Ter vivido na memória dos povos, quarenta séculos antes de nascer, ter constituído, durante esse longo período de tempo, o anseio das nações e ter granjeado, após Sua morte, 20 séculos de amor e adoração que, num crescendo maravilhoso, vieram formar a viga mestra de toda uma civilização – quem não veria em tudo isso exuberante prova da Divindade de Jesus Cristo?

Segundo o método que adotamos a fim de vos poupar a benévola atenção, também a respeito da divindade de Jesus, iremos enfileirando as principais provas, que, no seu conjunto, formarão um bloco maciço e indestrutível; analisaremos hoje a Palavra de Jesus, para comprovar que essa Palavra inefável difere de todas as que foram pronunciadas neste mundo; que a proferiu Jesus em Seu nome próprio e que tem persistido indelével a despeito da ação destruidora do tempo. Ouvindo o que ela diz, colheremos esta afirmação excepcional – uma só vez proferida por lábios humanos - “Eu Sou Deus”.

A palavra humana! Haverá debaixo dos Céus coisa que jorre tanta luz, que produza tanta harmonia, que possua tão eletrizante poder como a palavra humana?

É por ela que o homem se exterioriza, porque a palavra é o sinal sensível do seu pensamento, o verbo da sua inteligência, o grito da sua alma. Por ela a alma, escapando do seu invólucro material, faz vibrar os lábios do homem para entrar em contato com outras almas, outras inteligências.

No mundo conhecemos três grandes palavras: a palavra da virtude, a palavra do gênio, a palavra da autoridade. A palavra da virtude enfeita de alegria o coração do homem honesto e faz empalidecer o crime, na miséria de suas maquinações perversas. A palavra do gênio desce das alturas luminosas do pensamento para cair no meio dos homens, envolta na música sonora e inebriante dos aplausos. A palavra da autoridade impõe o respeito, concilia a obediência, arrasta os povos para a morte, deita por terra os tronos, e modifica algumas vezes a geografia das nações.

Empolgante, arrebatadora, cheia de magias e seduções, a palavra humana, contudo, paga o indefectível tributo à fragilidade e imperfeições inerentes à natureza do homem. Não fala em seu nome próprio, porque sabe que, se a tanto se abalançasse, havia de sufocá-la o ridículo. É em nome do direito, da justiça, e sempre, em nome de um princípio, que ela agita, revolve, convulsiona a massa de seus ouvintes. É também limitada no tempo e no espaço. Irremediavelmente presa à época em que foi proferida, assiná-la sempre um determinado período da História.

Assim, é no Liceu de Atenas que se ouve a palavra de Aristóteles; a de Catão não transpõe os umbrais do senado romano. Fora da Agora que significação poderia ter a palavra de Demóstenes? Longe do Fórum a que ficariam reduzidas as magistrais orações que Cícero aí proferira? César só foi ouvido e obedecido pelas aguerridas e velozes legiões dos seus soldados… Nenhuma dessas três espécies de palavras jamais logrou obter a universalidade, porque, sendo palavra humana, se viu irremediavelmente circunscrita a determinado tempo e lugar.

Portanto, se depararmos com uma palavra que serenamente permaneça idêntica em todos os tempos e em todos os lugares, e conserve, através dos séculos, a inalterável frescura de sua mocidade, e todo o seu vigor de expressão, estaremos certamente diante de uma palavra que não é humana, mas divina; pronunciada não por um homem, mas por um Deus.

No pórtico do templo de Jerusalém, pelas estradas poeirentas, pelas vilas e cidades da Palestina, no esplendor de seus 30 e poucos anos, Jesus profere a Sua Palavra que não se encerra num estreito círculo de amigos; que não se circunscreve aos limites de um território, de uma nacionalidade, de uma raça; que não ecoa apenas entre o Jordão e o lago de Tiberíades nem vai expirar nos confins de Tiro e de Samaria. Confiada a todos os ventos do Céu, semeada em todos os quadrantes da terra, essa Palavra excepcional alcançou todos os climas, penetrou as mais variadas zonas de civilização, reboou impressionante e repercutiu solene em todos os tempos e todos os lugares.

