9ª Parte
Segundo a sentença de Deuteronômio 22, 5: “A mulher não se vestirá de homem nem o homem se vestirá de mulher; porque aquele que tal faz é abominável diante de Deus”.1
O Doutor Angélico o confirma: “... em si mesmo, é pecaminoso uma mulher trazer trajes viris, ou inversamente…”.2
Mas, “o Mestre do bem pensar”3 em seguida, também ensinou: “Pode-se, porém, proceder desse modo e sem pecado, se o exigir a necessidade: quer para ocultar-se dos inimigos, quer por falta de outras roupagens, quer por outro motivo semelhante”.4
Seguindo os ensinamentos do “Doctor communis Ecclesiae”, houveram variados exemplos na História da Igreja, dos quais, publico os seguintes:
9º Exemplo
Santa Teodora de Alexandria5
Teodora era mulher nobre, casada com um homem temente a Deus, que viveu em Alexandria na época do imperador Zenão. Com inveja da santidade de Teodora, o Diabo fez com que um homem rico se inflamasse de concupiscência por ela. Ele a incomodava com repetidas mensagens e presentes tentando seduzi-la, mas ela repelia os mensageiros e desprezava os presentes. Ele tanto a atormentou que ela perdeu o sossego e a saúde. Sem desistir, o homem recorreu a uma feiticeira que a exortou a ter piedade dele e a se render a seus desejos. Como Teodora respondia que nunca cometeria um pecado tão enorme ante os olhos de Deus, que tudo vê, a feiticeira acrescentou: “Tudo o que se faz de dia, Deus certamente sabe e vê, mas tudo o que se passa depois que cai o sol, Deus não vê”. A moça perguntou à maga: “É verdade isso que estás dizendo?”. Ela respondeu: “Sim, digo a verdade”.
Enganada pelas palavras da feiticeira, a moça disse-lhe para mandar o homem vir à sua casa à noitinha, que ela satisfaria a vontade dele. Exultante com isso, o homem foi à sua casa na hora combinada, teve relação com ela e retirou-se. Tendo caído em si, Teodora derramava lágrimas amarguíssimas e batia na própria face dizendo: “Ai! Ai de mim! Perdi minha alma, destruí o que me tornava bela”.
Ao voltar para casa e ver sua mulher desolada e aos prantos, sem saber o motivo, o marido esforçou-se para consolá-la, mas ela não queria aceitar consolo algum. Ao amanhecer, ela foi a um mosteiro de monjas e perguntou à Abadessa se Deus podia conhecer um grave delito que ela havia cometido ao cair do dia. A Abadessa respondeu: “Nada pode ser escondido de Deus, que sabe e vê tudo o que acontece, qualquer que seja a hora”. Chorando com amargura, ela disse: “Dê-me o livro do Santo Evangelho, para que eu mesma tire minha sorte”. Abrindo o livro ao acaso, leu: “O que escrevi, escrevi”.6
Voltou para casa, e um dia em que o marido estava ausente cortou os cabelos, vestiu roupas de homem e rapidamente se dirigiu a um mosteiro de monges distante oito milhas dali, onde pediu para ser recebida na comunidade. Quando perguntaram seu nome, disse que era Teodoro. Ali fazia com humildade tudo o que lhe pediam, e sua conduta agradava a todos. Alguns anos depois, o Abade chamou o irmão Teodoro e ordenou-lhe que atrelasse os bois e fosse buscar azeite na cidade. Enquanto isso, seu marido chorava muito, pensando que a mulher tinha fugido com outro homem. Então um Anjo do Senhor disse-lhe: “Levante-se de manhã bem cedo, fique na estrada chamada Martírio do Apóstolo Pedro e encontrará sua esposa”. De fato, ao passar por ali com seus bois, Teodora viu e reconheceu o marido e disse consigo mesma: “Ai, meu bom marido, quanto trabalho para pagar o pecado que cometi contra você”. Quando se aproximou, ela o cumprimentou dizendo: “Alegria, meu senhor”. Ele a reconheceu, e depois de ter esperado muito tempo pensou que tinha sido enganado e ouviu uma voz que lhe disse: “Quem o saudou esta manhã era sua esposa”.
A bem-aventurada Teodora era de tal santidade que fazia muitos milagres, como ressuscitar um homem dilacerado por uma fera, a quem ela amaldiçoou fazendo-a cair morta na mesma hora. Mas o Diabo, que não podia suportar tanta santidade, apareceu a ela dizendo: “Você é uma prostituta, uma adúltera que abandonou seu marido para vir aqui me desprezar, então, combaterei com meus terríveis poderes e se não conseguir fazê-la renegar o Crucificado, pode dizer que não sou eu”. Mas ela fez o Sinal da Cruz e no mesmo instante o Demônio desapareceu.