Sobrepondo-se a, famílias, assembleias, povos e impérios, Jesus diz: falo a todos os homens; quem receber a Minha palavra será salvo e quem a repelir será condenado. Esta Minha palavra se dirige a todas as criaturas. Ninguém pode ignorá-la. Reis e povos, grandes e pequenos, ricos e pobres, ignorantes e sábios, hão de todos balbuciá-la ao nascer, repeti-la durante a vida, e selar com ela o derradeiro suspiro.

Eis uma palavra que jamais poderia ter sido proferida por homem nenhum. Transpondo o espaço e ultrapassando o tempo, aspira à universalidade, visa ao infinito.

A História, registra essa palavra como única e excepcional. Só o Cristo pode pronunciá-la. Só o Cristo pode falar ao homem em Seu Nome próprio e fazer-se ouvir e compreender em todos os tempos e em todas as latitudes, porque Sua Palavra transcende a esfera humana – é Palavra de Deus.

Nessa palavra, cujos caracteres divinos acabamos de analisar, o que mais nos surpreende e nos enche mesmo de assombro, não é a autoridade soberana de que se reveste, nem a extensão ilimitada que vitoriosamente ostenta no espaço e no tempo; é antes a máxima e sublime afirmação que encerra.

Conhecemos na História fundadores de impérios, de repúblicas e de religiões que, para darem à sua palavra o cunho de maior autoridade se apadrinharam com o nome de Deus. Apresentaram-se como inspirados, como iluminados por Deus, a fim de, penetrando mais fundo na alma desses povos, poderem granjear maior respeito para as instituições que fundaram. Não houve sequer um que seriamente se inculcasse por Deus. De alguns sei que, embriagados pelo vinho capitoso do poder e pelo incenso de um magote de bajuladores, por momentos se esqueceram de que eram homens. Mas, nem Tibério, nem o senado romano foram levados a sério. Sabiam que não era possível ludibriar a quem quer que fosse e ainda mais se convenceram, quando, o povo humilhado, em acesso de furor, tantas vezes se vingara da sacrílega comédia que pretendiam representar.

Somente Jesus disse com sinceridade a palavra que nunca lábios humanos proferiram e que jamais homem algum pode sequer imaginar: “Eu Sou Deus”.

Essa palavra de Jesus nós a encontramos nos quatro evangelistas, não, como seria lícito supor, em confidência discreta entre amigos e admiradores, mas como a de Cesaréa de Filipe, qual afirmação precisa e solene diante dos seus compatriotas. Esses possuíam a lei que lhes armava as mãos implacáveis contra os blasfemadores do Deus único por eles adorado. Jesus não a desconhece. Afronta com afirmações repetidas os furores desse povo que, na defesa do Santo Nome de Deus ia até ao paroxismo. E, para não sucumbir à lapidação com que O ameaçavam, vê-se o Mestre, certa vez, constrangido a fugir.

Jesus afirma solenemente que é Deus, perante o mais alto Tribunal de sua terra, no momento em que ia ser julgado. “Esconjuro-te, em nome de Deus vivo que nos digas se és o Cristo, o Filho de Deus”, exclama o magistrado. Jesus, de Coração tranquilo, responde com voz serena: “Tu o disseste, Eu Sou. Ver-Me-eis um dia sobre as nuvens do Céu a julgar os vivos e os mortos”. Acabava de proferir a sua própria sentença de morte. “Nós temos uma lei, bradam os judeus, e segundo essa lei Ele deve morrer porque se fez Filho de Deus”.

Pregado na Cruz, fronte coroada de espinhos, sentindo já chegados os derradeiros momentos da Sua vida, Jesus não se retrata, antes continua a falar como Deus. Promete o Paraíso ao bom ladrão que lhe o havia implorado e resume as afirmações que fizera perante os discípulos, as multidões e os juízes, nas repetidas súplicas ao Pai, de quem se diz Filho: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem!” “Pai, nas tuas mãos encomendo o meu Espírito”.

Nem os maiores cínicos, nenhum dos grandes celerados teve, na iminência da morte, forças para perseverar na estrada do crime: antes, caídos em si e debulhados em lágrimas de arrependimentos, confessaram todo o negror de suas vidas sinistras. E, contudo, nem o dever, nem o interesse, nem a perspectiva dos tremendos juízos de Deus lograram arrancar do coração e dos lábios de Jesus uma só palavra de retratação.

Objetar-me-eis: “Jesus dizia-se Deus sem estar convencido ou sem ter a certeza de que realmente o fosse”. Respondo-vos que os maiores e mais rancorosos inimigos de Jesus, todos O reputaram sábio, homem de alta perfeição moral; ora, um sábio não teria a leviandade de proclamar-se Deus, se não estivesse plena e absolutamente certo da verdade que afirmava; um Santo não proferiria tão horrenda blasfêmia, a que nem os lábios do mais infame celerado se atreveriam, mormente no instante supremos de entregar a alma a Deus.

Eu Sou Deus”. Não! Esta palavra nos lábios de Jesus e de Jesus crucificado, não é blasfêmia. É a mais extraordinária verdade que repercutiu sob a cúpula do firmamento.

Falo a cristãos que trazem Jesus no âmago do coração; que, ao levantar e ao deitar, depositam, no Crucifixo de marfim ou de madeira tosca, uma prece fervorosa, um ósculo de amor; que, desse Crucifixo, confidente de suas lágrimas secretas, vão haurir a coragem da virtude, o ardor que sustenta o combate, a constância que assegura a vitória.

A inabalável fé nas Palavras de Jesus oxalá vos torne mais humildes, mais castos, mais caridosos e vos inspire salutares desejos, santas resoluções e piedosos sentimentos! Possa ela produzir em vós frutos de graça e santidade para serdes, por vossa vez, testemunhas vivas a bradar com altivez aos incrédulos: “Eu não seria o que sou, se Jesus não fosse Deus!”.




Jesus Cristo é Deus,
é Ele quem o Afirma
com Ciência e Veracidade.


Palavra extraordinária a de Jesus! Sobrepairando as imperfeições e fragilidades da mera palavra humana, a palavra de Jesus não é de hoje, nem de ontem, mas de sempre; não a compreendem apenas os gregos e os romanos, mas todos os povos, em todas as latitudes da terra.

Brotava-lhe dos lábios tão impressionante que os seus contemporâneos, não podiam menos de exclamar: “Homem nenhum falou como este”. Entre as muitas verdades que ensinou, uma se ergue que ilumina as demais: a serena, alta e solene afirmação da Sua divindade – “Eu Sou Deus!”.

Quando tal se proclamava diante dos seus discípulos, dos seus compatriotas, do Tribunal que, precisamente por isso, O condenou à morte, não se teria Jesus enganado a Si mesmo ou não teria, quiçá, procurado enganar-nos a todos nós?

Terminamos nossa última palestra com essa pergunta e para que nenhuma sombra de dúvida vos pairasse no espírito, já então enunciamos a resposta a essa dificuldade.

Vamos, hoje, analisá-la mais acuradamente. Veremos que Jesus não podia ter sido vítima de qualquer engano a respeito de Sua natureza, pois que a tanto se opunha Sua inteligência excepcional; nem poderia ter-nos enganado, pois amando, como efetivamente amou a todos os homens com ilimitado amor, era impossível que, transtornadas todas as leis da psicologia, viesse a perpetrar tamanha monstruosidade.

O esplendor do olhar de um homem de gênio, disse Fénelon, ofusca todos os esplendores do sol.