Outra vez, quando voltava da cidade com uns camelos, hospedou-se num lugar onde de noite uma moça foi até ela dizendo: “Dorme comigo”. Como Teodora repeliu-a, a moça foi encontrar outra pessoa hospedada no mesmo lugar. Quando se descobriu que estava grávida e perguntaram-lhe de quem concebera, ela respondeu: “Do monge Teodoro, que dormiu comigo”. Ao nascer a criança, levaram-na ao Abade do mosteiro, que depois de ter repreendido Teodora, que se limitou a pedir perdão, deu-lhe a criança e expulsou-a do mosteiro. Ela ficou sete anos do lado de fora do mosteiro alimentando a criança com o leite dos rebanhos.
Outra vez, surgiu uma tropa de soldados conduzidos por um príncipe que era adorado por eles, e os soldados disseram a Teodora: “Levante e adore nosso príncipe”. Ela respondeu: “Eu adoro o Senhor Deus”. Quando contaram isso ao príncipe, ele mandou que a levassem à sua presença e que a espancassem até parecer morta, depois do que a tropa toda sumiu. Em outra ocasião, Teodora viu ao seu lado uma grande quantidade de ouro, mas fugiu fazendo o Sinal da Cruz e recomendando-se a Deus. Um dia, viu um homem levando uma cesta cheia de toda espécie de alimentos e que lhe disse: “O príncipe que bateu em você encarregou-me de dizer-lhe para pegar e comer disso tudo porque ele a maltratou por engano”. Então ela se persignou, e tudo desapareceu.
Passados sete anos, em consideração pela paciência que ela demonstrava, o Abade reconciliou-se com ela e permitiu que junto com a criança entrasse no mosteiro. Certo dia, dois anos mais tarde, sempre vivendo de maneira elogiosa, ela trancou-se em sua cela com a criança. O Abade mandou alguns monges verificar com atenção o que ela estava fazendo. Ela apertava o menino em seus braços e beijava-o, dizendo: “Meu doce filho, o tempo da minha vida já chega ao fim e deixo-o a Deus para que seja seu pai e seu protetor. Doce filho, entregue-se ao jejum e à prece e sirva seus irmãos com devoção”. Após essas palavras, rendeu o espírito e adormeceu feliz no Senhor, por volta do ano de 470. O menino pôs-se a chorar copiosamente.
Naquela mesma noite, o Abade teve a seguinte visão: faziam-se preparativos para magníficas bodas, às quais por ordem dos Anjos compareciam Profetas, Mártires e Todos os Santos, no meio dos quais uma mulher caminhava sozinha, circundada por uma inefável glória. Tendo chegado ao local do banquete, ela sentou-se e todos os presentes aclamaram-na. Uma vos disse: “Este é o monge Teodoro, falsamente acusado durante sete anos de ter tido um filho, mas castigada por ter traído seu marido”. Ao despertar, o Abade correu com todos os irmãos à cela dele, que já estava morto. Ao despirem o corpo para prepará-lo, confirmaram que se tratava de uma mulher. O Abade mandou imediatamente buscar o pai da moça que a tinha difamado e disse: “O homem de sua filha morreu”. E descobrindo o corpo o pai viu que era uma mulher. Quando se soube disso, o medo tomou conta de todos.
Um Anjo do Senhor falou ao Abade: “Saia depressa, pegue um cavalo, corra para a cidade e traga com você a primeira pessoa que encontrar”. No caminho cruzou com um homem, a quem o Abade perguntou aonde ia e ele respondeu: “Minha mulher morreu e vou vê-la”. O Abade colocou o marido de Teodora junto consigo no cavalo, e quando chegaram choraram muito e enterraram-na com grandes honras. O marido de Teodora ocupou a cela da mulher, onde permaneceu até adormecer no Senhor. O menino seguiu os conselhos de sua mãe adotiva Teodora e distinguiu-se pela honestidade de costumes, de sorte que ao morrer o Abade, foi eleito por unanimidade para substituí-lo.
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Cfr. Santa Teodora de Alexandria, monja († 480) ,11 de Setembro (catedralortodoxa.com)
1. Bíblia Sagrada – Traduzida da Vulgata Sixto-Clementina e anotada pelo Pe. Matos Soares, p. 222. 9ª Edição, Ed. Paulinas, 1957.
2. São Tomás de Aquino, “Suma Teológica”, II-IIae. q. 169 a.2, ad 3.
3. São Paulo VI, Discurso pronunciado no Congresso Internacional Tomista, a 20 de abril de 1974.
4. São Tomás de Aquino, “Suma Teológica”, II-IIae. q. 169 a.2, ad 3.
5. Beato Jacopo de Varazze, O.P., Arcebispo de Gênova, “Legendae Sanctorum, vulgo Historia Lombardica dicta” – Legenda Áurea – Vidas de Santos, Cap. 87, pp. 531-534. Tradução Portuguesa, Companhia das Letras, 2003.
6. Jo. 19, 22.
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