Sem dúvida alguma, a figura centra que ressalta das páginas do Evangelho, a figura de Jesus, tem a fisionomia iluminada pelo clarão incomparável do gênio. A dupla qualidade que caracteriza essa eminência do pensamento, a saber: o dom de penetração e o dom de elevação, Jesus os possuía a par de simplicidade e candura verdadeiramente maravilhosas.

Quem tenha lido os Evangelhos saberá que nada escapava à extraordinária penetração do olhar de Jesus. Com que profunda intuição não desvendava os pensamentos ocultos nas dobras mais recônditas do coração!

Os fariseus não perdem de vista o Taumaturgo, analisam-lhe todas as palavras, esquadrinham-lhe todos os atos, na esperança de surpreenderem uma infração à lei. Esta apresenta-se na ocasião em que Jesus cura, em dia de Sábado, o paralítico da Piscina Probática. Enquanto ainda ruminavam dentro de si a forma com que vestiriam a denúncia, Jesus fixa-os demoradamente e, em voz alta, responde as acusações íntimas dos seus inimigos, enchendo-os de confusão. E, quando, acesos de cólera e cegos de ódio se mancomunavam para O prender, o Evangelho observa que o Salvador “conhecendo-lhes os desígnios” se afastou da região e se retirou com Seus discípulos para as margens de Tiberíades.

Ei-Lo na casa de Simão, o fariseu. A Madalena, ajoelhada aos pés do Mestre, lavando-os com suas lágrimas e enxugando-os com as madeixas dos seus cabelos. Escandalizado, resmunga o fariseu, ou antes, pensa consigo mesmo: Se este homem fosse profeta, certo saberia que esta mulher é pecadora”. A resposta a esse pensamento não se fez esperar. Veio pronta e cheia de caridade, lançando ao mesmo tempo, na alma da convertida, palavras de tanta misericórdia que a ergueram do lamaçal aos cimos luminosos da penitência heroica.

Poderia multiplicar os exemplos. Eles pululam em cada página do Evangelho. Os que venho de enumerar são, contudo, bastante eloquentes.

Na inteligência de Jesus, o que mais nos enche de admiração é ver que o dom de penetração não prejudica o de elevação, o movimento que aprofunda não contraria ao que eleva, sendo a um tempo sublime e penetrante.

Contam-se na História os homens que proferiram grandes e nobres palavras. Aquilo que, de onde em onde, a inteligência humana conseguiu a custo produzir, era em Jesus a forma habitual e constante de expressão.

Vede como Jesus é sublime, quando, como joalheiro emérito, entretece a filigrana de ouro de Suas parábolas imortais; como é sublime, quando, do alto da montanha, assim confunde as cobiças humanas e reconforta os corações humilhados, as dores desprezadas: “Bem-aventurados os pobres! Bem-aventurados os que choram! Bem-aventurados!” Como é sublime, quando ensina que devemos pagar com o bem aos que nos fazem mal. Como é sublime… não prossigamos, que longa seria a enumeração. Lede o Evangelho e vereis que cada palavra, cada frase brotada desses lábios divinos, tem cintilações que não ofuscam, antes exaltam e comovem ao ponto de nos banharem os olhos de lágrimas, e cuja doçura é realmente inexprimível.

Com a fronte assim coroada por essa fulgurante auréola de gênio – coisa admirável! – jamais se valeu Jesus da ênfase, jamais procurou em Suas palavras, em Seus gestos, em todas as Suas atitudes essa espetaculosa solenidade que afasta para longe os pequeninos, tomados de timidez. Ao revés, simples e bom, humilde entre os humildes, em cuja convivência se comprazia.

Essa a inteligência de Jesus. O Coração não era menos admirável.

Geralmente, por viverem nas alturas glaciais do pensamento, têm os homens de gênio o coração frio e quase insensível. Timbram mesmo em mostrar-se inacessíveis aos mais puros e suaves afetos, rebeldes a todas as expansões do sentimento, para que ninguém os confunda com o comum dos homens. Em Jesus, o vasto e ilimitado da inteligência de nenhum modo impedia as manifestações mais vivas do coração. Nele, muito ao contrário, não sabemos o que mais admirar, se as portentosas fulgurações da mente genial, ou se o Coração, feito de larguezas infinitas, a dar-se por inteiro, não só aos que se lhe vinculavam pelos laços do sangue ou lhe compartiam a intimidade venturosa, senão também a todos os que d’Ele se acercavam, a mendigarem uma gota do Seu imenso amor.

Acompanhai-Lhe todos os passos da vida pública, segui-O desde a oficina de Nazaré até o poço de Jacó, desde o pórtico do Templo de Jerusalém até o lago de Genesaré e presenciareis os estupendos atos, que Seu amor soube praticar. O Seu Coração não se inclina apenas para a humanidade em geral, mas colma de afagos, de bênçãos e de ternuras as crianças, Seus inocentes amiguinhos, que para Ele confiados acorriam. João reclina a fronte sobre o Seu Coração para daí colher os elementos com que compôs esse poema de amor, que é o quarto Evangelho.

Lázaro morre. Lázaro, debaixo de cujo teto fora Ele encontrar toda a doçura da amizade humana. Diante do cerrado sepulcro desse amigo, as lágrimas rebentam-Lhe dos olhos, e embargam-Lhe a voz os soluços, como também acontece conosco, quando a morte vem despedaçar-nos as fibras mais delicadas do coração. As dores alheias tão vivamente Lhe ferem o peito que O obrigam a restituir à viúva de Naim, o filho, cujo esquife acompanhava à sepultura; e a Jairo, a filha predileta, cuja morte o afogava em prantos.

Amou os pobres ao ponto de lavar-lhes os pés e chegou mesmo a prometer centuplicada recompensa e mais o Reino dos Céus a quem desse um copo de água ao pobre sedento. Os pecadores, a Samaritana adúltera, a Madalena desonrada, os desdenhados publicanos, amou-os tanto que, em toda a parte com eles se apresentava, incorrendo, por isso, nas recriminações e nas injúrias dos soberbos fariseus, extremamente ciosos da observância literal da lei. Não só lhes prometeu àqueles o perdão, mas ainda, numa de Suas mais enternecedoras parábolas, representou Deus ofendido como um Pai, cujo coração, ralado de dor, só deixa de sofrer, quando contempla jubiloso o regresso de todos esses filhos pródigos. Não houve lágrima que não enxugasse, nem dor que não suavizasse. Ao Seu encontro vieram sempre as maiores angústias, os supremos desesperos, certos de, naquele grande e incomparável Coração, depararem piedade, refrigerante gota de consolo. E, amando assim, como homem nenhum amou na terra, Jesus também nos ensinou a evitar e fugir dos abismos da fraqueza em que os pobres corações humanos quase sempre se enlameiam. Uma austera reserva, uma circunspecção a toda prova protegeu sempre contra a mais leve suspeita, a pureza do Seu Coração, santuário imaculado, que transformava em lírios as próprias flores do lodo que d’Ele se avizinhavam.

Quando um homem de gênio e de grande coração, habitualmente calmo, de falar ponderado e agir discreto, interrompe de chofre o curso tranquilo do pensamento, e se proclama Espírito Santo ou Pai Eterno, não há quem não lastime o total eclipse de tão luminoso astro. Por que, Srs? Porque essa estranha afirmação aberra do conjunto das ações por ele praticadas, não se liga por fio nenhum à trama de sua vida. É um demente, dizeis entristecidos. E o gênio que antes nele refulgia só serve para dar triste notoriedade a essa terrível desgraça. Não se teria passado o mesmo com Jesus? Não, srs. A afirmação do Cristo: “Eu Sou Deus”, longe de violentar a continuidade das Suas obras e das Suas palavras, foi, por assim dizer, a pedra de fecho de toda a Sua doutrina, desígnios e virtudes; tão intimamente se lhe entremeava na vida que, sem ela, não se compreenderia o Cristo.

A perfeição da inteligência de Jesus afasta, portanto, qualquer suspeita de loucura, nem a perfeição imensa do Seu Coração permite a hipótese de mentira e de falsidade. Logo, Jesus tinha plena consciência e absoluta sinceridade, quando pronunciou esta afirmação única: “Eu Sou Deus”.

E vós, ao contemplardes a maravilhosa perfeição daquela inteligência e daquele Coração, sentistes candente e insopitável nos vossos lábios o ato de fé, que prorrompeu firme e entusiasta do coração do Centurião: “Vere Filius Dei erat iste!

Vós Sois o Filho do homem, no sentido absoluto, Vós Sois o Homem ideal, puro, belo, completo, a mais alta flor de perfeição que desabrochou um dia na Terra. Mais do que isso, Vós Sois o Homem-Deus, o Verbo eterno, verdadeiro Filho de Deus, Redentor do mundo – Vós Sois o meu Senhor e o meu Deus!




Jesus Cristo é Deus:
Atestam-no as Suas Obras.


A proclamação que o Cristo fizera de Sua divindade nenhuma admiração poderia suscitar. É que ela se entrelaça de forma admirável, quer com as profecias concernentes ao Messias, quer com todo o conjunto de Sua vida e doutrina.

Fronte coroada pela Majestade do gênio, Coração Sagrado pelo amor mais sublime que a terra jamais conheceu, Cristo, ao fazer tão impressionante afirmação não podia enganar-se nem muito menos enganar-nos.

Entretanto, por mais genial que seja a inteligência que a inspirou, por mais sagrados que tenham sido os lábios que a proferiram, essa afirmação do Cristo não é suficiente para que desde logo o consideremos como Deus. Faz-se necessário saber se Deus a corroborou com o selo da Sua aprovação, a saber: o milagre.

Veremos hoje que, para provar a Sua divindade, Cristo não se esqueceu de obter para a Sua palavra a chancela de Deus, ratificando o que Ele, Cristo, solenemente afirmara.

Não padece dúvida alguma que, segundo a promessa feita aos Patriarcas, ao enviar Seu Filho à Terra, caracterizado por um sinal inconfundível, Deus não deixaria de credenciar devidamente a embaixada da Redenção. É, aliás, o que fazem todos os chefes de Estado e o que fazemos todos nós.

Por que é que não contentes de lançar vossa assinatura num documento importante, mandais ainda reconhecer a vossa firma? Para que não seja possível confundi-la com audaciosa falsificação.

E Deus não teria tomado essa elementar medida de prudência, arriscando-se com isso a não ser reconhecido por nós e – o que é pior – expondo-nos a cometer o feio e monstruoso crime de tomarmos por Deus um simples e pobre mortal? Não é possível. O que não escaparia a vulgar prudência humana, não seria descurado pela sabedoria divina.

Mas, quais os peculiares característicos das credenciais dadas por Deus? As mesmas de todas as credenciais, a saber: selo que só a Deus pertença, fácil de ser reconhecido e impossível de ser completamente falsificado. E vai Deus buscá-lo acima, fora e, mesmo, contra o mundo natural, porquanto ninguém reconheceria num fenômeno vulgar a intervenção do Soberano Senhor do Universo.

Suponhamos que se vos apresente um homem, o qual, sobre arrogar-se uma divina missão, declare ser Filho de Deus e como prova dessa afirmação, faça coisas extraordinárias: cure doenças para as quais não conhece remédio a medicina, senhoreie os elementos, transmude a vossa vista umas substâncias em outras substâncias, restitua a vida aos mortos. Direis: Isto não é natural; aqui está o Dedo de Deus. Suponhamos ainda que esse homem consiga, pela só influência da sua doutrina, obrar no mundo a transformação mais profunda e radical, tanto mais surpreendente quanto há que lutar contra todas as paixões, todos os preconceitos, todos os interesses criados; suponhamos que os seus adeptos, tamanha coragem manifestem que velhos, mulheres, donzelas e crianças afrontem as mais cruéis torturas, e vão ao encontro da morte como se fossem para as delícias de uma festa. Direis: Isto não é natural; aqui está o Dedo de Deus.

Aqui está o Dedo de Deus!… Quereis com isso dizer que vos encontrais diante de fatos, cuja explicação foge ao simples jogo das forças naturais, cuja origem se esconde nas dobras do Mistério e com vos encherem de pasmo, vos arrancam dos lábios esta exclamação: Milagre!

O milagre é a impressão digital de Deus! Sabeis que Bertillon, por meio de seus estudos, provou que não há dois homens no mundo com as mesmas características digitais. É por isso que hoje se faz identificação não tanto pela fotografia, mas antes, pelas impressões digitais de uma pessoa. O milagre é, por assim dizer, sinal digital de Deus. Onde for ele encontrado, constitui prova insofismável de que Deus por ali passou.

Teria Jesus merecido a aprovação do Céu, quando declarou, com espanto dos seus ouvintes: Ego et Pater meus unum sumus. “Eu e meu Pai somos uma e mesma coisa?” Sim. Pois que não satisfeito de proclamar-se Deus, imprimiu à Sua palavra o cunho inconfundível da credencial divina.

De fato. Abri o Evangelho e vereis que em cada página Jesus apela para as Suas obras exteriores e visíveis a fim de provar Sua missão divina e, portanto, Sua divindade. Convida toda a nação judaica a convencer-se da verdade de Sua palavra pelo esplendor das obras que só Ele pode operar: “Se não acreditais na minha palavra, acreditai ao menos nas minhas obras, porque as obras que eu faço dão testemunho de mim”. E, quando os discípulos de João Batista vieram perguntar-lhe, da parte do mestre: “És tu o que deve vir ou devemos esperar outro?” Jesus, invocando a Sua soberania sobre o mundo exterior, não teve dúvidas em responder: “Ide anunciar a João o que ouvistes e vistes: os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam”.

De outra feita, a um paralítico declarou que seus pecados lhe estavam perdoados, e como replicassem os fariseus que só Deus pode perdoar pecados, Jesus afirmou textualmente: “Para que saibais que o Filho do homem tem o poder de perdoar os pecados (voltando-se para o paralítico, ordena-lhe): toma o teu leito e anda”. E o milagre incontinenti se verifica, com assombro de todos os presentes.

O império que Jesus exercia sobre o mundo exterior, não era feito desse temor respeitoso ou dessa insegurança muitas vezes manifestada pelos taumaturgos, mas dessa tranquila serenidade que só possui quem tem consciência do seu ilimitado poder. Não era poder de empréstimo que lhe houvesse Deus delegado. A soberania que exercia sobre a natureza lhe era própria e pessoal, brotava d'Ele como de sua origem, de seu princípio. Era em Seu Nome pessoal que operava todos os prodígios: “Adolescens, tibi dico, surge”, diz ao filho morto da viúva de Naim. E o Evangelho consigna: Virtus de illo exibat, et sanabat omnes, “procedia d’Ele uma virtude que a todos curava”.

Fazer milagres, durante a vida, já constitui por si prova tão grande, que nenhuma inteligência, salvo se eivada de preconceitos, se recusaria a admiti-la. Jesus, porém, vai mais longe. Avoca para Si a faculdade de continuar a realizá-los ainda depois da morte: “Quando for exaltado na Cruz, diz Ele, hei de tudo atrair para mim”. Crucificaram-no e, não obstante, os povos e os séculos cada vez mais se comprimem em derredor de Sua Cruz, amando-O e adorando-O como Deus.

Ouço uma voz imensa, exclama Monsabré, a voz das cidades e dos desertos, a voz dos continentes e das ilhas, a voz dos lugares que habito e dos confins da Terra, a voz dos séculos passados e dos tempos presentes: Credo in Jesum Christum Filium Dei! Quis que a fé n’Ele também operasse prodígios e eis que os Apóstolos, os Santos, em Seu Nome, ordenam à natureza submissa, curam os doentes, expulsam os Demônios, amolecem os corações endurecidos por longa série de crimes”.

Em lugar das divindades mentirosas que pervertiam as nações, quis ser adorado como Deus único, que recebia na montanha as homenagens do povo privilegiado; e eis que os templos se esboroam, os ídolos rolam na poeira de suas falsidades, e do esplendor da Casa de Javé não resta pedra sobre pedra; por sobre tantas ruínas sagradas, ressoa o cântico da Nova Humanidade: Adoramus te, Christe, et benedicimus tibi, nós te adoramos, ó Cristo, nós te bendizemos”.

Quis ser amado com amor universal e sem rival: os bens deste mundo, as afeições mais legítimas, a própria vida, tudo no coração do homem deve ceder ao amor de Cristo, tudo deve ser santificado por esse amor. E vistes o coração humano deixar-se invadir por esse amor sublime e, por ele, despojar-se de todos os haveres, abandonar pátria e família, passar uma vida de 30, 50 anos nos leprosários, à cabeceira dos enfermos, subir os degraus mais culminantes do heroísmo, da penitência, da santidade; tudo, tudo por amor desse Cristo”.

Ora, Deus não poderia, com milagres tão portentosos e que, no suceder dos séculos, se repetem cada vez mais maravilhosos, Deus não poderia aprovar uma impostura ou uma falsidade monstruosa sem acumpliciar-se com esse crime, sem deixar, portanto, de ser Deus. Logo, Jesus era o homem aprovado por Deus de quem falava o Apóstolo: Jesum Nazarenum virum approbatum a Deo. Logo, Jesus era verdadeiramente Deus.

Quando outrora, nos campos da Babilônia, três pobres exilados, consolavam-se da tirania do estrangeiro, orando a Deus, assim exclamavam: “Obras de Deus, bendizei o Senhor, Céu e terra, mares e rios, ventos e tempestades, bendizei o Senhor, louvai-O e exaltai-O”. Esse cântico dos três jovens, dizia a história do futuro. Os ventos e as tempestades, os mares e os rios, o Céu e a terra, bendizem a Jesus Cristo. A natureza inteira saúda em Jesus Cristo seu Deus e soberano Senhor. Com os elementos submetidos a Seu poder e dóceis à Sua voz, com as multidões que Ele nutria no deserto, com os mortos que Ele ressuscitara, com os infelizes que Ele curara, com a voz das gerações passadas, presentes e futuras, formemos um cortejo de súditos e de adoradores e, ajoelhados diante do trono de Sua soberania, digamos do fundo do coração: Tu es Christus, Filius Dei vivi. “Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo”.


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1.  Gál., 4, 4.

2.  Esta expressão designa a chegada dos tempos messiânicos, ou escatológicos, que levam a termo a longa espera dos séculos, como uma medida finalmente plena (cfr. Mc., 1, 15; At., 1, 7ss; Rm., 13, 11ss; 1 Cor., 10, 11; 2 Cor., 6, 2ss; Ef., 1, 10; Hb., 1, 2; 9, 26; 1 Pd., 1, 20.

3.  Mons. Francisco Bastos, “Nossa Fé”, Caps. XX – XXX, pp. 119-185. Edição da Pia Sociedade de São Paulo, São Paulo/SP, 1940.

4.  Coleção de Documentos Pontifícios, Vol. VI [89-106], Documento Contra as Inovações Doutrinárias dos Protestantes, n. 95, pp. 6-9. Editora Vozes Ltda., Petrópolis/RJ, 1953.

5.  Heb., 11, 6.

6.  Ef., 4, 14.

7.  Heb., 2, 14.

8.  Rom., 5, 12.

9.  1 Cor., 1, 30.

10.  At., 4, 12.

11.  Jo., 1, 29.

12.  Gál., 3, 27.

13.  Em medicina: predisposição de um indivíduo para determinadas doenças ou afecções. Em sentido figurado: disposição moral mórbida.

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